© 2019 Alceu Ravanello Ferraro
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta publicação
pode ser reproduzida, arquivada
ou transmitida sem a permissão
expressa do(s) detentor(es)
dos direitos autorais.
Projeto gráfico
Revisão
Danilo Medeiros
Bethânia Lima
Bons Costumes
é um selo da Editora Jovens Escribas
Márcio Rodrigues Farias – Bibliotecário/Documentalista CRB15/RN 0335
F368i
Ferraro, Alceu Ravanello.
Igreja e desenvolvimento – o movimento de Natal / Alceu Ravanello
Ferraro; Renato Amado Peixoto (org.) – Natal(RN) : Jovens Escribas, 2019.
636 p.
(Coleção A Invenção da Terra Potiguar)
ISBN 978-85-66505-96-2
Religião – Rio Grande do Norte. 2. Movimento religioso – Natal –
Ensaio. I. Título. II. Coleção. III. Peixoto, Renato Amado (org.)
2019/07
CDD 261.8
CDU 94813.2
“CHEGAR ANTES DO RIO”:
ALCEU FERRARO, O LIVRO
‘IGREJA E DESENVOLVIMENTO
– O MOVIMENTO DE NATAL’.
Renato Amado Peixoto1
Certa vez, Alceu Ferraro relatou a um de seus entrevistadores aquilo que considerava ser, mesmo depois de
quarenta anos, uma de suas recordações mais vívidas,
a sua viagem de pesquisa ao agreste do Rio Grande do
Norte, em 1966.
Ele se lembrava de ter atravessado de jeep o Rio Potengi, completamente seco no comecinho do dia e, no final
daquela mesma manhã, espantado, ouvia Monsenhor
Expedito, seu acompanhante, dizer:
– Chove forte no Sertão! Vamos partir o mais tardar às
três horas, para podermos chegar antes do rio!
Quando o carro alcançou novamente as margens do
Potengi, Ferraro compreendeu a pressa do seu companheiro e o sentido de suas palavras, pois o rio já havia
chegado: caudaloso, rápido, lamacento e rumoroso.
Tiveram, então, de fazer um enorme desvio até a ponte que lhe possibilitaria atravessar o Potengi, porque esta
1. Professor do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História
da UFRN, Doutor em História pela UFRJ, é um dos líderes da RHC, Rede de
Pesquisa História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo e do Grupo de
Pesquisa História, Catolicismo e Política no Mundo Contemporâneo. E-mail:
renatoamadopeixoto@gmail.com.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
5
ficava já na cidade de Natal, na foz do Potengi, para daí
poderem voltar pelo outro lado do rio, até o seu ponto
de partida, acrescentando com isto mais cento e vinte
quilômetros à sua jornada.
Segundo Ferraro, daí para a frente, a expressão “chegar
antes do rio” passou a lhe soar misteriosa e dramática,
para ser rememorada a cada seca ou ameaça de estio no
Nordeste, conectando as lembranças de seu próprio passado com as agruras presentes daqueles com quem convivera e, lhe avivando as memórias das desgraças “de um
povo ainda à mercê dos industriais da seca” (FERRARO &
ARAUJO, 2006, p. 209-211).
Esta recordação me permite fazer uma inferência em
relação à vida de Ferraro. “Chegar antes do rio” é uma
expressão que bem pode ser utilizada para coroar a sua
existência e, ao contrário de mistério e drama, poderia
soar aos nossos ouvidos enquanto esperança e expressar
a conjetura de que a repetição poderia servir para iluminar os traços do Divino.
Afinal, Ferraro chegou ao Brasil a poucos dias de acontecer o Golpe Militar de 1964; alcançou o Recife e rumou
para a cidade de Natal, antes que a Repressão pudesse
suprimir o seu objeto de pesquisa. Na manhã mesmo
do anúncio do Ato Institucional nº 5, conseguiu retirar
duzentos exemplares de Igreja e Desenvolvimento da gráfica
onde seguia a sua impressão; auxiliado por simpatizantes
de sua causa nos Correios, logrou enviar para Roma boa
parte dos livros que lhe restaram, onde estavam sendo
aguardados para cumprimento da exigência de seu doutorado.
6
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
A maior parte dos exemplares retirados da gráfica ficou escondida num porão em Natal, para ser resgatada
pelo autor apenas vinte anos depois. Apesar disto tudo,
Igreja e Desenvolvimento foi passado de mão em mão e, dos
militantes do Movimento de Natal até os pesquisadores,
acabando por se tornar um livro bastante citado nas
áreas da História do Catolicismo, da Pedagogia, das Ciências Sociais e da História do Rio Grande do Norte.
No auge da Ditadura, em 1969, Alceu Ferraro foi solto
da prisão por uma enxurrada de fiéis, endossados, inclusive, por aqueles que defendiam o Regime Militar; depois
conseguiu alcançar o cargo de professor universitário na
UFRGS, apesar de estar fichado no DOPS/RS e de Igreja e
Desenvolvimento ter sido apontado como “altamente subversivo”.
E, passados mais de cinquenta anos da sua publicação,
poucas pessoas leram ou mesmo pousaram suas mãos sobre um exemplar de Igreja e Desenvolvimento – O Movimento
de Natal, mas, ainda assim, este livro permanece sendo
lembrado e citado. Por que isto?
Por um lado, apontei ao leitor os acontecimentos curiosíssimos que uniram o autor e seu texto e, apenas por
isso, já se poderia justificar a sua publicação, instigando,
se vivo fosse, Jorge Luis Borges a tecer, com seus dedos,
um daqueles contos onde o leitor descuidaria de conhecer o limite entre o sonho e a realidade.
Por outro lado, cabe revelar a importância e a originalidade de Igreja e Desenvolvimento. Este era, originalmente, parte do esforço de doutoramento desenvolvido
por Alceu Ferraro, na Pontifícia Universidade Gregoriana
de Roma (PUG), instituição ligada à Companhia de Jesus.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
7
Por conta disto, seu trabalho contava com um cuidadoso
e rigoroso aporte metodológico e teórico, gozando de
acesso facilitado às fontes. Ferraro recebeu auxílio direto
da Arquidiocese de Natal e da Fundação José Augusto, na
forma de equipamento, de pessoal técnico e de auxiliares de pesquisa, um esforço relativamente raro para o
Brasil de sua época e que resultou num alcance investigativo muito abrangente e profundo do seu objeto, o
Movimento de Natal.
Este Movimento era então a principal frente de aplicação do método Paulo Freire e vinha se constituindo
numa experiência inédita no catolicismo brasileiro, o da
‘Pastoral de Conjunto’, incentivada pela CNBB, apoiada
diretamente por D. Hélder Câmara e administrada por D.
Eugênio Sales, e que tinham interesse direto na pesquisa
de Alceu Ferraro. É interessante observar que D. Hélder
e D. Eugênio seriam grandes protagonistas no embate
religioso e político do país, nas décadas seguintes, inclusive, liderando correntes divergentes da Igreja Católica
do Brasil. A narrativa das origens destes protagonismos
e dos problemas que explicariam os seus afastamentos,
já garantiria a Igreja e Desenvolvimento o status de texto
obrigatório para aqueles que desejassem aprofundar o
entendimento de questões fundamentais acerca da relação entre a História Política e a História da Religião na
América Latina, da segunda metade do século XX.
Além disso, devemos observar que Natal era também
um palco da atuação direta do Estado brasileiro, resultado do interesse pessoal demonstrado pelos presidentes
Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros (ver a ‘Introdução’
desta obra) e que acabaria se consubstanciando no Movi-
8
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mento de Educação de Base (MEB). Este foi então articulado como uma atividade de alfabetização e de inscrição
da cidadania, destinada a desarticular a dominação tradicional das oligarquias nordestinas, contando com a arregimentação de novos eleitores desligados das práticas
tradicionais. A Igreja era, naquele período, um aliado
necessário do Estado brasileiro, por conta de ser a única instituição capaz de projetar esse esforço tanto nas
periferias das grandes cidades da região quanto nos seus
grotões profundos.
Esta circunstância derivava daquilo que Alceu Ferraro
descreveu enquanto uma atividade continuada da Diocese de Natal, a qual fora urdida numa trama inédita,
onde a seca e o subdesenvolvimento se reuniam à saída
dos efetivos estadunidenses e ao fechamento das Bases
aliadas no Rio Grande do Norte, com o fim da Segunda
Guerra Mundial.
Na visão de Alceu Ferraro, a atividade continuada da
Arquidiocese de Natal visaria, por conseguinte, colocar
a Igreja à frente tanto da ultrapassagem da dominação
oligárquica quanto do desenvolvimento da região. Estas
circunstâncias excepcionais permitiam a transformação
da Igreja Católica Brasileira e o experimento, no ‘Movimento de Natal’, de uma nova organização lastreada no
trabalho dos leigos e baseada no trabalho com os mais
humildes.
O experimento inédito da ‘Pastoral de Conjunto’ era
colocado então, pela própria CNBB e pelos organizadores
do ‘Movimento de Natal’, enquanto inspiração para as
ideias que visavam a transformação da Igreja universal,
entrevistas no Concílio Vaticano II e, para a Igreja latino-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
9
americana, na Conferência de Medellín, em 1968 (ver
Anexos I e III desta obra), o que explica o interesse direto
de D. Hélder Câmara e D. Eugênio Sales no projeto de
pesquisa liderado por Alceu Ferraro.
Fato é que Igreja e Desenvolvimento apenas aponta, mas
não explica (caso do livro homônimo de Cândido Camargo, de 1971), que essas novas ideias sinalizavam a ascensão da esquerda católica brasileira, então motivada pelas
ideias do padre Henrique Lima Vaz (FÁVERO, 2006, p.
64-65), e que estas juntavam o catolicismo ao marxismo,
gestando algumas das correntes e atuações progressistas
que influenciariam o catolicismo nas décadas seguintes,
como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Ação
Popular (AP), as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e a
Teologia da Libertação.
Que essas ideias não tenham conseguido empolgar a
constituição de um partido ou movimento católico de
esquerda, talvez deva ser explicado tanto pelo contexto
da Ditadura Militar quanto pelo projeto de organização
política da Igreja do Brasil, que desde o V Congresso Episcopal de Nova Friburgo, em 1915, preferiu o modelo da
‘Liga Católica’ e permitiu o fracionamento e cooptação
de suas lideranças pelos partidos laicos (LUSTOSA, 1983).
Como sacerdote, Alceu Ferraro se envolveu profundamente com essas ideias, teve contato direto com seus
participantes e acesso a documentos hoje destruídos. Na
realidade, ‘Igreja e Desenvolvimento’ é hoje a fonte principal para aqueles que se aventuram a compreender não
apenas a História do Rio Grande do Norte, mas, também
a guinada para a esquerda, da Igreja Católica do Brasil, e
o papel da CNBB, durante a Ditadura Militar.
Exemplos da repercussão dessas ideias no Movimento
de Natal estão distribuídos pelos textos de Alceu Ferraro e Cândido Camargo, e nos ajudam a compreender a
atuação dos militantes católicos, bem como a repercussão dessas ideias nos conteúdos ministrados nos cursos do MEB:
“Chegou aqui um político oferecendo-me um dinheiro. Eram 20.000 cruzeiros. Eu disse que não.
Não quero ser escravo, nem levar o povo para a escravidão. Ganhando esse dinheiro, a minha carne
fica saciada. Mas, meu espírito? Este fica escravizado” – José M., Guaramiranga, ?-?-62 (FERRARO,
1968: 192).
“Fiz 8 eleitores, e todos votaram consciente. Não
venderam voto a ninguém, que não deixei. Aqui
quase todos vendem seu voto para ficarem escravizados. Trocam seu voto por vestido ou sapato
ordinário, mas os meus eleitores não receberam
nada. Votaram livre para melhorar o país” – Monitora Maria Nazinha, Salgado, 10-11-62 (FERRARO,
1968: 193).
“Numa localidade vivem 270 pessoas. Só existe escola para 70 pessoas. Quantas pessoas desta localidade não têm direito à escola?”; “A família do Sr.
Joaquim não se alimenta bem porque seu salário
é injusto. Ele ganha diariamente Cr$ 0,35. Qual o
seu salário mensal?”; “Num município vivem 5.200
trabalhadores. 4.150 desses trabalhadores, desejando lutar por uma sociedade diferente, se uniram
através do sindicato. Quantos trabalhadores desse
10
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
11
município ainda não se uniram?” (CAMARGO,
1971: 108).
“Uma localidade tem 550 habitantes. 415 votaram
conscientes e os outros venderam seu voto. Quantos habitantes venderam sua liberdade?” (CAMARGO, 1971: 109).
Essas citações nos ajudam a compreender o impacto
do pensamento de Paulo Freire na carreira de Alceu Ferraro e na escrita de Igreja e Desenvolvimento e, a partir disto, apontar a importância fundamental desta obra para
aqueles que investigam a História da Educação no Brasil.
A produção de Alceu Ferraro concentrou-se principalmente, em periódicos da área de Educação, estando focada nas temáticas do rendimento escolar, do analfabetismo, da alfabetização e da escolarização, mas, a História
inacabada do Analfabetismo, um dos seus textos mais reconhecidos, nos serve de exemplo para colocar que não
apenas o ‘Método Paulo Freire’, mas também a atuação
de Paulo Freire é o centro do interesse de Alceu Ferraro.
No caso, não apenas a influência de Paulo Freire nas
atividades do Movimento de Natal é inegável, mas também se deve lembrar que este Movimento serviu como
inspiração e depois como laboratório para o MEB e para
outras aplicações do seu Método. Atividades mais lembradas hoje, como o experimento de Angicos, ou a campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’, só foram
possíveis porque utilizaram a mão de obra já formada e
experimentada no Movimento de Natal.
Por conta disso, podemos colocar parte do interesse
de pesquisa de Alceu Ferraro, pois Igreja e Desenvolvimento
12
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
explica as origens do Movimento de Natal e as transformações decorridas no seu transcurso, tanto em relação
à atuação local da Igreja Católica quanto às dinâmicas
de seus participantes. Isto correspondia a entender se a
aplicação do Método Paulo Freire transformara Igreja e
monitores no Rio Grande do Norte e, por extensão, também no Nordeste, na medida em que essa experiência
foi levada a cabo nessa região pelo MEB, com o apoio da
CNBB.
Ainda, se deve ressaltar que algumas das inovações
produzidas pelo Movimento de Natal, especificamente
as ‘Escolas Radiofônicas’, criadas ainda em 1958 para
a difusão do Ensino Supletivo, a partir da Emissora de
Educação Rural, são as antecessoras do atual modelo de
Ensino à Distância, levado à cabo na última década pelas
Universidades Federais, com apoio do Ministério da Educação.
Nossa organização da segunda edição revista, aumentada e corrigida de Igreja e Desenvolvimento – O Movimento
de Natal, visou apontar as circunstâncias de sua escrita,
produção e disseminação, e ressaltar que cada uma destas fases tem relevo para a recepção atualizada da obra.
Procuramos também juntar o texto de 1968 ao que
seria o seu primeiro capítulo, do qual ficou separado, e
que durante várias décadas este capítulo se conservou
inédito por conta de se ter apressado a publicação da primeira edição e, sobretudo, por receio da Repressão. Esta
parte do texto fica incluída nesta segunda edição como a
sua “Introdução”, e cabe aqui notar que na “Introdução”
ficam apenas apontadas as intenções do que seria o primeiro capítulo em 1968, pois este foi reconstruído por
ALCEU RAVANELLO FERRARO
13
Alceu Ferraro muito anos depois da pesquisa, já sem ter
as fontes originais à mão.
Buscamos também preservar as impressões de Otto
Guerra, principal líder católico do Rio Grande do Norte
em sua época e um dos fundadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), então alinhavadas
na “orelha” da primeira edição e incluídas nesta obra
como o seu “Anexo V”. As impressões de Otto Guerra são
importantíssimas para que se revelem as questões relativas ao alcance do Movimento e do projeto de pesquisa de
Alceu Ferraro, uma vez que Otto Guerra era muito próximo de D. Eugênio Salles. Além disto, estas impressões
têm grande importância para a História Institucional
da UFRN, permitindo mapear as suas relações com a Arquidiocese de Natal.
Procuramos, ainda, contextualizar a recepção e a censura de Igreja e Desenvolvimento em sua época para os estudantes e interessados na História do Brasil, trazendo
a ficha de Alceu Ferraro no DOPS do Rio Grande do Sul
como o “Anexo VI” desta obra, observando que este livro
(e seu autor) ficou marcado enquanto “altamente subversivo” pelos agentes da Repressão.
Por fim, destacamos que esta obra é fechada com uma
entrevista – o “Anexo VII” – onde o octogenário discute as
questões mais emblemáticas e controversas de seu texto
como se reencontrasse, cinquenta anos depois, o mesmo
rio, afinal este chegara antes, para lhe iluminar os olhos.
BIBLIOGRAFIA:
CAMARGO, C. Igreja e Desenvolvimento. São Paulo:
CEBRAP, 1971.
FÁVERO, O. Uma pedagogia da participação popular: análise da prática educativa do MEB – Movimento
de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Editora
Autores Associados, 2006.
FERRARO, A. Igreja e Desenvolvimento – O Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto, 1968.
FERRARO, A.; ARAÚJO, M. M. O Movimento de Natal
e a Indústria das Secas (1958). Revista Educação em
Questão, Natal, v. 26, p. 198-211, 2006.
LUSTOSA, O. Igreja e Política no Brasil: do Partido
Católico à LEC (1874-1945). São Paulo. Edições Loyola/
CEPEHIB, 1983.
Capim Macio, Junho de 2017.
14
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
15
INTRODUÇÃO
MOVIMENTO DE NATAL
E A INDÚSTRIA DAS SECAS -1958
Alceu R. Ferraro
NOTA DE ESCLARECIMENTO1
O texto principal aqui publicado – O movimento de Natal
e a indústria das secas, foi escrito para constituir um capítulo da minha tese de doutorado. Esta foi dada a público
pela Fundação José Augusto, em Natal, sob o título Igreja
e desenvolvimento – O Movimento de Natal, no início da manhã do dia 13 de dezembro de 1968, cerca de uma hora
antes do Ato Institucional n° 5, o que permitiu ao autor
salvar cerca de 200 exemplares. Desses, 50 seguiram por
terra, de Natal até Salvador e depois até Rio de Janeiro,
de onde, graças à ajuda de amigos e à compreensão de
1. Escrito em dezembro de 1998 e publicado no livro Movimentos Sociais - Ferraro, Alceu; Ribeiro, Marlene. Movimento de Natal e A Indústria da Seca (1958).
In: Movimentos Sociais - Revolução e Reação. Pelotas: EDUCAT, 1999, p. 175189.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
17
funcionário dos Correios e Telégrafos, puderam ser remetidos para a Pontifícia Universidade Gregoriana, em
Roma, para a obtenção do título de Doutor em Ciências
Sociais. Os restantes 150 foram escondidos em algum
lugar em Natal. Destes, talvez uns cinquenta foram distribuídos discretamente por lideranças do Movimento a
pessoas interessadas, sendo que 50, aproximadamente,
foram recuperados 10 anos mais tarde, através de pessoa
amiga. Do restante da edição, que permaneceu na gráfica
naquela manhã, nunca mais se teve notícia.
Na realidade, como a tese estava ficando muito extensa, o capítulo agora publicado foi cortado de última
hora, para posterior publicação como artigo. De fato, inicialmente não foi publicado por razões políticas. Depois,
por ter andado extraviado, em meio a outros papéis, por
mais de três décadas. Recuperado recentemente, achei
que valia a pena publicá-lo, até porque a seca de 1998,
justamente nos quarenta anos daquela de 1958, parece
estar mostrando que nem a seca deixou de ser um bom
negócio, nem os governos estão melhor preparados para
enfrentá-la. Provavelmente porque a improvisação seja
a alma do negócio. Ressalvadas correções de linguagem,
optei por preservar o título e o texto em sua forma original de 1966, com a leitura dos fatos então feita. É, como
tal, que o texto deve ser lido. Não foi intenção minha –
nem caberia – avaliar ou discutir aqui as trajetórias que
se seguiram aos fatos narrados, seja dos atores envolvidos, seja do autor.
É uma lástima que não tenha guardado comigo as
centenas de telegramas examinados, encontrados num
balaio, no subsolo de uma construção provisória, no local reservado à construção da futura Catedral de Natal.
18
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Excetuada a nota 21, acrescentada por ocasião da revisão
do texto em 1998, todas as demais notas são do texto
original, escrito em 1966.
A tese de doutorado Igreja e desenvolvimento – O Movimento de Natal (1968), da qual o texto aqui apresentado
deveria ter sido um capítulo, abordou o problema da relação entre religião e desenvolvimento, na perspectiva
do impacto que as diferentes religiões podem exercer sobre o processo de desenvolvimento. Em termos teóricos,
questionava-se a generalização de Karl Marx, que via na
religião em si, qualquer que ela fosse, um obstáculo ao
desenvolvimento. Por mais que o autor pudesse ter razão
em suas críticas ao caráter conservador do catolicismo e
protestantismo na Europa de seu tempo, objetava-se-lhe
principalmente o não ter feito distinção entre diferentes formas históricas de religiosidade. Concretamente,
a pesquisa orientou-se para a avaliação, sob o aspecto
da contribuição para o desenvolvimento, de uma experiência de trabalho social empreendida pela Arquidiocese de Natal nos anos 1950 e 1960, dentro do que se
considerava ser a região menos desenvolvida do país – o
Nordeste. Essa experiência se tornara conhecida como
O Movimento de Natal. Como se disse acima, a pesquisa
se desenvolveu e foi publicada num momento extremamente conturbado: entre abril de 1964 e dezembro
de 1968. Compreendeu a reconstituição histórica do
Movimento nos seus diferentes períodos; a observação
sistemática e centenas de entrevistas não estruturadas,
preparando a pesquisa por amostragem; análise de conteúdo de uma amostra de milhares de cartas de monitores de escolas radiofônicas; aplicação de questionário
estruturado a uma amostra de 376 chefes de família,
ALCEU RAVANELLO FERRARO
19
num estudo comparativo de quatro pares de pequenas
comunidades rurais do Litoral-Agreste do Rio Grande do
Norte. Cada um dos pares era constituído por uma comunidade trabalhada (submetida à ação social sistemática da
Igreja) e uma comunidade não-trabalhada (não submetida
a tal ação). A pesquisa envolveu concepções e práticas
relacionadas com saúde, educação, agropecuária, cooperativismo, sindicalização rural e politização...
A pesquisa histórica revelou que o Movimento, partindo
de atividades marcadamente assistenciais e paternalistas, em face de uma situação de emergência no período
imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, evoluiu
primeiro para um programa de desenvolvimento de comunidades rurais e, a seguir, para a luta pela mudança
de estruturas e desenvolvimento, extrapolando assim os
limites da pequena comunidade interiorana. A verificação empírica permitiu constatar que, segundo a maioria dos indicadores de desenvolvimento utilizados, as
comunidades trabalhadas apresentaram, em relação às
comunidades não-trabalhadas, diferenças significativas
no que tange a concepções, atitudes, comportamentos
e até condições de vida, mudanças estas comumente
tidas como indicadores de desenvolvimento. Confirmou
também o papel decisivo, em tais transformações, dos
inúmeros líderes formados pelo Movimento, particularmente quando seu trabalho se desenvolveu de forma associativa, através de grupos.
A ação Igreja contra a indústria das secas, em 1958,
constituiu momento fundamental, tanto no crescimento
e consolidação do Movimento, quanto particularmente
em sua re-orientação para o que se denominou “luta pela
mudança de estruturas”.
20
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Finalmente, optei por incluir um pequeno texto, intitulado A chegada do rio, escrito em francês, no final dos
anos 1970, como trabalho para o curso da Alliance Française, agora traduzido, com pequenas alterações de forma. Ele retrata a experiência do pesquisador, vivida no
estado do Rio Grande do Norte, no período da pesquisa, a
qual ficou indelevelmente registrada na memória e tem
relação estreita com o primeiro texto. Tem a ver com a
forma inesperada e surpreendente da chegada da água
numa região periodicamente castigada pela seca.
Segue o texto inédito, redigido em 1966 (Natal/RN), sobre a ação contra a indústria das secas no estado do Rio
Grande do Norte, durante a seca de 1958.
O MOVIMENTO DE NATAL
E A INDÚSTRIA DAS SECAS - 19582
Se não chove até 19 de março, dia de São José, é declarada seca. É como o estouro da boiada.
2. Para a elaboração deste texto utilizei principalmente as seguintes fontes:
1) a documentação do Serviço de Assistência Rural - SAR, particularmente os
telegramas expedidos e recebidos por Dom Eugênio Sales, Bispo Auxiliar de
Natal, e pelo SAR, por ocasião da seca de 1958; 2) uma entrevista gravada com
Dom Eugênio; 3) entrevistas com vigários e lideranças leigas do Movimento,
que haviam atuado na seca de 1958, e com outras testemunhas qualificadas; 4)
os jornais da época (março a junho de 1958). O grande número de telegramas
expedidos e recebidos por Dom Eugênio, entre meados de março e meados de
junho de 1958, é indicador da intensa atividade desenvolvida no período. Dom
Eugênio expediu 136 telegramas: 26 a autoridades federais; 9 a prefeitos; 92
a vigários do interior; 9 a bispos. Recebeu: 145 telegramas: 22 de autoridades
federais ou estaduais; 5 de autoridades municipais; 65 de vigários do interior;
e 6 de bispos. É provável que outros mais tenham sido expedidos ou recebidos,
sem o devido arquivamento (num balaio).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
21
Sem chuva não tem trabalho. Sem trabalho, não tem
planta, não tem colheita, não tem feira. É a fome generalizada. Assim, alguns dias após a declaração da seca, as
cidades enchem-se de pedintes.
A máquina governamental é lenta. Os interessados são
muitos: políticos, cabos eleitorais, correligionários, coronéis, ..., tornando-se difícil distribuir “equitativamente”,
entre tantos, as oportunidades de enriquecimento. Isto
retarda sempre o início dos serviços de emergência: construção de estradas, de pontes, de açudes, etc. Verbas são
desviadas. Operários fictícios são arrolados nas folhas de
pagamento. O trabalhador é enganado na quantidade de
serviço feito; na folha de pagamento que vai do DNOCS
(Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) para
o dono do barracão; no preço dos gêneros fornecidos no
barracão, sempre mais elevados do que no comércio local; no peso ou medida dos gêneros. O sistema de sublocação das obras de emergência produz uma longa escala
de intermediários, todos a pressionar para baixo. Como
ninguém quer perder (de ganhar), quem paga é sempre
o flagelado contratado para tais serviços de emergência.
Tudo isto faz com que o Polígono das Secas3 seja uma
área mais política do que fisiográfica.4
Por ocasião da seca de 1953, a Igreja Católica já atuara em dois sentidos. Primeiramente, colaborara no ser3. 52% da área total do Nordeste está dentro do Polígono das secas. Se excluirmos o Estado do Maranhão, que não é atingido pelo fenômeno da seca, os outros 8 estados do Nordeste (do Piauí à Bahia) têm 72% de sua área total incluída
no Polígono. O Estado do Rio Grande do Norte ocupa o terceiro lugar (90,6%),
precedido apenas pela Paraíba (97,8%) e Ceará (92,2%). (IBGE, Anuário Estatístico
do Brasil, Rio de Janeiro, 1963).
4. Veja, por exemplo, o capítulo “O combate às secas”, era obra de Stefan H. Robock, Desenvolvimento econômico regional – O Nordeste do Brasil, São Paulo, Globo,
1964, p.83ss.
22
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
viço denominado Assistência às Vítimas das Secas (AVS),
promovido pela Legião Brasileira de Assistência. Padre
Eugênio Sales viajara para o interior, organizando, por
conta da AVS, comitês municipais, com o intuito de diminuir a interferência política na aplicação do dinheiro
e distribuição dos alimentos. Quando não conseguia impedir a interferência dos políticos, dificultava a criação
do Comitê da AVS, como aconteceu em Augusto Severo.
Foram os primeiros choques, esporádicos ainda, com os
coronéis do interior. Paralelamente ao trabalho da AVS,
uma comissão constituída por Padre Eugênio, Padre Expedito e uma assistente social, percorreu várias áreas
do interior, com o intuito de tomar consciência do problema e animar a quantos estavam sofrendo com a seca.
Esse primeiro contato com a seca resumiu-se a uma
tomada de consciência do problema e a uma tentativa de
enfrentar a estrutura da indústria das secas, na verdade
um subproduto da estrutura social da Região.
No intervalo entre as secas de 1953 e 1958, o trabalho
do Serviço de Assistência Rural da Arquidiocese de Natal crescera muito. Isto permitiu que, em 1958, aos primeiros prenúncios de seca, a Igreja se lançasse numa luta
que, em poucas semanas, haveria de abalar duramente
essa velha estrutura conhecida como Indústria das Secas.
Duas circunstâncias extrínsecas fizeram com que o
grito levantado em Natal encontrasse ressonância no estado. A primeira reside no fato de que, desde o início
dos anos 50, um número cada vez maior de vozes vinha
fazendo-se ouvir, quer criticando a morosidade, desorganização e ineficiência dos órgãos federais que atuavam
no Nordeste, quer pondo em questão a própria política
federal caracterizada pelo conhecido programa Obras
ALCEU RAVANELLO FERRARO
23
Contra as Secas. Aos poucos fora-se delineando uma alternativa - uma política de desenvolvimento econômico
para a Região. O Banco do Nordeste do Brasil - BNB, cujas
atividades tiveram início em 1954, é fruto dessas novas
ideias.
O estado do Rio Grande do Norte ocupa o terceiro
lugar (90,6%), precedido apenas pela Paraíba (97,8%) e
Ceará (92,2%). (IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, Rio de Janeiro, 1963).
Principalmente através de seus estudos sobre o
Nordeste,5 o BNB tornou-se o difusor e sustentador do
enfoque econômico no tratamento dos problemas da
Região.
O I Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em
Campina Grande, nos dias 21 a 26 de maio de 1956, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, conseguiu reunir, além de bispos, grande número
de técnicos e homens de governo para uma revisão da
política federal no Nordeste.6
No Encontro, constatou-se a falta de entrosamento dos
órgãos federais no Nordeste. Partindo dessa constatação,
uma ideia tomou vulto: a da necessidade de um maior
entrosamento entre tais órgãos. Os frutos concretos do
Encontro foram dois. Primeiro, a aprovação, pelo Presidente Juscelino Kubitschek, que estivera presente, dos
19 projetos emanados do Encontro, visando a uma experiência piloto de colaboração e integração dos diver5. Cada um dos relatórios do BNB, correspondentes aos exercícios de 1955 a
1965, apresenta um estudo, geralmente extenso, sobre algum aspecto da economia regional nordestina. O Relatório do exercício de 1955 focaliza, em sua
introdução, o conjunto da economia nordestina.
6. BRASIL. Presidência da República. I Encontro dos Bispos do Nordeste, 1956.
273p.
24
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
sos órgãos governamentais que atuavam no Nordeste.
Segundo, o lançamento, pelo Presidente da República,
da Operação Nordeste, a qual, em fevereiro de 1959,
cederia lugar à CODENO (Comissão de Desenvolvimento
do Nordeste). Esta, por sua vez, em dezembro do mesmo
ano, após o II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal,
maio de 1959)7, seria substituída pela SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).8
Isto demonstra que foi no período entre as secas de
1953 e 1958 que se formou e, pelo menos em parte, se
concretizou uma nova maneira de encarar os problemas
da Região, representada pela passagem da política tradicional, caracterizada pelas “Obras Contra as Secas”,9 para
uma política de desenvolvimento regional.
Como segunda circunstância temos que, enquanto
o Governo Federal estava nas mãos do Partido Social
Democrático (PSD) e do Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), o estado do Rio Grande do Norte era governado pela
União Democrática Nacional (UDN), partido de oposição
no plano nacional. Como tal, o Governo Estadual não só
7. BRASIL. Presidência da República. II Encontro dos Bispos do Nordeste, 1959.
8. Stephan H. Robock assim comenta a ação dos bispos do Nordeste: “Uma iniciativa não-governamental liderada pelos bispos nordestinos da Igreja Católica
também foi significativa no movimento pro-coordenação.” E falando dos 30
decretos presidenciais resultantes do II Encontro dos Bispos do Nordeste, o
mesmo autor diz textualmente: “O êxito desta iniciativa dos bispos ainda
não foi determinado,›mas o efeito educativo da participação de um grupo de
grande poder de liderança resultou em decisivo apoio a várias atividades, tais
como a SUDENE.” (Robock, op. cit., p. l15).
9. Data do tempo do Império (1877) a tendência a encarar a seca do Nordeste
como um problema nacional. A política nacional de “combate contra as secas”
pode ser considerada como a primeira fase da ação do Governo Federal em
relação ao Nordeste, política esta posta em jogo a partir da seca de 1953 e
principalmente na seca de 1958 e superada definitivamente com a criação da
SUDENE em dezembro de 1959. (Cfr. Fernando de Oliveira Mota, “A SUDENE
e o planejamento regional”, Síntese política, econômica e social, n. 17, jan./mar.
1963, p.33-48).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
25
tinha dificuldade de acesso à Presidência da República e
aos ministérios, como também se considerava, por isso
mesmo, excluído de qualquer participação no gerenciamento dos recursos federais destinados às obras contra
a seca no estado. Foi assim que a Igreja acabou servindo
de ponte entre o Governo Estadual e o Governo Federal e
entre aquele e os prefeitos de oposição dentro do estado.
Ao primeiro prenúncio de seca, no início de março de
1958, Dom Eugênio Sales foi ao Rio de Janeiro e pediu
audiência com o Presidente da República. Convidou outros três bispos nordestinos que se encontravam no Rio
de Janeiro. Cerca de 60 parlamentares compareceram à
audiência. O Senador potiguar Apolônio Sales fez-se intérprete dos sentimentos e preocupações do Nordeste, ante
a iminência de uma nova seca. Foi uma “advertência ao
Governo federal para que não fosse apanhado desprevenido”, confessa Dom Eugênio, que, por outro lado, ficou
surpreso com a estranha euforia de alguns parlamentares, euforia esta motivada certamente pela perspectiva
das grandes fortunas que a seca poderia propiciar.
Intuindo a oportunidade, Dom Eugênio, de volta a
Natal, reuniu o clero do interior: “Se toparem a parada,
acabaremos com a indústria das secas”.10 Os padres toparam, e a luta começou. Acompanhado de uma equipe
de sacerdotes e leigos, percorreu mais de mil quilômetros, observando a situação em quinze municípios.
“A ideia” - diz Dom Eugênio – “era esta: se a seca vier
mesmo, o que é que vamos fazer? Que posição vamos
tomar? Por que parte vamos atacar?”11
10. De entrevista gravada.
11. De entrevista gravada.
26
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Foi um alerta à população e às autoridades.12 “Não havia ainda seca” – diz Dom Eugênio – “mas a fome era
geral. De um momento para outro levantou-se uma grita
geral que se propagou como um incêndio. Cidades foram
ameaçadas de invasão. O Governo estava despreparado.
Então resolvemos abrir frentes de serviço. Em nome da
diocese requisitamos gêneros nas mercearias e atacados
de Natal. A Marinha pôs à disposição uma frota de caminhões para transportar as mercadorias para o interior”.13
Por determinação do bispo, os vigários organizaram
comissões em suas paróquias.14 Deu-se início ao alistamento onde o DNOCS não tinha entrado ou onde o serviço era muito lento. Abriram-se frentes de trabalho.15
12. Foi incisivo o telegrama de Dom Eugênio ao Governador Dinarte Mariz,
que se encontrava no Rio de Janeiro: “Acabo regressar viagem quinze municípios várias regiões sem início serviços alguns desorganizados. Iniciado
crime barracões. Necessário exigir pagamento em dinheiro...” (Com data ilegível, mas certamente de fins de março de 1958).
13. De entrevista gravada.
14. Telegrama expedido por Dom Eugênio para os vigários de Nova Cruz, São
José do Campestre, Santa Cruz, São Paulo do Potengi, São Tomé, Angicos, Lages e Pedro Avelino: “Dentro poucos dias seguirão gêneros. Convide juiz, prefeito, e representante partido situação e oposição organizando comissão sua
presidência que fiscalizará funcionamento posto gêneros, Centro Social assumirá postos pagamento somente operários DNOCS em gêneros até segunda
orientação. Fica autorizado entenderse responsável DNOCS pedindo pessoas
confiança vigário fim encarregarse pagamento gêneros. Preços gêneros valor
custo acrescido quebra normal. Receba vales que serão entregues mediante
comprovantes Direção DNOCS. Seguirão novas instruções”. (Natal, 10/04/1958)
15. Textos de alguns telegramas dé vigários do interior a Dom Eugênio: “Iniciado serviço aceitamos cooperação” (São Paulo do Potengi, 01/04/1959); “Falta
absoluta gêneros próxima semana alistamento crescendo difícil contornar
situação” (São Paulo do Potengi (06-04-1958); “Até meio dia nenhum funcionário (do DNOCS) presente efetuar alistamento marcado hoje. Alistaremos
quatrocentos fornecendo dois dias posto. Precisamos carne e muita farinha”
(São Paulo do Potengi, 14/04/1958); “Remeto leva 600 homens Campo Redondo...” (Santa Cruz, 09/04/1958); “Serviços caráter urgência iniciados segunda-feira sem presença DNOCS... Urge fornecer pequeno comércio” (Angicos,
09/04/1958).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
27
Foi assim que começou a construção da Barragem do
açude Pataxó, em Angicos. Em São Paulo do Potengi deuse início à construção da estrada para São Tomé. Estas e
outras frentes de trabalho foram abertas por conta da
Arquidiocese de Natal. Simultaneamente as comissões
organizavam o fornecimento de gêneros aos trabalhadores.
Se o alistamento e as frentes de trabalho abertas pela
Arquidiocese provocaram reações, estas foram mais violentas ao se colocar em questão o monopólio dos donos
de barracão. Um exemplo ilustra o que ocorreu. Um comerciante de Macaíba conseguira autorização para abrir
um barracão em São Paulo do Potengi. Mas a Comissão já
havia abarrotado o Centro Social com as mercadorias trazidas por uma frota de nove caminhões da Marinha. Veio
o dia do pagamento. O DNOCS costumava entregar as
folhas de pagamento ao dono do barracão. A Comissão,
da qual fazia parte o juiz de São Paulo do Potengi, exigiu que as folhas fossem entregues aos operários, para
que pudessem fazer suas compras onde quisessem: no
barracão, no Centro Social ou no comércio local. Pressionado, o DNOCS entregou aos trabalhadores metade das
folhas de pagamento, indo uns abastecer-se no Centro
Social e outros no barracão. Uma grita geral levantou-se
quando os flagelados constataram a diferença: por trabalho idêntico, recebiam no barracão muito menos do que
no posto do Centro Social. Percebendo que o Centro Social não tinha gêneros para atender a todos os trabalhadores, o dono do barracão ausentou-se deliberadamente,
para desacreditar a Comissão perante os mesmos. Esgotados todos os gêneros estocados no Centro, a Comissão
28
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
não teve dúvida. Foi ao barracão, encontrando-o fechado
à chave e selado. Onde estaria a chave? Uma mulher declarou que o proprietário deixara a chave numa casa vizinha. Os trabalhadores foram atendidos. Tudo foi anotado
e o barracão fechado, deixando-se lá dentro as folhas de
pagamento. Já em Santa Cruz, a Comissão foi menos delicada. O vigário ajudou a arrombar o barracão. Houve protestos e ameaças de processo.
A arquidiocese, que já contava com 10 mil trabalhadores alistados por sua conta e não tendo como pagar aos
fornecedores de Natal, não poderia aguentar a situação
por muito tempo. Mas, a esta altura, a sorte da indústria
e dos industriais da seca já estava lançada. Enquanto as
comissões locais atuavam no interior e frotas de caminhões abasteciam os postos de distribuição instalados
pela Igreja, Dom Eugênio mantinha permanente contato telegráfico com o interior e com a Presidência da
República. Em resposta a um telegrama ao Presidente,
o Sr. Cleanto Paiva, Chefe do Gabinete do Ministro da
Viação, telegrafava a Dom Eugênio comunicando uma
série de medidas tomadas pelo Ministro para reforçar o
abastecimento na região. Ao anunciar a vinda a Natal de
navios com grande carregamento de gêneros, pedia colaboração da Igreja no sentido de impedir qualquer exploração e desestimular a especulação.16
Em telegrama de 14 de abril, os bispos das três dioceses do Rio Grande do Norte chamaram a atenção do
16. “Também muito ajudaria Governo ação representante Igreja e vigários impedindo tentativas exploração divulgando próxima chagada gêneros alimentícios fim desestimular especuladores e tranquilizar flagelados...” (Rio de Janeiro, 09/04/1958, do Sr. Cleanto Paiva, Chefe de Gabinete do Ministro da Viação.)
ALCEU RAVANELLO FERRARO
29
Presidente da República para o entrave constatado nos
serviços: a interferência de mesquinhos interesses políticos e econômicos, a inoperância dos órgãos federais, a
demora no recebimento das verbas de emergência e a
falta de abastecimento.17 No dia seguinte o Presidente
Juscelino anunciava sua próxima vinda ao Nordeste.18
Mas nem com a vinda do Presidente a situação melhorou.
Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça;
O que aconteceu a seguir foi narrado por Dom
Banco do Brasil virou-se para mim e perguntou-me
Eugênio: “Fui imediatamente ao Rio, na qualidade
se não tinha medo ao assumir a responsabilidade
de emissário dos três poderes estaduais: o Executi-
por tantos milhares de pessoas: se o Governo não
vo, o Legislativo e o Judiciário. Embora Dom Helder
me pagasse, como é que eu resolveria o problema?
estivesse doente, fui ter imediatamente com ele.
A resposta foi que numa situação dessas ninguém
Ele ligou para o Sr. Cleanto Paiva, Chefe de Gabi-
pode raciocinar...”19
que o Governo estadual era inimigo do Governo
Federal; que portanto o Governo Federal não iria
mandar dinheiro ao Governo estadual e que a nomeação de um general do Exército seria também
a única maneira de excluir os políticos que teriam
medo do Exército. A certa altura o Presidente do
nete do Ministro da Viação. Foi então que eu disse:
o Gabinete. O Presidente presidia. Eu fiz o históri-
Ao final da reunião, Dom Helder observou ao Presidente que Dom Eugênio não estava satisfeito com o resultado. “Que posso fazer?” - teria respondido o Presidente “Estes homens não me deixam”. Mandou que entrassem
ambos numa sala contígua e fechassem a porta. Saindo
por último do recinto da reunião, o Presidente entrou
por outra porta e fechou imediatamente.
co. Disse que havia assumido a responsabilidade
“Ficamos a sós” - prossegue Dom Eugênio. “Então
de muitos milhares de homens e que eu trazia
falamos também dos políticos que se aproveitavam
um pedido ao Governo Federal: que entregasse a
da situação. Não me lembro de todo o diálogo. Mas
coordenação das obras ao General Comandante do
o Presidente disse que tomaria todas as medidas
Exército daqui (Natal). Então o Presidente alegou
necessárias, que nomearia um General. Eu voltei
que isto seria intervenção federal. Observei-lhe
imediatamente para Natal. Foi designado o Gene-
que eu vinha em nome do Governo do Estado, da
ral Manoel Guedes. Este convocou todos os órgãos
‘É uma vergonha para nós, que somos do Nordeste – ele é nordestino - que isto se repita ainda.
A falta de organização é um dos males principais.’
Imediamente ele se prontificou a me ajudar. Pedi
uma audiência com o Presidente da República. Fui
com Dom Helder. O Presidente estava reunido com
federais. Convocou-os como se fossem oficiais.
17. Natal, 14/04/1958: dos bispos do Estado para o Presidente da República.
18. Rio de Janeiro, 15/04/1958: Do presidente da República para três bispos do
estado.
30
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
19. De entrevista gravada.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
31
Ao Diretor de uma dessas autarquias que criou
dificuldades, ameaçou prendê-lo. Foi uma verdadeira operação de guerra. Mapas na mesa: os pontos atingidos, levantamento de estoques, uma verdadeira operação militar. A Igreja, então, à medida
que o Exército ia assumindo, foi retirando-se de sua
posição de enfrentar pessoalmente o problema, ficando mais com a parte assistencial: assistência ao
velhos, inválidos, viúvas, doentes”.20
O próprio Dom Eugênio afirma ter sido alvo de grosserias, quando, de certa feita, averiguou irregularidades no
barracão do “chefe dos industriais da seca”, um poderoso líder político potiguar. Mas, a esta altura, o referido
“chefe”, embora mantivesse seu pessoal nos postos, não
controlava mais a situação. O Governo Federal não lhe
dava mais apoio e, no estado, o General Guedes assumira
a coordenação dos trabalhos.
Não podendo atingir a pessoa do bispo, o “chefe” tentou atingi-lo na pessoa do Dr. Antônio C. Malta, Diretor
do INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização)
e um dos mais estreitos colaboradores de Dom Eugênio,
querendo substituí-lo por um correligionário, mas sem
sucesso.
Ao grupo que se julgou prejudicado e que ainda conservava mágoa pela ação desenvolvida pela Igreja no estado do Rio Grande do Norte, durante a seca de 1958,
o Bispo Auxiliar de Natal respondia: “Diante da miséria
tremenda não restava outra atitude a ser tomada...
É missão do pastor velar pelo seu rebanho. Reconheço
20. De entrevista gravada.
32
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
que contraria interesses, mas acima deve estar o cumprimento do múnus episcopal.”21
Essa luta contra a indústria das secas marcou o início de nova fase no Movimento de Natal – a luta pela
mudança de estruturas na região. Dela, o Movimento
de Natal saiu fortificado. Apesar de a ação em favor dos
flagelados ter sido concebida, encetada e assumida pelo
bispo e pelo clero, principalmente do interior, numa iniciativa partida do alto e, à primeira vista, inteiramente
paternalista, as comissões locais mobilizaram grande
número de pessoas do interior, já engajadas ou não nas
atividades do Serviço de Assistência Rural da Arquidiocese, para serviços de alistamento, supervisão das
frentes de trabalho, e distribuição de gêneros alimentícios aos trabalhadores.
Essa participação no enfrentamento do principal problema da seca – a desorganização e a desonestidade
administrativa – levou muitos a tomarem consciência e
a interessarem-se pelos problemas cotidianos do homem
do campo, particularmente do trabalhador rural. As associações de jovens (clubes de jovens, os grupos de Juventude Agrária Católica) e os centros sociais se solidificaram no período e cresceram com a integração de
novos elementos. Enfim, o Movimento cresceu. A luta
pela reforma de estruturas estava aberta. Continuaria e
se alargaria com a criação do Setor de Politização e, particularmente, com a fundação dos sindicatos rurais no
início dos anos 1960.22
21. Cfr. O diário A República, Natal/RN, 11/05/1958.
22. Em 10 de agosto de 1958 foi inaugurada a Emissora da Arquidiocese de
Natal e com ela foram organizadas as primeiras escolas radiofônicas, que deram início à primeira experiência de educação de base pelo rádio no Brasil.
As diferentes fases do Movimento de Natal foram analisadas em: FERRARI, Al-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
33
A CHEGADA DO RIO23
Chove forte no Sertão! – exclamou Monsenhor Expedito, com um sorriso que dispensava o habitual bom dia
ao amanhecer. Seu semblante traduzia uma alegria que
contrastava com a tristeza e angústia das últimas semanas.
A Rádio acaba de anunciar que chove nas nascentes do
Potengi – prosseguiu ele, a caminho da pequena capela.
Começavam a chegar as primeiras famílias de camponeses. A boa nova circulava rapidamente. Os semblantes se
transformavam como que por encanto. Olhos curiosos
perscrutavam o céu à procura de algum sinal de chuva.
Mas, até aquele momento, nada de nuvens.
Monsenhor Expedito era o vigário da paróquia de São
Paulo do Potengi, cuja sede estava situada à margem direita do Rio Potengi. Eu realizava uma pesquisa no Agreste
do estado do Rio Grande do Norte, região intermediária
entre o Litoral e o Sertão potiguar, com vistas à minha
tese de doutorado. Tinha aceito de bom grado o convite
de Monsenhor Expedito e acompanhava-o em sua peregrinação de capela em capela dentro de sua paróquia.
O fato de estar em sua companhia me ajudava muito
nos contatos com os camponeses. Devido à violenta repressão das atividades sindicais, depois do Golpe Militar
de 1964, eles evitavam qualquer contato com estranhos
ao meio.
ceu. Igreja e desenvolvimento. O Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto,
1968. A fase denominada “luta pela mudança de estruturas” foi amplamente
analisada na referida obra, seja do ponto de vista histórico (Capítulo IV - II Fase
Rural), seja sob o aspecto das transformações verificadas (Capítulo X - Politização e Sindicalização). (Nota de 1998)
23. Texto escrito em Porto Alegre, em 1979.
34
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Tínhamos atravessado o Rio Potengi a seco, no jeep de
Monsenhor Expedito, fazia três dias. Mais uma vez a seca
se abatera sobre quase todo o estado do Rio Grande do
Norte, como, aliás, sobre quase todo o Nordeste.
O 19 de março, festa de São José, sinalizara, havia já
mais de uma semana, o último dia de espera. Milhares
de trabalhadores agrícolas e de pequenos proprietários
já tinham sido mobilizados em obras de emergência.
A terrível seca de 1958 e suas consequências dramáticas
ainda estavam bem vivas na memória do povo. A chuva
anunciada se revestia, por isso, de uma caráter de salvação, mesmo que tardia.
Durante toda a manhã a Rádio anunciava, em transmissões sucessivas:
– Do Planalto Central, a chuva se estende para todas
as regiões.
– A chuva vem na direção do Agreste e do Litoral. Mas
o Potengi, cheio e furioso, precede a chuva.
– O rio deve chegar a São Paulo do Potengi por volta de
quatro horas da tarde.
Por volta de onze horas, Monsenhor Expedito me alerta:
– Vamos partir o mais tardar às três horas, para podermos chegar antes do rio.
Às três da tarde estávamos a caminho. Nenhuma nuvem ainda; nenhum sinal de chuva no céu. A estrada era
péssima. O jeep avançava lentamente, aos solavancos.
E eu a pensar sobre aquelas palavras: “... para podermos
chegar antes do rio”. Elas não faziam parte do meu vocabulário.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
35
Às quatro horas estávamos ainda a quatro ou cinco
quilômetros da Cidade de São Paulo do Potengi. Alguns
minutos mais tarde, a algumas centenas de metros do
rio, Monsenhor exclamou, apontando para a margem
oposta:
– Veja! O rio já chegou!
Eu ainda não divisava o rio. Mas podia distinguir muito
bem, junto à margem oposta, grupos em festa, enquanto
outros já subiam a leve encosta, na direção da pequena
cidade.
Mais alguns segundos, e ei-lo diante de mim. Ou melhor, eis-me diante dele, porque ele, o rio, havia chegado primeiro. Inteiramente seco, três dias atrás, e agora
cheio até às bordas. A torrente d’água, da cor da terra,
rolava rápida e rumorosa. Compreendi então as palavras
de Monsenhor Expedito: “... chegar antes do rio”. Não
tínhamos conseguido. Isto prolongava nossa viagem até
a ponte situada em Natal, próxima à foz, para então retornar pelo outro lado - mais uns 120 quilômetros.
Treze anos mais tarde, ao tentar colocar no papel esse
momento marcante de minha vivência como pesquisador no Rio Grande do Norte, nos anos de 1964 a 1968, as
palavras de Monsenhor Expedito, “chegar antes do rio”,
ainda me soam misteriosas e dramáticas. Elas trazem
à lembrança, a cada nova seca ou ameaça de seca no
Nordeste, a desgraça de um povo ainda à mercê dos industriais das secas.
36
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
PREFÁCIO DO AUTOR
1) Muito se tem dito e escrito, nos últimos anos, sobre
RELIGIÃO e DESENVOLVIMENTO. O estudo que ora apresentamos ao público, concluído em dezembro de 1966,
é fruto de pesquisas realizadas a partir de abril de 1964.
Ao empreender este trabalho, objetivamos projetar mais
alguma luz sobre um dos aspectos da interrelação destes
dois fenômenos, ou seja, sobre o possível impacto exercido pelos grupos religiosos sobre os atuais processos de
desenvolvimento.
Como, porém, as sérias limitações de bom número de
estudos sobre o assunto resultam, muitas vezes, exatamente da carência de uma sistemática verificação empírica de suas hipóteses e teorias, decidimos dar, em nossa
pesquisa, prioridade a este método. Esta mesma opção
metodológica preliminar aconselhou-nos o estudo de
uma experiência em que um determinado grupo religioso
(católico, no caso), dentro de uma região ainda tradicional ou pré-técnica, se tenha empenhado em atividades
temporais, com vistas ao desenvolvimento. Projetada, a
partir de 1945, por seu intenso trabalho social conhecido
últimamente como Movimento de Natal e situada na Região
ALCEU RAVANELLO FERRARO
37
Nordeste do Brasil, cuja condição de pré-desenvolvimento
nos anos 1940 e 1950 não deixa dúvidas, a Arquidiocese
de Natal pareceu-nos campo apto para a verificação empírica de nossas hipóteses de pesquisa.
Na introdução, após havermos enfocado, em termos
genéricos, o problema e o método a seguir, apresentamos breve análise da Região e da forma de religiosidade
ali existente, chegando à seguinte definição do contexto
social e religioso em que se originou e expandiu o Movimento de Natal: uma região tradicional (pré-desenvolvida
ou pré-técnica) e tradicionalmente católica (de um catolicismo de tradição). Situando-nos dentro deste contexto,
enunciamos duas hipóteses (acrescidas, depois, de outra,
surgida no decorrer da pesquisa), que precisaríamos melhor e, se necessário, reformularíamos, com base nos dados do estudo histórico-descritivo do Movimento.
Levantamos, primeiramente, a hipótese da funcionalidade, do ponto de vista do desenvolvimento, das atividades temporais empreendidas pelo Movimento de Natal no meio rural da Arquidiocese. Em segundo lugar,
fundados numa tipologia de atitudes que a Igreja poderia
eventualmente assumir em face de um processo de mudança, levantamos a hipótese de uma vinculação: 1) entre
funcionalidade e existência de uma atitude inovadora ou
profética, da parte da Igreja, com relação ao temporal, e
2) entre atitude-ação no setor temporal e atitude-ação no
setor religioso.
2) A I PARTE dedicamo-la a uma visão de conjunto do
Movimento, dentro de uma perspectiva histórica.
O estudo dos condicionamentos (Capítulo I) nos permitiu identificar, já antes do Movimento, a partir de 1919,
38
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
uma fase criativa no setor temporal, sob a atuação da
Congregação Mariana de Moços, seguindo-se, depois, do
ponto de vista criativo, longo hiato até 1945, ano que
marca o início da crescente projeção da jovem Ação
Católica natalense e o começo do eclipse do marianismo.
Foi deste dinamismo social da Ação Católica que se originou o Movimento de Natal. Isto ocorreu precisamente no
momento em que, após uma fase de verdadeira inchação
demográfica durante a II Guerra Mundial, a Cidade, em
decorrência principalmente da retirada das linhas aéreas
internacionais e das tropas americanas e, mais que tudo,
do desaparecimento do dólar fácil, sofria uma queda vertical em todo o sentido, ficando com um saldo de graves
problemas sociais, especialmente nos novos bairros, surgidos da noite para o dia, no primeiro quinquênio dos
anos 40.
Os Capítulos II a IV mostram como o Movimento,
de caráter especificamente religioso em suas origens,
evoluiu, no setor temporal, de atividades marcadamente
assistenciais em face de uma situação de emergência (FASE URBANA), para um programa de desenvolvimento de comunidade, estribado no tripé: líder — grupo
— comunidade (I FASE RURAL), e, por último, após 1958
e especialmente nos anos 60, juntamente com o forte
impulso dado ao ensino primário e médio e ao cooperativismo, para a assim chamada “luta pela mudança de estruturas” (II FASE RURAL), extrapolando, assim, os limites da pequena comunidade interiorana, com crescente
influência no plano municipal e estadual e com repercussão, inclusive, em plano regional e nacional.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
39
Observamos, ainda, no Capítulo IV, como a forte reação da classe “político-patronal” rural, favorecida pelo
Regime implantado pela Revolução de 31 de março de
1964 e contando, daí por diante, com apoio mais eficiente e mesmo ostensivo da Polícia nas comunas do interior, acarretou para o Movimento uma freada violenta
em tudo o que dizia mais de perto respeito à “luta pela
mudança de estruturas” (o sindicalismo rural e o trabalho de politização).
3) A II PARTE, a principal neste estudo, trata da verificação empírica da hipótese da funcionalidade. O Capítulo V
(Metodologia) é uma introdução metodológica a esta parte.
Nosso interesse voltava-se principalmente para o trabalho empreendido pelo SAR (SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA
RURAL) no meio rural da Arquidiocese de Natal. Como,
porém, dado o clima de retraimento e desconfiança após
a Revolução, não víamos condições para levar a bom
termo uma verificação do impacto produzido pela “luta
pela mudança de estruturas”, voltamos nossa atenção especialmente para o trabalho de desenvolvimento de comunidades rurais, típico da I FASE RURAL, e para alguns
aspectos da II FASE.
Limitando o campo de pesquisa ao Agreste norte-riograndense, escolhemos 4 pares de comunidades, procurando manter, quanto possível, constantes, nas comunidades de cada par, todos os fatores ou agências de
mudança, excessão feita do SAR. Este modelo nos permitiu confrontar, “ex post facto”, com referência aos diversos indicadores de desenvolvimento empregados na
pesquisa, os dois grupos de comunidades: as 4 CT (Comunidades Trabalhadas) com as 4 CNT (Comunidades Não
40
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Trabalhados pelo SAR), e, em alguns casos, estabelecer
uma comparação entre as duas comunidades — trabalhada e não trabalhada — de cada um dos 4 pares.
A amostragem obedeceu aos seguintes limites de precisão pré-estabelecidos: probabilidade ou margem de
erro tolerada = 5%; intervalo de confiança = 95%; erro
padrão = 2%; 2 erros padrão = + - 4%. Extraída de acordo
com estes limites de precisão, a amostra constou de 365
chefes de família e 368 (50%) outros membros de 14 anos
e mais: ao todo, 733 pessoas entrevistadas.
A hipótese da funcionalidade foi assim reformulada e
explicitada:
I HIPÓTESE: As atividades temporais empreendidas pela Igreja, através do SAR, no meio rural da
Arquidiocese de Natal, demonstraram-se funcionais
ao desenvolvimento, seja 1) conformando concepções
e atitudes com padrões mais funcionais ou mais
compatíveis com os objetivos e o processo de desenvolvimento, seja 2) conformando com idênticos
padrões o comportamento dos indivíduos atingidos
e, em consequência e na medida disto, desencadeando, no mesmo sentido, um processo de mudança
nos sistemas tradicionais de relações do homem com
os meios físico, social e cultural, seja 3) criando
condições de vida já identificáveis com os próprios
objetivos do desenvolvimento.
Nos capítulos VI a X (VI — Saúde, VII — Situação TécnicoEconômica, VIII — Instrução (alfabetização e escolaridade),
IX — Formas Associativas e Cooperativas, Ação Comunitária e
Participação Social, X, — Politização e Sindicálização), segundo
ALCEU RAVANELLO FERRARO
41
a grande maioria dos critérios ou indicadores de desenvolvimento empregados na verificação empírica, emergiram diferenças altamente significativas e constantes em
favor das CT, isto é, das comunidades trabalhadas pelo
SAR. Por outro lado, no Capítulo XI (Consciência e Agentes de Mudança) aparece claramente que os entrevistados
das comunidades trabalhadas têm, em proporção muito
mais elevada dos que os das não trabalhadas, consciência
de tais mudanças (melhoras); que as mudanças por eles
apontadas coincidem praticamente com as emergidas da
aplicação de critérios objetivos na verificação empírica;
que, enfim, os agentes de mudança mencionados pelos
entrevistados das comunidades trabalhadas permitem
identificar o SAR (o Movimento de Natal em sua atuação
no meio rural) como principal responsável pelas mudanças ocorridas.
A hipótese da funcionalidade, por conseguinte, encontrou confirmação nos dados da verificação empírica.
4) A II hipótese (Capítulo XI.2) diz respeito ao rendimento dos líderes de comunidade, conforme sejam ou
não associados, ou então, conforme tenham ou não atuado, nas respectivas comunidades, através de grupos de
pequeno porte (associações voluntárias, de âmbito restrito à pequena comunidade interiorana: fazenda, sítio,
povoado, pequena cidade). Foi assim formulada:
II HIPÓTESE — O rendimento do líder associado foi
maior do que o rendimento do líder isolado ou não associado.
Esta hipótese não fora prevista de início. Surgiu em
estado já avançado da pesquisa. Foi-nos sugerida pela observação em dezenas de comunidades e por alguns dados
42
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
colhidos, a pedido da equipe de treinamento do MEB,
por ocasião de um treinamento de Monitores de Escolas Radiofônicas. Preparamos, então, às pressas, o Questionário B, que contém, além das de interesse do MEB,
algumas perguntas — poucas e simples, pois os questionários deviam ser preenchidos pelos próprios Monitores
— referentes à nova hipótese. Através dos treinamentos
e dos supervisores residentes no interior, foi-nos possível
atingir novamente os já entrevistados e estender a pesquisa a outros, num total de 248 líderes (Monitores).
Pelas razões acima, a II hipótese ressente-se, em sua
verificação empírica, da falta de técnicas mais elaboradas.
Contudo, sugerida, como dissemos, pela própria observação em grande número de comunidades e por depoimentos de líderes, a hipótese é reforçada pelos depoimentos
dos entrevistados das 4 comunidades trabalhadas pelo
SAR, que apontam como principais agentes de mudança
os líderes locais e os grupos de pequeno porte (a maioria
dos líderes apontados pertenciam a tais grupos), encontrando, enfim, dentro das limitações do Questionário B,
confirmação nos dados da pesquisa realizada entre os 248
líderes (Monitores), segundo todos os critérios aplicados.
5) A III PARTE (Relação entre funcionalidade e atitude e entre temporal e religioso) relaciona-se com a verificação da III
hipótese (II., na Introdução).
A hipótese tem por base a tipologia de atitudes que,
numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica,
a Igreja ou um grupo católico poderia assumir ao se lhe
apresentar o problema da mudança (Introdução, § 4.2):
— atitude reacionária: resistência à mudança, motivada
por interesses;
ALCEU RAVANELLO FERRARO
43
— atitude integradora: aceitação da mudança, motivada
por interesses;
— atitude conservadora: resistência à mudança, motivada por valores;
— atitude inovadora: acecitação da mudança, motivada
por valores.
Admitíamos, por hipótese, 1) uma vinculação entre
funcionalidade das atividades temporais e tipo de atitude, da parte da Igreja, em face do temporal, ou seja,
que a uma eventual funcionalidade corresponderia, da
parte da Igreja, uma atitude inovadora, e 2) uma vinculação entre atitude-ação, da parte da Igreja, nos dois campos: o religioso e o temporal.
Verificada empiricamente a da funcionalidade, nossa
III hipótese foi assim enuncicada no Capítulo XII):
HIPÓTESE — Por parte do Movimento e especialmente de seus líderes, de cujas atividades temporais
empreendidas no meio rural ficou demonstrada a
funcionalidade ao desenvolvimento, correspondeu
uma atitude inovadora, motivada por valores e não
por interesses particulares do grupo religioso, de
orientação profética e não ética, atitude esta resultante de um processo de desinculturação dos valores
cristãos e resultante num descomprometimento do
grupo religioso com o status quo social e religioso e
numa posição em favor da mudança tanto no setor
temporal como no religioso.
Tínhamos, por um lado, plena consciência das sérias
dificuldades de ordem teórica e metodológica relacionadas com a verificação desta hipótese, especialmente da
44
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
velha e intricada discussão a respeito do poder de motivação exercido por interesses e valores em processos de
mudança social. Por outro lado, a verificação da I hipótese
(objetivo primário de nosso estudo) absorveu-nos quase
totalmente o tempo e os escassos recursos financeiros de
que dispúnhamos, o que nos obrigou a restringir bastante o campo da pesquisa com relaçao à III hipótese. Apesar
disto, foi-nos possível chegar a algumas conclusões, que
emergem do estudo feito na III Parte.
a — Primeiramente, não resta dúvida quanto à existência de uma correlação íntima entre mudança efetiva
(melhora) nos dois planos semelhantemente ao verificado na II Parte com relação ao setor temporal, as comunidades trabalhadas pelo SAR acusam, com intensidade
ainda mais acentuada, mudanças (melhoras) do ponto de
vista religioso.
b — Aparece, em segundo lugar, em ambos os planos
(temporal e religioso), uma correlação íntima entre o suceder-se de metas e atividades relacionadas sempre mais
de perto com mudanças, e o surgimento da parte dos
principais líderes do Movimento, de uma atitude cada
vez mais consciente e decidida em favor da mudança.
c — Observa-se, em terceiro lugar, uma íntima correlação entre o surgimento de uma atitude e ação contra o
status quo social e religioso e em favor da transformação
da ordem tradicional, e a progressiva tomada de consciência e reflexão, da parte do grupo pensante do Movimento,
sobre certos valores cristãos, quer especificamente religiosos, quer sociais, mas, estes, intimamente relacionados
com os primeiros. A confrontação entre valores do grupo
ALCEU RAVANELLO FERRARO
45
religioso e realidade social e religiosa conduziu o Movimento a uma posição crítica e de relativo descomprometimento com relaçao ao status quo e a luta pela transformação da ordem tradicional. Neste fato identificamos o que
definimos como processo de desinculturação.
d — Concluindo, porém, que à funcionalidade das
atividades temporais ao desenvolvimento correspondeu
uma atitude inovadora ou profética, de maneira nenhuma
pretendemos afirmar que tudo no Movimento tenha
representado descomprometimento com o status quo e
atitude e ação em favor da mudança, nem que tudo e
sempre tenha sido motivado por valores, sem nenhuma
interferencia de interesses. As conclusões acima apontam tendências e predominancias que emergiram na pesquisa. É neste sentido que consideramos verificada a hipótese no que se refere ao Movimento de Natal.
e — Contudo, embora verificada a hipótese no caso
estudado, e, por isso mesmo, as conclusões acima o sugiram, não pretendemos deduzir do presente estudo que,
em condições semelhantes (numa sociedade tradicional
e tradicionalmente católica), somente grupos religiosos
motivados preponderantemente por valores possam
evoluir para uma ação temporal que se demonstre funcional do desenvolvimento. Nossa pesquisa e, consequentemente, nossas conclusões limitam-se ao Movimento de
Natal, no qual, de fato, a hipótese se verificou. Segundo
nosso modo de ver, uma generalização neste campo só
poderia fundar-se numa série de estudos comparativos
de casos semelhantes. Neste sentido, o presente trabalho
não constituiu mais que uma tentativa de interpretação
sociológica de um caso e de abertura para ulteriores veri-
46
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ficações em um campo ainda pouco explorado empiricamente em sede da Sociologia do Desenvolvimento.
f — A situação nacional pós-revolucionária nos sugere
uma última observação. Embora não tenhamos dados
suficientes para julgar, não podemos excluir que, em
consequência do Regime de repressão instalado no país
com a Revolução de 31 de março de 1964, o Movimento,
assim como renunciou, pelo menos em parte e momentaneamente, a certas metas e atividades, venha também
a sofrer mudanças profundas no que se relaciona com
sua atitude fundamental (motivação e posição) em face
da, antes, tão propugnada transformação da ordem existente.
Não há dúvida que, entre outros no Brasil, o Movimento de Natal foi um dos que contribuiu para que a
ordem social tradicional já não se possa manter apoiada
simplesmente na força da tradição. O fato de se haver
recorrido a um regime de repressão de tais grupos e
movimentos para sustentá-la, é demonstração evidente
de que as velhas estruturas sociais foram minadas em
sua base, pelo trabalho de conscientização e de organização de classes. A tradição já não “cimenta” com o mesmo
vigor as diferentes camadas da estrutura social.
O atual contexto nacional sugere uma série de interrogações, às quais seria prematuro pretender responder:
Até que ponto terão liberdade e estarão os grupos
ou movimentos católicos dispostos a correr o risco de
prosseguir no trabalho de conscientização das populações marginais e na luta pela transformação das estruturas sociais vigentes?
ALCEU RAVANELLO FERRARO
47
Até onde o atual Regime lhes permitirá chegar? Terá
ele força para barrá-los?
6. Concluindo este nosso prefácio à guisa de síntese,
não nos resta senão AGRADECER a quantos, de uma maneira ou de outra, nos ajudaram a levar a termo este Trabalho, especialmente:
A FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO, pelo patrocínio, através
do INSTITUTO JUVENAL LAMARTINE DE PESQUISAS SOCIAIS, da pesquisa de campo, incluídos local, material e
todo o trabalho de datilografia, e pela publicação deste
Trabalho;
A todas as pessoas do Movimento, que, de muitas maneiras, colaboraram na realização desta pesquisa;
Ao nosso ex-professor de Sociologia, P. Br. Émile Pin,
cuja experiência e orientação muito nos valeram;
À MISEREOR, por uma ajuda financeira na fase inicial
da pesquisa;
Às alunas (hoje, formadas) da ESCOLA DE SERVIÇO
SOCIAL — Amarylis Carvalho de Oliveira, Denise Câmara de Carvalho, Maria Auxiliadora Mourão, Maria do
Rosário Silva, Marlene de Morais Falcão, Nairy Leal Paiva,
Rosa Maria Coelho Pereira e Zélia F. Cabral de Macedo
— pela colaboração que deram, a título de estágio, num
montante de 2 mil horas de trabalho, na aplicação e tabulação dos questionários da pesquisa feita em oito comunidades do interior;
Aos alunos (hoje, formados) da FACULDADE DE CIÊNCIAS
ECONÔMICAS de Natal — Artur Amorim, Carlos Menezes Diniz, Francisco Sebastião Diógenes, Joani Alves de
Brito, João Neto Pessoa, Joir Vale dos Santos, Marlene
Dantas Santana, Marlene Pinheiro da Silva, Margarida
48
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Maria de Medeiros, Núbia Fernandes Martins, Newton de
Araújo Barros e Pedro Martins de Lima — pela tabulação
da pesquisa feita entre os monitores e pelos cálculos estatísticos, tudo, também, a título de estágio e colaboração;
Ao Sociólogo holandês, Dr. Henk P. A. van Roosmálen,
pelas sugestões dadas e pela permissão para utilizar alguns dados de sua pesquisa sobre as Escolas Radiofônicas;
À Assistente Social Maria do Nascimento Bezerra, pela
preciosa ajuda na análise da correspondência dos monitores e alunos das Escolas Radiofônicas.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
49
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
Religião e desenvolvimento .............................................. 61
A região ................................................................................. 65
Dados Gerais ......................................................................... 66
Aplicação de alguns critérios de desenvolvimento ...... 67
Alguns conceitos .................................................................. 71
A forma de religiosidade .................................................... 73
Hipótese de pesquisa .......................................................... 78
I hipótese ............................................................................... 78
II hipótese ............................................................................. 81
Atitude reacionária ............................................................. 84
Atitude integradora ou oportunista ................................ 85
Atitude conservadora ......................................................... 87
Atitude inovadora ............................................................... 89
Notas à Introdução .............................................................. 95
I PARTE
ORIGEM E EVOLUÇÃO DO MOVIMENTO DE NATAL
Introdução à I Parte ............................................................ 101
Notas à Introdução à I Parte ............................................. 104
ALCEU RAVANELLO FERRARO
51
CAPÍTULO I – CONDICIONAMENTOS
A Igreja .................................................................................. 105
Da Diocese ............................................................................ 105
Os Bispos ............................................................................... 105
O Marianismo ...................................................................... 108
A Ação Católica .................................................................... 112
O Clero ................................................................................... 113
Natal e a II Guerra Mundial .............................................. 116
A L.B.A. e o SERÁS ................................................................ 119
Notas ao Capítulo I ............................................................. 123
CAPÍTULO II – FASE URBANA
Eram dois .............................................................................. 125
Dois e a Ação Católica ........................................................ 127
A Escola de Seviço Social ................................................... 129
A Ação Católica e os problemas da Cidade .................... 130
Pe. Eugênio e a J.M.C. ........................................................... 130
Pe. Nivaldo e a J.F.C. ............................................................. 135
A H.A.C. e a S. A. C. ................................................................. 136
Evolução posterior .............................................................. 136
Influência do SAR ................................................................ 136
A Escola de Seviço Social ................................................... 139
Situação Atual ...................................................................... 140
Conclusão ............................................................................ 143
Notas ao Capítulo II ............................................................. 146
CAPÍTULO III – I FASE RURAL
Início .................................................................................... 149
Origem do Encontro Mensal do clero ............................ 149
Dr. Otto e A Ordem .............................................................. 151
Início do SAR ...................................................................... 152
I Semana Rural .................................................................... 155
52
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
O SAR após a I Semana Rural ........................................... 157
Conhecimento dos problemas ......................................... 157
Uma tomada de posição .................................................... 158
Atualização do clero .......................................................... 159
A Missão Rural ..................................................................... 162
Desenvolvimento de Comunidade .................................. 165
O Binômio Escola-Paróquia ............................................... 165
Estratégia .............................................................................. 168
Os treinamentos de líderes rurais ................................... 169
O líder ................................................................................... 171
Conclusão ............................................................................. 172
Notas ao Capítulo III ........................................................ 174
CAPÍTULO IV – II FASE RURAL
Educação ............................................................................. 179
Desenvolvimento econômico ..........................................184
Luta pela mudança de estruturas .................................. 190
Síntese ................................................................................ 201
Estrutura do Movimento ................................................. 208
Perspectivas atuais ............................................................ 211
Notas do Capítulo IV .......................................................... 215
II PARTE
SAR E DESENVOLVIMENTO – VERIFICAÇÃO EMPÍRICA
CAPÍTULO V – METODOLOGIA
Opções ................................................................................. 225
Escolha da área .................................................................. 227
Escolha das comunidades ................................................ 230
A amostragem .................................................................... 235
Hipóteses ............................................................................ 239
Critérios de verificação .................................................... 241
ALCEU RAVANELLO FERRARO
53
CAPÍTULO VI – SAÚDE
Dados administrativos ...................................................... 243
Fossa .................................................................................... 246
Uso de calçado ................................................................... 248
Chupeta .............................................................................. 250
Água e verminose ............................................................. 251
Doenças em geral .............................................................. 258
Mortalidade infantil ......................................................... 259
Maternidades ..................................................................... 263
Serrote ................................................................................. 267
Notas ao Capítulo VI ......................................................... 272
CAPÍTULO VII – SITUAÇÃO TÉCNICO-ECONÔMICA
Técnicas agropecuárias .................................................... 273
Crédito ................................................................................ 276
Cooperativismo ................................................................. 280
Setor de cooperativismo .................................................. 282
Setor de artesanato ............................................................288
A colonização de Punaú ................................................... 294
CAPÍTULO VIII – INSTRUÇÃO
Ensino Médio ..................................................................... 299
As Escolas Radiofônicas ................................................... 302
Números de escolas e de alunos ..................................... 302
Os alunos ............................................................................. 305
Os monitores ...................................................................... 310
Outros aspectos ................................................................. 314
Alfabetização ...................................................................... 320
Escolaridade ....................................................................... 327
Conclusão ............................................................................ 334
54
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
CAPÍTULO IX – FORMAS ASSOCIADAS E COOPERATIVAS,
AÇÃO COMUNITÁRIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Formas associativas permantentes, de pequeno porte .....
............................................................................................... 336
Centro Social ...................................................................... 336
Associações de mulheres ................................................. 337
Grupos de rapazes e de moças ....................................... 337
Cooperação comunitária ................................................. 339
O caso de Carnaúba .......................................................... 339
O caso de Bela Vista .......................................................... 343
O caso de Pitombeira ....................................................... 346
Atitudes segundo o sexo ................................................... 348
Participação social da mulher ........................................ 351
Alguns depoimentos ......................................................... 353
A radiofônica de seu Severino ........................................ 354
A radiofônica de Francisca .............................................. 362
A radiofônica de Eunice ................................................... 365
A radiofônica de Maria Nazinha .................................... 367
A radiofônica de Damiana ............................................... 367
CAPÍTULO X – POLITIZAÇÃO E SINDICALIZAÇÃO
Voto ...................................................................................... 369
Curso de Politização ......................................................... 373
Análise da correspondência ............................................ 373
Alguns depoimentos ......................................................... 376
O sindicalismo rural ......................................................... 381
Associações de classe ........................................................ 381
Opinião dos agricultores .................................................. 382
Melhora ............................................................................... 385
Piora ..................................................................................... 386
Atitudes ............................................................................... 388
A reação ............................................................................... 390
ALCEU RAVANELLO FERRARO
55
CAPÍTULO XI – CONSCIÊNCIA E AGENTES DE MUDANÇA
Consciência da mudança ................................................... 403
Agentes de mudanças ...................................................... 407
Opinião dos entrevistados ............................................... 407
Pesquisa entre os monitores ........................................... 411
Responsabilidade dos monitores ................................... 412
Cultivo de verduras ........................................................... 412
Tratamento da água potável ........................................... 413
Fossa ..................................................................................... 414
Cooperativismo e sindicalismo ...................................... 414
Conclusão à II parte .......................................................... 417
III PARTE – RELAÇÃO ENTRE FUNCIONALIDADE E ATITUDE E ENTRE TEMPORAL E RELIGIOSO
CAPÍTULO XII – RELAÇÃO ENTRE FUNCIONALIDADE E
ATITUDE E ENTRE TEMPORAL E RELIGIOSO
Visão retrospectiva ........................................................... 425
1940 a meados de 1945 .................................................... 425
Início do movimento: 1945-1950 ................................... 428
As duas fases rurais: 1951-1965 ...................................... 436
Mudança – norma de ação ............................................... 437
Crítica da ordem existente e autenticidade evangélica ...
............................................................................................... 438
Justiça e mudança .............................................................. 442
Mudança e desenvolvimento .......................................... 446
Desinculturação ................................................................. 448
Atitude e mudança no setor religioso ........................... 456
Fatos e atitudes ................................................................. 456
Verificação empírica ......................................................... 468
Consciência da mudança ................................................... 468
56
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Opinião a respeito da ação da Igreja ............................. 471
Relação entre temporal e espiritual .............................. 473
Notas ao Capítulo XII ....................................................... 485
Conclusão geral ................................................................. 487
APÊNDICES E ANEXOS
APÊNDICE I – A REGIÃO NORDESTE
Aspectos geográficos, fisiográficos e culturais do Nordeste ..................................................................................... 499
Área ...................................................................................... 499
O Polígono das Secas ........................................................ 499
Sub-regiões ou zonas típicas ............................................. 500
Aspectos demográficos .................................................... 507
População ........................................................................... 507
Densidade demográfica ................................................... 508
População rural e urbana ................................................ 508
População ativa empregada na agricultura ................. 508
Estrutura etária da população .......................................... 509
Vida média ou esperança de vida ................................... 510
Natalidade e mortalidade ................................................ 510
Incremento da população ............................................... 512
Aspectos econômicos ....................................................... 514
Distribuição regional da renda nacional ..................... 514
Renda per capita ............................................................... 515
Causas do desiquilíbrio regional .................................... 516
O baixo nível técnico ......................................................... 516
As oscilações do mercado internacional ...................... 516
A política cambial ............................................................ 516
Indústria .............................................................................. 517
Situação orçamentária ..................................................... 517
ALCEU RAVANELLO FERRARO
57
Emissões de capital ........................................................... 518
Investimentos ....................................................................518
Consumo de energia elétrica .......................................... 519
Estrutura agrária ............................................................... 519
Assistência médico-hospitalar ........................................ 523
Alfabetização ...................................................................... 524
Participação da vida política ............................................. 525
Política federal no Nordeste ............................................ 526
Notas ao Apêndice I .......................................................... 530
APÊNDICE II - ERRO PADRÃO E VIÉS
Determinação do tamanho da amostra ........................ 533
Estimativas do viés e erro padrão .................................. 534
APÊNDICE III - DOCUMENTOS
Documentos relacionados com a campanha de Politização ........................................................................................ 539
ANEXO I - QUESTIONÁRIOS
A Igreja e o Desenvolvimento de Comunidades Rurais . 555
Grupos e Mudança Social ................................................. 566
ANEXO II - TABELAS
Tabela 5.1 ............................................................................ 569
Tabela 5.2 ............................................................................ 570
Tabela 6.1 ............................................................................ 570
Tabela 6.2 ............................................................................ 571
Tabela 6.3 ............................................................................ 571
Tabela 6.4 ............................................................................ 572
Tabela 6.5 ............................................................................ 572
Tabela 6.6 ............................................................................ 573
58
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Tabela 6.7 ............................................................................ 573
Tabela 6.8 ............................................................................ 574
Tabela 6.9 ............................................................................ 574
Tabela 6.10 ........................................................................... 575
Tabela 6.11 .......................................................................... 575
Tabela 7.1 ............................................................................ 576
Tabela 7.2 ............................................................................ 576
Tabela 7.3 ............................................................................ 577
Tabela 7.4 ............................................................................ 578
Tabela 7.5 ............................................................................ 578
Tabela 7.6 ............................................................................ 579
Tabela 7.7 ............................................................................ 580
Tabela 8.1 ............................................................................ 581
Tabela 8.2 ............................................................................ 581
Tabela 8.3 ............................................................................ 582
Tabela 8.4 ............................................................................ 582
Tabela 8.5 ............................................................................ 583
Tabela 8.6 ............................................................................ 584
Tabela 8.7 ............................................................................ 585
Tabela 9.1 ............................................................................ 585
Tabela 9.2 ............................................................................ 586
Tabela 9.3 ............................................................................ 587
Tabela 9.4 ............................................................................ 588
Tabela 10.1 .......................................................................... 589
Tabela 10.2 .......................................................................... 590
Tabela 10.3 .......................................................................... 591
Tabela 10.4 ............................................................................. 592
Tabela 11.1 .......................................................................... 593
Tabela 11.2 .......................................................................... 594
Tabela 11.3 .......................................................................... 595
Tabela 11.4 .......................................................................... 595
ALCEU RAVANELLO FERRARO
59
Tabela 11.5 .......................................................................... 596
Tabela 11.6 .......................................................................... 597
Tabela 11.7 .......................................................................... 598
Tabela 12.1 .......................................................................... 599
Tabela 12.2 .......................................................................... 600
Tabela 12.3 .......................................................................... 601
Tabela A-1.1 ........................................................................ 602
Tabela A-1.2 ........................................................................ 602
Tabela A-1.3 ........................................................................ 603
Tabela A-1.4 ........................................................................ 603
ANEXO III – GRÁFICOS E MAPAS
Gráfico 5.1 ........................................................................... 605
Gráfico 8.1 .......................................................................... 606
Gráfico 8.2 ........................................................................... 607
Gráfico 8.3 .......................................................................... 608
Gráfico 10.1 ......................................................................... 609
Gráfico 11.1 ........................................................................ 610
Gráfico 12.1 ........................................................................ 611
Gráfico 12.2 ........................................................................ 612
Mapa 1 ................................................................................. 613
Mapa 2 ................................................................................. 614
ANEXO IV
BIBLIOGRAFIA .................................................................... 615
ANEXO V - Orelhas, edição 1968 ........................................ 619
Anexo VI - Ficha do DOPS ............................................... 623
Anexo VII - Entrevista com autorização de direitos autorais ........................................................................................ 625
60
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
INTRODUÇÃO
1. RELIGIÃO E DESENVOLVIMENTO
A relação entre RELIGIÃO E DESENVOLVIMENTO —
eis um problema que nos despertou interesse desde o
tempo de nossos estudos de Sociologia no Instituto de
Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Gregoriana,
em Roma (1960-1964).
O estudo da inter-relação destes dois fenômenos —
religião e desenvolvimento — poderia ser enfocado de
dois pontos de vista opostos, embora complementares.
Poderíamos, por um lado, perguntar-nos sobre a relação DESENVOLVIMENTO - RELIGIÃO, ou seja, sobre o
impacto produzido na vida religiosa por aquelas trasformações sociais (a industrializarão, a urbanização, a redistribuição profissional, a restrição voluntária da natalidade, a crescente autonomia da mulher, o surgimento
de novas ideologias e outras) que, ou são constitutivas
do próprio processo de desenvolvimento, ou, acompanhando-o onde quer que este se verifique, com ele estão
estreitamente vinculadas. Devido, em boa parte, à preocupação dos próprios grupos religiosos de “rever”, “reno-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
61
var” ou “atualizar” suas linhas de ação pastoral (religiosa), esta maneira de enfocar o problema tem merecido
bastante atenção em sede da Sociografia e da Sociologia
Religiosa, notadamente nos países desenvolvidos ou em
processo mais ou menos avançado de desenvolvimento.
Por outro lado poderíamos — é o que faremos neste
Trabalho — perguntar-nos sobre a relação RELIGIÃO
- DESENVOLVIMENTO, ou seja, sobre o impacto da religião sobre o fenômeno do desenvolvimento. Trata-se,
em termos ainda bem gerais, de saber se a religião constitui um estímulo, um fator neutro ou um obstáculo ao
desenvolvimento. Poucos estudos têm assim enfocado o
problema. Além disto, a maioria deles, exatamente por
carecerem de fundamento empírico, ressentem-se de
sérias limitações decorrentes da própria metodologia —
geralmente a marxista ou a weberiana — empregada por
tais autores.
Segundo Karl Marx haveria uma radical oposição entre religião e desenvolvimento. Sua teoria, porém, ressente-se de graves limitações metodológicas. A primeira reside no método meta-histórico seguido pelo autor.
A segunda, consequência deste mesmo método, está na
falta de distinção entre formas de religiosidade diversas. Talvez a história fizesse eco a certas afirmações de
Marx, tivesse-as ele circunscrito à forma concreta de religiosidade cristã encontrada na Prússia de seu tempo.1
O autor, porém, conduzido precisamente por seu método meta-histórico, estendeu a toda e qualquer forma de
religiosidade (à religião em si) suas afirmações, sem que
tais generalizações se fundassem numa sistemática verificação histórica e muito menos empírica.2
62
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Nem parecem distanciar-se muito do de Marx certos
métodos apologéticos que levam autores a conclusões
exatamente opostas às de Marx a respeito da (ou da
própria) religião, sem que também estes distmgam entre
formas diversas de religiosidade.
Sem dúvida alguma, a obra de Max Weber, A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo3, representa grande
avanço metodológico Em primeiro lugar, o autor distingue entre formas diversas de religiosidade, relacionando
uma delas — a ética protestante (especialmente a ética
puritana do calvinismo) — com o fenômeno do capitalismo moderno, que esteve à base dos primeiros processos históricos de desenvolvimento. Em primeiro lugar
o autor aplica na verificaçao de sua hipótese o método
histórico. Contudo, embora não se lhe possa negar validade científica, o método histórico apresenta também
serias limitações. Basta lembrar as intermináveis discussões a propósito da tese weberiana, sem que os autores cheguem a um acordo. Não tem faltado, inclusive,
quem, conduzido pelo mesmo método histórico, visse no
espírito do capitalismo, então nascente, uma das origens
do protestantismo, invertendo, assim, a posição das duas
variáveis weberianas.4
Lembre-se ainda que a maioria dos estudos sobre a
relação religião-desenvolvimento dizem respeito exatamente aos países que por primeiro passaram pelo processo de desenvolvimento. Ora, estes primeiros processos foram espontâneos e não, induzidos. Os próprios
grupos religiosos foram geralmente colhidos de surpresa
pela mudança. Acontece, porém, que neste segundo pósguerra verificou-se em praticamente todos os países ou
regiões subdesenvolvidas uma tomada de consciência
ALCEU RAVANELLO FERRARO
63
do próprio subdesenvolvimento. Este acordar do Terceiro Mundo teve, entre outras, as duas consequências
seguintes: 1) os processos atuais de desenvolvimento
são cada vez menos espontâneos e mais induzidos, e
2) no campo das Ciências Sociais a ênfase transferiu-se
da problemática do desenvolvimento para a do subdesenvolvimento. Assim a Sociologia viu nascer, no último
decênio, uma nova disciplina — a Sociologia do Desenvolvimento — que vem dando ênfase à problemática do
subdesenvolvimento.
No que concerne à relação religião-desenvolvimento,
abriu-se, quer em sede da Sociologia da Religião, quer em
em sede da Sociologia do Desenvolvimento, novo campo
de pesquisa: trata-se concretamente de saber como se
comportam ou se comportarão os diversos grupos religiosos em face do desenvolvimento do Terceiro Mundo.
Constituem ou constituirão eles um estímulo ou um obstáculo ao desenvolvimento?
Voltando-se nosso interesse para a problemática do
atual mundo subdesenvolvido, e considerando que as
mais sérias limitações de bom número de estudos na matéria resultam precisamente da falta de distinção entre
formas de religiosidade diversas e da falta de fundamento empírico, fizemos as seguintes opções metodológicas:
Circunscrever nosso estudo a um determinado grupo
religioso (no caso, a Igreja Católica), que, num determinado momento e numa determinada região subdesenvolvida, se tenha lançado no campo socioeconômico;
Definir a forma de religiosidade encontrada na região antes de a Igreja se ter lançado no campo socioeconômico;
Situar, com relação ao desenvolvimento, a região suposta subdesenvolvida;
64
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Partir com hipóteses de pesquisa e, servindo-nos do método histórico, reformulá-las e precisá-las, se necessário;
Verificar sistemática e emplricamente estas hipóteses,
deixando ao método histórico apenas uma função subsidiária;
Não extrapolar, nas conclusões, o caso ou pelo menos o
tipo de caso estudado.
Mas, onde encontrar um caso em que, numa região
subdesenvolvida, a Igreja Católica — optáramos por esta
— se tivesse lançado no campo socioeconômico? Foi a esta
altura que, ainda em Roma, no início de 1963, tivemos
oportunidade de ouvir do próprio D. Eugênio de Araújo
Sales uma exposição sobre as atividades temporais que
vinham sendo desenvolvidas pela Arquidiocese de Natal
desde a segunda metade dos anos 40 e que, nos anos 60,
já se estavam tornando internacionalmente conhecidas
como “Movimento de Natal”. Uma conversa com um de
nossos professores de Sociologia, o Revmo. Pe. Émile Pin,
que tivera oportunidade de inteirar-se pessoalmente do
trabalho social desenvolvido naquela Arquidiocese, confirmou-nos na escolha do dito “Movimento” para o nosso
estudo de caso. E foi a isto que nos dedicamos durante
quase três anos: de março de 1964 até fins de 1966.
2. A REGIÃO
Antes de passarmos à apresentação de nossas hipóteses de pesquisa e a maiores esclarecimentos sobre o
método e as técnicas empregadas para a verificação das
ALCEU RAVANELLO FERRARO
65
mesmas, procuraremos, neste e no próximo parágrafo,
definir a região e a forma de religiosidade em causa.
O estado do Rio Grande do Norte, teatro do Movimento
de Natal, integra a assim chamada “maior área subdesenvolvida do Hemisfério Ocidental”, o Nordeste brasileiro,
que constitui uma região bastante homogênea do ponto de vista sociocultural. Daí estendermos o estudo à
Região.
Dada a ampla bibliografia existente sobre o Nordeste,
julgamos desnecessário proceder, nesta introdução, a
uma descrição pormenorizada da Região. O leitor interessado poderá consultar o Apêndice I deste trabalho.
1) Dados gerais. Abrangendo nove estados da Federação
— do Maranhão à Bahia, inclusive — o Nordeste compreende uma área de 1.548.672 km2, igual a 18,20% do
território nacional, e apresentava em 1960 uma população de 22.428.873 habitantes, igual 31,60% da população
do país, devendo ter superado em 1966 os 25 mi-lhões de
habitantes. Justifica-se, por conseguinte, que D. Eugênio
lhe chame humoristicamente de “o maior país da América Latina, em população, depois do México e do Brasil”.
O estado do Rio Grande do Norte, com seus 53.015
km2 (0,62% e 3,42%, respectivamente, da área do Brasil
e do Nordeste), é o quarto menor estado da Federação.
Em 1960 sua população era de 1.157.258, o que representa 1,63% e 5,16% da população do Brasil e do Nordeste,
respectivamente.
Em termos de habitantes por quilômetro quadrado, o
Nordeste apresenta uma densidade demográfica (14,56)
superior às das Regiões Norte (0,73) e Centro-Oeste (1,60)
e inferior às das Regiões Leste (26,70) e Sul (30,47), sen-
66
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
do a média nacional de 8,38 habitantes por quilômetro
quadrado. Se, porém, considerarmos somente os estados
do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e
Alagoas, que constituem o assim chamado Nordeste Oriental, encontramos a densidade demográfica regional
mais elevada do país (30,9 habitantes por quilômetro
quadrado), superada apenas por alguns estados, isoladamente, das Regiões Leste e Sul. São eles os estados da
Guanabara, Rio de Janeiro e São Paulo, com, respectivamente, 2.824,22; 80,76 e 52,34 habitantes por quilômetro quadrado.
O assim chamado Polígono das Secas compreende
mais de 2/3 ‘72,1%) da área total do Nordeste. Precedido pela Paraíba (97,8%) e Ceará (92,2%), o Rio Grande do
Norte é o terceiro estado do Nordeste com maior porção
de sua área (90,6%) incluída no Polígono.5
2) Aplicação de alguns critérios de desenvolvimento. Na
primeira parte do quadro abaixo mencionamos quatro
índices de Walinsky, considerados característicos de
países altamente desenvolvidos e de países tipicamente
subdesenvolvdos. São eles: 1) o número de médicos por
100.000 habitantes; 2) a percentagem de pessoas alfabetizadas (de 10 anos e mais, para o Brasil); 3) a renda per
capita estimada em US$ e 4) o consumo de energia elétrica (Kwh) por habitante. Não dispondo de estimativas
em US$ da renda per capita para as demais Regiões, incluímos estimativas da renda regional per capita como
percentagem da média nacional, o que nos permitirá
situar, deste ponto de vista, o Nordeste em relação com
as demais Regiões.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
67
Dito isto, os índices do quadro abaixo nos permitem
tirar as seguintes conclusões:
a) Segundo todos os quatro critérios o Nordeste apresenta índices inferiores aos estimados por Walinsky
como característicos de países tipicamente subdesenvolvidos.
b) Segundo todos os quatro critérios (veja a segunda
parte do Quadro) o Nordeste, ocupando sempre o 5o
lugar, aparece como a Região mais subdesenvolvida do
país.
68
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
c) Entre os nove estados do Nordeste o Rio Grande do
Norte ocupa o 2° lugar em número relativo de médicos e
de pessoas alfabetizadas, o 5o lugar em renda per capita
e o 7o lugar em consumo de energia elétrica per capita.
Apliquemos mais alguns critérios que nos permitam
melhor definir especialmente a posição do Rio Grande
do Norte com relaçao aos outros estados nordestinos.
Segundo um estudo do demógrafo Giorgio Mortara,
fundado nos dados do Censo de 19506, entre todos os
estados da União, o Rio Grande do Norte/ seguido por
sete dos outros oito estados do Nordeste, apresenta o índice mais elevado de filhos tidos nascidos vivos (589,0)
por 1.000 mulheres prolíficas de 15 a 49 anos.
O mesmo estudo revela, ainda, que, entre todos os estados da Federação, o Rio Grande do Norte, seguido em
2° a 7o, 10° e 11° lugares pelos outros estados do Nordeste, apresenta o índice mais elevado (363,9) de filhos
falecidos, até a data do Censo, por 1.000 filhos tidos nascidos vivos.7
Em termos de municípios com abastecimento de água,
o Nordeste apresentava-se, em 1960, como a segunda
Região menos servida (24,15% dos municípios, contra
48,72 no Brasil inteiro), e o Rio Grande do Norte (10,84%)
era o segundo estado menos servido do Nordeste.
Na mesma data o Nordeste, com apenas 13,72% de seus
municípios com serviço de esgoto, contra 32,74 no Brasil todo, era a Região menos servida, e o Rio Grande do
Norte, com apenas um município (1,20%) contando com
tal serviço, ocupava o último lugar entre os estados da
Região.8
ALCEU RAVANELLO FERRARO
69
Aliada à mais elevada proporção regional de população rural (65,8% em 1960) e de população ativa ocupada
em atividades agrícolas (64,4% em 1960), encontra-se no
Nordeste a agricultura menos mecanizada do país. Aqui,
outra vez, basta confrontar os 4,4 tratores por 10.000
pessoas ocupadas, em 1960, em ativades agropecuárias
no Nordeste e os 4,9 no Norte, com os 25,5 no Leste, os
33,3 no Centro-Oeste, os 104,6 no Sul ou com os 40,9 no
Brasil todo.9
Se lembrarmos, ainda, que, em 1960, para cada 10.000
pessoas ocupadas em agropecuária correspondiam 31,7
arados no Nordeste, 664,8 no Brasil inteiro e 1.833,6 no
Sul, não resta concluir senão que o Nordeste, naquela
data, não havia superado a era da enxada.10
Por sua vez, o Rio Grande do Norte apresentava, no
mesmo ano, índices da ordem de 8,3 tratores e 10,3 arados por 10.000 pessoas ocupadas em agropecuária, o que
lhe confere, considerando os dois índices, uma posição
intermediária entre os nove estados do Nordeste.11
Os critérios até aqui aplicados confirmam, por conseguinte, a definição do Nordeste como região tipicamente subdesenvolvida e, pelo menos até o início dos
anos 1960, como a mais subdesenvolvida entre as cinco
regiões da Federação.
Por outro lado, se, partindo do menos ao mais subdesenvolvido, hierarquizássemos os nove estados do Nordeste de acordo com os diversos critérios considerados,
certamente não poderia o Rio Grande do Norte ser incluído entre os quatro estados menos subdesenvolvidos,
cabendo-lhe, talvez, o 5o ou, mais provavelmente, o 6o ou
7o lugar, nesta hierarquia.
70
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
3) Alguns conceitos. Até aqui vimos apenas alguns elementos distintivos (critérios) de desenvolvimento e de
subdesenvolvimento. Vejamos agora os elementos constitutivos, os conceitos.
P. Pedro Calderan Beltrão, em seu livro recente, intitulado Sociologia do Desenvolvimento, propõe a seguinte
definição operacional:
“Desenvolvimento é um processo inédito e irreversível de mundança social, através do qual se instaura
numa região um mecanismo endógeno de crescimento econômico cumulativo e diferenciado”.12
“Por referência ao desenvolvimento — prossegue o autor — significa o subdesenvolvimento qualquer situação
em que o processo de desenvolvimento ainda não tenha
acontecido ou pelo menos não em grau suficiente”.13 Foi
neste sentido que definimos o Nordeste como sendo uma
Região subdesenvolvida. A seguir o autor citado introduz uma distinção que nos parece de suma importância
para uma melhor caracterização da região: “A rigor —
prossegue ele — chamar-se-á de não-desenvolvida a região
ou sistema social em que nem sequer os primeiros prérequisitos de desenvolvimento se possam constatar, e
subdesenvolvida, a que já acusasse alguma espiral de prédesenvolvimento”.14
Com efeito, subdesenvolvimento é um conceito dinâmico, que implica pelo menos a consciência de uma situação de inferioridade com relação a regiões ou países considerados desenvolvidos e a busca de um caminho para o
desenvolvimento. O não-desenvolvimento, ao contrário,
é um conceito estático, que se deveria aplicar a um país
ALCEU RAVANELLO FERRARO
71
ou região em que nem sequer tal consciência e tal busca
se verificassem. Apenas, como o que caracteriza uma
região não desenvolvida e o fato de ser governada pela
tradição, preferimos denominá-la “tradicional em vez de
“não-desenvolvida”.
Feita esta distinção, procuraremos situar no tempo a
posição do Nordeste com relação ao desenvolvimento.
Ao Nordeste tradicional correspondeu a assim chamada política de combate contra as secas — uma política
de socorro, de remédio, de assistência, de emergência
— que visava minorar os efeitos das secas que periodicamente assolam a Região. Esta política, inaugurada ainda
no tempo do Império (1877), dominou as preocupações
do Governo federal e dos Governos estaduais nordestinos até o fim dos anos 1940 e mesmo até meados dos
anos 1950.
Os anos 1950, especialmente no segundo quinquênio,
foram marcados por uma tomada de consciência do subdesenvolvimento e pela busca de um caminho para o desenvolvimento da Região.Vozes sempre mais numerosas,
de dentro e de fora do Nordeste, ao mesmo tempo que
levantavam dúvidas sobre a validade da velha política de
“combate contra as secas”, ensaiavam uma nova aproximaçao dos problemas regionais, já em termos de desenvolvimento.
Os anos 1960 caracterizam-se por uma política federal
de desenvolvimento regional, centralizada na SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, criada
em novembro de 1959) e consubstanciada nos Planos Diretores de Desenvolvimento da Região. Por sua vez, os
próprios estados nordestinos integraram-se nesta nova
política através da criação de órgãos estaduais de desen-
72
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
volvimento. Temos, assim, nos anos 1960, uma região
tipicamente subdesenvolvida, mas já a caminho do desenvolvimento.
Esta caracterização do Nordeste parece-nos fundamental sob o aspecto metodológico. Trata-se concretamente
de avaliar, do ponto de vista do desenvolvimento, atividades temporais de um Movimento de Igreja surgido na
segunda metade dos anos 1940, dentro de uma grande
Região ainda tradicional, precisamente na véspera de o
Nordeste acordar para o desenvolvimento.15
3. A FORMA DE RELIGIOSIDADE
“O maior país católico do mundo”, “País de tradição
católica”, “Nação tradicionalmente católica”: eis alguns
lugares comuns — galanteios oficiais da Sociedade e lembretes não menos oficiais da Igreja — obrigatórios, pelo
menos até muito recentemente, em toda solenidade, religiosa ou não, em que estivessem representadas (a ordem podia mudar de acordo com a ocasião e o orador) as
assim chamadas “autoridades civis, militares e eclesiásticas”. É verdade que nos últimos anos os papéis foram um
tanto quanto invertidos: ante o esquecimento de uns, o
desencanto de outros, as ressalvas, enfim, e o inconformismo de um número crescente de líderes religiosos,
cabe cada dia mais aos líderes da Sociedade, oficiais ou
não, a árdua tarefa de lembrar à Igreja o “glorioso passado”!
Que vai por trás dos chavões acima citados? Não conteriam eles, mais ou menos explicitamente, os elementos
ALCEU RAVANELLO FERRARO
73
essenciais para uma caracterização da forma de religiosidade cristã encontrada na região onde nasceu e atuou
o Movimento de Natal? Comecemos por definir dois conceitos: aculturação e inculturação.
Por aculturação entendemos o processo pelo qual um
grupo ou sistema cultural exerce influência (cultural) sobre outro grupo ou sistema cultural. Diz-se aculturado
o grupo ou sistema cultural que sofreu tal influência.
No caso de mútua influência cultural entre dois grupos
ou sistemas culturais, podemos falar de aculturação
recíproca.
O processo de aculturação pode resultar na inculturação, total ou parcial, de um dos grupos ou sistemas
culturais postos em contacto. Entendemos, assim, por inculturação o processo pelo qual um grupo ou sistema cultural se torna de tal maneira parte integrante de outro,
a ponto de perder, total ou parcialmente, sua originalidade própria. Denominamos desinculturação o processo
inverso, pelo qual um grupo ou sistema inculturado redescobre e readquire sua originalidade própria.
O fato da recíproca aculturação entre Igreja e Sociedade é por demais evidente no caso do Brasil. Mas, não
teria este processo de aculturação conduzido a uma pelo
menos parcial inculturação da Igreja na Sociedade? Vejamos.
Os colonizadores portugueses, que, em 1500, aportaram precisamente no Nordeste do Brasil, aqui chegaram
trazendo “a Fé e o Império”. As mesmas caravelas conduziram conquistadores e missionários. Assim, sob o sinal e com o nome da Santa Cruz, o Brasil nasceu católico,
como católico era o país colonizador.
74
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Por outro lado, muito contribuiu para o estreitamento destes laços a interdependência entre Igreja e BrasilColônia na luta pela salvaguarda da unidade territorial e
da unidade religiosa, ante a ameaça comum constituída
pelo “invasor-herege”. Este interdepender de ambos na
própria sobrevivência, mais a ação catequizadora da
Igreja entre os indígenas e seu plurisecular quasemonopólio da educação fizeram com que o Brasil também crescesse católico. O Brasil-Império (1822 a 1889)
manteve esta unidade.
Não chamaríamos de inculturada esta Igreja do tempo
colonial e imperial. O próprio caráter oficial desta união
e o exercício do protetorado, o qual, se conferia à Igreja
uma série de privilégios, impunha-lhe também outras
tantas limitações em sua liberdade, estão a indicar que
se tratava de um fato consciente. Podemos dizer que o
engajamento religioso, especialmente por parte dos líderes — oficiais ou não — da Sociedade, correspondia a
uma motivação mais de tipo sociocultural, consciente.16
É verdade que, especialmente nas camadas populares, a
religião já se impunha pela força da tradição (motivação
cultural espontânea).17 Contudo, lá estava o caráter oficial da religião para estimular aqueles (os escravos importados da África, por exemplo) que desconheciam tal
tradição, ou para os quais esta não constituía motivação
suficientemente forte.
O advento da República (1889) trouxe uma série de
mudanças neste estado de coisas. Influenciados pelos
ideais da Revolução Francesa e pelas ideias positivistas,
os revolucionários republicanos decretaram unilateralmente, na Constituição de 1891, o desquite entre Estado
ALCEU RAVANELLO FERRARO
75
e Igreja. Declarando-se o Estado aconfessional, o catolicismo deixou de ser a religião oficial. Estava aberto o
caminho ao pluralismo religioso. Via-se também a Igreja
pela primeira vez livre das amarras da tutela do poder
temporal. A separação entre Igreja e Estado, porém, não
abalou muito a situação desta. O catolicismo, mesmo
falto de seu caráter de religião oficial, continuou impondo-se pela própria força de uma longa tradição, de um
costume profundamente radicado na cultura local. Esta
tradição católica, porém, se, por um lado, pelo fato mesmo de ser católica, impunha o catolicismo como religião,
por outro, precisamente pelo fato de ser tradição, definia
o modo de ser católico, a forma concreta de religiosidade
católica aceita e incorporada na cultura local.
A imagem dominante de católico, a própria imagem
de padre e de bispo, a hierarquia dos atos religiosos, das
cerimônias, dos ritos, e a maneira de neles se participar
correspondiam mais a uma redefinição feita pela cultura
local do que às normas oficiais ou pelo menos originais
da Igreja. Não importa que os líderes religiosos tenham,
não raro, fulminado tais aberrações. O fato é que, mesmo
hoje, em clima de renovação pós-conciliar, não constitui
tarefa fácil para os líderes religiosos impor novo conceito de católico: “de vida” e não “de nome”, católico “por
convicção” e não “por tradição”. O mesmo se diga de todas as tentativas recentes de reforma litúrgica, com ênfase na compreensão e participação ativa, contra a pura
execução solene e “triunfalista” de ritos, imposta pela
tradição. Os maiores obstáculos são encontrados precisamente quando se trata de introduzir inovações na realização dos atos religiosos mais altamente conceituados
pela tradição, como sejam, os correspondentes aos assim
76
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
chamados ritos de passagem (batismo, primeira comunhão solene, casamento e funerais) e certas cerimônias,
solenidades e devoções tradicionais (procissões, festas de
padroeiro, devoções a certos santos “brasileiros”).
No que concerne ao campo não especificamente religioso, pela força da mesma tradição cabia à Igreja desempenhar o papel de guardiã e difusora da cultura, de zelar
pela conformação do comportamento individual com o
éthos tradicional, de remediar os males resultantes de
possíveis deviações, mas nunca, de colocar em discussão
o patrimônio cultural que servia de suporte ao sistema
tradicional de relações sociais.
Em tudo o que dissemos, tratou-se de encontrar e caracterizar formas de religiosidade e motivações típicas,
preponderantes. Referindo-nos à fase posterior à separação entre Igreja e Estado, não queremos dizer que todos
os líderes religiosos se tenham sempre submetido ou submetido de bom grado a tais imposições da tradiçao, nem
que todos os católicos refletissem a imagem perfeita do
catolico “por tradição”. Queremos apenas, situando-nos
por volta do ano de 1940, dizer que esse catolicismo de
tradição constituía a forma típica, preponderante, de religiosidade cristã encontrada no Brasil e, com maior razão,
no Nordeste, Região que não tinha ainda entrado na fase
de pré-desenvolvimento, e cuja proporção de população
católica — a quase totalidade — era mais elevada do que
no Brasil, tomado no seu conjunto, e particularmente do
que no Centro-Sul, mais pluralista.18
Evidentemente, ao testarmos nossas hipóteses de
pesquisa, procuraremos averiguar se esta era de fato a
forma típica de religiosidade existente na área, antes do
Movimento de Natal.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
77
Podemos finalmente sintetizar da seguinte forma o
que vimos neste parágrafo e no anterior: o Movimento
de Natal surgiu numa REGIÃO TRADICIONAL E TRADICIONALMENTE CATÓLICA.
4. HIPÓTESES DE PESQUISA
Acabamos de concluir que o Movimento de Natal surgiu dentro de uma REGIÃO TRADICIONAL E TRADICIONALMENTE CATÓLICA. É dentro deste quadro que nos
colocamos, agora, duas perguntas:
Ter-se-iam demonstrado funcionais, não-funcionais ou
des-funcionais ao desenvolvimento as atividades temporais empreendidas pela Igreja, na Arquidiocese de Natal,
a partir do segundo quinquênio dos anos 1940?
A resposta que os fatos darão à primeira pergunta não
estaria vinculada a determinado tipo de concepções, motivações, atitudes da própria Igreja com relação ao mundo temporal e espiritual?
I hipótese. A hipótese de pesquisa correspondente à
primeira pergunta poderia ser assim formulada:
As atividades temporais empreendidas pelo Movimento de Natal demonstraram-se funcionais ao desenvolvimento.
Trata-se de uma formulação genérica e, neste sentido,
ainda provisória, porque, somente depois, de termos
dado na I Parte deste Trabalho uma visão de conjunto
do Movimento (origem, evolução, objetivos, atividades,
78
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
meios, estratégia), poderemos dar uma forma definitiva
à hipótese que será verificada empiricamente na II Parte.
Demos uma forma positiva (funcionalidade) à hipótese,
mas poderíamos tê-la formulado negativamente (desfuncionalidade), de vez que, em ambos os casos, ela deveria
ser confrontada com os fatos, que a iriam comprovar ou
impugnar.
Não dissemos “desenvolveram”, e sim, demonstraramse “funcionais ao desenvolvimento”, de vez que uma atividade ou empreendimento, mesmo sem propriamente
ter desenvolvido (o que não excluímos, no caso), poderia ter-se demonstrado funcional, precisamente criando
condições ou pré-condições para o desenvolvimento da
região. Em tal caso, mesmo sem ser diretamente responsável pelo desenvolvimento, a Igreja teria tido tuna função de desenvolvimento.
Já mencionamos acima uma definição do fenômeno do
desenvolvimento como sendo “um processo inédito e irreversível de mudança social, através do qual se instaura
numa região um mecanismo endógeno de crescimento
econômico cumulativo e diferenciado . Explicando cada
termo de sua definição, P. Calderan Beltrão faz, a propósito de “mudança social”, a seguinte observação, que nos
parece de suma importância: “O desenvolvimento é fenômeno predominantemente tecnológico-econômico, mas
não o é exclusivamente: seja como pré-requisitos, seja
como concomitantes e consequências, observam-se no
seu decorrer transformações inéditas e irreversíveis em
todos os demais elementos do complexo social. A observação dos fatos históricos e atuais levou-nos a considerar
com especial atençao nesse campo específico da Sociolo-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
79
gia do desenvolvimento, as mudanças sobrevindas aos
padrões ecológico-profissionais, demográfico-familiais e
ideológico-culturais”.19
Por conseguinte, não se reduzmdo o desenvolvimento
ao seu aspecto tecnológico-econômico, da mesma forma não se podem reduzir a este aspecto os critérios para
julgar da funcionalidade ou menos de uma atividade ao
desenvolvimento. Por outro lado, se os primeiros processos históricos de desenvolvimento foram espontâneos e
partiram precisamente de profundas mudanças (inovações) verificadas no campo tecnológico-econômico pelo
advento da máquina, não se pode esquecer que os atuais
processos são cada vez mais conscientes, induzidos e precedidos por um bom número daquelas mudanças que,
nos primeiros processos, se apresentaram como concomitâncias e mesmo consequências do próprio desenvolvimento. Assim, por exemplo, o nacionalismo, a luta
ideológica, novas aspirações (especialmente por parte da
classe operária), organizações de classe, a queda secular
da mortalidade e a consequente explosão demográfica,
migrações do campo para a cidade, reformas políticoadministrativas e sociais, etc. Daí falar-se tanto hoje em
pré-requesitos ou precondições para o desenvolvimento.
A própria história do Movimento (I Parte), dizendo-nos
o que e porque a Igreja se propôs ou não empreender,
conseguiu ou nâo realizar, já indicará eventuais limitações. Ao que tenha de fato empreendido aplicaremos (II
Parte) os critérios de desenvolvimento, seguindo o método da verificação empírica.
80
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
II Hipótese. Acabamos de formular a hipótese da funcionalidade, do ponto de vista do desenvolvimento, das
atividades temporais empreendidas pela Igreja na Arquidiocese de Natal. Os dados poderão confirmá-la ou
impugná-la. Mas, à parte possíveis limitações humanas
e materiais, não estaria o próprio resultado (não imporia
quali) da verificação empírica a que submeteremos tais
atividades vinculado a algo de mais profundo, anterior à
ação, isto é, situado no plano das concepções, crenças,
valores, interesses e, mais imediatamente, no plano das
atitudes?
Dissemos que o desenvolvimento é essencialmente um
processo de mudança, de inovação. Dissemos também
que o Movimento de Natal surgiu numa região tradicional e tradicionalmente católica, entendendo, com isto,
que nem a sociedade, enquanto distinta da Igreja, nem
a Igreja, semi-inculturada, se haviam colocado o problema da mudança, pelo menos não em termos de desenvolvimento. Suponhamos agora que, num determinado
momento, seja levantado o problema da mudança. Mais
cedo ou mais tarde a Igreja seria necessariamente levada
a tomar posição, a redefinir sua própria linha de ação
temporal, em função do novo contexto (existente, em
processo ou almejado). As alternativas seriam várias.
A opção que a Igreja faria entre as diversas alternativas
que se lhe apresentassem não estaria vinculada ao tipo de
atitude da Igreja em face do temporal, e esta atitude, por
sua vez, não estaria vinculada ao tipo de motivação que
animasse a Igreja naquele momento? E, sendo a Igreja
uma instituição religiosa, não seria ela levada da mesma
forma a redefinir sua própria linha de ação pastoral? Não
ALCEU RAVANELLO FERRARO
81
teria esta redefinição as mesmas vinculações que teria a
redefinição de sua atuação no plano temporal? Noutras
palavras: a redefinição da ação temporal e a redefinição
da ação pastoral não seriam feitas num mesmo sentido
e não corresponderiam ambas a uma mesma atitude e
motivação fundamental?
Primeiramente poderíamos dizer que a Igreja poderia
assumir uma atitude favorável ou contrária à mudança.
Em segundo lugar, que poderia fazê-lo motivada por valores ou por interesses. A propósito destes dois últimos
termos cabem aqui algumas observações.
a — Segundo Karl Marx a mudança social tem seu
início no conflito de interesses. Os valores institucionalizados são sempre os valores da classe dirigente, a qual,
precisamente em nome destes valores, resiste à mudança. Max Weber, por outro lado, sem negar que valores
possam ser usados como legitimação de uma ação motivada por interesses, pretende demonstrar relação entre
certos valores derivados da ética protestante e o surgimento do capitalismo.20 Não nos interessa aqui discutir
estas posições, nem as de outros sociólogos; a respeito
do assunto. Basta-nos saber que embora atribuindo-lhes
fufirções contrastantes, de modo geral os sociólogos admitem a distinção entre valores e interesses. Que valores
possam demonstrar-se funcionais à mudança, faz parte
da nossa hipótese.
— Marie Augusta Neal, em Valores e Interesses na Mudança Social, assim distingue os dois conceitos: “Valores
dizem respeito a concepções do bem largamente difundidas; valores da sociedade dizem respeito a concepções
da boa sociedade. interesses referem-se a desejos de van-
82
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tagens especiais para si ou para os grupos com os quais
sé está identificado”. E cita Neil Smelser: “Interesses referem-se a desejos a curto prazo, de proteger ou maximalizar posições institucionalizadas ao indivíduo ou do grupo... Enquanto estamos dispostos a “barganhar com nossos interesses, não entraremos em compromisso prático
com nossos valores”. “Presumivelmente — prossegue N.
A. Neal — ninguém age em favor da mudança a menos
que esteja interessado. Não é este o problema. O assunto
é saber se interesses constituem, para o agente, o critério mais dinâmico para a escolha. Sua intenção principal
é realizar um ideal ou servir a um grupo? A intenção do
agente orientado por valores é principalmente efetivar
no tempo aqueles programas, comportamentos e artefatos que ele acredita refletirem os valores aos quais está
vinculado”. E acrescenta: “Embora valores e interesses
operem nas escolhas de cada indivíduo, uma divisão
verdadeiramente real de crença sobre a legitimidade de
uma primazia de “interesse-sobre-valor” (interest-overvalue) ou de “valores-sobre-interesse” (value-over-interest) matiza evaluações e comportamento”. E conclui:
“A pessoa orientada por valores está relacionada com
a realização de um objetivo que está em conformidade
com um padrão de excelência (a standard of excellence).
Realização de valores é sua incumbência primária. A pessoa orientada por interesses está primariamente interessada em que o processo de consecussão de um objetivo
proporcione vantagens a certa gente — com a exclusão,
se necessário, de outros. O homem orientado por interesses move-se de grupo para grupo sempre procurando
realizar os mesmos valores: o homem orientado por in-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
83
teresses move-se de valor para valor sempre procurando
o mesmo grupo. 21
Feitas estas observações, voltemos ao nosso caso. Dissemos que, ao se apresentar o problema da mudança
numa sociedade tradicional e tradiciocionalmente católica no sentido acima definido, a Igreja poderia, motivada
por valores ou por interêsses, recusar (resistir a) ou aceitar a mudança. Entrecruzando estes quatro elementos,
teríamos a seguinte tipologia de atitudes possíveis em
face da mudança:
— resistência à mudança, motivada por interesses
— resistência à mudança, motivada por valores;
— aceitação da mudança, motivada por interesses;
— aceitação da mudança, motivada por valores.
Tentemos caracterizar melhor estas atitudes e dar-lhes
um nome. Por líderes religiosos (católicos, no caso) entendemos não somente o clero nas suas diversas esferas,
mas também leigos que, em nome de sua pfertinência à
Igreja, exerçam alguma função de liderança .
a — Atitude reacionária. À parte as acepções diversas
que se lhe possa dar, o termo “reacionário” tem geralmente um conteúdo ideológico. Na falta de outro que
melhor defina esta atitude, empregamo-lo aqui, mas no
sentido estrito que lhe damos. O mesmo se diga do termo “conservador”, que utilizaremos a seguir. Por reacionária entendemos a atitude de resistência, de oposição
à mudança por parte dos católicos (do grupo religioso
ou de seus líderes), motivada por interesses particulares.
É o caso, por exemplo, dos que resistem à mudança por
esta se lhes apresentar como uma ameaça a determinadas vantagens — posições, prestígio, privilégios, poder
84
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
— que detêm precisamente enquanto católicos ou enquanto líderes do grupo religioso. As preocupações se
voltam preponderantemente para o setor donde surge
a “ameaça”. As preocupações de ordem religiosa passam para um segundo plano, com excessão daquelas que
possam unir e fortalecer o grupo ou representar uma
demonstração de força. Há uma relativização da função
específica do grupo — a função religiosa — e uma mobilização do mesmo no sentido de debelar o “perigo”,
isto é, de impedir a mudança. É a forma mais radical de
clericalismo. Se as mudanças são as que caracterizam o
processo de desenvolvimento, é manifesto que uma tal
atitude daria origem a posições e a uma linha de ação
que se apresentariam como um obstáculo, ou seja, como
desfuncionais ao desenvolvimento.
b — Atitude integradora ou oportunista. Suponhamos
que, animados ainda, como no caso anterior, por interesses particulares, os católicos, conscientes da inevitabilidade ou irreversibilidade da mudança, se sintam
seriamente ameaçados no que concerne às vantagens
ou privilégios de que desfrutam enquanto membros do
grupo religioso. Em tal caso, poderão evoluir para uma
atitude de tolerância e mesmo de aceitação da mudança.
Procurarão, antes de mais nada, salvar o próprio sistema
religioso, enquanto fonte de privilégios ou vantagens
(prestígio, status social, poder, etc.) de que são depositários como membros do grupo religioso, mesmo que
isto implique em sacrifício parcial (e momentâneo, assim esperam!) de tais benefícios. Receando ficar marginalizado, o grupo tenta integrar-se no processo de mudança, na esperança de salvar o “salvável” e. quem sabe, de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
85
retomar o controle da situação. Despojando o termo de
eventuais conotações pejorativas, poderíamos também
qualificar esta atitude de oportunista.
O grupo poderá aceitar e introduzir mudanças também no setor religioso. Mas, precisamente porque o
grupo é motivado primariamente por interesses vinculados ao sistema religioso, tais mudanças resultarão não
de uma reorientação em termos de valores, mas de simples adaptação, de mudança de métodos ou tática, objetivando assegurar a sobrevivência do sistema religioso
enquanto fonte de vantagens ou privilégios. “Os tempos
estão mudados; é preciso adaptar-se aos tempos!”. Tal atitude não é senão o prolongamento moderno da atitude
que, no passado, levara o grupo à inculturação. Tende a
uma nova inculturação em o novo contexto social.
Em termos de desenvolvimento, a presença do grupo
no processo de mudança, justamente porque resultante
de uma atitude oportunista, de integração num processo
cuja origem e curso não dependeram do grupo, tende a
assumir aspectos de não-desfuncionalidade.
Não queremos com isto afirmar que católicos não possam, motivados por interesses particulares, empenharse ativamente na promoção de mudanças funcionais ao
desenvolvimento. Dizemos apenas que, provavelmente,
os que assim procederem, 1) não o estarão fazendo por
interesse em vantagens ou benefícios cuja obtenção
esteja vinculata à pertinência ao sistema religioso e 2)
muito menos o farão em nome de sua identificação com
o grupo religioso. Um tal caso se situaria fora da problemática tratada neste trabalho e fugiria à tipologia que
ora apresentamos.
86
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
c — Atitude conservadora. Os católicos e especialmente
os líderes mais conscientes resistem à mudança motivados pelos valores de que o grupo é depositário: a mudança se lhes apresenta como ameaça não a vantagens que a
pertinência ao grupo lhes proporcione, mas aos valores
que os animam. As preocupações voltam-se preponderantemente para o setor religioso. Trata-se antes de tudo
de preservar e conservar um patrimônio de valores do
grupo, considerados, porém, estes valores, não em sua
forma original, mas em suas vinculações históricas —
inculturados — o que faz com que o grupo religioso relacione a sobrevivência, de tais valores e, consequentemente, do próprio sistema religioso com a continuidade
do sistema social em que estão, inculturados. É a religião
ética por excelência. Instaura-se uma pastoral de conservação, de preservação do rebanho dos contágios do mundo
e do remédio aos males espirituais — chamados de descristianizacão e entendidos principalmente como abandono
de certas práticas religiosas e desmoralização dos costumes — cujas causas, são facilmente identificadas com
fenômenos ou mudanças como a industrialização, a urbanização, a crescente independência, da mulher, no
trabalho feminino fora do lar e tantas outras mudanças
vinculadas ao processo de desenvolvimento. No plano
temporal observa-se um proliferar de obras assistenciais
e educacionais. Já altamente conceituada numa Igreja e
sociedade tradicionais (norteadas pela tradição local), a
prática da caridade cristã, entendida como assistência aos
necessitados, como obra de misericórdia, apresenta novo
aspecto no caso de uma Igreja animada por uma atitude
conservadora: tais obras assistenciais são também uma
ALCEU RAVANELLO FERRARO
87
forma de protesto contra os males sociais cujas causas
são facilmente identificadas com as mudanças em curso.
Coisa semelhante acontece com as obras educacionais.
Numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica
tais obras orientavam-se principalmente para a transmissão do éthos: bastava isso para Igreja desincumbirse de sua função de guardiã do éthos da sociedade.
No presente caso trata-se também e principalmente de
conservar e preservar o éthos ameaçado pela mudança.
Tais obras são intensificadas não só enquanto instrumentos de comunicação do éthos, mas, e principalmente,
enquanto possibilitam preservar crianças e jovens do
contágio de outras ideias e condicionar-lhes o comportamento.
Evidentemente o que no passado era função pacífica
da Igreja passa agora a constituir fonte de conflito —
conflito tanto mais grave e aberto, quanto mais controle
do poder político tiverem os grupos promotores da mudança. Ao lado destas atividades, surgem também outras, como atividades culturais e particularmente esportivas, que, pelo seu poder de atração, exercem a
função de preservar o rebanho e de condicionar-lhe o
comportamento: futebol, bilhar, cinema, passeio, acampamento..., mas só para quem assiste missa, frequenta o
catecismo, etc... Sintetizando, podemos assim caracterizar a Igreja conservadora: preocupada com a preservação
do seu sistema de valores, que ela considera vinculados à
sobrevivência da ordem social tradicional, a Igreja, tanto
no plano religioso como no temporal (neste em função
daquele), orienta-se para a conservação ou manutenção
da ordem social estabelecida e, consequentemente, do
éthos ou dos princípios cristãos inculturados que funda-
88
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mentam esta mesma ordem. Neste sentido, aceitando e
defendendo esta vinculação, a Igreja aceita e defende seu
estado de inculturação.
Se o grupo religioso detém suficiente poder de controle que lhe permita condicionar opções, inverter prioridades, barrar ou retardar empreendimentos (se se
tratar de reformas, terá máximo cuidado no que tange
ao ensino), em tal caso a desfuncionalidade da presença
do grupo é, do ponto de vista do desenvolvimento, mais
evidente. A menos que a preocupação do grupo religioso
pelos efeitos venha retardar a debelação das causas da
fome, da miséria, da doença, do desemprego, do abandono, da mendicância, etc. — do próprio subdesenvolvimento — certas atividades assistenciais, desempenhando sem dúvida uma função social geralmente aceita e
estimulada pela sociedade, situam-se, do ponto de vista
de desenvolvimento, num plano neutro: nem funcionais,
nem desfuncionais. No conjunto, a presença de um grupo animado por uma atitude conservadora é desfuncional
ao desenvolvimento, mas parece ser menos desfuncional
do que a de um grupo reacionário.
Na medida em que o grupo persistir em sua atitude e
se vir frustrado em seus objetivos (impedir a mudança),
teremos a imagem de uma “Igreja da saudade”!
d — Atitude inovadora. Aqui nos deparamos com a
aceitação e mesmo com a promoção efetiva da mudança
em nome dos valores do grupo religioso, mas dos valores
libertados, através de um processo de desinculturação,
das teias da tradição, isto é, desinculturados o reencontrados em sua forma original. Nos casos anteriores eram
os católicos animados por alguma daquelas atitudes
ALCEU RAVANELLO FERRARO
89
que se consideravam traídos em virtude do rompimento unila-teral do pacto (inconsciente) de inculturação.
Na atitude integradora, é verdade, demonstravam-se dispostos a tolerar e mesmo aceitar mudanças, contanto
que se encontrasse um modus vivendi que fosse ao encontro de seus interesses mais fundamentais. No presente
caso, os acusados de rompimento com o passado são exatamente os católicos animados por uma atitude inovadora.
Sua presença no campo temporal pode ir desde o apoio,
o estímulo, a cooperação, até uma posição de liderança
e de ação direta no sentido de desencadear ou acelerar o
processo de mudança.
As obras assistenciais passam para um segundo plano: mais do que os efeitos dos males sociais, importa
debelar-lhes as causas, causas estas que consistem não
na mudança, mas na ausência de mudança. As obras
educativas, de simples canal de transmissão de cultura
(do éthos tradicional), transformam-se progressivamente
em instrumento de inovação cultural. E, precisamente
porque o fazem em nome de valores e, por isso mesmo,
não estão dispostos a barganhar em termos de interesses
— trata-se de anunciar, e lutar por uma nova ordem social (orientação profética) que melhor espelhe os valores
originais do grupo religioso — a crítica que estes cristãos
movem contra a situação e a posição que assumem em
favor da mudança constituem, para os interessados na
manutenção do status quo, motivo para sérias apreensões
e temores. Católicos e principalmente líderes católicos
animados por tal atitude são fácil e sumariamente identificados como “subversores da ordem (estabelecida!)”,
como “revolucionários”, e acusados de clericalismo, de
90
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ocupar-se mais com as coisas de César do que com as
coisas de Deus.
Levaria esta atitude a uma absorção pelo temporal e
a uma consequente relativização da função específica
do grupo religioso — a função religiosa? Pelo contrário,
o que lhe diz primariamente respeito é sua função específica. O que há de mais fundamental nesta atitude
é precisamente o reencontro com os valores religiosos
originais, desinculturados. Mesmo valores como justiça,
liberdade, igualdade, dignidade, progresso, etc., de si
não especificamente religiosos, são também religiosos,
enquanto fazem parte do sistema de valores originais do
grupo religioso. É também e principalmente em virtude
desta relação, que o grupo se propõe concretizá-los no
temporal. Não se trata, porém, de uma simples instrumentalização do temporal, como no caso de uma atitude
conservadora, de orientação ética. Ao contrário, a concretização de tais valores no temporal é entendida como
parte da missão da Igreja, que se considera responsável
pela concretização da mensagem original e total. Há uma
valorização do temporal.
Também no campo especificamente religioso observase uma série de mudanças, uma reorientação da ação
pastoral, cujas características tentaremos definir, sempre em confrontação com a atitude conservadora, que
também está voltada primariamente para o religioso.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
91
Distinguimos acima, referindo-nos à ação especificamente religiosa da Igreja, dois tipos de associações ou
grupos de cristãos: 1) grupos de caráter educativo-preservativo, voltados para a educação moral (conhecimento e
observância das normas éticas do grupo) e para a preservação dos que estão de fato ou se supõe estejam integrados
na comundade eclesial; 2) grupos de caráter missionário,
orientados para o anúncio da mensagem total, da qual
os aspectos éticos são mais uma decorrência, do que o
núcleo central, isto é, orientados para a evangelização.
Neste sentido, o termo missionário não diz respeito à
ação junto aos pagãos, mas ao trabalho junto a aqueles
que, embora, porque batizados e dados a certas práticas religiosas, se digam católicos, são considerados pelos membros mais conscientes da comunidade eclesial
92
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
como insatisfatoriamente integrados na mesma e, por
isso mesmo, como evangelizandos. O primeiro tipo de
grupos ou associações correspondem a uma religião de
tipo ético; o segundo, a uma religião de tipo profético.
O primeiro visa a conservação da comunidade; o segundo, o crescimento da comunidade.
A tipologia que apresentamos parece incluir as atitudes mais características que, numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica, a Igreja ou um determinado grupo católico poderia assumir ao se lhe apresentar
o problema da mudança. Por hipótese, haveria uma vinculação 1) entre funcionalidade, do ponto de vista do
desenvolvimento, das atividades temporais e tipo de atitude e 2) entre atitude-ação no setor temporal e atitudeação no setor religioso. Antes, porém, de passarmos à
formulação da hipótese, importa 1) ressalvar prováveis
limitações de ordem humana e material e 2) lembrar
que o Movimento de Natal surgiu numa região ainda
tradicional e tradicionalmente católica, na fase imediatamente anterior à tomada de consciência do estado de
subdesenvolvimento e à aspiração consciente ao desenvolvimento da região, e atuou e firmou suas principais
linhas de ação, como veremos na I Parte, precisamente
na fase do desabrochar (antes, portanto, da instauração)
de uma política de desenvolvimento regional (anos 50
e, inclusive, 1960 e 1961, isto é, antes da aprovação, em
dezembro de 1961, do I Plano Diretor da SUDENE).
Deixando-lhe a verificacção para a III Parte, podemos
finalmente formular nos seguintes termos a II hipótese:
Se e na medida em que as atividades temporais
- empreendidas pelo Movimento de Natal se
ALCEU RAVANELLO FERRARO
93
tiverem demonstrado funcionais ao desenvolvimento, corresponderia, por parte do Movimento e especialmente de seus líderes, uma
atitude inovadora, motivada por valores e não
por interesses particulares do grupo religioso,
de orientação profética e não ética, atitude esta
resultante de um processo de desinculturação
dos valores cristãos e resultante num descomprometimento do grupo religioso com o status
quo social e religioso e numa posição em favor
da mudança tanto no campo temporal como no
religioso.
94
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
NOTAS À INTRODUÇÃO
1. Jean Yves Calvez, em La Pensée de Karl Marx (Éditions du Seuil, Paris, 1956),
no inicio de seu capitulo sobre “I’Aliénation Religieuse”, assim se exprime,
parecendo fazer tal concessão a Marx:: “Mais, três tôt, il comprit 1’ampJeur de
1’influence que la religion exerçait sur la vie de ses contemporains... Surtout,
dans l’État prussien, la religion pénetrait les affaires d’État, servant de rempart au conservatisme politique e social”.
2. Karl Marx vê no cristianismo uma dupla forma de alienação religiosa do
indivíduo: a resignação ou evasão, resultante da própria moral cristã de resignação, e a justificação transcendente das injustiças sociais, fundada nos
próprios princípios cristãos. O que Marx tem em mira em sua análise critica,
porém, não é propriamente o cristianismo, nem qualquer outra religião, e
muito menos formas de religiosidade, mas a religião em si. Não importa qual,
a religião é essencialmente uma justificação da situação que a gerou. É ópio
do povo. (Veja Jean Yves Calvez, op. cit., p. 80-83). De uma tal visão resultaria
que a religião, sendo uma fórça essencialmente conservadora, constitui um
obstáculo tanto ao desenvolvimento como a toda e qualquer mudança de um
determinado status quo.
3. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, George Allen and
Unwln, Londres, 6a. edição, 1962, e The Sociology of Religion (tradução de “Religionssoziologie”, da obra “Wirtschaft und Gesellschaft”), Beacon Press, Boston, 1963. Veja também, nesta última obra, a Introdução de Talcott Parsons, pp.
XIX — LXVII.
4. Assim, R. H. Tawney, em Religion and the Rise of Capitalism (London, 1926), está
mais propenso a inverter a causalidade, vendo antes no capitalismo a origem
do protestantismo.
5. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963.
6. GIORGIO MORTARA, “A fecundidade da mulher no Brasil, segundo as Unidades da Federação”, Revista Brasileira de Estatística,- Janeiro/Junho de 1963, p.
39.
7. Id., ib.
8. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963.
9. Id., ib.
10. Id., ib.
11. Id., ib.
12. Pedro Calderan Beltrão, Sociologia do Desenvolvimento, Editora Globo, Porto
Alegre 1965, p. 115.
13. Id., p. 116.
14. Id., ib.
15. Datando da segunda metade dos anos 40 o início do Movimento de Natal,
antecipamos o que veremos na I Parte deste trabalho. Quanto à Região, não
queremos evidentemente dizer que o Nordeste dos anos 60 tenha vencido
a rotina secular, mas sim que está a caminho da modernização, do desenvolvimento. Também, ao definirmos como tradicional o Nordeste anterior a
1950, não queremos negar a existência de mudanças antes daquela data, mas
simplesmente dizer que, apesar de certas mudanças, a Região ainda se caracterizava pelo dominio da tradição. Diríamos mais: as estradas construídas a partir de 1914, dentro do próprio programa de assistência aos flagelados, empregando mão de obra desocupada em tempos de sêca; o advento do caminhão,
ALCEU RAVANELLO FERRARO
95
do ônibus, do carro, do avião, substituindo o cavalo, nas comunicações entre
interior e Capital, e o vapor, nas comunicações inter-estaduais e com o CentroSul; a intensificação das migrações para o Centro-Sul mais desenvolvido; a presença de milhares de norte-americanos no Nordeste durante a II Guerra Mundial; a difusão do rádio; o próprio desenvolvimento do Centro-Sul e a onda
desenvolvimentista que sacudiu o “Terceiro Mundo” no segundo pós-guerra;
enfim, todos estes fatores possibilitaram o acordar do Nordeste, nos anos 50,
para o desenvolvimento. Os primeiros passos neste sentido foram, entre outros: a construção da central elétrica de Paulo Afonso; a instalação do Banco
do Nordeste do Brasil (1954); o I Encontro dos Bispos do Nordeste (Campina
Grande, maio de 1956), com participação de técnicos e homens de Govêrno,
inclusive o Presidente da República; a série de projetos-piloto que resultaram
deste Encontro; o lançamento da Operação Nordeste (1956, após o Encontro);
a Constituição do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste
(1956); a fundação do CODENO (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste —
fevereiro de 1959); o II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, maio de 1959),
seguido de nova série de Projetos-Piloto, e finalmente a criação da SUDENE
(Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste — dezembro de 1959).
Pode-se dizer que a partir do Primeiro Plano Diretor da SUDENE, aprovado em
dezembro de 1961, o Nordeste entrou na rota do desenvolvimento.
16. “La motivation socio-culturelle . sera le fait de personnalités plus “inner-directed”, plus consciement identifiées avec la société sous la forme conscient et
achevée, la société nationale, e avec Ia culture que en est l’âme. Ces personnes
voient das la religion une institution intégratrlce de la société, garantie de
la paix sociale e protection contre les bouleversements que remettraient en
cause leur statut social. Leur participation aux cérémonies est moins le lait
d’un besoin spontané que la marque de leur volonté de soutenir la religion...
Une telle motivation ne prédispose guère à accepter, encore moins à favoriser
le changement social. Les personnes que en sont animées s’opposent à tout
ce que peut modifier 1’équilibre social, à la sécularization bien sur, mais aussi
à des formes religieuses de type prophétique.” (Émile Pin, “Les motivations
des conduites religieuses et le passage d’une civilization pré- technique & une
civilization technique”, Social Compass, XII/1 (1966) 33.
17. “Dans la plupart des sociétés pré-industrielles, la coutume impose aux
membres du groupe, à côté d’autres prescriptions, des observances religieuses. Ces observances prennent le plus souvent 1’aspect de cérémonies ou plus
ou moins consciement le group cherche à exprimer son unité. Le contenu
rituel de ces cérémonies importe moins aux yeux du groupe ou de ses dirigents que la fidélité à la coutume elle-même, íidélité dans laquelle s’exprime
la continuité du groupe. Lá ou le christianisme s’est établi, les observances
coutumières ont pris une forme chrétienne... La motivation culturelle spontanée n’est pas une motivation consciente... Les personnes qui se soumettent
ainsl à Ia coutume locale n’ont pas conscience d’une telle soumission... Les
personnalités qui sont ainsl immédiatement soumises à la culture sont celles
que David Riesman a appelées les personnes “tradiction-directed”. (Émile Pin,
“Les motivations...”, op. cit., p. 31).
18. Em 1950 a proporção de católicos sobre a respectiva população total era a
seguinte: Nordeste — 97,82%; Rio Grande do Norte — 97,65%; Brasil todo —
93,48% (dados do Censo de 1950).
96
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
19. Pedro Calderan Beltrão, op. cit., p. 117.
20. Veja: 1) Jean Yves Calvez, La Pensée de Karl Marx, op. cit., capítulo sobre
“1’alienation religieuse”; 2) Max Weber, The Protestant Ethic..., op. cit.; 3)Marie
Augusta Neal, Values and Interests in Social Change, p. 1-3.
21. Marie Augusta Neal, Values and Interest in Social Change, p. 9-10. Quanto à
tipologia que apresentaremos a seguir, muito devemos à distinção que o autor citado faz entre orientação em favor da mudança e contra a mudança, em
nome de interesses ou em nome de valores.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
97
I PARTE
ORIGEM E EVOLUÇÃO
MOVIMENTO DE NATAL
INTRODUÇÃO À I PARTE
É relativamente fácil situar no tempo o início de acontecimentos históricos, como uma revolução ou uma
guerra, ou de obras, como a construção de um hospital
ou de uma estrada. O mesmo não acontece quando se
trata de movimentos. Destes, não podemos geralmente
indicar senão momentos. Dificilmente podemos datarlhes exatamente o início. É o que acontece com o nosso
caso.
Para satisfazer à curiosidade de visitantes convencionou-se datar de 1948 o início do Movimento de Natal.1
“Em 1948 — diz Dom Eugênio — teve início o Movimento de Natal. Alguns sacerdotes preocupados com a
necessidade de se unirem para melhor exercerem sua
ação apostólica começaram a reunir-se privadamente.
Eram seis. Estas reuniões mensais, que continuam até
hoje com todo o clero, constituem um dos vínculos do
Movimento de Natal”. E acrescenta imediatamente:
“O segundo momento foi a necessidade de enfrentar os
problemas da região. Uma pequena equipe de sacerdotes
e leigos preocupava-se com a situação geral. Esse grupo
era constituído de elementos militantes da Ação Católi-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
101
ca, Assistentes Eclesiásticos e leigos de nível intelectual
elevado. A gravidade da problemática no meio rural levou essa equipe a tentar soluções em nome da Igreja com
uma visão realista do cristão nesse meio. Realizou uma
pesquisa em várias áreas do Rio Grande do Norte, um
movimento de massa com presença das autoridades civis
e religiosas como tentativa de chamar a atenção para o
problema. Organizou-se uma entidade, o Serviço de Assistência Rural — SAR”. E torna a acrescentar: “O Movimento de Natal deu seus primeiros passos com a preparação de líderes e ainda hoje seus centros de treinamento
constituem um dos aspectos vitais de suas atividades”.2
Sem dúvida nenhuma estes três momentos — a reunião mensal do clero a partir de 1948, a fundação do SAR
em 1949 e o treinamento de líderes iniciado em 1952
— foram decisivos na origem e evolução do Movimento.
A reunião mensal do clero certamente condicionou os
dois momentos seguintes. Mas estes três momentos dizem respeito mais de perto ao que chamaremos de Ia e IIa
FASE RURAL do Movimento (Capítulo III e IV).
Nós recuaríamos mais alguns anos. Diríamos que os
sacerdotes, antes de serem 6, eram 2 — Padre Eugênio e
Padre Nivaldo. Dois Assistentes Eclesiásticos e dezenas de
militantes leigos da Ação Católica. é inegável que a Ação
Católica, embora sendo uma organização com finalidade
especificamente religioso-missionária, desde seu início
(1936) sempre se preocupou com os problemas sociais.
De outro lado constatamos que, a partir de 1945, a
Ação Católica deu uma verdadeira guinada para o social,
colocando, já em 1945, um dos esteios do Movimento de
Natal — a Escola de Serviço Social — e dando origem do
102
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
que chamaremos de FASE URBANA do Movimento (Capítulo II). É que algo de novo estava acontecendo em Natal.
“Toda época de transição é sempre cheia de apreensões,
de cuidados, de ansiedades” — dizia, em 1944, às Militantes da Juventude Feminina Católica (JEC) de Natal, o
jovem sacerdote Eugênio de Araújo Sales, apenas chegado de Nova Cruz, cidade do interior onde vivera seus primeiros meses de sacerdócio, para ocupar o cargo de Diretor espiritual no Seminário Menor “São Pedro”, em Natal.
“E nossa cidade — prosseguia ele — em vertiginosa carreira muda de aspecto. Novos costumes, novas atividades,
novos interesses. Maiores responsabilidades para vós...
Todo ambiente é julgado capaz de ser transformado...
Podereis transformá-lo”. E justificava: “Embora o escopo
supremo da Ação Católica seja de fim estritamente religioso — conduzir as almas a Cristo — conclui-se facilmente que tal fim só será cabalmente realizado com a
atuação no meio social...” E, concluindo, apelava para
“métodos apostólicos adaptados ao meio e manejados
por santos”.3 Esta citação nos chama a atenção 1) para
a relação religioso-temporal, o que veremos na terceira parte deste estudo, e 2) para o estudo dos possíveis
CONDICIONAMENTOS do Movimento, do que trataremos a seguir, no Capítulo I.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
103
NOTAS À INTRODUÇÃO À I PARTE
1. “Movimento de Natal” — título de um artigo do pe. Tiago G. Clotn, publicado na Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil (N°. 85, Julho de 1982) — foi
o nome cunhado pelo autor para designar a “ação conjugada de evangelização e de
ação sodal” que ele mesmo tivera oportunidade de observar na Diocese de Natal.
A divulgação deste artigo em várias outras línguas e o livro do Pe. Alberto
Collard: N. E. BRA — Au Nord-Est du Brésil (Mons, Éditions “DIMANCHE”, 1963,
106pp.), tornaram a experiência de Natal conhecida, principalmente no
exterior, como “Movimento de Natai”. O termo “movimento”, contudo, embora pouco usado, não constituía novidade. Assim, o Relatório das Atividades do SAR
em 1951 já falava na “necessidade de organizar um “movimento”, e no Relatório
das Atividades do SAR em 195i denominava-se “movimento rural” o trabalho do
SAR. Outro documento, sem data, mas certamente anterior a 1960 (trata-se
provavelmente de um artigo inédito), referia-se ao Encontro Mensal do Clero
e aos treinamentos de líderes rurais como sendo “Movimento de Ponta Negra”.
2. D. Eugênio Sales, Uma Experiência Pastoral em Região Subdesenvolvida — trabalho apresentado no Congresso Internacional “Pro Mundi Vita”, Essen (Alemanha), 3 a 5/9/1963.
3. D. Eugênio Sales, Palestra à J.F.C., aos 6-9-1944, por ocasião do 8º aniversário
da Juventude Feminina Católica.
104
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
CAPÍTULO I
CONDICIONAMENTOS1
1. A IGREJA
1) Da Diocese. A história da Diocese de Natal é curta.
Antes de 1909 não havia no estado nenhuma Diocese.
Aos 29 de dezembro de 1909 o Papa Pio X criou a Diocese de Natal, que pertenceu à Província Eclesiástica da
Bahia até 1914, quando passou a ser sufragânea da nova
Arquidiocese de João Pessoa.
De 1909 até 1934 a Diocese de Natal abrangia todo
o estado do Rio Grande do Norte. Em 1934 foi criada a
Diocese de Mossoró, na Zona Oeste do estado. Seguiuse, em 1940, a criação da Diocese de Caicó, abrangendo
o Seridó. Contando já o estado com três Dioceses, estas
passaram a formar, em 1952, nova Província Eclesiástica,
sendo Natal erigida em Arquidiocese.
2) Os bispos. O primeiro bispo de Natal, D. Joaquim
Antônio de Almeida, tomou posse em junho de 1911.
Tendo-se alterado sua saúde em consequência das longas
viagens a cavalo pelo interior do estado, renunciou em
junho de 1915, vindo a falecer em 1947, na cidade de Macaíba. Nos seus quatro anos de governo improvisou um
ALCEU RAVANELLO FERRARO
105
Seminário para a formação do clero — sua maior preocupação — chegando a ordenar 10 sacerdotes.
Após três anos de vacância, aos 30 de maio de 1918
tomou posse o segundo bispo de Natal, D. Antônio dos
Santos Cabral, transferido para Belo Horizonte aos 21 de
novembro de 1921. Em seu curto governo reabriu o Seminário, lançou a ideia da construção de uma nova catedral
e fundou a Congregação Mariana de Moços. Graças a ele
e aos marianos, surgiram durante seu governo a Escola
de Comércio de Natal e o semanário A Palavra, ambos
confiados à Congregação. Devem-se ainda a D. Antônio
o mensário “Fé e Luz” e o “Boletim de Natal”, primeiro
órgão oficial da Diocese.
D. José Pereira Alves tomou posse em junho de 1923,
sendo transferido para Niterói em janeiro de 1928.
Destacou-se pela sua cultura e trabalho junto à classe
intelectual. Suas pregações quaresniais constituíam a
atração dos homens da cidade. Graças ao seu apoio e ao
dinamismo dos marianos surgiram durante seu governo
Diário de Natal e o Movimento Cooperativista no Estado,
o que, no VI Congresso de Crédito realizado no Rio, lhe
mereceu o título de “bispo do cooperativismo”.
Tendo como marco inicial a fundação da Congregação
Mariana de Moços, o decênio de 1918 a 1928, assinalado
pelos governos de D. Antônio dos Santos Cabral e D. José
Pereira Alves, constituiu uma fase creativa no que concerne à ação temporal da Igreja na Diocese de Natal.
O quarto bispo, D. Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas, chegou a Natal em junho de 1929, ficando à frente
da Diocese até 1962, data em que, já idoso e quase cego,
conservando o título de Arcebispo de Natal até sua morte
(8-4-1967), recebeu, na pessoa do então Bispo Auxiliar D.
106
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Eugênio de Araújo Sales, um Administrador Apostólico
“sede plena”.
A principal preocupação de D. Marcolino foi a formação do clero. Construiu o Seminário Menor São Pedro.
Ordenou, de 1929 a 1960, nada menos de 40 padres.
Combateu a injunção do clero nas lutas políticas. Insistiu
em um clero “um com o bispo”. Praticamente todos os
sacerdotes integrados no Movimento de Natal passaram
por suas mãos, no Seminário.
Outra característica de seu governo foi o apostolado
junto às famílias natalenses.
Conseguiu também trazer para a Diocese várias Congregações religiosas, especialmente femininas, tendo em
vista a fundação de colégios ou a administração de hospitais. Exceção feita, porém, de algumas obras desse tipo,
podemos dizer que, com relação ao setor temporal, D.
Marcolino limitou-se praticamente a apoiar os trabalhos
de Ulisses de Góis e seus marianos. Do ponto de vista
creativo, grande parte de seu longo governo constituiu
um hiato na história da ação temporal da Igreja na Diocese de Natal. Somente a Ação Católica, particularmente
a partir de 1945 e sob a liderança de seus Assistentes,
abriria nova fase creativa no que concerne à ação temporal (e mesmo, religiosa) da Igreja.
É verdade que a Ação Católica, sem a qual não se entende o Movimento de Natal, surgiu durante o governo
de D. Marcolino. Mas este não lhe pedia senão “O CATECISMO”.2 Além disto, D. Marcolino, pela sua própria personalidade autoritária e centralizadora, não era homem
que inspirasse ou favorecesse experiências novas no
campo religioso, embora deixasse algum respiro no que
tangia ao campo social.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
107
Narra-nos um sacerdote que a nomeação de um vigário
de interior por volta de 1940 era acompanhada do seguinte mônito: “O senhor vai para a paróquia X. Procurará manter boas relações com as autoridades, porque o
senhor também é autoridade”. O vigário era ainda concebido como integrante da conhecida cúpula das “autoridades” das cidades do interior. “Neste tempo — observa
o mesmo sacerdote — o vigário era o capelão de dois ou
três por cento do seu rebanho. O tempo que lhe sobrava
das “obrigações”, dedicava-o ao intercâmbio de visitas
de cortesia com as “autoridades” do lugar. Estávamos
dentro da estrutura. Naqueles anos morria-se por enfadamento. Apesar de miseráveis, o povo pobre nos considerava ricos, porque andávamos de braços com estes. Na
realidade estávamos, como aqueles, na “sujeição” destes.
A um sacerdote jovem que lhe apresentava uns “planinhos” D. Marcolino respondeu secamente: “Os seus
planos bote-os no bolso. Aqui vogam os planos do Arcebispo”. Bahiano de ferro e autoritário, é admirável como
tenha conseguido o que ele sempre quis: um clero “um
com bispo”. Talvez porque, pela sua própria personalidade que não admitia interferência de quem quer que
fosse em suas atribuições, passou a defender o clero da
injunção das “autoridades” do interior. Narra-nos um
sacerdote que, de certa feita, ao receber uma comissão
que lhe ia fazer queixa contra o vigário, D. Marcolino
passou primeiro um “sabão” no grupo, despedindo-o, e
chamou mais tarde o vigário para ver o que havia.
3) O Marianismo. A Congregação Mariana de Moços,
fundada por D. Antônio dos Santos Cabral em 1918, constitui sem dúvida o início de uma fase creativa no campo
108
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
da ação temporal da Igreja Quatro dias após sua fundação, a Congregação já instalava a Escola São Vicente de
Paulo para meninos pobres.
A Congregação atuou particularmente em três campos: formação de técnicos, imprensa e cooperativismo.
A primeira obra de vulto da Congregação foi a Escola
Técnica do Comércio, fundada em 1919 e acrescida, em
1962, da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e
Atuariais.
No Setor de imprensa, surgiu, já no tempo de D. Antônio dos Santos Cabral, o semanário A Palavra. Este, no
dizer de Dr. Otto de Brito Guerra, “saía quando Deus dava
bom tempo”. Em 1924, foi fundado o Diário de Natal, que
circulou até 1930 e renasceu em 1935 com o nome de A
Ordem, já sob a influência clara de Tristão de Athaíde e
Jackson de Figueiredo. O jornal estava nas mãos do Centro de Imprensa da Congregação Mariana de Moços. Parte do grupo estava sob a influência das ideias integralistas. “Hoje esse grupo seria considerado extremamente
reacionário — confessa o Dr. Otto de Brito Guerra — mas
no tempo era o que havia de mais avançado”. Durante os
poucos dias de vida do governo comunista implantado
em Natal pela revolução de 1935, a tipografia d’A Ordem
foi ocupada, sendo-lhe mudado o nome para Tipografia
Liberdade, com foice e martelo na placa.
A Ordem circulou como diário até fins de 1953, voltando à circulação em outubro de 1960 mas, daí por diante,
integrada no Movimento e como semanário.
O Grupo de Imprensa da Congregação Mariana exerceu grande influência no meio político estadual. Muitos
projetos surgiram e foram aprovados pela Assembleia
ALCEU RAVANELLO FERRARO
109
graças ao apoio d’A Ordem. Pretendendo encaminhar
à Assembleia o projeto que criava a Loteria Estadual, o
Deputado Creso Bezerra foi ouvir a direção d’A Ordem.
Só apresentaria o projeto se o Grupo de Imprensa não o
combatesse. De fato, por outras razões desistiu do projeto.
Contando com o apoio de D. José Pereira Alves e sob
a. influência de católicos sulistas, particularmente de
Plácido de Melo, a Congregação Mariana, com a criação
da Caixa Rural e Operária de Natal, cooperativa popular
de crédito, deu início ao Movimento Cooperativista no
estado. A Caixa Rural e Operária foi transformada mais
tarde em Cooperativa Central de Crédito Norte-Riograndense Ltda., contando hoje com mais de 5.000 associados. Várias outras cooperativas surgiram no estado por
influência dos marianos.
Em 1938, quando o estado criou a Divisão de Cooperativismo, já existiam 10 cooperativas, totalizando 3.591
associados. Dez anos mais tarde, em 1948, as cooperativas elevavam-se a 46, e os associados, a 14.275. O Seridó,
devido particularmente à ação do primeiro bispo de Caicó, D. José Delgado, passou a formar o maior bloco cooperativista do estado.
A partir de 1938, quer na direção do órgão estatal de
incentivo ao cooperativismo, quer dando ampla cobertura através da imprensa, os marianos colaboraram ativamente com o esforço oficial no sentido de difundir o
cooperativismo no estado.
Dentre os pioneiros do movimento cooperativista no
Rio Grande do Norte, além dos dois bispos já citados —
D. José Pereira Alves e D. José Delgado — merecem des-
110
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
taque Dr. Ricardo Barreto (Pai do Cooperativismo no estado).3, Ulisses de Góis (sucessor de Ricardo na liderança do
movimento desde 1931), Dr. Heráclio Vilar Ribeiro Dantas (um dos pioneiros e primeiro Presidente da Comissão
Central de Cooperativismo de Crédito) e Francisco Veras
Bezerra (Secretário d’A Ordem e 1°. Presidente da Divisão
de Cooperativismo criada pelo estado e integrada por
marianos).
A Ordem de 24/4/1950, depois de observar que a Ação
Católica dera início e mantinha várias obras sociais na
capital, acrescenta: “Agora chegou a vez dos Congregados Marianos, que, embora já mantenham obras da importância de uma cooperativa de crédito, de um diário
católico e de uma Escola Técnica de Comércio, não pretendem descansar sobre os louros das vitórias alcançadas”. Tratava-se da construção de uma escola-ambulatório no Alto do Juruá, instalada no dia 4 de junho de
1950.
Mas o fato é que, quando no primeiro quinquênio dos
anos 40 a cidade “em vertiginosa carreira mudava de aspecto”, a Congregação, embora dando continuidade às
suas atividades sociais habituais, não soube reformular
sua ação em função dos novos problemas da Capital,
e, apesar de uma ou outra iniciativa isolada, “a vez dos
Marianos” não mais chegou. Enquanto a Jovem Ação
Católica abria, a partir de 1945, sempre novas frentes de
ação, a Congregação encontrava-se em grande parte empenhada na promoção de “brilhantes” reuniões festivas,
comemorações, recepções, homenagens e “imponentes”
concentrações das “forças católicas”.4
ALCEU RAVANELLO FERRARO
111
À parte a própria estrutura das Congregações Marianas, que não favorecia o redimensionamento de seu trabalho social em face dos novos problemas da Cidade, deveu-se em grande parte à falta de renovação na liderança
o declínio do marianismo em Natal em meados dos anos
40. O novo líder que começava a projetar-se — o Dr. Otto
de Brito Guerra — passou a atuar mais na Ação Católica
do que na Congregação e foi sempre um dos mais estreitos colaboradores de D. Eugênio.
Eugênio, por sua vez, sempre admirou o líder dos marianos, o Comendador Ulisses de Góis, mas houve, sem
dúvida, descontinuidade entre o trabalho de ambos.
4) A Ação Católica. “O pioneiro, na Diocese, desse
grande movimento renovador — diz D. Marcolino E. Dantas — foi o Cônego Luiz Gonzaga do Monte”5, nomeado,
em meados de 1936, Assistente Eclesiástico da Juventude
Feminina Católica (J.F.C.), então em formação. A J.F.C.,
instalada aos 7 de setembro de 1936, foi o primeiro setor
da Ação Católica, organizado em Natal.
Outra pessoa intimamente ligada às origens da Ação
Católica em Natal, foi uma religiosa. “Apareceu-me em
palácio — comenta D. Marcolino — na madrugada desse
movimento, um grupo de jovens, chefiado por Madre
Fonsêca, que muito deu de sua inteligência e zelo à Ação
Católica, entre nós”.6
Depois da J.F.C., surgiram a Liga Feminina da Ação
Católica (L.F.A.C.), chamada mais tarde de Senhoras da
Ação Católica (S.A.C.), e os Homens da Ação Católica
(H.A.C.). Pouco depois do falecimento, aos 28 de fevereiro de 1944, do fundador da Ação Católica em Natal,
Cônego Luiz Gonzaga Monte, Padre Eugênio dava início
112
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
à preparação do ramo de rapazes, fundando a Juventude
Masculina Católica (J.M.C.).
Já em 1936 as jovens da J.F.C. perguntaram ao Arcebispo: “Quais são as obras que V. Excia. quer que executemos?”. “Só uma, respondi — comentava D. Marcolino 10
anos mais tarde — O CATECISMO. Se o fizerem, dar-meei por satisfeito. E o fizeram. Os institutos, as escolas, as
fábricas, os bairros foram o vasto campo de seu apostolado”.7
Embora não lhe fosse pedido senão o CATECISMO, a
Ação Católica, desde seus inícios, se preocupou também
com os problemas sociais.
No campo social, porém, tem-se a impressão de que,
até 1945, a Ação Católica tateava à procura de um caminho. “Era ação social na ‘raça’, comenta D. Nivaldo Monte”.
Merece destaque o trabalho desenvolvido pela Ação
Católica junto às domésticas e jovens operárias. Em
1940, a J.F.C. fundou o Instituto Jocista Pio XI, com
curso primário para jovens operárias e domésticas. No
ano seguinte o Instituto foi acrescido de mais um curso.
A L.F.A.C., por sua vez, deu início, em 1941, à Escola
Divina Providência, onde as próprias “liguistas” passaram a ministrar primeiras letras, doutrina cristã, corte
e costura e bordado às domésticas.
5) O Clero. Ao tratar dos condicionamentos do Movimento de Natal, importa mencionar três sacerdotes.
a) Temos, em primeiro lugar, Mons. Paulo Horôncio de
Melo. Com frequência ouvimos falar de seu trabalho pioneiro ainda quando vigário de São José de Mipibu (1933
- 1937). “Muito amigo de D. Marcolino — explicou-nos
um sacerdote — Mons. Paulo podia permitir-se fazer suas
ALCEU RAVANELLO FERRARO
113
experiências, com desconhecimento, pelo menos oficial,
do Arcebispo”. Quais experiências? O escotismo? Nenhuma outra nos foi mencionada. “Era mais um “espírito”,
uma nova maneira de encarar os problemas religiosos e
sociais”, justificou alguém. O fato é que bom número de
sacerdotes e leigos da Ação Católica falam do trabalho
pioneiro de Mons. Paulo.
O segundo foi o Cônego Luiz Monte, ordenado sacerdote em 1927 e falecido, ainda jovem, em 1944. Foi o
“sábio-asceta” de Natal. Foi o formador de militantes leigos para a atuação nos setores religioso e temporal. Nunca dissociou estes dois campos. Foi, como já dissemos, o
pioneiro da Ação Católica na Arquidiocese de Natal.
O terceiro a ser mencionado é o atual bispo de Caicó,
D. Manoel Tavares. Como vigário de Angicos, já no início
do decênio dos 40, tornou-se conhecido por suas realizações no campo social. Merecem destaque o Educandário
Padre Félix e o Instituto Cônego Leão Fernandes. A construção do primeiro foi iniciada em 1941, sendo inaugurado o 1°. pavilhão já em março do ano seguinte. Em 1943,
estando ambos em funcionamento — o Educandário e o
Instituto — foi instalado, com a cooperação de L.B.A. e
do SERAS, o Serviço de Menores, com o atendimento de
cerca de 100 menores.8
Outros sacerdotes poderiam ser mencionados. Citemos
um, Mons. Pedro Rebouças de Moura, vigário de Nova
Cruz desde 1939. Sob sua liderança a paróquia conheceu, já no início dos anos 40, um surto de obras sociais:
1) um colégio (1941), confiado às Irmãs Franciscanas do
Bom Conselho; 2) o Instituto Cura D’Ars (1944), visando a
alfabetização e iniciação profissional do menor abando-
114
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nado; 3) o Albergue São Vicente (1945), para pobres desvalidos — originado de uma ideia de D. Eugênio quando
coadjutor de Nova Cruz em 1944 — e mudado mais tarde
para Instituto São Vicente de Paulo, destinado à infância
abandonada; 4) a Escola São José de Campestre, na cidade do mesmo nome. Com excessão do Colégio, as três
outras obras ministravam ensino gratúito, tendo surgido
já na fase de atuação da L.B.A. e contando com a ajuda
desta. Outras obras surgiram mais tarde na paróquia.
Em 1947 Mons. Pedro Moura fundou o Instituto das
Irmãs de Santa Gema, tendo em vista preparar auxiliares
paroquiais para o trabalho religioso e o atendimento às
obras sociais que iam surgindo. Mais tarde D. Eugênio
confiaria a estas Irmãs a Casa da Empregada “Santa Zita”
e a adminstração dos dois Centros de Treinamento de
Líderes — o de Ponta Negra e o de Pium.
Segundo Mons. Expedito de Medeiros, a grande mortandade causada no estado pelo gâmbia (anophelis gambiae) — mosquito que transmite o impaludismo e trazido
da África para Natal pelos AVISOS (navios-correio) franceses provenientes de DAKAR — teria motivado, já por
volta de 1940, uma série de iniciativas da parte de alguns
vigários no interior. O próprio Mons. Expedito observa
ter sofrido, quando vigário de Taipu em 1940, tremendo
impacto ao presenciar as procissões que se sucediam
com uma frequência nunca vista rumo ao cemitério da
cidade. Grassava o impaludismo em sua paróquia. “Tanta
gente morrendo!” — pensava ele. “Isto não pode continuar! É necessário fazer alguma coisa”. Vários sacerdotes
pensavam assim: “É necessário fazer alguma coisa”. Mas,
fazer O QUÊ?
ALCEU RAVANELLO FERRARO
115
Como acabamos de ver, mais de um sacerdote não só
pensou em fazer, mas realizou “alguma coisa”. O Serviço
de Assistência Rural viria abrir, nos anos 50, novas perspectivas para o trabalho social no meio rural. É o que
veremos nos Capítulos III e IV.
2. NATAL E A II GUERRA MUNDIAL
O afundamento de navios brasileiros atribuído a submarinos alemães levou o Brasil a sair de seu estado de
neutralidade. Assim, a 28 de janeiro de 1942, por ocasião do encerramento da Terceira Reunião de Consultas
dos Chanceleres Americanos no Rio de Janeiro, o Brasil
anunciava o rompimento das relações diplomáticas com
as Nações do Eixo. Seguiu-se, em março, o afundamento
de mais um navio brasileiro, o Cairu, e, a 22 de agosto, o
reconhecimento, por parte do Brasil, do estado de beligerância com as Nações do Eixo. A 18 de setembro foi decretada mobilização geral em todo o territorio nacional.
A 25 do mesmo mês foi instalado em Natal o Serviço de
Defesa Anti-Aérea.
A esta altura Natal já contava com uma Base Naval
(brasileira), situada à margem do Rio Potengi, e uma
Base Aérea (com participação também dos Estados Unidos), situada em Parnamirim, a 18km de Natal. Ambas
as bases haviam sido construídas no decorrer dos anos
de 1941 e 1942. Situada no extremo oriental do Brasil, a
Base Aérea de Parnamirim, pela sua posição estratégica
na rota Estados Unidos - Dakar, foi cognominada “Tram-
116
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
polim da Vitória”, enquanto Natal, além de receber as
tropas americanas em trânsito, passou a hospedar avultado número de norte-americanos, constituindo-se, para
os mesmos, num campo de adaptação ao clima tropical.
Por outro lado, enquanto o próprio Brasil alimentava
seus contingentes militares na cidade, o surto de mineração (especialmente do tungstênio e da chelita) no estado
durante a Guerra atraia firmas e técnicos para Natal.
As Bases Aérea e Naval, as linhas aéreas internacionais,
a demanda de domésticas, o desenvolvimento do comércio, o aparecimento de novos hotéis, bares e cinemas,
vieram criar um grande número de novos empregos
na Cidade. Tudo isto e mais o dólar “fácil”, que corria
abundante, vieram canalizar para a Capital a já existente
corrente migratória, cujo elemento propulsor era constituído pelas Precárias condições de vida no meio rural,
agravadas pelas escassas chuvas nos primeiros anos do
decênio dos 1940.
Os imigrantes que não puderam ser absorvidos pelos
novos empregos, foram engrossar as fileiras dos que viviam da mascateaçao, à caça fácil do dólar.
O encarecimento do custo de vida — problema que
ocupava quase diariamente colunas inteiras dos jornais
da época — decorrente o próprio estado de guerra e
agravado pelas escassas chuvas nos primeiros anos do
decênio dos 40, tomou novo impulso com a entrada do
dólar americano, que veio concorrer na compra dos já
escassos gêneros alimentícios.
Terminada a guerra, desapareceu o americano e, com
ele, o dólar e o ganho fácil. Muitos empregos nas Bases
Aérea e Naval cessaram de existir. Grande número de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
117
domésticas ficaram sem emprego. O comércio caiu verticalmente. Bares e cafés desapareceram com a mesma
rapidez com que haviam surgido. Roosevelt e Vargas não
mais marcaram encontro em Natal. As linhas aéreas internacionais retiraram-se para o Recife. Muitos dos que
tinham encontrado na mascateagem o seu ganha-pão,
passaram a engrossar as fileiras dos vagabundos.
Quase diariamente passaram a ocupar colunas do jornal A Ordem problemas como: o desemprego, a vadiagem,
a delinquência (principalmente juvenil), a mendicância,
o menor abandonado, a prostituição (principalmente de
menores), a falta de luz, de água, de escola, de assistência médico-dentária, de estradas, de policiamento, de assistência religiosa nos novos bairros que iam surgindo
em Natal.
“A cidade acordara” — nos diz o Dr. Otto de Brito Guerra em sua entrevista — “e queriam mandá-la dormir novamente”.
Tudo caiu em Natal, exceto a elevação do custo de vida
(ainda hoje um dos mais elevados do país) e o crescimento da cidade.
Segundo os dados dos Censos deste século, Natal tinha
16.056 habitantes em 1900; 30.696, em 1920; 54.836, em
1940; 103.215, em 1950; 162.537, em 1960, devendo ter
superado os 200.000 habitantes em fins de 1965.
Em termos percentuais, o crescimento da população de Natal foi da ordem de 91,2% entre 1900 e 1920
(20 anos); 78,6% entre 1920 e 1940 (20 anos); 88,2% entre 1940 e 1950 (10 anos) e 57,5% entre 1950 e 1960 (10
anos). Por conseguinte, o aumento percentual da população de Natal no decênio dos anos 1940 foi superior ao
118
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
verificado nos 20 anos anteriores a 1940 e quase igual ao
verificado nos primeiros 20 anos deste século. O crescimento percentual verificado entre 1950 e 1960 (57,5%)
foi inferior ao do decênio anterior, mas superior (pois se
refere a apenas 10 anos) ao verificado nos dois primeiros
períodos intercensitários (1900 a 1920 e 1920 a 1940).
3. A L.B.A. E O SERÁS
A 28 de setembro de 1942 foi instalada em Natal a
Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência,
cuja Comissão Central funcionava no Rio de Janeiro
sob a presidência de D. Darci Vargas, esposa do então
Presidente da República. Entre os objetivos da L.B.A.
podemos enumerar os seguintes: apoio às forças armadas; assistência às famílias dos convocados; assistência
médico-dentária através de ambulatórios; assistência aos
flagelados das estiagens; assistência financeira a instituições públicas e particulares de caráter assistencial.
A 25 de março de 1943 o Governo do Estado instalou
o Serviço Estadual de Reeducação e Assistência Social
(SERÁS). O problema do menor era tão agudo neste tempo, que, a certa altura, o Diretor do SERÁS se viu na contingência, de apelar para o Juiz de Menores do Recife no
sentido de encaminhar para lá os casos mais urgentes de
desajustamento (9).
No mesmo dia em que foi instalada a Comissão Estadual, D. Marcolino reuniu os diretores de todas as instituições católicas a fim de estudar os meios de colaborar
ALCEU RAVANELLO FERRARO
119
com a L.B.A. Desenvolveu-se, em todo o estado, estreita
colaboração entre a Igreja, a L.B.A. e o SERÁS.
Na capital, a Igreja, até 1945, se limitou praticamente
a colaborar com as iniciativas da L.B.A. e do SERÁS e a
receber a ajuda da L.B.A. para as obras católicas já existentes. Em alguns lugares do interior a L.B.A. e o SERÁS
organizaram seus próprios serviços, enquanto que, em
outros, como na Diocese de Caicó (10) e na paróquia de
Angicos, as duas instituições passaram a colaborar com
uma série de obras iniciadas já antes pela Igreja.
Logo de início deu-se conta a L.B.A de que não poderia
atingir seus objetivos — a L.B.A. não queria fazer mera
assistência — fundada apenas no empirismo, Desta preocupação em racionalizar a ação social surgiu o 1º Curso
de Visitadoras Sociais, realizado em Natal, de 15 de novembro a 30 de dezembro de 1942.
Pouco mais tarde, em fevereiro de 1943, instalou-se
outro curso intensivo, desta vez para formação de Monitores Agrícolas, com o objetivo de estimular, através da
organização de Clubes Agrícolas, a produção de alimentos. Isto, dentro da “Batalha da Produção”.
Aos poucos, entre todos os que — seja na Ação Católica, seja na L.B.A. e no SERÁS — militavam no campo social, foi generalizando-se a preocupação pela formação
de técnicos.
O Dr. Rodolfo Aureliano, Juiz de Direito e Professor na
Escola de Serviço Social do Recife, mariano e de grande
abertura social, acentuando, em sua palestra proferida
em Natal em 1944, a importância do Serviço Social e a necessidade de fundar uma Escola para a formação de trabalhadores sociais, confirmou todos no mesmo propósi-
120
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
to. Por sua vez, a Primeira Semana de Estudos Sociais, realizada em Natal de 5 a 11 de novembro de 1944, promovida pelo Centro de Estudos Sociais e levada a efeito pela
L.B.A. e o SERÁS, apressou a efetivação de tal propósito.
Com efeito, graças a um acordo firmado entre a L.B.A.
e a J.F.C. em abril de 1945, ainda em junho do mesmo
ano teve início o Curso de Serviço Social, primeiro Curso
superior em Natal.
No dizer de D. Nivaldo Monte — então Assistente da
J.F.C., um dos pioneiros e principal organizador da Escola — a fundação da Escola de Serviço Social possibilitou
superar paulatinamente a ação social na “raça”, o empirismo do primeiro quinquênio dos anos 40.
Em todo este trabalho que culminou com a fundação
da Escola de Serviço Social, projetou-se outro líder, que
ascenderia mais tarde (1962- 1965) ao Governo do Estado. Trata-se do então mariano
Aluízio Alves, que acumulava a presidência da L.B.A.
e do SERÁS, o que explica a estreita colaboração havida
naqueles anos entre estas duas instituições públicas e a
Igreja no estado do Rio Grande do Norte.
Da Escola voltaremos a falar no Capítulo seguinte.
Antes, porém, importa lembrar um fato. A notícia de
que a L.B.A. tomaria proximamente novos rumos, criou sérias preocupações nos meios católicos natalenses.
“Se se confirmarem as decisões da Comissão Central da
Legião Brasileira de Assistência — comentava A Ordem
de 7/1/1946 — suspendendo, de uma vez por todas, a
assistência direta individual, passando unicamente a
auxiliar e orientar obras sociais, surge para os católicos dos municípios norte-rio-grandenses uma respon-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
121
sabilidade muito grande. Com efeito, não será justo que
fiquem fechados os ambulatórios, os postos médicos,
os centros sociais que se haviam fundado por aí a fora.
É preciso que surjam iniciativas particulares... Nem se
diga que é impossível...”.
De fato, a 24 de Janeiro de 1946, a Comissão Estadual
da L.B.A. confirmava ter recebido instruções no sentido
de suprimir a assistência direta ou individual aos indigentes e procedia à distribuição dos medicamentos, roupas e
material escolar às escolas e instituições de caridade (u).
Esta mudança nos rumos da L.B.A. equivaleu a uma
convocação para os católicos preocupados com os problemas sociais.
122
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
NOTAS AO CAPÍÍTULO I
1. Para a redação deste capítulo servimo-nos principalmente das fontes seguintes: 1) do Diário A ORDEM, de 1940 a 1951; 2) do Anuário Eclesiástico da
Arquidiocese de Natal (Natal, 1960); 3) da documentação da J.F.C. e J.M.C.; 4) de
entrevistas.
2. SURSUM (número comemorativo do 10°. aniversário da J.F.C.), Natal, 1946,
p. 3.
3. Lendo este capítulo, o Dr. Otto de Brito Guerra lembrou-nos a figura do pai
de Ricardo Barreto e, a nosso pedido, redigiu esta nota que transcrevemos
textualmente:
“Um estudo sobre os primórdios da ação social no Rio Grande do Norte não
pode esquecer a figura de Juvino César País Barreto.
Juvino era pernambucano. Nascera na povoação de Aliança, então distrito da
Cidade de Nazaré, a 2-2-1846. Em 1869 veio para o Rio Grande do Norte (para
a Cidade de Macaíba), associan- do-se a irmãos, no comércio. Mais tarde, (21-71888) instalaria a primeira fábrica de tecidos no Estado — Fábrica de Fiação e
Tecidos Natal — com 48 teares, 1.600 fusos e 80 operários.
O Sr. Sérgio Severo, escrevendo sobre Juvino, diz: “...não era só o patrão... Ele
era, e todos o proclamavam, o amigo, o conselheiro, o protetor e, mais ainda, um verdadeiro pai. ...ao lado da fábrica... construirá... a capela-escola “São
José”, onde funcionava um curso de alfabetiza-ção para os filhos dos operários
e onde também lhes era ministrado o ensino religioso”.
A fábrica, depois de sua morte (9-4-1901), passou por diversas mãos e findou
com o Banco do Brasil (em pagamento de empréstimos), o qual a vendeu para
Belém do Pará.
Juvino foi o fundador da Sociedade S. Vicente de Paulo em Natal, a 23-9-1888.
No leito de morte, pediu à esposa, D. Inês Augusta Pais Barreto, que da herança reservasse dez contos para fundação duma casa de educação para meninos,
outros dez para a educação de meninas e mais dez para a fundação dum hospital. Sua vontade foi cumprida e esta é a origem do Colégio Santo Antônio
(hoje dos Maristas), do Colégio Imaculada Conceição (desde o início com as
Dorotéas) e do Hospital “Juvino Barreto”, depois Miguel Couto e hoje Hospital
das Clínicas, entregue à Universidade Federal.
Embora a documentação seja nenhuma — prossegue Dr. Otto, tecendo agora
considerações sobre possíveis influências externas em Natal — tudo faz crer
na influência marcante do catolicismo social europeu e que em Pernambuco
tivera seguidores, entre os quais o engenheiro Carlos Alberto de Menezes que
por volta de 1895 (e aí está minha dúvida sobre quem o pioneiro) cuidava dos
operários de sua indústria. Esses pioneiros pernambucanos foram estudados
pelo professor Tadeu Rocha.
Segundo Câmara Cascudo os operários tinham banda de música, assistência
médica, manutenção do doente e sua família. Jovino Barreto sonhara construir uma vila operária (Acta Diurna, in A República, 30-1-1940).”
4. Veja, por exemplo, A Ordem de 10, 12 e 14 de julho de 1943.
5. D. Marcolino E. Dantas, op. cit., p. 3.
6. idem, ib.
7. Idem, ib.
8. A Ordem, de 8-4-1944.
9. A Ordem, de 3-6-1943.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
123
10. Já nos anos 30, como vigário de Campina Grande, D. José Delgado tornarase conhecido por seu trabalho em favor dos pobres daquela cidade. Como primeiro Bispo de Caicó e contando, na parte assistencial, com a cooperação da
L. B.A. e do SERÁS, D. José Delgado, nos seus primeiros 3 anos de governo
(1941-1943), dotou a Diocese com 1 Ginásio (inaugurado em 1942, contando
com 240 alunos), 12 Escolas Primárias (com quase 2.000 alunos em 1943), 1
Escola Doméstica, 4 Ambulatórios e serviços de distribuição de alimentos e
vestuário. Foram estas realizações que arrancaram de E-Diniz estas palavras:
“E o Seridó acossado por três anos de seca é admirável pela sua prosperidade”.
O que D. José Delgado conseguiu fazer em 1941, 1942 e 1943 atinge quase as
raias do incompreensível (A Ordem, 06-02-1945). Em 1948 o Seridó, graças ao
grande impulso dado por D. Delgado ao cooperativismo, apresentava o maior
bloco de cooperativas no Estado. Aonde não chegava sua a sua voz, ia sua
mensagem cooperativista através da imprensa (Veja, p. ex., “Cooperativismo
Conjugado”, A Ordem, 29-07; 30-07 e 02-08 de 1948). Em 1943 publicou também
uma série de 12 artigos sobre Ação Social” (A Ordem de agosto e setembro de
1943), num dos quais dizia: “Os infelizes muitas vezes não querem que lhes
falemos em caridade. Na verdade é primeiro de justiça que muitas vezes precisam ouvir falar. A razão não está na degradação ou impotência da caridade,
mas no desvirtuamento (desta) por parte dos inimigos dos pobres” (A Ordem,
10-09-1943). A pregação destas ideias já havia provocado reação no Seridó.
A resposta não se fizera esperar: “Quem não estiver contente poderá procurar
outros climas...” (A Ordem, 23-08-1943). Não é fácil determinar se e até que ponto o trabalho desenvolvido por D. Delgado no Seridó teve influência na gênese
do Movimento de Natal. Dentre os mais estreitos colaboradores de D Eugênio,
alguns, talvez porque provenientes do Seridó haviam sorvido as ideias de D.
Delgado, afirmam tal influência, enquanto outros são mais cautelosos em
admiti-la. Provavelmente uns e outros tem em parte razão. O exemplo de D.
Delgado despertou em outros o desejo de fazer alguma coisa. Sua pregação da
justiça social, seu ideal cooperativista, seu conceito de caridade passaram as
fronteiras do Seridó. Quanto ao modo e tipo de trabalho desenvolvido, tratase de experiências inteiramente diversas. A semelhança que apresentam, sob
alguns aspectos, o trabalho de Caicó e o Movimento de Natal em sua FASE
URBANA deve-se, a nosso ver, à influência da L.B.A. e do SERAS em ambos os
casos. Não resta dúvida, porém, que, até por volta de 1950, o “movimento” de
que se falava era o de Caicó e não o de Natal.
11. A Ordem, 24-01-1946.
124
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
CAPÍTULO II
FASE URBANA1
1. ERAM DOIS
Já dissemos que os sacerdotes, antes de serem seis,
eram dois: Pe. Nivaldo e Pe. Eugênio.
Pe. Nivaldo Monte nascera em Natal aos 15 de março de
1918. De família pobre, não esconde ter passado fome e
ter feito o primário em livros de segunda mão. Ordenado
sacerdote aos 12 de janeiro de 1941, depois de breve permanência no interior como vigário de S. Gonçalo (1941)
e de Goianinha e Arês (1942), ocupou, durante os anos de
1943 e 1944, o cargo de Capelão da Guarnição Militar de
Natal. Após a morte do irmão — o Cônego Luiz Gonzaga
Monte — em 1944, Pe. Nivaldo substituiu-o no cargo de
Assistente Eclesiástico da J.F.C. e da S.A.C.
Pe. Eugênio de Araújo Sales, filho de um Desembargador do estado, nascera aos 8 de novembro de 1920, em
Acari, em pleno sertão seridoense. No ano seguinte sua
família mudou-se para Nova Cruz, depois para São José
de Mipibu, estabelecendo-se, por último, em Natal. Aos
16 anos de idade, o jovem Eugênio, renunciando à ideia
ALCEU RAVANELLO FERRARO
125
de estudar agronomia, decidiu ingressar no Seminário,
sendo ordenado sacerdote aos 21 de novembro de 1943.
Após curta estadia (alguns meses apenas) no interior
como coadjutor da paróquia de Nova Cruz, foi chamado
a Natal, em meados de 1944, para ocupar o cargo de Diretor Espiritual no Seminário Menor. Longe de trancar-se
entre as Paredes do Seminário, deu logo início à formação da Juventude Masculina Católica (J.M.C.), instalada
solenemente em outubro de 1945.
Dois sacerdotes jovens. Juntos, com seus leigos de Ação
Católica, dariam início à FASE URBANA do Movimento.
Duas personalidades bem diferentes: A propósito, faz
parte do Patrimônio humorístico do Movimento este fato
ocorrido em 1950, 5a praia de Ponta Negra. Pe. Nivaldo e
Pe. Eugênio tomavam banho de mar. A certa altura exclamou Pe Nivaldo: “Eugênio! Olhe aquela jangada! Como é
poético!”. “Sabe, Nivaldo!” — atalhou Pe. Eugênio “Hoje
instalei no Bom Pastor o primeiro WC!”
Um, Pe. Nivaldo, medindo 7 palmos de altura e pesando cerca de 45kg, reduzido à última expressão da matéria. O outro, Pe. Eugênio magro também, mas medindo
l,80m de altura.
O primeiro, dado à reflexão. Demorado. Poeta e escritor.2 Homem de contatos individuais. Formador e educador, antes de tudo. “psicólogo amador”. Por suas mãos
— na J.F.C., na Escola de Serviço Social, no confessionário, na orientação espiritual — passariam quase todas
as Assistentes Sociais que iriam formar o “staff” de D.
Eugênio.
O segundo, irrequieto. Incapaz de parar. Intuitivo.
Extremamente prático.3 “Dinâmico”, como o define o
próprio D. Nivaldo. O “dínamo”, no dizer de outros. “O ho-
126
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mem que toca 7 instrumentos”, segundo D. Marcolino.
Que realiza já a ideia que lhe veio ou que apanhou no
voo4. “Ousado”5, ”Metido”6. Viajado. Extremamente metódico: almoça exatamente às 12 horas, retira-se para a
sua rede antes de 12h30 e parte para o trabalho impreterivelmente às 12h40.7 De grande capacidade de liderança. De boa prosa, numa roda amiga. De poucas palavras, no trabalho. Com certo “ar de Savanarola”, no dizer
de John dos Passos8. Admirado, desde o início de seu trabalho. Também discutido, especialmente nos anos 609.
O segundo precederia o primeiro no Episcopado. De
fato, em 1954 Pe. Eugênio foi nomeado Bispo Auxiliar
e em 1962 Administrador Apostólico “sede plena” de
Natal. Com a renúncia do Cardeal D. Augusto Álvaro da
Silva em 1964, D. Eugênio foi nomeado Administrador
Apostólico “sede plena” de Salvador, acumulando também, até maio de 1965, a administração da Arquidiocese
de Natal.
O primeiro, Pe. Nivaldo, em abril de 1963 foi nomeado
Bispo Auxiliar de Aracaju, cargo que ocupou até maio de
1965, quando sucedeu a D. Eugênio na administração da
Arquidiocese de Natal.
No início eram estes dois: Pe. Nivaldo e Pe. Eugênio.
2. DOIS E A AÇÃO CATÓLICA
Fim da guerra. Retirada dos americanos. Inchação
da cidade. Novos Bairros. Novos problemas. Solicitação
para fundar uma Escola de Serviço Social. Novos rumos
na L.B.A. Dois Assistentes Eclesiásticos, jovens e dispos-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
127
tos a enfrentar os problemas. Dezenas de leigos de Ação
Católica, despertos para o social e já presentes nos novos
bairros através de “Comandos missionários”. Eis, em síntese, os condicionamentos da guinada da Ação Católica
para o social, a partir de meados de 1945.
Assim, na I Semana Diocesana de Ação Católica, realizada em Natal em fins de outubro de 1945, tratou-se de
temas como “a cooperação da Ação Católica nas obras
sociais” e “o pensamento social da Igreja”10. Esta Semana
constituiu, por assim dizer, uma antecipação ao pronunciamento da Comissão Episcopal da Ação Católica, a qual,
por ocasião do encerramento da II Semana Nacional de
Ação Católica realizada no Rio de Janeiro em junho de
1946, afirmava o propósito de “organizar um plano nacional de ação social” e convocava, para este programa,
toda a comunidade brasileira11.
A partir de meados de 1945, aparecem em A ORDEM,
com sempre maior frequência, artigos sobre ação social, problemas sociais ou pontos de Doutrina Social da
IgreJa, artigos estes saídos, quase sempre, da pena do jovem advogado e presidente do Setor de Homens de Ação
Católica (H.A.C.) e da Junta Diocesana da Ação Católica, o
Dr. Otto de Brito Guerra.
A Semana Diocesana de Ação Católica e os artigos de
A Ordem eram resultado e, ao mesmo tempo, manifestação da nova atitude em face dos problemas sociais que
ia desenvolvendo-se no seio da Ação Católica natalense.
128
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
3. A ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
Como vimos no Capítulo I, já em fins de 1944 se havia
generalizado a consciência da necessidade de fundar em
Natal uma Escola de Serviço Social.
Até então, tanto a L.B.A. como o SERÁS haviam resolvido o problema de pessoal através de cursos intensivos
ou enviando alguns elementos para treinamento no Rio
de Janeiro. Para fazer face às sempre crescentes necessidades e para conseguir uma maior racionalização do
trabalho, fazia-se “necessária uma mais sólida formação
e educação de pessoal”, o que só seria possível através de
um curso regular de Serviço Social12.
Tiveram imediatamente início os entendimentos entre a L.B.A. e a J.P.C. A 26 de abril de 1945 — já abertas as
inscrições — a Legião Brasileira de Assistência e a Juventude Feminina Católica firmaram acordo, objetivando a
fundação da Escola de Serviço Social. A J.F.C. se responsabilizava pela manutenção e administração da Escola, e
a L.B.A., por sua vez, se comprometia a entrar com uma
ajuda financeira durante 5 anos.
A 2 de junho do mesmo ano procedeu-se à instalação
da Escola de Serviço Social, dando-se início ao curso.
A ajuda financeira da L.B.A. possibilitou, inclusive,
a constituição de um pequeno patrimônio. Este, juntamente com pequenas verbas federais, posibilitou a manutenção da Escola até hoje.
Pe. Nivaldo Monte, Assistente Eclesiástico da J.F.C.
desde 1944, destacou-se como um dos mais entusiastas
organizadores da Escola.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
129
Com razão o Dr. Otto de Brito Guerra, catedrático de
Sociologia desde 1945, vê na Escola de Serviço Social um
dos começos do Movimento de Natal.
A Escola, seja através de seus campos de estágio, seja
através de elementos por ela formados, possibilitou: a) o
desenvolvimento de uma atitude favorável à pesquisa e
uma abordagem mais científica dos problemas; b) uma
maior racionalização do trabalho social, quer do Movimento de Natal, quer de outras Instituições; c) uma Progressiva passagem da mera assistência para a educação e
autopromoção, aplicando os princípios do Serviço Social
de Grupo e de Comunidade.
Não há, praticamente, obra ou atividade social do
Movimento, em que não tenha atuado uma Assistente
Social, ou estagiado alguma aluna da Escola.
4. A AÇÃO CATÓLICA E OS PROBLEMAS DA CIDADE
No que diz respeito à ação social propriamente dita,
podemos distinguir, na FASE URBANA do Movimento,
duas linhas mais ou menos paralelas de ação: a da J.P.C.,
liderada por Pe. Nivaldo, e a da J.M.C., liderada por Pe.
Eugênio.
1) Pe. Eugênio e a J.M.C. Enquanto Pe. Nivaldo e a J.P.C.
se entregavam à organização da Escola de Serviço Social,
Pe. Eugênio preparava a sua equipe de rapazes da J.M.C.,
instalada oficialmente aos 28 de outubro de 1945, por
ocasião do encerramento da I Semana Diocesana de Ação
Católica.
130
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Instituída, pelo Decreto-Lei n°. 516 de 1o de fevereiro
de 1946, a Assistência Religiosa aos presidiários, Pe.
Eugênio, já presente nos presídios com sua equipe de rapazes desde meados de 1945, adicionou-lhe um complemento — a Assistência Social Penitenciária (ASP). Para
isto contou logo com a colaboração da J.M.C., do Cônsul
Carlos Llamas (primeiro presidente da ASP), do Dr. Otto
de Brito Guerra, do Professor Geraldo Magela e de outras
pessoas e instituições. Este começo levou alguns a dizer
que o Movimento de Natal nasceu na cadeia.
Ao mesmo tempo que entravam nos presídios, os rapazes da J.M.C., à frente Padre Eugênio, lançavam-se, ainda em 1945, para o Morro Branco, na periferia da cidade.
“Miséria, falta de educação, completo desconhecimento
das boas normas de higiene, pouca instrução religiosa:
eis o quadro deparado pelos jovens da Ação Católica” —
relata A Ordem de 16 de novembro de 1946.
Num domingo de tarde os rapazes procederam a
um ligeiro recenseamento do bairro. A primeira ideia
foi construir um galpão para aulas. Decidiram, depois,
alugar uma casa (propriamente, um casebre) onde funcionou, ainda em 1945, uma escola provisória, gratuita,
Adquirido, com a ajuda do estado e da Prefeitura,
um terreno, deu-se início à construção de um prédio.
O então acadêmico João Wilson Mendes de Melo — hoje
Presidente do Serviço de Assistência Rural (SAR) e Diretor da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e
Atuariais — funcionou como “mestre de obras”.
Graças a uma ajuda mensal da L.B.A., à contribuição
dos rapazes da J.M.C., à venda, nas portas das Igrejas, do
Jornal O Domingo, às carteiras velhas doadas pelo Depar-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
131
tamento de Educação e consertadas pela Escola Industrial e a outros auxílios e donativos, a 20 de abril de 1947
foi inaugurada a Escola-Ambulatório Pe. João Maria, assumida depois pelas Irmãs de Caridade. Junto à escola
organizaram-se Clubes de Mães, e surgiram a Casa da
Criança, o Centro Social Des. Celso Sales e, em 1965, um
posto de venda da Cooperativa de Consumo do SAR, em
Natal. Este posto já conta com bom número de associados, devendo em breve, constituir-se em cooperativa.
Enquanto prosseguiam os trabalhos no Morro Branco, Pe. Eugênio e os rapazes da JEC (Juventude Estudantil Católica — um dos ramos da J.M.C.) atacaram, ainda
em 1946, a “Vila dos Pobres”, no Bairro do Carrasco, no
extremo da Cidade.
Instalou-se imediatamente uma escola numa casinha
adquirida por 3 mil cruzeiros. Para conseguir este dinheiro, os rapazes da JEC, com a ajuda das moças da
J.P.C., lançaram a campanha da garrafa vazia. Enquanto
isto, Pe. Eugênio falava ao povo de seus planos para o
futuro: construir um prédio que servisse de escola e ambulatório.
Relata Moreira de Aguiar (1S) que um “ricaço” não
teve dúvida em pedir 15 mil cruzeiros por uma nesga de
terra. Mas o velho Bruno, simples servidor da Prefeitura
de Natal, resolveu o problema, fazendo doação de um
terreno de sua propriedade.
Finalmente, a 5 de junho de 1949, foi inaugurada a
Escola-Ambulatório Matias Moreira. Assim, também o
povo da Vila dos Pobres teve sua primeira escola e primeiros serviços médicos. Mais tarde, em 1958, a Vila teria também o seu Centro Social.
132
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Por unanimidade, a Câmara Municipal de Natal, aos
18 de dezembro de 1956, aprovou Projeto-Lei pelo qual
a antiga Vila dos Pobres passava a chamar-se Vila Dom
Eugênio, em reconhecimento pelos serviços prestados
àquela Vila pelo Bispo Auxiliar de Natal. Na mesma
proposição foi conferido a D. Eugênio o título de Cidadão
Honorífico da Cidade, em consideração pelos relevantes
serviços por ele prestados à Cidade e a todo o estado do
Rio Grande do Norte.
No mês de abril de 1948, por ocasião de um passeio à
praia de Ponta Negra distante cerca de 14km de Natal,
os rapazes da J.M.C. deram-se conta da existência de um
prédio abandonado, situado entre a praia e a Vila de Ponta Negra. “Vamos fazer alguma coisa com este prédio!”,
pensaram os rapazes.
Construído para abrigar filhos de tuberculosos, o prédio findara transformado em caserna durante a II Guerra
Mundial, ficando depois abandonado.
Em consequência de uma ida ao Rio, Pe. Eugênio
conseguiu trazer para Natal o Serviço de Assistência a
Menores (SAM), ficando como orientador e responsável,
embora não como funcionário, indicando para o cargo
de Superintendente pessoa de sua confiança, da J.M.C.
Dada a orientação local de, em vez de criar, estimular
o surgimento, muitas obras no interior, vinculadas às
paróquias, surgiram da cooperação do SAM. O prédio
abandonado foi remodelado prontamente. Em novembro de 1948 procedeu-se à inauguração do Patronato de
Ponta Negra. Em 1949. o prédio passou a constituir patrimônio da J.M.C., continuando o SAM, até hoje, a fazer
seus internamentos no Patronato.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
133
A partir de 1952, este prédio passaria a ser utilizado,
no período de férias, para treinamento de líderes rurais.
Mais tarde surgiriam: o Prédio II, com salão para aulas e
alguns quartos; o Prédio III (1962), construído pelo SAR
para atender ao crescente número de treinamentos; e, finalmente, o Prédio IV (1964), para atender aos encontros
e cursos do Secretariado do Nordeste. Os treinamentos
de líderes e os encontros do clero ali realizados tomaram
tal vulto, que, antes de se ralar em “Movimento de Natal”, já se falava em “Movimento de Ponta Negra”.
Faltava enfrentar o problema da menor transviada.
A ideia de fundar um “Bom Pastor” amadureceu durante
o ano de 1947. Pe. Eugênio e Dr. Otto de Brito Guerra
dividiram o encargo de observar obras congêneres no
Rio, Salvador, Recife e João Pessoa. Em janeiro de 1948 a
Prefeitura de Natal fez doação de um terreno, no Bairro
das Quintas, para a obra. Entre campanhas (de pedra,
tijolos, janelas, portas) donativos e algumas verbas, o
prédio, sob os auspícios da J.M.O. e J.P.C. foi subindo.
Em janeiro de 1951, cinco religiosas da Congregação do
Bom Pastor vieram assumir a obra. Além da recuperação e reintegração na sociedade de um bom número de
menores transviadas que ali encontraram também escola e alguma iniciaçao profissional, o “Bom Pastor” proporcionou ao Bairro escola e assistência religiosa.
O “Lar das Mães”, fundado por D. Eugênio em 1955,
veio proporcionar à mãe solteira um ambiente familiar
em que possa aguardar o parto e viver, depois, com seu
filho, até que consiga um emprego, recebendo, enquanto isto, alguma iniciaçao profissional.
Passou-se, depois, a atuar nas próprias áreas de prostituição, desenvolvendo-se um duplo trabalho: um, pre-
134
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ventivo, que visa, através da educação e do trabalho em
grupo, desviar da prostituição as próprias filhas das prostitutas e as jovens de famílias (geralmente imigrantes
do interior) localizadas nas áreas de prostituição; outro,
visando através de contatos, reuniões formativas e atividades grupais, proporcionar, a largo prazo, oportunidade
de recuperaçao as próprias prostitutas.
A “alma” do Lar das Mães como também do trabalho
nas áreas de prostituição foi a Assistente Social, Maria da
Conceição Seminea, uma das mais antigas colaboradoras
de D. Eugênio.
O Instituto Estevão Machado, inaugurado em 1954,
veio atender ao menor delinquente, proporcionando-lhe
alfabetização e iniciação profissional.
Pe. Nivaldo e a J.F.C. paralelamente ao trabalho da
J.M.C., liderada por Pe. Eugênio, a J.P.C., liderada por Pe.
Nivaldo, desenvolveu também intensa atividade social
nos bairros da capital e mesmo no interior.
O primeiro campo de ação da J.F.C. foi a “Baixa da
Coruja”, no Bairro de Lagoa Seca, onde “a pobreza — diz
uma testemunha do tempo — era de cortar o coração”.
Surgiram ali, rapidamente, a Escola-Ambulatório e o Centro Social “Cônego Monte”, em memória do fundador da
J.F.C. O prédio, inaugurado em dezembro de 1946, contava com local para 480 alunos, parque infantil e gabinete
médico. A própria J.F.C. observa que este trabalho surgiu como uma das conclusões da Semana Diocesana de
Ação Católica (14). Achando que o lugar não mais merecia
chamar-se “Baixa da Coruja”, as jefecistas propuseram a
mudança do nome para “Vila Betânia”.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
135
Em 1947, a J.F.C. lançou-se para as Rocas, deixando
ali, no ano seguinte, em funcionamento, o Centro Social
Leão XIII, com uma matrícula inicial de 110 crianças.
Também por iniciativa da J.F.C foram fundados 3 Centros Sociais no interior: um em Macau (1949), outro em
Ceará-Mirim (1949) e o terceiro em Macaíba (1951).
Surgiram, depois, em Natal, o Centro Social D. Marcolino Dantas, no Bairro de Nova Descoberta, inaugurado
em 1955, e o Centro Social N. Sra. de Fátima, no Areial,
inaugurado em 1955.
2) AH AC e a S.A.C. No que concerne ao Setor de Homens de Ação Católica (H.A.C), merece destaque a atuação de seu Presidente, o Dr. Otto de Brito Guerra, seja
junto à Escola de Serviço Social, como catedrático de Sociologia, seja através da imprensa e nos meios intelectuais, como versado em Doutrina Social da Igreja e estudioso dos problemas sociais regionais, seja ainda em
tudo o que diz respeito ao Movimento, como assessor e
colaborador de D. Eugênio.
No que concerne ao setor de Senhoras de Ação Católica, podemos dizer que o melhor de seus esforços foi, durante anos, dispendido na construção da sede — o Centro Social Divina Providência — o que não deixou de ser
“providencial”15.
5. EVOLUÇÃO POSTERIOR
1) Influência do SAR. A partir de 1951, como veremos
nos capítulos seguintes, começou a atuar no interior o
136
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Serviço de Assistência Rural (SAR). Nos anos 60 a capital
passou a beneficiar-se da longa experiência do SAR no
meio rural.
Assim o Setor de Cooperativismo do SAR está promovendo, ultimamente, treinamento de líderes cooperativistas, formando grupos cooperativistas e mesmo organizando cooperativas em alguns bairros na periferia de
Natal. A Cooperativa Mista dos Servidores e Assistidos do
Departamento Arquidiocesano de Ação Social de Natal
passou a financiar alguns modestos projetos habitacionais, desde que os interessados se organizassem em grupos, geralmente de cinco famílias, comprometendo-se
a se ajudarem mutuamente na construção ou melhoramento de suas habitações.
Por outro lado, a própria CÁRITAS, que, até pouco tempo, fazia mera distribuição de alimentos fornecidos pelo
Catholic Relief Service dos Estados Unidos, não quer mais
fazer “puro assistencialismo”, como dizem seus dirigentes e responsáveis locais pela distribuição. Está tentando
organizar serviços educativos junto aos seus postos de
distribuição. Neste sentido, merece destaque a organização de grupos artesanais, onde as mães (são geralmente
elas que recebem os alimentos) aprendem, entre outras
coisas, a utilizar a própria embalagem dos alimentos
para fazer toda sorte de utilidades. Outros tipos de trabalho artesanal estão surgindo em Natal. Nisto vai, em
parte, a experiência feita no interior pela Cooperativa de
Artesanato do SAR.
O Setor de Ensino Médio do SAR, em entrosamento
com a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos
(CNEG), suscitou, com a participação do povo e, em al-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
137
guns casos, de Colégios Católicos, a criação de Estabelecimentos de Ensino Médio gratuito — na capital.
Fracassada, em grande parte, a tentativa de aplicação,
em Natal, do sistema de alfabetização pelo rádio, experimentado no meio rural, organizou-se o Movimento de
Educação de Base para a Capital (MEB Urbano) este, desde
março de 1963, leva ao ar uma série de Programas como:
“Em Marcha com os Grupos de Audiência”, “Conversa
em Família”, “Conversa com as Mães”, “Encontro com
os Líderes” e outros programas educativos, contando todos com audiência organizada. Em outubro de 1964, o
MEB Urbano já contava — entre Clubes de Mães, Grupos
de Casais, Clubes de Jovens e Grupos de Audiência — 52
grupos organizados, espalhados pelos bairros periféricos
da Cidade. Vários grupos, porém, apresentavam pouca
coesão e curta duração. Por falta de líderes treinados?
Por falta de motivação? Talvez por ambas estas razões.
É verdade que o MEB Urbano organizou alguns treinamentos de líderes, valendo-se da longa experiência
do SAR neste campo. Mas, enquanto os treinamentos do
SAR tinham geralmente uma duração de 1, 2, 3 e até 6
meses, o MEB Urbano não dispendia senão de 2 a 3 dias
em cada treinamento.
De outro lado, faltava a vários destes grupos um programa de ação. A mera audiência e discussão em grupos
não eram suficientes para garantir a continuidade destes. Assim mesmo, vários destes grupos, especialmente
os que encontravam na comunidade algum suporte institucional, como um Centro Social operante, conseguiram
sobreviver e firmar-se.
138
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
2) A Escola de Serviço Social. As obras que iam surgindo
em Natal, quer por iniciativa da J.F.C., quer da J.M.C.,
proporcionaram, desde o começo, ótimos campos de estágio à Escola de Serviço Social. Esta, por sua vez, através
de estágios supervisionados e orientados para o Serviço
Social de Grupo e de Comunidade, foi paulatinamente
desenvolvendo um trabalho de formação de grupos e de
ação comunitária, orientando-se, ultimamente, para a
formação de Conselhos de Comunidade.
Os Conselhos de Comunidade (há três: o de Lagoa Seca,
o das Quintas e Dix-Sept Rosado e o das Rocas) visam o
desenvolvimento do bairro, através de um esforço conjugado de todas as entidades e grupos existentes na área,
estejam ou não ligadas ao Movimento de Natal. Assim,
o Conselho de Comunidade de Lagoa Seca congrega 12
entidades diversas, numa das quais (o Conselho Intergrupal) estão representados 15 pequenos grupos locais.
O Conselho de Comunidade das Quintas e Dix-Sept Rosado, por sua vez, congrega 15 entidades diversas, entre
as quais um Centro Social e um Ginásio filiado à CNEG,
criado e mantido com a cooperação do povo do bairro.
A título de exemplo, vejamos a organização e as atividades desenvolvidas por um Centro Social. Tomemos o
de Aparecida. Conta com 5 Departamentos organizados:
O Departamento Econômico, com trabalhos de artesanato, uma cooperativa em formação, participação na
Frente de Trabalho João XXIII.
O Departamento Educacional, com curso primário (96
alunos em 1965), curso noturno de alfabetização de adultos, cursos de corte e costura e de datilografia, e uma
casa para cursos, próxima ao Centro e adquirida por este.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
139
O Departamento Religioso, com catequese e equipe de
liturgia.
O Departamento Assistencial, com Ambulatório para
assistência médico-dentária e curativos de emergência
(1.440 atendidos em 1965) e auxílio para funerais (uma
espécie de cooperativa “funerária”).
O Departamento Social, com Clubes de Mães e de Jovens, encontros, comissões ocasionais para reivindicações.
Poderíamos ainda mencionar que o povo de Aparecida
trabalhou, anos atrás, no melhoramento de sua própria
rua, tornando possível o acesso de transporte no bairro.
Também, do Centro Social partiu a iniciativa de pedir
policiamento — no que foram prontamente atendidos
— sendo, assim, afastados alguns elementos estranhos
que perturbavam a ordem no bairro, e libertando-se este
da má fama — imerecida — de que gozava nas crônicas
policiais.
6. SITUAÇÃO ATUAL
Falamos, na introdução à I PARTE, da dificuldade em datar o início do Movimento. Tropeçamos com dificuldade
semelhante quando tentamos definir o que pertence ou
não ao Movimento. O Colégio Imaculada Conceição, fundado em 1902, não se deve ao Movimento. Mas o Ginásio
Paula Frassinetti, gratuito, que funciona no prédio do
Colégio Imaculada Conceição e que foi fundado pelas exalunas deste e, pela CNEG, é fruto do Movimento.
140
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Praticamente nenhum colégio católico de tipo tradicional se deve ao Movimento. Contudo, o esforço de
renovação da parte de alguns destes nos últimos anos, a
franquia de suas portas a cursos gratuitos e a cooperação
das religiosas no trabalho social sao fruto do Movimento.
Estes fatos — poderíamos citar outros — nos chamam
a atenção para o seguinte: o Movimento, no que se refere
à açao temporal na Capital, não se limita às linhas “Pe.
Eugênio - J.M.C. e Pe. Nivaldo - J.F.C.” Outras pessoas e
instituições, como alguns Colégios Católicos, também
“entraram na dança”.
Em 1965, o SAAS (Secretariado Arquidiocesano de
Ação Social), órgão coordenador das atividades temporais do Movimento na Capital, enumerava 45 “Obras Sociais Católicas” por ele coordenadas.
Destas, seis desenvolviam atividades de caráter meramente assistencial: atendimento a doentes, distribuição
de alimentos e vestuário, e abrigo a desamparados. São
elas: a Associação das Damas de Caridade (1905), a Rouparia Santa Inês (1913) e o Dispensário Sinfronio Barreto,
das Irmãs de Caridade (1925), a Pia União de Santo Antônio (1941), os Abrigos Jesus-Maria-José (1943) e Frederico
Ozanan (1959), dos Vicentinos. Cinco destas, por conseguinte, são anteriores ao Movimento. Nenhuma das seis
deve sua origem ao Movimento, embora tenham, mais
tarde, aceitado a coordenação do SAAS. Com excessao de
uma, estão todas localizadas na Cidade Alta e no Tirol —
os bairros “chiques” da Cidade.
Outras quatro eram Obras de Reeducação: a Assistência Social Penitenciária (para presidiários), o Lar das
Mães (para mães solteiras), o Instituto Bom Pastor (para
ALCEU RAVANELLO FERRARO
141
menores transviadas) e o Instituto Estevam Machado
(para menores delinquentes).
As 35 restantes poderíamos defini-las como Obras Socioeducativas. Chamamos “socioeducativas” as Obras
que desenvolvem não só atividades educativas (escolas,
ginásios ou outros tipos de cursos e programas educativos), mas também alguma ação comunitária ou, pelo
menos, atividades grupais. Observe-se, contudo, que
bom número destas obras mantêm também serviços
de distribuição de alimentos, e algumas, ambulatórios
médico-dentários.
As Obras de Reeducação e Socioeducativas (39 ao
todo), devem sua existência ao próprio Movimento. Com
excessão de meia dúzia, estão todas localizadas nos bairros pobres, isto é, na periferia da cidade.
No ano de 1965, estas obras mantinham, ou junto a
elas funcionavam:
22 estabelecimentos de Ensino Primário, gratuitos,
com um total de 3.600 alunos, contando com 133 professores, dos quais 39 pagos pela própria Instituição ou pela
Diocese, 76 pelo estado e oito pelo município.
Quatro estabelecimentos de Ensino Médio — também
gratuitos — com um total de 470 alunos e 45 professôres,
mantidos pela CNEG e Setores locais, e, no caso de dois,
também pelos Colégios a que estão agregados.
Quer pela sua localização (bairros de periferia), quer
pela categoria de pessoas a que se destinam (por exemplo,
às domésticas), praticamente todos estes estabelecimentos atendem à população mais pobre da cidade. Grande
número dos 22 estabelecimentos de ensino primário
foram pioneiros nas áreas em que estão localizados. É sig-
142
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nificativa a ajuda dos Poderes Públicos no caso dos Estabelecimentos de Ensino Primário (84 professores pagos
pelo estado ou município), mas esta ajuda só aos poucos
se fez presente.
Foi praticamente impossível determinar quantos cursos de alfabetização de adultos funcionaram — e durante
quanto tempo — junto a estas obras. O mesmo se diga
dos cursos de iniciação profissional: noções de enfermagem, marcenaria, carpintaria, dactilografia, artesanato,
corte e costura, bordado, etc. Encontramos várias referências de cursos deste tipo realizados junto às diversas
obras.
Há ainda na Capital uma dúzia de Estabelecimentos
de Ensino Primário ou Médio — não gratuitos — mantidos por Congregações Religiosas ou Paróquias. Estes
não devem sua origem ao Movimento. Ministram ensino
primário a 3.435 alunos e Ensino Médio a 2.106 alunos.
O mais antigo destes Colégios data de 1902. Pelo fato de
não serem gratuitos e pela sua própria localização, estes Estabelecimentos atendem principalmente às classes
média e alta da Cidade.
7. CONCLUSÃO
Nas necessidades urgentes de uma cidade que vivia
uma fase de verdadeira inchação demográfica e no despreparo e morosidade dos Poderes Públicos em fazer face
à nova situação, está o motivo principal da ação direta da
ALCEU RAVANELLO FERRARO
143
Igreja no campo social e do consequente surto de obras
sociais nos anos de 1945 a 1965, que caracterizam o que
denominamos de FASE URBANA do Movimento.
À parte a falta de experiência e de pessoal qualificado
para o trabalho social nos primeiros anos do Movimento,
deve provavelmente ser imputada em boa parte a esta
situação e ação de emergência a tônica assistencial e “paternalista” que caracteriza bom número de obras desta
fase do Movimento. Aliás, tanto D. Eugênio como outros
líderes que atuaram naquele tempo, quando por nós entrevistados, penitenciavam-se ainda, olhando para o passado, do “paternalismo” não tanto das obras em si, mas
na maneira como várias delas foram levadas a termo.
E explicaram: “foram feitas de cima para baixo, com pouca participação do povo”. O termo tem hoje forte conotação ideológica. Empregamo-lo aqui no sentido que o
próprio Movimento lhe deu.
De outro lado, importa salientar que: 1) nenhuma das
seis obras puramente assistenciais mencionadas acima
deve sua origem ao Movimento; 2) as Obras de Reeducação orientaram-se para a reintegração dos reeducandos
na sociedade, através da instrução e iniciação profissional; 3) as demais obras (35 ao todo), que chamamos de
socioeducativas, distinguem-se principalmente pelo ensino primário ministrado a cerca de 3.600 crianças e por
diversas formas de ação grupal e comunitária estimuladas através destas mesmas obras.
Frise-se ainda a relativa independência econômica
destas obras. É verdade que recebem alguma ajuda dos
Poderes Públicos. Mas esta ajuda pode, como de fato
acontece, ser tolhida, sofrer cortes ou delongas. Passa-se
144
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
então de quem tem para quem não tem. Pede-se um empréstimo. Aparece uma doação. Faz-se uma campanha.
Promove-se um “show”, como o realizado recentemente
em benefício da Casa da Empregada “Santa Zita”, em que
as próprias domésticas compareceram em peso, pagando
ingresso, para manter a Obra a elas destinada. Dá-se sempre um “jeito”. E assim, apesar de sérios apertos, as obras
sobrevivem.
O aspecto mais interessante desta fase consiste, talvez,
na nova orientação que o Movimento imprimiu à ação da
Igreja no setor do ensino. Contrariamente ao que acontecia com os colégios católicos tradicionais, que, pela sua
localização e por não serem gratuitos, atendiam quase
que exclusivamente as classes média e alta, o Movimento, semeando escolas primárias gratuitas na periferia, foi
ao encontro das classes mais pobres e das áreas suburbanas carentes de escola.
Ultimamente, estando os Poderes Públicos melhor
aparelhados Para atender ao problema do ensino primário na Cidade, o Movimento vem dando mais ênfase
à ação comunitária, através da dinamização dos grupos
existentes e da organização de novos grupos de pequeno porte (Clubes de Jovens, Clubes de Mães, Grupos de
Audiência, etc...); da dinamização dos Centros Sociais;
da formação de Conselhos de Comunidade; do treinamento de líderes de comunidade; da organização de
núcleos cooperativistas. Tudo isto nos leva a crer que se
estaria delineando uma II FASE URBANA do Movimento,
com maior ênfase na ação comunitária.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
145
NOTAS AO CAPÍTULO II
1. Para a redação deste capítulo servimo--nos principalmente das fontes seguintes: 1) o Diário A ORDEM; 2) arquivos da Cúria Metropolitana, do S.A.A.S.,
da J.F.C. e J.M.C.; 3) entrevistas; 4) levantamento junto às Obras Sociais em
Natal.
2. De 1942 a esta data (maio de 1966), D. Nivaldo Monte publicou 9 livros,
um dos quais, de poemas. Está atualmente preparando outra obra em que
relatará uma experiência de exploração racional dos tabuleiros do Rio Grande
do Norte.
3. Já em 1953, a Revista “VISÃO” punha em relevo o tino prático do então
Cônego Eugênio Sales. Veja: “Cônego prático — Novos métodos de ensino técnico para o interior”, VISÃO, 20-2-1953.
4. “D. Eugênio — explicou-nos D. Nivaldo numa entrevista — apanha a ideia
no voo e a realiza já”. Vejamos um exemplo. Inteirado pessoalmente dos Cursos de Renovação Pastoral para sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, promovidos pelo Secretariado Nordeste e realizados no Centro de Treinamento
de Ponta Negra, o Bispo de Caravelas — isto em meados de 1964 — observou a D. Eugênio: “Por que não se organiza alguma coisa para os Bispos? Não
podemos ficar atrás...” Bastou isto. Durante a Sessão Conciliar de fins de 1964,
D. Eugênio levantou o problema junto a outros Bispos, e, em maio de 1965,
realizou-se no Centro de Treinamento de Ponta Negra o primeiro Curso para
Bispos, de que se tenha conhecimento. O Curso foi planejado e ministrado por
uma equipe de sacerdotes e leigos.
5. Veja: José Rafael de Menezes, “Realizações de um Bispo Ousado”, A República,
João Pessoa, 8-4-1960. Em termos jornalísticos, o autor descreve, em seu longo
artigo, a “obra tão múltipla e tão pioneira” e “sem comprometimentos capitalistas” do “acrobata de Deus”, cujo “nomadismo sacral” bem correspondia a
“uma Igreja em terra de Missão”.
6. Assim no-lo definiu uma Assistente Social que, desde o início do SAR, trabalhou com D. Eugênio.
7. Este era o horário de D. Eugênio, quando Administrador Apostólico de Natal. Seu próprio repouso costumeiro aos sábados de tarde na Granja-Escola
Santo Isidoro, na Fazenda Catuana, obedecia a um ritual tão preciso, que,
mais de uma vez, deu margem a pilhérias por parte de pessoas amigas.
O tamanho do charuto que fumava dependia do tempo que queria dar à entrevista, à reunião ou ao bate-papo após o jantar.
8. John dos Passos, O Brasil Desperta (Tradução do original inglês: “Brazil On
The Move”), Distribuidora Record, Rio de Janeiro, 1964, p. 165.
9. Enquanto uns viam “proselitismo”, “clericalismo medieval”, “instrumentalização do temporal” no Movimento liderado por D. Eugênio, outros o acusavam de “invasão do temporal” ou de absorção pelo temporal em detrimento do espiritual. Nos anos 60, em consequência da radicalização da política
brasileira e do sindicalismo rural e campanhas de politização lançados pelo
SAR, D. Eugênio — como, também, o SAR — ficou entre dois fogos. Enquanto
uns o acusavam de “paternalismo”, “assistencialismo”, “conservadorismo reacionário”, outros o taxavam de “comunista”. Assim, por exemplo, poucos dias
após a Revolução de 31 de março de 1964, o Deputado Paulo Barbalho, da
própria tribuna da Assembleia Legislativa do Estado, advogou o fechamento
146
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
do Jornal e da Emissora da Diocese, que acusou de subversivos, e afirmou: “D.
Eugênio Sales é comunista!” (Cfr. Correio do Povo, Natal, 24-4-1964).
É que, provavelmente, Paulo Barbalho, como tantos outros grandes proprietários no Estado, teve, nos anos 60, sérias dores de cabeça por conta da sindicalização rural e das ideias carreadas para o meio rural pela Emissora e o
jornal A Ordem, numa palavra, pelo SAR, do qual D. Eugênio era Presidente.
10. A Ordem, 25-10-45.
11. Veja a integra do documento em A Ordem de 28-6-1946.
12. A Ordem, 14-3-1945.
13. A Ordem, 11-6-1949.
14. A Ordem, 23-11-1946.
15. O prédio, com dois andares, 5 salas pequenas e dois salões grandes para
reuniões solenes da Ação Católica, foi concluído no momento exato em que o
Serviço de Assistência Rural (SAR) iniciava suas atividades (1950).
Não dispondo o SAR de uma sala sequer, a S.A.C. cedeu-lhe uma no andar térreo, permutada, mais tarde, por duas, no 1.°. andar. Crescendo sempre mais,
o SAR foi espalhando mesas e cadeiras (pertencentes à S.A.C.) por todo o 1°.
andar, invadindo, depois, também o andar térreo. A esta altura, à S.A.C. não
restava senão um salão. Até aí, graças à intercessão de Pe. Nivaldo, Assistente
Eclesiástico da S.A.C, não houve problema. Posteriormente o SAR construiu
um 2°. andar para a Emissora e findou ocupando o último reduto das Senhoras
da Ação Católica.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
147
CAPÍTULO III
FASE RURAL1
1. INÍCIO
À medida que Padre Eugênio e Padre Nivaldo e seus
colaboradores iam tomando consciência dos problemas
da Capital e procuravam equacioná-los, aparecia, como
sempre maior evidência, que estes, em grande parte, não
eram senão consequência das condições de vida no meio
rural.
Por outro lado já havia trabalhos isolados no interior
e uma certa angústia por parte do clero rural. Alguns,
vendo o que se fazia em Natal, começaram a perguntar:
“E para o meio rural não se faz nada?”
1) Origem do Encontro Mensal do Clero. A esta altura entram os seis. Pe. Eugênio e Pe. Nivaldo, indo do Grande
Ponto para a Catedral, perguntaram-se: “Porque não
reunimos estes padres”? Logo surgiu uma dificuldade:
“E D. Marcolino?” O fato é que o Arcebispo acedeu, após
ter feito algumas ressalvas: chamar-se-ia “reunião” e não
“retiro” mensal, teria caráter “privado” e não “oficial” e
seria “aberta” a todos. Eis a origem do primeiro encontro
do clero. O objetivo era primariamente de ordem espiritual e missionária ou, como diziam então, apostólica.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
149
Diz D. Eugênio, diz D. Nivaldo, dizem todos: “No início eram seis”. Quando solicitados a mencionar os nomes
dos seis, indicam-nos somente cinco. Pe. A. Collard assim comenta o fato em seu livro sobre o Movimento:
“Num dos raros relatos cronológicos que pude encontrar em Natal, (porque o pessoal ali está de tal maneira
preocupado em fazer a história que é impossível encontrar tempo para escrevê-la), assinala-se que no começo
daquilo que seria mais tarde o Movimento atual, “eles
eram seis”. Quando procurei saber quem eram os outros
cinco” (evidentemente o primeiro dos seis é D. Eugênio)
citaram-me quatro nomes: D. Tavares, então pároco de
Angicos, onde, com a ajuda do Senhor suscitou uma boa
dezena de vocações sacerdotais e que veio a ser depois
o ativo bispo de Caicó, Capital da Região do Seridó. D.
Nivaldo Monte, assistente da Ação Católica Feminina, o
homem da Escola de Serviço Social e atualmente Bispo
Auxiliar de Aracaju2. Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, o vigário-piloto da “paróquia-piloto de São Paulo
do Potengi”. Monsenhor Pedro Rebouças de Moura, pároco
de Nova Cruz e fundador nas Irmãs de Santa Gema Galgani, preciosas auxiliares paroquiais e diocesanas que se
ocupam principalmente da casa de hóspedes de Ponta
Negra onde servem, como anfitriãs atenciosas, a hóspedes que Podem de uma refeição a outra passar de três
a cinquenta pessoas.
O sexto veterano não houve meio de saber ao certo. Mas
se tratava de um caso de “mais ou menos” bem brasileiro,
creio antes que este anonimato é mais um jeito” delicado
que permite a muitos poderem ser contados entre os do
principio3.
150
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Seria Monsenhor Alair Vilar, atual Vigário Geral da
Diocese e então vigário de Santa Cruz, o sexto veterano?
Mas, participou ele desde o “comecinho”? Assim parece!
No início eram seis. Aos poucos, principalmnte após a
a
1 Semana Ruralista realizada no estado em 1951, outros
passaram a participar do encontro.
Da importância do Encontro Mensal do Clero na
história do Movimento falaremos mais adiante.
2) Dr Otto e A ORDEM. De outro lado, principalmente
a partir de 1948, começou a aparecer em A ORDEM uma
série de artigos sobre a situação do meio rural, saídos
geralmente da pena do Dr. Otto de Brito Guerra, por sugestão, não raro, do próprio Pe. Eugênio. Eis o título de
alguns, todos da autoria do Dr. Otto de Brito Guerra: “Amparo ao homem do campo”4; “Pela redenção do homem
do campo”5 uma série de artigos sobre “Imigraçao e
Colonização6 num dos quais o autor chama a atenção
para a responsabilidade de os católicos se preocuparem
com os problemas do campo7. Merece destaque o artigo
“O êxodo Rural”8, em que Dr. Otto de Brito Guerra analiza as causas do fenômeno (o latifúndio muitas vezes
improdutivo, a excessiva divisão da propriedade pelo
regime de partilha forçada, a falta de crédito) e conclui
sugerindo: 1) um plano de redenção econômica do Rio
Grande do Norte; 2) o saneamento dos vales úmidos, e
3) a açudagem e perfuração de poços.
A profunda desilusão de ver isto realizado por iniciativa dos Poderes Públicos transparece das palavras finais
do autor: “Mas quando se cuidará disso se a política não
dá tempo?”
ALCEU RAVANELLO FERRARO
151
3) Início do SAR. Estes artigos deixam transparecer algo
das novas preocupações e dos novos planos em gestação
na mente de Pe. Eugênio e de seus colaboradores.
Por falta de visão, por falta de recursos, ou, provavelmente, porque a política partidária absorvia tempo e recursos, os Poderes Públicos permaneciam praticamente
ausentes dos problemas do meio rural De outro lado iam
surgindo no interior, por iniciativa de alguns vigários,
uma série de “obrinhas” (como as chamaria D. Eugênio),
que constituíam iniciativas isoladas, sem recursos e, não
raro, sem’futuro, mas que traduziam o desejo de fazer
“alguma coisa”.
Por sua vez, Pe. Eugênio, na qualidade de coordenador
da Obra das Vocações Sacerdotais, viajava muito pelo interior.
Profundamente chocado com o que ele mesmo definia
como “desgraceira” do meio rural, decidiu também fazer
“alguma coisa”. Esta ideia, amadurecida principalmente
nos anos de 1948 e 1949, se concretizou aos 22 de dezembro de 1949 com a fundação do Serviço de Assistência
Rural (SAR), sob o patrocínio da Juventude Masculina
Católica (JMC). Aos 23 de outubro de 1950, quando urgia
a preparação da I Semana Rural no Estado, procedeu-se
à instalaçao do SAR. Um fato interessante é que o Secretário, ao redigir a Ata da Sessão de Instalação, não soube
indicar a data da fundação do SAR, ficando, até hoje, o
espaço em branco9.
Não bastavam a vontade firme de Pe. Eugênio e a colaboração voluntária da J.M.C. e de alguns alunos da Escola de Serviço Social. Não havia na região experiências
que pudessem mostrar um caminho a seguir. “As luzes,
152
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
então, eram poucas”, comenta D. Eugênio. E os recursos? O SAR contava Inicialmente com uma máquina,
um bureau, um local e Cr$ 2.000 — tudo emprestado.
D. Eugênio assim comenta esta falta inicial de recursos:
“Havia muito mais: o idealismo a serviço de Deus. E daí
partimos”10.
Certamente a qualidade de “metido” — como o definiu
um de seus colaboradores — muito valeu a Pe. Eugênio
nesta hora. Com suas idas ao Sul ia tomando conhecimento de experiências no meio rural e aprendendo a
subir as escadarias dos Ministérios.
De pontos mais diversos, de dentro e de fora do país,
vinham chegando ideias ou “luzes”.
Tudo indica que o primeiro plano de ação concebido
por Pe. Eugênio foi percorrer o interior com uma “Volante
da Saúde”, dotada de medicamentos de urgência e de materiais cirúrgicos, com um médico assistente e um dentista. Este plano de ação é anterior à própria fundação
do SAR11, e a ideia veio provavelmente de muito longe.
De fato, já em fins de 1949 A ORDEM publicara dois artigos: um sobre “Apostolado Circulante” no Rio Grande do
Sul12 e outro sobre “Capelas em Caminhões — Moderna
Missão Ambulante Inaugurada na Argentina”13.
No início de 1950 A ORDEM comentou, em dois artigos14, a experiência de utilização do rádio na educação
dos campesinos colombianos. Mas esta ideia — que, devido a entraves burocráticos para a liberação de um canal, só se concretizou em 1958 — surgiu, em Natal, já em
1948, independentemente da experiência de Mons. Joaquim Salcedo na Colômbia. O próprio Dom Eugênio nos
falou de sua alegria quando, após ter falado nas possibili-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
153
dades que o rádio ofereceria para o trabalho que pretendia realizar no meio rural, urra senhora lhe mostrou um
artigo da revista LIFE sobre a experiência na Colômbia.
Eis a origem dos dois artigos de A ORDEM.
De uma sugestão emanada do Seminário Inter-americano de Alfabetização e Educação de Adultos, promovido
pela UNESCO e realizado no Rio de Janeiro em 1949, nascia a primeira Missão Rural no Brasil, a ser lançada em
8 a 10 municípios situados na região fronteiriça entre
os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais e contando
com ônibus rural, dois agrônomos, um veterinário, um
médico, um assistente social, um técnico em economia
doméstica e material de divulgação rural. A Missão Rural
constituía nova sugestão para o SAR15 .
Chegavam também a Natal — ou melhor, Pe. Eugênio
ia ouvi-las no Rio — notícias das primeiras Semanas Rurais promovidas por algumas Dioceses brasileiras conjuntamente com a Ação Católica Brasileira (ACB), contando
com a colaboração técnica e financeira do Serviço de Informação Agrícola (SIA) do Ministério da Agricultura. Foi
assim que, de uma conversa de Pe. Eugênio, no Rio, em
meados de 1950, com Mons. Helder Câmara (Assistente
Nacional da Ação Católica Brasileira) e Dr. João Gonçalves
(Técnico do SIA e ex-Presidente da Ação Católica Rural),
foi planejada a realização de uma Semana Rural no Rio
Grande do Norte. A ideia encontrou boa receptividade
por parte do Ministério da Agricultura e do Governo do
Estado.
Vemos, assim, que a possibilidade de conseguir ajuda
técnica e financeira fez com que o SAR iniciasse suas atividades com a realização de uma Semana Rural, poster-
154
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
gando a “Volante da Saúde”, a Rádio e a Missão Rural.
Era o “COM QUE RECURSOS”, que determinava “O QUE
FAZER”. Eram os meios que determinavam a escolha do
objetivo concreto imediato.
2. I SEMANA RURAL
De volta do Rio, Pe. Eugênio, com sua equipe de voluntários, deu imediatamente início aos preparativos para a
realização da Semana Rural.
Otávio Nóbrega — concluinte da Escola de Serviço
Social, membro da J.M.C. e da equipe do SAR — realizou, a título de colaboração, um levantamento sobre as
condições de vida em quatro municípios do interior, representativos de quatro zonas do estado. “Esta pesquisa
— comenta Lourdes Santos em sua entrevista — demonstrou que havia poucas escolas; que não havia nenhuma
assistência técnica e sanitária; que o trabalhador não
tinha nenhum direito; que o patrão botava o trabalhador
para fora (da propriedade) quando queria. Nesse tempo,
aqui, só nós da Igreja falávamos de Reforma Agrária”.
Um minucioso questionário enviado aos vigários do
interior levou um bom número destes a uma tomada de
consciência dos problemas sociais em suas paróquias.
Assim, o Cônego Antônio Barros, em seu minucioso relato sobre a situação do Município de São José de Mipibu,
chegou a afirmações como estas: “O nosso trabalhador
(rural) é um vencido na vida... Vive como um miserável”16.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
155
A Semana Rural realizou-se dos dias 22 a 27 de Janeiro
de 1951, na Escola Prática de Agricultura de Jundiaí, no
Município de Macaíba, contando com a participação de
representações de sacerdotes, professores, fazendeiros e
trabalhadores rurais das três Dioceses do estado, e a presença de todos os Chefes de Serviços Públicos atuantes
no meio rural.
O Governo do Estado prestigiou mais de uma vez o
conclave com sua presença. Vieram do Rio uma equipe
de técnicos do SIA, chefiada pelo Dr. João Gonçalves, e
uma equipe da Ação Católica Brasileira, chefiada por
Mons. Helder Câmara. Dom José Delgado, então Bispo de
Caicó, participou dos trabalhos da Semana. O Arcebispo
de Natal, D. Marcolino Esmeraldo Dantas, compareceu
às sessões mais solenes, sendo que, nas outras ocasiões,
Pe. Eugênio representava a Diocese “mais ou menos por
conta própria”, na qualidade de “metido” — como nos
observou alguém que colaborou na organização da Semana.
Na sessão de abertura, Pe. Eugênio assim se exprimiu:
“Confrange o coração ver o estado de tantas habitações
no interior, a alimentação deficiente, os métodos agrícolas aplicados, a escola vazia de altinos, o roubo da compra na folha”17.
“Foi apresentado o resultado da pesquisa — diz Lourdes
Santos em sua entrevista — e procedeu-se ao debate em
grupos. Estudou-se mais o problema de assistência técnica e sanitária. Os patrões viam a coisa muito dentro
de uma perspectiva paternalista. Não viam a liberação.
Nossa intenção era libertar o homem pela cooperativa.
Nós nos propúnhamos consciente e claramente, já nesta
156
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
época, a libertação do homem do campo pela cooperativa”.
3. O SAR APÓS A I SEMANA RURAL
É práticamente impossível determinar até que ponto
a primeira como todas as 14 Semanas Rurais realizadas
no estado entre 1951 e 1959 tiveram algum resultado
concreto do ponto de vista de introdução de novas técnicas no setor agropecuário norte-rio-grandense. Na nossa
opinião, o resultado foi muito limitado, provavelmente
mínimo, pois não havia no estado — como, em grande
parte, não há ainda — condições para o desenvolvimento
deste setor da economia18.
Esta observação, porém, não quer significar que as Semanas Rurais não tenham dado seus frutos, pelo menos
no que diz respeito à atuação do SAR. É o que veremos a
seguir, não querendo com isto dizer que todo trabalho do
SAR resultou da I Semana Rural. Boa parte das próprias
conclusões da Semana foram pensadas e sugeridas pela
equipe do SAR.
Conhecimento dos problemas. As pesquisas preparatórias, as conferências dos técnicos e os debates durante a I Semana Rural despertaram muitos — sacerdotes,
professores rurais, Escola de Serviço Social, técnicos
e, talvez, também homens de Governo — para os problemas do meio rural. O contato estabelecido, por ocasião da Semana, com técnicos representantes de diversos
Órgãos governamentais foi, sem dúvida, decisivo para
ALCEU RAVANELLO FERRARO
157
o SAR. Este contato tornou possível um conhecimento
mais científico dos problemas rurais por parte da equipe
ao SAR e abriu caminho para um diálogo e uma cooperação, entre SAR e técnicos, que perduram até hoje.
Uma tomada de posição. Da 1a Semana Rural e das pesquisas que a precederam resultou a Carta Pastoral dos
Bispos do Rio Grande ao Norte sobre o problema rural
no estado19.
A 1a Parte da Carta Pastoral é uma espécie de exaltação do homem do campo, comparado com seu irmão
da cidade: “Urge despertar a consciência do homem do
campo para a valia que só ele possui hoje, diante da crise
econômica, política e familiar”. Os argumentos apresentados nao subsistem a uma análise mais científica do
problema.
A 2a Parte consta de uma longa explanação dos
princípios de solidariedade e subsidiariedade. Quanto ao
segundo princípio — o da subsidiariedade — o Documento desce à seguinte norma prática: “Não fazer o dever do
outro. Não ajudar no que, desajudado, é o nosso semelhante reais do que capaz de triunfo... O melhor caminho
será começar pelo “fazer fazer”. Fala ainda a Carta Pastoral do entrosamento e coordenação de esforços. Esta
2a Parte se deve principalmente a D. José Delgado, então
Bispo de Caicó.
A 3a Parte do Documento foi incluída, segundo fomos informado, por sugestão de Pe. Eugênio, que coordenou entre os três Bispos o trabalho de redação. A ele
e aos seus colaboradores leigos se deve a redação desta
parte. “Do inquérito feito em municípios de quatro zonas diversas do Rio G. do Norte — lemos na 3a Parte do
158
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Documento — ficou suficientemente esclarecido que os
nossos irmãos da lavoura e da criação andam atrasados
muitos anos quanto ao trato da terra e dos animais...
O atraso na cultura e na criação é acompanhado do
atraso no próprio tratamento da pessoa humana... Dois
maiores males morais nos afligem: o jogo... e a politicagem. Deram-se as mãos estas duas pestes... A politicagem agravada pelo já denunciado emprego do próprio
jogo como meio de agradar ao cabo eleitoral... Comprar
o voto, no sertão, começa a ser uma praga... Acima do
partido e dos chefes insaciáveis de posição, paira a dignidade do eleitor humilde”.
O Documento manifesta a preferência pelas “medidas
pobres”, em lugar dos “colossos autárquicos e institutos
potentíssimos”, cujos “defeitos administrativos cometidos pelos seus chefes... tornaram-se tão grandes que nós
— dizem os Bispos — chegamos a denunciá-los em nome
dos ludibriados”. Entre outras medidas, sugerem a mecanização da agricultura e o cooperativismo.
O Documento, especialmente em sua 3a Parte, nos deixa entrever uma tomada de consciência e de posição em
face dos problemas do meio rural.
3) Atualização do clero. Um dos resultados mais importantes — e, talvez, inesperado — da 1a Semana Rural diz
respeito ao clero. Ao grupo inicial dos seis, outros foram
juntando-se. A 3a quinta-feira de cada mês passou a ser
um dia “sagrado” para o clero. Nenhum vigário assume
compromisso para este dia: é o dia do Encontro em Ponta Negra.
A importância deste Encontro Mensal já era posta
em evidência pelos próprios líderes do SAR, em fins de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
159
1951: “Todo o trabalho do SAR que se vem realizando no
estado do Rio Grande do Norte”, — lemos no Relatório
das atividades do SAR, 1951 — “parece alicerçar-se nestas
reuniões. Nestes encontros são abordados os problemas
capitais do meio rural e estuda-se a maneira mais indicada para solucioná-los. O local é aprazível — o Patronato de Ponta Negra — e, embora essas reuniões, onde
também é feito o retiro mensal, não sejam oficialmente
aprovadas pela autoridade eclesiástica, contam com todo
apoio da mesma” (observada, é claro, à risca, a precisão
terminológica a que acenamos no início deste capítulo!)
“e boa frequência de sacerdotes”.
O Relatório das Atividades do SAR, em 1954, explicita a
relação entre o Encontro Mensal e a Semana Rural: “Dos
frutuosos encontros do clero na 1a Semana Rural ficaram
bem claros os excelentes resultados desses contatos para
os vigários. E a partir de agosto de 1951 até nossos dias,
cada vez mais firme e com maior número de componentes, vem realizando-se na 3a quinta-feira de cada mês a
reunião do clero da Arquidiocese, com a participação esporádica de elementos das duas (Dioceses) sufragâneas,
e, por ocasião de Semanas Rurais, a reunião do clero da
Província. Nesses encontros de líderes (sacerdotes) está o
alicerce do movimento rural no estado”20.
Nós mesmo, antes de tomarmos conhecimento destes
Relatórios do SAR, chegáramos à mesma conclusão a respeito do Encontro Mensal do Clero, vendo nele um dos
esteios do Movimento.
Como fruto desse Encontro Mensal (do clero da Diocese) e Anual (do clero de todo o estado) e do próprio trabalho que ia sendo realizado no interior, surgiu a ideia
de cursos de atualização para os sacerdotes.
160
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
A partir de 195721, as Semanas Rurais, “de movimento
de massa, passaram a movimento de líderes”, constando
seu programa de três partes:
— Cursos de Extensão Universitária para o Clero;
— Seminários sobre temas diversos, com a participação de autoridades, técnicos e clero (o Seminário de 1959
versou sobre Reforma Agrária);
— Cursos de Economia Doméstica (inclusive para
artesãs e dirigentes de Clubes Agrícolas)22.
O primeiro Curso de Extensão Universitária para o
Clero realizou-se em Ponta Negra, em janeiro de 1957.
Reuniu 40 sacerdotes: 30 da Arquidiocese de Natal, 8 da
Diocese de Mossoró, 1 da Diocese de Caicó e 1 religioso
da Diocese de Amargosa (Bahia). Nove professores ministraram um total de 40 aulas sobre Relações Públicas
e Humanas, Sociologia Rural, Cooperativismo, Extensão
Rural, História Religiosa do Nordeste, Pedagogia Pastoral,
Ação Católica Rural e Sociologia Religiosa. Das próprias
matérias deste Curso transparece a preocupação pela
atualização do clero, tanto no campo da ação apostólica
como no da ação temporal.
O de 1958 versou sobre Sociologia, Pesquisa e Organização de Comunidade, tendo-se também realizado
uma mesa redonda sobre Reforma Agrária, com a participação do ex-Ministro da Agricultura, Dr. Costa Porto.
Nos anos seguintes — até hoje — outros cursos foram
realizados, como o ministrado pelo renomado Agrônomo Guimarães Duque, sobre problemas do Polígono das
Secas, e o de Sociologia Religiosa, dado pelo Sociólogo
Pe. Afonso Gregory. Alguns destes Cursos contaram também com a presença de Sacerdotes de outros estados do
Nordeste.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
161
Com a criação, em 1962, do REGIONAL NORDESTE da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, outros cursos
para sacerdotes foram realizados, destinando-se ao clero
de todo o Nordeste e tendo em vista particularmente a
renovação da ação pastoral.
A partir de 1963, com a divisão da Arquidiocese de Natal em Zonas Pastorais, os vigários passaram a ter também, mensalmente ou cada dois meses, os seus Encontros Zonais.
4) A Missão Rural. A primeira recomendação da I Semana Rural dizia respeito à instalação urgente de uma
Missão Rural Ambulante no estado, visando a promoção
do “bem-estar das comunidades rurais”, e a “educação
do homem do campo”, abrangendo serviços de assistência médico-dentária, educacional, diversional, moral e
religiosa, e de orientação agropecuária. Nestes serviços
a Missão deveria ter o cuidado de “evitar o paternalismo
e de despertar a melhor colaboração dos próprios assistidos”23.
A Missão era constituída de uma equipe de voluntários
— um médico, um dentista, um agrônomo, um (ou uma)
assistente social e um sacerdote — e contava com um
transporte e um aparelho de audio-difusão cedido pelo
SIA.
Do início de suas atividades na Vila de Extremoz (19 de
março de 1951) até fins de 1954 (quando foi substituída
pela Missão Rural do Agreste), a Missão Rural Ambulante
realizou cerca de 110 visitas a sedes de municípios e povoados do interior do estado, inclusive na Zona Oeste e
no Seridó (Dioceses de Mossoró e Caicó).
162
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Inicialmente a equipe passava vim dia em cada localidade, reunindo o povo, fazendo palestras educativas
sobre saúde, escola, técnicas agropecuárias, atendendo a
consultas médicas e extraindo dentes.
Desde as primeiras visitas constatou a equipe que um
dia não era suficiente. Partiu então para a realização de
Tríduos Rurais.
Mas, excetuada a lembrança de ter visto — geralmente
pela primeira vez — um médico, um agrônomo, um assistente social, ou de se ter livrado de uma dor de dente,
não restava no povo das comunidades visitadas senão
“apenas um despertar de consciência para um futuro trabalho construtivo”24.
“Por onde passava a Missão — diz a Assistente Social
Célia Vale Xavier em seu TCC sobre treinamentos — “era
uma semente que se plantava. Uma semente que exigia
cuidados mais frequentes, cuidados estes que a Missão
não podia dispensar, em vista do seu trabalho volante.
Cedo, portanto, sentiu a equipe a necessidade de capacitar pessoal do próprio meio a levar avante as iniciativas
tomadas. Surgiu a ideia de se promover um curso de líderes...”25.
O Relatório das Atividades do SAR em 1951 também é explícito neste sentido: “Do que se observou nas Missões e
Tríduos, concluiu-se pela necessidade de um curso intensivo que visasse a formação de elementos capazes de promover a recuperação do meio rural”. Desta constatação
resultou uma progressiva concentração de esforços nas
áreas atingidas pela Missão, “no sentido de transformar
aqueles aglomerados em verdadeiras comunidades”26.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
163
Em 1952 o SAR celebrava com a Campanha Nacional
de Educação Rural (CNER) um acordo, pelo qual assumia
a execução de Missões Rurais de Educação, de caráter
permanente e em áreas restritas. Enquanto era treinada,
em Cruz das Almas, tuna equipe de técnicos, o Geógrafo
Orlando Valverde, técnico da CNER, após estudos em
algumas áreas do estado, sugeria que se instalasse a I
Missão Rural (permanente) de Educação em Nísia Floresta e, posteriormente, outras em São Paulo do Potengi
e no Sertão do Seridó. Foi assim que, a 30 de agosto de
1954, teve início a Missão Rural do Agreste, com sede
inicialmente em Nísia Floresta, depois em Goianinha.
A equipe era constituída por um agrônomo, uma assistente social, um médico, e uma educadora familiar.
Em 1959 a Missão atuava em 16 núcleos, nos municípios de Nísia Floresta, São José de Mipibu, Arês,
Goianinha e Monte Alegre, contando com 24 grupos organizados, 6 núcleos cooperativistas e 1 cooperativa. Já
por esse tempo as “indústrias rurais caseiras” evoluíam
para a produção artesanal com fins comerciais, não mais
visando apenas a produção de utilidades domésticas.
Em 1962 foi extinta a CNER e, com esta, a Missão
Rural do Agreste, que, já desfalcada, ficara reduzida às
duas educadoras familiares e à cooperação do vigário
de Goianinha, Pe. Armando Paiva. As duas educadoras
foram postas à disposição do SAR, continuando, até hoje,
seu trabalho na área da extinta Missão Rural do Agreste.
Subsistiram os grupos cooperativos que se voltaram para
o artesanato, dando origem à Cooperativa de Produtores
Artesanais do Litoral-Agreste.
164
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Do ponto de vista agropecuário e sanitário, não parece
ter havido mudanças significativas ou, pelo menos, duradouras na área. Os próprios líderes do SAR não parecem muito convencidos do sucesso da Missão Rural do
Agreste: “Não deu os resultados esperados em proporção
ao dinheiro investido”, declarou D. Eugênio em sua entrevista27.
4. DESENVOLVIMENTO DE COMUNIDADE
a) O Binômio Escola-Paróquia. Desde 1951, paralelamente à linha de ação encetada pelo SAR através da
Missão Rural Ambulante e continuada pela Missão Rural
(permanente) do Agreste, que deu origem à Cooperativa de Artesanato, desenvolveu o SAR, junto ao Binômio
Escola-Paróquia, outra série de atividades, que constituem nova linha de ação, mais original, sem dúvida, e
mais determinante na evolução do próprio Movimento.
A razão da escolha da escola e da paróquia como bases
para este programa de ação comunitária é a seguinte:
tanto o vigário como a professora, além de serem elementos estratégicos para qualquer trabalho, no meio rural, fundado na cooperação voluntária, eram os menos
envolvidos pelas lutas políticas locais, que bem cedo se
demonstraram sério obstáculo para o trabalho do SAR.
Neste sentido, o Relatório das Atividades do SAR em 1952
nos revela que a campanha eleitoral daquele ano criou
sérias dificuldades à ação do Centro Social de São Paulo
do Potengi e de seus Sub-centros, comprometendo a boa
ALCEU RAVANELLO FERRARO
165
marcha dos trabalhos, e resolvendo-se, em consequência, suspender as atividades dos Sub-Centros até o início
do ano seguinte.
Um documento intitulado Binômio Escola-Paróquia (sem
data, mas certamente de 1951) assim definiu os objetivos
do trabalho a ser desenvolvido pelo SAR junto à escola e
à paróquia: “Promover o levantamento e a mobilização dos
recursos locais com o fito de organização da comunidade”.
No início do SAR falava-se mais em redenção, recuperação, soerguimento das populações rurais. O uso
do termo “desenvolvimento” começou a generalizar-se
pelo fim dos anos 1950. Da mesma forma falava-se em
organização ou, embora menos, em soerguimento das
comunidades rurais. Já em 1960 dizia-se explicitamente:
“O SAR objetiva o desenvolvimento e a organização das
comunidades rurais”28. Mas o uso do termo “desenvolvimento” está intimamente ligado à II FASE RURAL (desenvolvimento econômico e mudanças de estruturas), da
qual falaremos no capítulo seguinte.
Junto às escolas promoviam-se reuniões com as professoras, alunos e pais, com o intuito de melhorar o nível do
ensino, motivar pais e alunos para aumentar a matrícula
e melhorar a frequência escolar, organizar o ensino religioso nas escolas, promover a criação de Clubes Agrícolas e integrar a escola no trabalho de comunidade que se
iniciava junto às paróquias.
Logo aos primeiros contatos, os elementos do SAR
aperceberam-se do baixo nível intelectual das professoras do interior, cuja grande maioria não tinha primário
completo. Como integrar a escola em programas de ação
comunitária? Nenhum destes objetivos poderia ser atin-
166
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
gido, a não ser através de cursos de aperfeiçoamento para
professoras; foi esta a conclusão a que chegou, ainda em
1951, a equipe do SAR.
De outro lado, atuando junto às paróquias, o SAR procurava auxiliar os vigários e seus colaboradores leigos a
organizar:
— um piano de ação social (Centros Sociais de Comunidade, Clubes de Jovens, Clubes de Mães, Clubes Esportivos, Ambulatórios de emergência, programas de educação sanitária, recreação, cursos de alfabetização, de arte
culinária, de corte e costura, de bordado, de indústrias
rurais caseiras, etc.), e
— um plano de ação pastoral ou apostólica (fundação
da Juventude Agrária Católica (JAC) e de Centros Catequéticos).
“Nos debates com os colaboradores dos vigários” —
observa, em sua entrevista, a Assistente Social Lourdes
Santos, que teve grande atuação neste campo — “verificamos que esse pessoal era muito mal escolhido - pessoal
que não dava trabalho, mas, também, que não trabalhava eram os bonzinhos. Uns carneirinhos. Os elementos
expressivos estavam distantes do vigário. Os vigários estavam geralmente sobrecarregados, absorvidos pelo culto, administração dos sacramentos, e livros da paróquia.
Vimos que urgia um trabalho de formaçao de quadros
para qualquer trabalho no meio rural. Achávamos que
(esta formação de quadros) não era função do vigário
Concluia-se uma visita com um plano de trabalho. Não
funcionava. Diante disto resolvemos promover um curso, com o intuito de treinar líderes rurais.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
167
b) Estratégia. Pelo fim dos anos 40, sob influência da
Sociologia Americana (através, principalmente, de pessoas que regressavam ao Brasil, após terem realizado
cursos nos Estados Unidos), as Escolas de Serviço Social,
até então voltadas mais para o Serviço Social de Caso,
passaram a dar ênfase ao Serviço Social de Grupo e de
Comunidade. O conceito de líder está, por sua vez, estreitamente ligado ao de grupo.
Ora o pessoal técnico do SAR era quase todo constituído de alunos ou ex-alunos da Escola de Serviço Social de
Natal. Além disto, Pe. Eugênio, como professor, esteve,
durante vários anos, em contato com a Escola de Serviço
Social.
A Escola estava, portanto, de posse dos elementos:
líder, grupo, comunidade. A junção, porém, destes elementos, formando a estratégia típica da I FASE RURAL do
Movimento — o tripé: líder, grupo, comunidade — deve-se
particularmente às primeiras experiências — decepções!
— das Assistentes Sociais no meio rural.
Propunham-se estas a “organização”, a “dinamização
da comunidade”, “atingir a comunidade”. Esta, porém,
lhes fugia da mão: deparavam-se com “aglomerados humanos”, que “precisavam ser transformados em verdadeiras comunidades”. Os primeiros planos não foram
bem-sucedidos. Pensaram em “pessoas do lugar”, capazes
de assegurar a participação do povo e a continuidade das
iniciativas tomadas. Mas, que podia fazer um elemento
isolado contra a força da tradição? A formação de grupos seria a solução. O tripé estava montado: líder, grupo,
comunidade. Mas não funcionava. Ou, pelo menos, não
funcionava como se esperava.
168
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
c) Os treinamentos de Líderes Rurais. A ideia de líder veio
da Escola de Serviço Social. A de treinamento deveu-se
particularmente as primeiras experiências do SAR. Por
onde quer que iniciasse um trabalho — seja através da
Missão Rural Ambulante, seja atuando junto ao “Binômio Escola-Paróquia” — a equipe do SAR constatava, já
em 1951, a necessidade de treinamento.
Foi assim que surgiu o 1o Treinamento de Líderes Rurais, realizado de 14 a 30 de janeiro de 1952, na Escola
Prática de Agricultura, em Jundiaí. Foi financiado cerca
de 50% pelas paróquias de onde provinham as cursistas,
e o restante, por 6 Instituições e Serviços diversos.
A respeito, assim se exprimiu, em sua entrevista, a
Assistente Social Lourdes Santos, coordenadora do 1°.
Treinamento: Foi um curso em estilo de Escola de Serviço Social. Tudo girava em torno dos temas: família, escola, paróquia, comunidade. No fim do curso reunimos
os elementos de cada município para debater os problema locais e elaborar um planejamento. Este curso levou
os participantes a se descobrirem como pessoa humana
— valores de inteligência, realização pessoal e vocação
missionária; 2) a tomarem consciência de sua responsabilidade, como cidadãos e como membros da Igreja,
Pela comunidade; e 3) a entenderem que não poderiam
atingir sozinhos estes objetivos, mas através de grupos”.
A correspondência das primeiras cursistas revela certa
perplexidade ante as dificuldades encontradas: a falta de
interesse e de cooperação do povo, a insegurança no lidar com grupos a inconstância dos membros destes grupos, etc. Grupos surgiam, dissolviam-se e ressurgiam novamente Tem-se a impressão de que estavam tateando
ALCEU RAVANELLO FERRARO
169
ainda. O 1° treinamento dera pouca importância a tecnica de grupos. Algumas sugeriam cursos mais prolongados: achavam pouco 15 dias. Para o trabalho que se
pedia.
Durante o 1° treinamento promovido pelo SAR esteve
em Natal o Dr. José Artur Rios, o qual, apenas regressando dos Estados Unidos, fora nomeado Coordenador
da Campanha Nacional de Educaçao Rural. Ouvindo falar do trabalho realizado no Rio Grande do Norte, quis
ver pessoalmente o que lá se estava realizando. Foi nesta
ocasião que o próprio Coordenador da CNER ofereceu
ao SAR um convênio, que foi firmado no Rio aos 16 de
maio de 1952, pelo qual a CNER se comprometia a dar assistência técnica e financeira para o projeto do Centro de
Treinamento (29) e para o Programa das Missões Rurais30.
O Convênio possibilitou a manutenção de uma equipe
responsável não só pelos treinamentos, como também
pelo assessoramento e supervisão dos líderes treinados.
O 2° treinamento, realizado ainda em fins de 1952,
contou com 29 participantes e teve a duração de 90 dias.
Foi dada, neste, maior ênfase à técnica de grupo. Em consequência, proliferaram os grupos no interior.
De 1952 a 1964 (em 1964 já se voltara o SAR para os
treinamentos especializados) o C.T.L. (Centro de Treinamento de Líderes) realizou 34 treinamentos, geralmente
de 1, 2, 3, e até 6 meses, somando 757 participantes.
Os dois treinamentos de 6 meses destinaram-se à formação de Auxiliares Sociais Rurais.
À medida que se multiplicavam os treinamentos, os
trabalhos iniciados no meio rural tomavam novo alento, firmando-se e expandindo-se. Novas escolas e novas
170
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
paróquias foram atingidas pela equipe que atuava junto
ao “Binômio Escola-Paróquia”. Surgiram novos Centros
Sociais de Comunidade. Proliferaram os Clubes de Jovens, de Mães, os Clubes Agrícolas e Juvenis. Expandiu-se
a JAC. Os líderes treinados no C.T.L. passaram a promover, no interior, cursos de líderes, cursos de corte e costura, de bordado, de arte culinária, de indústrias rurais
caseiras. Foram organizadas campanhas de saúde e de
frequência à escola. Foram feitas demonstrações, como
de combate à formiga e à lagarta, e experiências de criação de galinhas e de hortas caseiras. Atividades recreativas invadiram fazendas, sítios, povoados, vilas e mesmo
cidades do interior.
Talvez por responder a uma das necessidades mais sentidas pelas populações do interior, a diversão constituiu,
muitas vezes, a primeira forma de cooperação e o ponto
de partida para a organização de grupos e a integração
do povo em outras atividades.
d) O líder. O meio rural nordestino conhece dois tipos
tradicionais de líderes, cujos expoentes máximos são as
figuras do “coronel” e do “patriarca”. Demorada e minuciosa pesquisa (31) evidenciou-nos que o SAR teve, realmente, desde o início, a intenção de criar um novo tipo
de líder, que tentaremos caracterizar aqui, esquematicamente, sem, contudo, nos preocuparmos, por ora, em
verificar se este objetivo foi realmente atingido.
Trata-se de um líder:
— natural: pessoa do meio, com qualidades, pelo menos potenciais, de liderança;
— voluntário: não remunerado (monetariamente);
ALCEU RAVANELLO FERRARO
171
— treinado: “conscientizado” de sua responsabilidade
como líder e capacitado para melhor exercício e maior
rendimento de suas qualidades de liderança;
— inovador: capaz não só de assumir responsabilidades
e de tomar iniciativas quaisquer, mas, também, de promover a mudança de mentalidade e de padrões de comportamento no meio em que vive e a “transformação de
aglomerados humanos em verdadeiras comunidades”32;
— democrático: educado para o “fazer-fazer”, para fazer “com” e não “para”33, ao contrário do líder autoritário (o “coronel”) e do líder paternalista (o “patriarca”)34;
— comunitário: voltado para os problemas de sua comunidade, entendida como a fazenda, o sítio, o povoado,
ou a cidade do interior35;
— solidário: educado para atuar através de grupos ou
associações voluntárias de pequeno porte, e não isoladamente;
— missionário: o próprio engajamento especificamente
temporal do líder era apresentado como decorrência de
sua condição de cristão e como testemunho de caridade
cristã36.
Estratégia: atuação junto ao Binômio Escola-Paróquia,
fundada no Tripé: Líder - Grupo - Comunidade.
Principais suportes (“alicerces”):
1. O próprio Padre e, depois, Bispo Eugênio, e, através
do Encontro Mensal, o clero rural.
2. A Ação Católica: na origem (J.M.C.), na cúpula (J.M.C.
e J.F.C.) e na base do SAR (JAC).
3. A Escola de Serviço Social, fornecendo o pessoal técnico.
4. A cooperação dos Poderes Públicos (especialmente
o SIA e a CNER) e da ANCAR.
5. Os líderes treinados no C.T.L. e os grupos surgidos
no meio rural.
5. CONCLUSÃO
Utilizando, quanto possível, a própria terminologia do
Movimento, tentaremos esquematizar, aqui, alguns aspectos mais fundamentais desta I FASE RURAL:
Objetivo: “O soerguimento das comunidades rurais”.
Meio: “Através de um trabalho de educação de base”37.
172
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
173
NOTAS AO CAPÍTULO III
l. Fontes principais: a) A Ordem (para o período 1945-1951); b) a farta documentação do SAR para o período posterior a 1950; c) entrevistas; d) Trabalhos de
Conclusão de Curso de ex-alunas da Escola de Serviço Social, sobre treinamentos.2. Em maio de 1965 Nivaldo Monte foi nomeado Administrador Apostólico
“Sede Plena” de Natal, em substituição a D. Eugênio Sales, que fora transferido
para a Bahia.
3. Pe. A. E. Collard, NEBRA — O Nordeste na Encruzilhada dos Caminhos, Edições
“DI-MANCHE”, Mons (Bélgica), 1964, p. 82-83.
4. A Ordem, 19-12-1947.
5. A Ordem, 28-1-1948.
6. A Ordem, maio e junho de 1948
7. A Ordem, 12-6-1948.
8. A Ordem, 17-8-1948.
10. Cfr. Livro de Atas do SAR.
11. DR. Eugênio Sales, A Igreja e o bem Estar Rural: Aula proferida no 1º Curso
para técnico do serviço social rural (SSR) no Centro de Ensaio e Treinainento
da Fazenda Ipanema (CETI), em janeiro de 1959.
Trata-se de uma nova modalidade de apostolado — comentava Moreira Aguiar
em A ordem de 9 de abril de 1949 – a ser confiado ao patrocínio da Juventude
Masculina Católica, visando prestar assistência médica, dentária, jurídica e
parte diversional, às populações dos munidos dos Municípios a serem beneficiados, e mesmo dos particulares”. O mesmo jornais observa ainda que o Pe.
Eugênio tinha tudo no papel : plano, Orçamento, onde conseguir o dinheiro e
como fazer funcionar seu plano.
12. A Ordem, 19-10-1949. Trata-se certamente de experiência observada por Pe.
Eugênio, quando de sua estada em Porto Alegre, por ocasião do Congresso Eucarístico Nacional, lá realizado em 1948. A Assistente social Célia Vale Xavier,
em seu trabalho de concussão decurso (TCC), observa o seguinte: “ conta D.
Eugênio Sales... que essa ideia de servir ao meio rural tomou vulto por ocasião
do Congresso Eucarístico de Porto Alegre. Pequenas experiências da igreja do
brasil no meio rural já se esboçavam”. (Cfr. Célia Vale Xavier, O treinamento
de líderes voluntários nos programas de valorização do Meio Rural, Natal, novembro de 1958, p. 31)
13. A Ordem, 12-10-1949.
‘
14. A Ordem, 10-01-1950 e 27-02-1950.
15. A Ordem, 25-02-1950
16. Em seu relato, o Cônego Antônio Barros – depois de constar o predomínio
da grande propriedade, a pouca mecanização da agricultura, a falta de assistência técnica, a carência hospitalar e de qualquer assistência médico-sanitária – observava: “O trabalhador rural é pago em dinheiro, cuja média de
salário é de Cr$ 8,00 a 10,00, o que representa uma miséria, tendo em consideração os elevados preços alcançados pelos produtos agrícolas, que ano a
ano contribuem para o enriquecimento dos agricultores e criadores... O nosso
trabalhador é um vencido na vida, geralmente mal alimentado, maltrapilho e
doente, possuindo apenas a noite e o dia que Deus lhe dá. No dia em que não
trabalha, a família passa fome. Não existe nenhuma assistência social para o
nosso trabalhador... O nosso município é um verdadeiro celeiro de cereais.
A riqueza, porém, é canalizada para os felizes proprietários das terras, sendo
174
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
que o principal propulsor do progresso, o trabalhador, vive como um miserável”. (Cfr. Cônego Antônio Barros, Contribuição a I semana Rural no Rio Grande
do Norte, São José do Mipibu, 30-1-1950 — Arquivos do SAR).
17. A Ordem, 23-1-1951.
18. A parte as amarras da própria tradição, podemos mencionar: a) apropria estrutura
agrária do Estado e do Nordeste (Cfr. Apêndice I, § 3, 3); b) o absentismo dos grandes proprietários; c) o lucro cavado nos grandes latifúndios, que é investido nas indústrias do Sul
ou em imóveis nas capitais, seguindo a agricultura e a pecuária a sua rotina tradicional;
d) a quase total ausência de créditopara o pequeno proprietário (de menos de 10 ha.) e
os “sem terras”, que, juntos, constituem mais de 90% dos que encontram na agropecuária
seu ganha pão; e) a precariedade dos poucos postos agropecuários existentes no interior;
f ) a insegurança e a instabilidade do trabalhador rural que desestimulam qualquer –
mesmo mínimo- investimento ou benfeitoria, de vez que este pode ser despedido a qualquer momento, sem adequada e, geralmente, sem nenhuma indenização.
19. Cfr, A Ordem, 2-7-1951.
20. Observe-se que, já nesse tempo, os próprios líderes do SAR consideravam seu trabalho
como um movimento rural de âmbito estadual.
21. Ao todo foram realizadas, no estado do Rio Grande do Norte, 16 semanas rurais.
As nove primeiras e a undécima (1951-1957), realizadas no interior, podem definir-se
como movimentos de massa (chegaram a contar, em certos dias, mais de 200 e até 600
participantes). A X e as XII-XVI destinaram-se mais a líderes (autoridades, técnicos, clero
e líderes rurais) do que ao grande público do interior. Cfr., sobre isto, os Relatórios das
atividades do SAR e particularmente a documentação do SAR sobre as semanas rurais.
22. Safira Bezerra, pela Valorização do meio Rural (Trabalho de conclusão de curso),
Natal, março de 1959, p. 28.
23. “conclusões da I Semana Rural”, A Ordem, 29-1-1951.
24. Relatório das atividades do SAR no ano de 1952.
25. Célia Vale Xavier, O Treinamento de líderes voluntários nos programas devalorização
do meio rural (Trabalho de Conclusão de Curso), Natal, novembro de 1958, p. 34 Cfr.
Também: Safira Bezerra, op. Cit., p. 35 ss.
26. Relatório dai Atividades do SAR em 1954.
27. Não é nossa intenção fazer aqui uma avaliação do trabalho da Missão Rural
de Educação no Agreste, titulo de ilustração, transcrevemos o seguinte trecho
referente ao trabalho desenvolvido pela Missão Rural num trimestre de 1957:
- Parte agrícola: Horticultura: 16 aulas práticas com a frequência de 182 pessoas.
Avicultura: 3 demonstrações. 13 reuniões para arborização, com a frequência
de 314 pessoas.
Parte educacional- 2 reuniões de pais, com a presença de 137 pessoas. 9 reuniões
com 58 professores e 3 aulas teóricas. Em relação a clubes: 100 reuniões para
assuntos diversos, com um total de 1 364 presentes. 12 Reuniões recreativas com a participação de 574 pessoas. 4 regiões festivas com 1 550 pessoas.
Uma excursão com 10 pessoas. Realizou-se também uma reunião de líderes,
bem como funcionou uma vez um comitê de estudos. Economia domestica, aulas
teóricas, 4 Trabalhos manuais 23 com frequência de 246 alunos. Trabalhos
em madeira, 26; participações. 237 pessoas. Arte culinária, 3 aulas. Indústrias
rurais caseiras, 2 aulas para 17 senhoras. Foram ministradas ainda 3 aulas
teóricas sobre alimentação. Formação moral e social; círculos de estudos, 12:
frequência de 102 circulistas. Aulas teóricas de boas maneiras, 7, frequência de
79 pessoas. Realizaram-se 19 sessões cinematográficas, com filmes educativos.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
175
Compareceram 2.800 pessoas”. (Cfr CNER no Rio Grande do Norte (Relatório
enviado a CNER pelo SAR, órgão executor do convênio) 1957.
28. Relatório das Atividades do SAR em 1960.
29. No que diz respeito ao Centro de Treinamento, o convênio com a CNER
estendeu-so até 1957. Seguiu-se, então, um Convênio com o Serviço Social Rural (SSR), que assegurou a continuidadedos treinamentos até 1962. Os treinamentos promovidos em 1963 e 1964 foram realizados extra convênio. Mesmo entre 1952 e 1962 foram promovidos treinamentos totalmente custeados
pelas comunidades interessadas. Em alguns casos, graças à cooperação das
comunidades, as Já parcas subvenções dadas para um permitiram a realização
de dois treinamentos.
30. O Convênio para o Projeto da Missão Rural do Agreste, cuja execução foi
iniciada em 1954, teve fim em 1962, com a extinção da CNER.
31. Cfr. Sobre isto, o abundante material do SAR sobre os treinamentos e os
já citados trabalhos de conclusão Curso de CéliaVale Xavier e Safira Bezerra.
Servimo-nos, além destas fontes, de várias entrevistas e da observação participante em vários treinamentos, embora já da II FASE RURAL (treinamentos
especializados).
32. Relatório das Atividades do SAR em 1954.
33. Sobre líder democrático, grupos democráticos e técnica de treinamento,
veja os já citados Trabalhos de Conclusão de Curso de Célia Vale Xavier e Safira
Bezerra.
34. A propósito, vale transcrever o depoimento de Célia Vale Xavier que
durante 12 anos (1953- 1964) foi coordenadora do Centro de Treinamento:
“Quem visita o Interior encontra-se, amiúde com indivíduos que, exercendo
sua autoridade, o fazem de modo totalitário. Por outro lado o Paternalismo
não tem deixado de trazer desastrosas consequências ao trabalho de formação de lidere. Comunidades dormem sob a proteção de uma ou outra família, que toma para si todos os encargos, que tudo faz sozinha... Repete-se por
toda parte o caso da família patriarcal, eternamente responsável por todas as
iniciativas locais, e empreender toda sorte de melhoramentos “em favor” da
comunidade que tudo recebe, reconhecida, mas passivamente”. E pergunta-se
a autora: “Como, então, Poderão surgir líderes naturais, se o ambiente próprio
ao seu desenvolvimento - a comunidade - acha-se totalmente abafada por esses
dois grandes inimigos da democracia, como sejam o autoritarismo e o Paternalismo? Se não for “no duro” nada vai para frente, afirmam os que defendem
as iniciativas impostas, enquanto os geradores do “filhotismo” escolhem para
postos de liderança “o amigo” “o compadre”, ou ainda o elemento “bonzinho”.
O grupo democrático é, por excelência, o clima onde brotam os líderes naturais”. (Cfr. Célia Vale Xavier, op. cit., p. 19-20).
35. O interiorano serve-se habitualmente do termo “localidade” para designar o sítio, o povoado, a fazenda onde mora. O conceito “comunidade”, introduzido pelo SAR, tinha uma conotação norrmativa. “Comunidade” passou a
significar não tanto o que uma localidade era quanto o que deveria ser “Transformar aglomerados humanos em verdadeiras comunidade” (Relatório das atividades do SAR 1954). Surpreendeu-nos a ênfase com que, em recantos os mais
isolados do interior, se Pronuncia “co-mu-ni-da-de”.
36. Trataremos mais demoradamente deste aspecto na III Parte deste Trabalho. Antecipamos, contudo, a constatação feita pelo próprio Coordenador da
176
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
CNER, Dr. José Artur Rios, por ocasião do 1º Treinamento de Líderes realizado
pelo SAR: “Precisamos de líderes rurais do tipo dos que aqui, encontrei. Não
simplesmente interessados num trabalho qualquer, mas possuídos de ideal
apostólico (hoje diz-se “espírito missionário”). Os treinamentos visavam levar
os participantes a uma opção religiosa. O próprio engajamento temporal do
líder era apresentado como decorrente de sua condição de cristão. Nada de
admirar, uma vez que, por trás de tudo, estava a Ação Católica. A expansão
da JAC (Juventude Agrária Católica), organização de caráter especificamente
missionário, muito devo ao SAR. Por outro lado, a JAC constituiu um dos principais suportes de todo o social desenvolvido no meio rural.
37. SAR – CNER, Relatório do ano de 1953.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
177
CAPÍTULO IV
II FASE RURAL
Uma redefinição de objetivos, nova terminologia e
novo surto de iniciativas marcam esta II FASE RURAL, cujas realizações podem ser agrupadas em torno de três objetivos genéricos: educação, desenvolvimento econômico, mudança de estruturas.
1. EDUCAÇÃO
a) Como vimos no capítulo anterior, data de 1948 —
anterior, portanto, ao próprio SAR — a ideia de uma
Rádio-Escola ou da utilização do rádio para programas
de educação de base das populações rurais. A luta pela
obtenção de um canal teve início em 1952. Depois de
frustradas várias tentativas, finalmente, pelo Decreto n°.
43.729 de 21 de maio de 1958, foi concedida ao SAR a
autorização desejada1.
A esta altura, D. Eugênio, com a ajuda do ETA (Escritório Técnico de Agricultura) do Ponto IV, havia percorrido as Américas em busca de novas “luzes”. Muito
ALCEU RAVANELLO FERRARO
179
lhe valeu a observação pessoal da experiência de educação pelo rádio, realizada na Colômbia pela “Acción Popular Cultural” (Rádio Sutatenza)2.
Com a inauguração da Emissora no dia 10 de agosto de
1958, foram organizadas as primeiras Escolas Radiofônicas,
dando-se início à primeira experiência, no Brasil, de educação de base pelo rádio. No ano seguinte D. José Távora
lançou experiência semelhante na Arquidiocese de Aracaju. O II Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em
Natal em maio de 1959, foi ocasião para interessar os
Poderes Públicos na experiência. Em 1961 foi assinado
Convênio entre a Presidência da República e a Conferência dos Bispos do Brasil, fundando o Movimento de Educação de Base (MEB) e estendendo a experiência a outras
áreas subdesenvolvidas do Brasil3. A partir desta data o
MEB passou a assumir o ensino radiofônico também na
Arquidiocese de Natal, continuando, em entrosamento
com o SAR, o trabalho por este iniciado.
A educação de base — objetivo do ensino radiofônico — visava não somente a alfabetização, mas também
a conscientização e politização4 das populações rurais.
O próprio método de alfabetização era um processo de
conscientização e politização, partindo não das tradicionais cartilhas de alfabetização, mas de termos como
povo, voto, liberdade, libertação, trabalho, salário, direito, dignidade, justiça, doença, fome, união, força, sindicato, alfabetização, analfabeto, cristão, amor, responsabilidade, etc.5
Entre 1961 e 31 de março de 1964, na fase aguda da
luta do SAR em prol da mudança de estruturas, o MEB
deu à conscientização-politização pelo menos tanta ên-
180
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
fase quanta à alfabetização. O objetivo geral do MEB
para 1963 foi assim descrito: “Contribuir para a autopromoção do povo, através do processo de conscientização”,
com o intuito de promover “uma mudança de mentalidade e de estruturas”6.
Além do ensino radiofônico, a Emissora abriu novas
perspectivas para o trabalho do SAR. Com excessão de
algumas — poucas — mais remediadas, a quase totalidade das famílias das fazendas, sítios e povoados do interior não possuía e não ouvia rádio. O aparelho cativo das
Escolas Radiofônicos não pertencia ao monitor ou à sua
família, mas à comunidade toda. Foi o mundo dentro da
casa, dentro da fazenda, do sítio, do povoado.
Treinamentos tiveram continuidade através do rádio.
Programas radiofônicos revitalizaram Clubes e JAC, inclusive arrancando mulheres e moças à cozinha e lides
caseiras, para reuniões, não raro, a léguas de distância.
O rápido surto sindicalista dos anos 1960 não se entende sem Emissora... e sem os Centros Sociais, os Clubes, a JAC, enfim, sem os suportes institucionais criados, no interior, na I FASE RURAL do Movimento.
O programa do Setor de Sindicalização, “Em Marcha Para
o Campo”, passou a ser rendez-vous obrigatório para muitos trabalhadores rurais... e também para patrões, com
uma diferença: enquanto aqueles davam todo volume ao
aparelho, estes colavam o ouvido no “pé do rádio”, para
que a vizinhança não se apercebesse...
Programas religiosos e, particularmente, a Missa “radiada” levaram a mensagem evangelizadora a muitos que
só viam e veem o padre algumas vezes no ano.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
181
Alguns programas recreativos tornaram-se famosos.
Com eles ia sempre uma “pitadinha” de conscientização
e politização.
A Emissora constituiu novo e poderoso suporte para a
expansão do Movimento nesta II FASE RURAL.
Após um encontro do Presidente da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG) com D. Eugênio
Sales, foi organizada a Secção Estadual da Campanha,
passando esta a funcionar “integrada” no Setor de Ensino
Médio do SAR, fundado com o objetivo de 1) possibilitar
uma melhoria do ensino em alguns Ginásios paroquiais
já existentes e 2) fundar novos Ginásios, integrando-os
na CNEG. A CNEG passou a funcionar na própria sede
do SAR. Fundou novos Ginásios. Outros, já existentes,
associaram-se à Campanha, perdendo, assim, o Setor de
Ensino Médio sua razão de ser. Em 1966, a CNEG passou
a funcionar em sede própria.
Embora não dependa juridicamente do SAR, nem
mantenha convênio com este, a CNEG deve ao Movimento sua organização e muito de sua rápida expansão
no estado do Rio Grande do Norte. Sua Diretoria e Conselho estaduais eram e continuam sendo constituídos de
elementos todos eles voluntários e integrados no SAR ou
em outros setores do Movimento. Além de encontrar comunidades abertas para a cooperação, a Campanha beneficiou-se ainda do apoio dos vigários e de toda a infraestrutura social criada pelo SAR no interior.
Nos anos 60, seja atuando nos próprios Educandários, seja, através destes, nas respectivas comunidades,
o Setor do Ensino Médio também se integrou no trabalho de conscientização e politização desenvolvido pelo
SAR com vista a mudança de estrutura.
182
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Como resultado do II Encontro dos Bispos do Nordeste,
o SAR organizou, em 1960, o Setor de Migrações. O objetivo
inicial era bem ambicioso: ordenar e humanizar as migrações procedentes do Nordeste. Como primeiro passo,
procedeu o SAR a um levantamento, em 12 municípios
do estado, sobre as correntes migratórias: número de migrantes — permanentes e temporários — procedência e
destino. Passou-se, então, ao treinamento de líderes de
migração — voluntários — que pudessem assumir, no
interior, o encargo de orientar o migrante.
Através destes líderes e de programas radiofônicos, o
Setor desenvolveu seu trabalho de orientação e educação, visando, de modo especial, tornar consciente o futuro migrante do comércio humano do “pau-de-arara” e
orientá-lo a só viajar com passagem paga, emprego certo
e documentos.
Lembre-se, contudo, que a preocupação do SAR pela
humanização das migrações é anterior ao II Encontro
dos Bispos do Nordeste (1959). Já em 1954 foi enviado aos
vigários um modelo de carta de apresentação, que o imigrante deveria apresentar ao vigário da paróquia onde
fosse residir.
e) Antes mesmo da fundação do SAR, já se cogitara
numa “Volante da Saúde”. A Missão Rural Ambulante
procurou dar alguma assistência médico-dentária às
populações por ela atingidas. Os líderes rurais e os grupos por eles organizados foram orientados para a saúde
preventiva: a educação sanitária do povo de suas localidades, através de palestras, campanhas, audiência de
programas radiofônicos, etc.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
183
A partir de 1957 começaram a surgir algumas maternidades no interior, mantidas pelas respectivas comunidades.
O Setor de Saúde visou não a manutenção, mas o assessoramento às maternidades e o treinamento de parteiras, de vez que estas comunidades não conheciam,
neste campo, senão a tradicional “curiosa’.
Em 1965, o Setor passou a insistir novamente na saúde
preventiva, através de treinamentos de monitores de
saúde. Algumas maternidades desenvolvem também algum trabalho de educação sanitária e alimentar.
Tudo somado, o Setor visa mais a educação sanitária,
do que a assistência propriamente dita.
2. DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Desde o início de suas atividades o SAR se preocupou,
em seu programa de “redenção” do meio rural, com alguns aspectos econômicos, como a melhoria técnica na
agropecuária, o incentivo ao cooperativismo, indústrias
rurais caseiras e apoio à colonização de Pium, feita pelo
INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização).
A 2a FASE RURAL distingue-se, aqui, por uma ênfase
maior e, sob alguns aspectos, uma ação mais direta no
campo econômico.
Que os agricultores e criadores andavam “atrasados
muitos anos quanto ao trato da terra e dos animais” ficou demonstrado na pesquisa que precedeu a I Semana
Rural8. As Semanas Rurais, a Missão Rural Ambulante e
184
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
os treinamentos iniciaram um trabalho de esclarecimento e educação neste sentido.
Mas ficou logo patente que isto não era problema que
se resolvesse com algumas palestras. Exigia-se uma assistência continuada, técnicos e dinheiro. Não era trabalho para o SAR. Ademais, já funcionava em alguns Estados Nordestinos a Associação Nordestina de Crédito e
Assistência Rural (ANCAR), órgão integrado exclusivamente de técnicos e fora do alcance dos políticos. Por
que não trazê-la para o Rio Grande do Norte?
D. Eugênio Sales e o Dr. Cristovam Bezerra Dantas,
então Secretário da Agricultura, iniciaram uma série de
entendimentos que resultaram na instalação, em dezembro de 1955, de Escritórios da ANCAR em 5 municípios
do estado9.
Em janeiro de 1958 foi instalado o Escritório Estadual
da ANCAR com sede em Natal. Multiplicaram-se os Escritórios no interior. Desde 1955, desenvolveu-se estreita
colaboração entre ANCAR e SAR sendo que este, como
membro fundador, integra ainda hoje a Junta Governativa, órgão máximo de deliberação da ANCAR10.
Com o andar dos anos o SAR deu-se conta de que não
bastavam “incentivos” para o desenvolvimento do cooperativismo no estado. A experiência foi demonstrando:
— que a interferência de interesses particulares, geralmente políticos, levavam cooperativas à subserviência
a um pequeno grupo, quando não, a fechar os batentes;
— que a falta de pessoal capacitado em contabilidade
e administração paralisava grande número de cooperativas;
— que a maioria delas atendia quase que exclusivamente à classe patronal;
ALCEU RAVANELLO FERRARO
185
— que o pequeno proprietário e o trabalhador rural
não dispunham de crédito, obrigando-se, muitas vezes, a
vender o produto “na folha” ou logo após a colheita, por
preços baixíssimos.
Consultada, a Divisão de Assistência ao Cooperativismo, órgão do Governo do Estado, respondeu não estar
em condições de estimular a criação de novas cooperativas, de vez que não dispunha de meios nem para prestar
assistência às já existentes. Foi então que o SAR se decidiu a agir diretamente.
Após um Curso de Cooperativismo para técnicos e universitários o SAR realizou outro, também em 1956, visando
a formação de líderes cooperativistas. Foi este o primeiro
treinamento especializado promovido pelo SAR e o primeiro a engajar elementos do sexo masculino.
O Setor de Cooperativismo do SAR foi criado com o objetivo de 1) treinar gerentes e administradores de cooperativas, 2) assessorar as cooperativas, 3) treinar artesãs e 4)
manter uma equipe técnica, capaz de assumir os treinamentos e o assessoramento às cooperativas que, a partir
de 1957, foram surgindo no interior.
Uma pesquisa realizada em 1958 revelou grande desemprego feminino na entresafra e “a existência de matéria prima possível de ser utilizada no artesanato e em
indústria de pequena e grande produção”11.
No ano seguinte tiveram início os treinamentos de
artesãs, surgindo, em consequência, os primeiros núcleos cooperativistas de artesanato. Estes, ligados, de
início, ao Setor de Cooperativismo, fundaram, em outubro de 1963, a Cooperativa dos Produtores Artesanais do
Litoral Agreste Ltda.
186
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Com o fim de assumir os treinamentos, prestar assessoramento à Cooperativa e organizar a comercialização
da produção, foi fundado o Setor de Artesanato, confiado
a duas educadoras da então já extinta Missão Rural do
Agreste, postas à disposição do SAR.
No discurso que levara pronto para o encerramento
do II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, 1959), mas
que de fato cedeu lugar a um improviso, o Presidente
Juscelino Kubitschek frisava a “esplêndida” colaboração de D. Eugênio Sales na “descoberta” dos vales úmidos do estado do Rio Grande do Norte12. Teria sido mais
exato, tivesse o Presidente falado em “colonização” ou
“aproveitamento” e não em “descoberta” dos vales úmidos, de vez que o debate sobre a possibilidade de utilização econômica de tais vales é mais que secular13!
A propósito, a história dos vales úmidos nos faz lembrar a lenda do urubu. Diz-se deste que, quando chove,
jura pelas barbas de seus ancestrais que, apenas pare a
chuva, construíra uma casa. Passada a chuva, porém,
voltando o sol a brilhar, exclama: Para que casa, com um
sol tão lindo?” Coisa semelhante acontece com os vales
úmidos. Em momentos de crise de alimentos — como
durante a última guerra e em anos de seca — todos se
apressam em elaborar projetos de utilização dos vales
úmidos. Passada a crise, arquivam-se os projetos: “Para
que dispender tanto dinheiro com vales tímidos, se até
nas pedras dá feijão”14? É a triste história dos 40.000
hectares de vales úmidos num Estado que tem 90,6% de
sua área incluída no Polígono das Secas.
É verdade que, desde 1938, o DNOS (Departamento
Nacional de Obras e Saneamento) vinha executando
ALCEU RAVANELLO FERRARO
187
alguns trabalhos de drenagem em alguns rios, “com
absoluto êxito técnico”, mas sem nenhum benefício
econômico”, por falta de “recuperação agrícola das terras saneadas”15.
Em 1953 o INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização) deu início, no vale do Pium, à primeira experiência de colonização de vale úmido no estado. No empreendimento, o Agrônomo Dr. Antônio Coelho Malta
contou com o apoio e colaboração de D. Eugênio.
O Jornalista João Marcílio Dias assim comenta, em
O Diário de Belo Horizonte de 13 de abril de 1960, o trabalho de ambos: “Quando o percorríamos (o Núcleo Colonial de Pium), os agricultores informaram-nos: “Devemos
isto a Dom Malta e Dom Eugênio”. Como era natural,
pensamos tratar-se de dois bispos, e fomos procurar Dom
Malta. Qual não foi nossa surpresa quando verificamos
que o “Prelado” era o técnico Antônio Coelho Malta, Supervisor do Ponto IV e do Projeto 51 do ETA”16.
D. Eugênio, em seu entusiasmo pela experiência do
INIC, não duvidou em mandar-se para o Rio com uma
mala cheia de bons melões produzidos na Colônia de
Pium, a fim de, com argumentos concretos — “D. Eugênio
primeiro fazia o homem salivar e só depois desembrulhava o melão”, comentou-nos Dr. Malta — interessar
Ministros e chefes de Repartições Federais na continuidade — o impossível acontece! — da experiência iniciada
pelo próprio Governo. Se os melões foram o argumento
mais convincente, não sabemos. O fato é que a Colonização do vale do Pium foi levada a termo.
Numa reunião preparatória do I Encontro dos Bispos
do Nordeste (Campina Grande, maio de 1956), o Governador do Estado, embora reconhecendo a importância
188
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
dos vales úmidos, pendia mais para o aproveitamento
do vale seco do Açu. Discordando do Dr. Antônio Coelho
Malta e do Dr. Hélio Mamede Galvão, dizia o Governador
ser mais fácil a vinda da energia de Paulo Afonso do que
a drenagem dos vales úmidos. Por ocasião do Encontro
de Campina Grande, D. Eugênio manifestou-se decididamente em favor do aproveitamento dos vales úmidos e
do vale seco do Açu17.
Em 1957, encaminhada a experiência de Pium, iniciaram-se estudos e tratativas para o lançamento de nova
experiência — a Colônia de Punaú — executada pela
Fundação Pio XII, integrada pelo Governo do Estado (já o
Governador Dinarte Mariz se “convertera” para os vales
úmidos), Serviço de Assistência Rural e Escola de Serviço
Social, com uma participação mais direta, portanto, do
Movimento de Natal.
Em 1959, por ocasião do II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, maio de 1959), foi apresentado o Projeto 51,
sobre “Vales Úmidos”, contribuição do Escritório Técnico
de Agricultura Brasil-Estados Unidos (ETA)18. A esta altura
o DNOS já havia iniciado a drenagem do vale do Fonseca,
instalando-se, pouco mais tarde, os primeiros colonos
em Punaú.
Enquanto redigíamos este parágrafo, os jornais de Natal anunciavam que o novo Governador do Estado acabava de nomear uma Comissão para estudar a possibilidade
de novas experiências de aproveitamento de vales úmidos19. O estado todo estava sob a ameaça de nova seca.
Resta saber se as chuvas, que, logo depois de nomeada a
Comissão, caíram em todo o estado, não farão engavetar
os novos projetos...
ALCEU RAVANELLO FERRARO
189
3. LUTA PELA MUDANÇA DE ESTRUTURAS
A luta pela mudança de estruturas desenvolveu-se em
duas frentes principais: a sindicalização rural e as campanhas de politização.
1) Em 1960, após 70 anos de liberdade constitucional
de associação20, 57 anos de facultação aos profissionais
da agricultura e indústrias rurais de se organizarem
em sindicatos21 e de várias outras Leis e Decretos assegurando e regulamentando o direito de sindicalização
rural22, existiam no Brasil apenas seis sindicatos rurais
devidamente reconhecidos (5 de trabalhadores rurais e
1 de patrões) e uns vinte e poucos com documentos no
Departamento Nacional do Trabalho, aguardando “investidura” sindical23.
De um lado, não havia ainda consciência de classe no
meio rural. De outro, pelo menos no que diz respeito ao
trabalhador rural, a liberdade de associação era tão clara
na Constituição, Leis e Decretos, quanto inexistente na
prática.
É dentro deste quadro que se situa o movimento de
sindicalização rural no estado do Rio Grande do Norte,
iniciado pelo SAR, em 1960.
Foi, sem dúvida, o sindicalismo rural que mereceu ao
SAR e a D. Eugênio elogios dos mais rasgados e as mais
graves acusações. Segundo uns, trata-se de um trabalho
pioneiro. Segundo outros, o SAR ou — como dizem —
a Igreja pensou em sindicalização rural, acossada pelas
Ligas Camponesas e pelo perigo comunista. Segundo outros, enfim, com o sindicalismo, Bispo e SAR bandearamse para o comunismo.
190
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
A nosso ver, duas razões principais explicam estas interpretações tão desencontradas: 1) a radicalização da
política brasileira e, por conseguinte, dos julgamentos,
a partir principalmente de 1962, e 2) a falta de suficiente
recuo histórico e de conhecimento do próprio Movimento de Natal por parte de pessoas que emitiram opiniões
sobre o Movimento e especialmente sobre a sindicalização rural no estado, em função mais de uma posição tomada dentro do quadro político-ideológico nacional do
momento, do que de uma observação séria e desapaixonada dos fatos.
Embora de aviso contrário no início, hoje, depois de
minuciosa pesquisa histórica, chegamos à conclusão de
que a origem do movimento de sindicalização rural no estado do Rio Grande do Norte não tem nenhuma relação
com as Ligas Camponesas de Pernambuco, nem com o
perigo comunista ou a crescente radicalização da política
brasileira nos anos de 1961 a 196424.
Ao contrário, a verdadeira origem do sindicalismo rural no estado deve ser buscada 1) dentro do próprio Movimento — na pregação, desde 1947, da reforma agrária
(25); na malograda tentativa do SAR em 1951 de fazer
aplicar a legislação trabalhista no meio rural e de promover a organização do trabalhador rural em Círculos
Operários Rurais (26); no acentuar-se, a partir de 19571958, de uma tendência reformista dentro do próprio
SAR (luta pela mudança de estruturas, principalmente
a agrária, para a qual a colonização de Punaú, então em
estudos, queria ser um exemplo) — e 2) no aparecimento
de Um líder leigo, técnico em sindicalismo, que se propôs
promover, em entrosamento com o SAR, a sindicalização
rural no estado27.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
191
O trabalho de sindicalização rural, planejado desde
fins de 1959 e iniciado em agosto de 1960 com a fundação do Setor de Sindicalismo do SAR, teve as seguintes
fases:
— julho a dezembro de 1960: motivação e primeiros
treinamentos de líderes sindicais;
— janeiro a junho de 1961: fundação de sindicatos;
— julho a dezembro de 1961: organização e planos de
ação visando cobrir todo o estado;
— janeiro a junho de 1962: trabalho pró-investidura
sindical;
— julho a dezembro de 1962: campanha de politização, levada a efeito em entrozamento com o Setor de
Politização do SAR.
De janeiro de 1963 a 31 de março de 1964 (data da Revolução) os Sindicatos Rurais, não esquecidos os aspectos
das fases anteriores, se endereçaram mais para a ação
reivindicatória e pressão no sentido de forçar mudanças
de estrutura, especialmente agrária.
O I Congresso de Trabalhadores Rurais do Rio Grande
do Norte, realizado em Natal, de 22 a 25 de abril de 1961,
com a participação de 96 líderes rurais, representantes
de 52 municípios, constituiu um momento decisivo para
a expansão da sindicalização rural no estado. No dia do
encerramento do Congresso, D. Eugênio, em sua Palestra Dominical (25-4-1961), declarava: “Entre os grandes
objetivos do conclave, destacam-se: dar uma consciência
à classe que se reúne, fazer surgir o espírito de união,
condição indispensável à defesa dos direitos entre os
mais fracos. Na legislação vigente, a fórmula reconhecida no meio operário para essa união é o sindicato”.
192
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
E perguntava: “É cristã a liberdade de morrer de fome?”
O papel da Igreja neste campo fora assim conceitualizado por D. Eugênio em sua Palestra Dominical de
7 de maio de 1960: “Realmente, não pode a Igreja resolver problemas de ordem econômica e material, pois
competem ao Governo. Mas pode fazer e faz realmente
ensinar o caminho e organizar seus filhos para que, dentro da Verdade e da Caridade, possam cumprir deveres e
fazer valer direitos. Esse o sentido do movimento associativista estimulado pelo Serviço de Assistência Rural”.
E, a 31 de dezembro de 1961 (Palestra Dominical), dizia:
“Não se esqueça (ouvinte) que esses fatos sociais que estamos presenciando são irreversíveis. Por exemplo, ninguém deterá a marcha da sindicalização rural”. E aos que
se escandalizavam com suas palavras e com o trabalho
do SAR, observava: “A sindicalização é um dos postulados da Doutrina Social da Igreja. Os documentos pontifícios são peremptórios nas afirmações de que a caridade não substitui a justiça nas relações entre patrões
e operários. Assim é um escárneo a Cristo o cristão que
combate a sindicalização bem orientada, ou oprime o
pobre” (Alocução, ?-l-1963). “Como diz o próprio nome”
— comentava D. Eugênio, referindo-se à I Convenção Nacional dos Sindicatos Rurais, realizada em Natal em 1963
— “não se trata de um conclave promovido pela Igreja,
mas pelos Sindicatos, que, por lei, no Brasil, são neutros
em matéria religiosa e deveriam ser em política. Esta cidade foi escolhida possivelmente por ter aqui começado
o movimento, hoje vitorioso, da sindicalização rural no
Brasil” (Palestra Dominical, ?-?-63).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
193
Efetivamente, em 1961, um ano após o início da sindicalização rural no Rio Grande do Norte, surgiram
movimentos semelhantes em Pernambuco, Sergipe, Rio
Grande do Sul, Piauí e Paraíba. Em fins de 1963 a sindicalização já havia atingido todos os estados da Federação, devendo-se isto, na maioria dos casos, à inspiração
da Igreja e à atuação de militantes leigos católicos.
Em 1962, com o fim de incentivar e coordenar o trabalho em todo o Nordeste, foi fundada a Coordenadoria
Nordeste de Sindicalização Rural, com sede em Natal.
Em setembro de 1961, após a inesperada renúncia do
Presidente Jânio Quadros e a tumultuada subida do líder
trabalhista João Goulart ao poder, o Partido Trabalhista
Brasileiro, que sempre controlara o Ministério do Trabalho e a maioria dos Sindicatos Urbanos, procurou assegurar-se o domínio também sobre os Sindicatos Rurais
Que iam surgindo, e cujos processos de reconhecimento
já estavam dando entrada no Ministério do Trabalho.
De setembro de 1961 (os Sindicatos Rurais reconhecidos ainda eram seis) até 31 de dezembro de 1963, o
Ministério do Trabalho reconheceu, para todo o Brasil,
256 Sindicatos e 10 Federações de Trabalhadores Rurais
e 1 Sindicato de Patrões.
Até esta mesma data encontravam-se no Ministério do
Trabalho, aguardando investidura, outros 557 Sindicatos
e 33 Federações de trabalhadores Rurais, e 34 Sindicatos e 4 Federações de Patrões. Como vemos, tratava-se de
verdadeira “fúria” sindical.
Encontrando-se diante de um fato consumado — um
movimento de sindicalização rural que não partira das
hostes do Partido Trabalhista e que “ameaçava” fugir-lhe
194
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ao controle e utilização política o então Governo envidou
todos os esforços para atrair para dentro de sua área de
influência os sindicatos rurais e assegurar-se o controle
dos órgãos sindicais de decisão, quer criando empecilhos
burocráticos e retardando assim o reconhecimento de
sindicatos em áreas refratárias à sua “influência”, quer
fundando “sindicatos-fantasmas” e instalando neles elementos de sua confiança, quer pregando uma frente
única sindical, quer mesmo tentando subornar líderes
sindicais28.
2) Se a rápida expansão do sindicalismo rural no estado
(cerca de 45.000 sindicalizados em março de 1964) provocou forte reação por parte de chefes políticos e cabos
eleitoreiros que viam ameaçados seus domínios eleitorais, e de patrões que pela primeira vez começavam a
ver-se às voltas com questões trabalhistas, a entrada em
campo, no 2º semestre de 1962, do Setor de Politização veio
jogar mais lenha na fogueira.
Pela sua curta duração (6 meses) e seu caráter intensivo, o trabalho desenvolvido teve a forma de “campanha”,
cujo objetivo era politizar” as populações rurais. Ao Setor
de Politização coube coordenar neste sentido uma mobilização geral do SAR (em sua cúpula, meios de comunicação e bases no interior), com a participação, inclusive, de
Comandos Universitários.
Programas radiofônicos, artigos em A Ordem e Vida Rural, Versos de Feira, Boletins de Politização (3, com 30.000
exemplares), Cadernos de Politização (2, com 1.000
exemplares cada), palestras na Capital e no interior,
mesas redondas, concentrações, Semana de Politização,
Curso de Politização promovido pelo MEB (deste falare-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
195
mos na II Parte), Curso sobre “Mater et Magistra”, discursos, alocuções e palestras dominicais de D. Eugênio
e, como se isto não bastasse, uma Circular dos três Bispos do estado: tudo isto constituiu verdadeiro “assalto”
organizado contra os padrões culturais que regulavam
o sistema tradicional de relações sociais no meio rural.
Quer procurando despertar uma consciência de classe,
quer suscitando aspirações de posse da terra, quer ainda,
e principalmente, estimulando e criando condições para
a organização da classe trabalhadora rural em sindicatos,
o Movimento, através de um processo educativo, visava
em primeiro lugar atingir as relações de trabalho. O mesmo se diga das relações ou fidelidades políticas (aliás, intimamente ligadas às primeiras), através do combate ao
“curral” eleitoral, ao “cabresto”, à venda do voto, e da
pregação do voto livre e consciente. O adulto analfabeto
era motivado a alfabetizar-se para progredir, para apagar
uma “mancha” no mapa do Brasil, para ler e conhecer
a legislação trabalhista e fazer valer seus direitos, para
votar...
Tudo isto foi, para muitos, um verdadeiro “deus-nosacuda”, uma “subversão da ordem estabelecida”, especialmente no que tangia aos sistemas de fidelidades
políticas e relações de trabalho.
A luta encetada pelo SAR contra a “Indústria das Secas”
por ocasião da estiagem de 1958 visou mais a eliminação
de um subproduto da estrutura político-administrativa
do que propriamente uma mudança de estruturas.
Este momento, contudo, foi decisivo na evolução do
SAR. Pela primeira vez passou este à ação direta e organizada em defesa do trabalhador rural (do trabalhador
rural flagelado, neste caso) contra um grupo de políticos
196
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
e cabos eleitorais, que, partidários do então Governo Federal, faziam do socorro aos flagelados uma “indústria”
de enriquecimento rápido. Pela primeira vez, também,
surgiu uma reação de vulto contra o Movimento, embora o escândalo nacional da “Indústria das Secas” aconselhasse aos “prejudicados” não manifestarem muito abertamente suas mágoas.
O conflito era evidente. O problema da mudança de
estruturas estava colocado. O sindicalismo rural e a campanha de politização alargaram o campo da luta e agravaram o conflito, consumando a divisão, ou melhor, a
oposição, entre o Movimento e a própria classe (não mais
um grupo) detentora do poder político e econômico.
Dentro do próprio Movimento surgiram alguns conflitos. D. Eugênio, Presidente do SAR, inspirara, aceitara
plenamente e apoiara a luta em prol da mudança de estruturas. Sempre entendera, porém, que esta luta devia
ser travada dentro da lei, por via democrática.
Por um lado, o obstinado não-cumprimento das leis
trabalhistas (salário mínimo, aviso prévio, indenização...)
e mesmo o uso da violência (ameaças aos sindicalizados
ou expulsão destes da propriedade) por parte da classe
patronal; o tradicional comprometimento de juizes, delegados de polícia, tabeliães, com a classe detentora do
poder político e econômico; a renitência do Congresso
em não aprovar a Reforma Agrária: eis os fatores principais que levaram alguns (poucos) elementos do Setor de
Sindicalismo e da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais a usar uma linguagem não muito concorde
com os cânones democráticos: “Se não vai com as boas,
vai na “marra”!
ALCEU RAVANELLO FERRARO
197
Por outro lado, a equipe coordenadora do MEB de
Natal não deixou de sofrer certa influência ideológica
de elementos (geralmente militantes ou ex-militantes
católicos, de posição mais extremada, mas não comunistas) filiados à AP (Ação Popular), ou ao “Grupão” da
JUC (Juventude Universitária Católica), ou pertencentes
à equipe Nacional do MEB.
Lembramos ainda que um ou outro elemento da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais passou a
criticar e mesmo acusar de público D. Eugênio e os Padres de se imiscuírem em assuntos da classe. Tratava-se
de reação contra uma forma de clericalismo? de um expediente para defender-se contra a pecha de “sindicato
dos padres”, que extremistas, tanto da direita como da
esquerda, lhes punham de revolta, motivada pelo fato de
a cúpula do SAR (especialmente D. Eugênio) e os vigários
do interior condicionarem a continuidade do apoio (necessário!) aos sindicatos, à renúncia, por parte de um ou
outro líder, ao uso de certa linguagem julgada destoante
das normas evangélicas?
5) A menção destes conflitos, porém, não nos deve levar a exagerar-lhes as proporções. O verdadeiro e fundamental conflito continuou sendo o que surgira entre o
Movimento (incluídos os sindicatos rurais, estimulados e
apoiados pelo SAR) e a classe “político-patronal rural”29.
Aliás, este conflito já atingira também a própria indústria
e grande comércio da capital, em cujos meios a tentativa
de dinamização dos sindicatos urbanos, partida do Setor
de Sindicalismo do SAR, suscitara sérias apreensões.
Nada de admirar, por conseguinte, que — identificando-se rapidamente com os propósitos anticomunistas e
antissubversivos da evolução de 31 de março de 1964,
198
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ou sob pretexto de servir aos ideais — a classe “políticopatronal” rural tomasse novo alento e se mobilizasse no
sentido de erradicar toda e qualquer fonte de subversão
da ordem estabelecida. Por subversão entendia-se principalmente tudo aquilo que, de alguma maneira, comprometia a sobrevivência dos sistemas tradicionais (estabelecidos de fato, nem sempre de direito) de relações
políticas, político-administrativas e, especialmente, de
trabalho, no meio rural.
O resultado foi uma total paralisação de tudo o que dizia,
mais de perto, respeito à “luta pela mudança de estruturas”: os sindicatos rurais, a conscientização, a politização.
Tanto os termos “conscientização” e “politização”, como também a “mercadoria” que levava esses rótulos,
tiveram que ser retirados da circulação.
Por sua vez, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais —
os mais visados, sem dúvida — sofreram total paralisação. Questões trabalhistas, pendentes ou surgidas a esta
altura, foram resolvidas unilateralmente. Quando, vários
meses mais tarde, a Federação pôde novamente reunir
seus líderes sindicais para balanço e para, mais que prudentemente, tentar uma lenta recuperação, suas bases
acusavam, no conjunto, um desfalque de quase metade
de seis associados, e vários sindicatos não mais podiam
constar no mapa.
O MEB continuou normalmente com o ensino radiofônico, conservando da politização e conscientização
apenas os aspectos não diretamente relacionados com a
“luta pela mudança de estruturas”, e desta, apenas saudades!
ALCEU RAVANELLO FERRARO
199
O mesmo se diga do setor de Ensino médio, da Emissora e d’A Ordem.
O próprio SAR instaurou uma política de “salvar o que
se pode”. Mesmo a preço de uma pausa na “luta pela mudança de estruturas”, Importava, antes de mais nada, assegurar a sobrevivência do conjunto e de cada uma de suas
partes (Setores).
As maiores preocupações voltaram-se para os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, reputados por D. Eugênio
como uma das principais realizações do Movimento e a
de maior repercussão no futuro30, e cuja sobrevivência
de fato dependia, mais do que nunca, não só do apoio do
SAR, mas de uma cobertura oficial da Igreja. Quer pessoalmente, quer através das gostosas risadas do Vigário
Geral da Arquidiocese, Mons. Alair Vilar, D. Eugênio envidou todos os esforços para conseguir a restituição da
liberdade a vários líderes sindicais (ao Presidente da Federação, inclusive), evitar novas prisões, impedir a todo
custo uma intervenção da Revolução na Federação e obter novamente para os sindicatos a liberdade de reunião,
primeiro passo para a recuperação dos mesmos.
Voltaremos ainda a este assunto para um estudo mais
aprofundado sobre o conteúdo ideológico, os meios empregados e o impacto produzido a) pela “luta pela mudança de estruturas” e b) pela contraluta, antes e após 31
de março.
200
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
4. SÍNTESE
Como na I, assim também na II FASE RURAL do Movimento nos deparamos com uma proliferação de iniciativas e atividades em campos os mais diversos. Sem repetir todos os aspectos do trabalho desenvolvido pelo SAR,
e descrito neste capítulo, procuraremos salientar, aqui,
apenas aqueles que são mais predominantes e característicos desta fase.
Enquanto os “movimentos de massa” (não-organizada ou
só ocasionalmente organizada), ou foram suspensos (Missão Rural Ambulante), ou evoluíram para “movimentos
de líderes” (Semanas Rurais — cfr. Capítulo III. 3), a linha
de ação mais característica da I FASE RURAL — a organização e ação comunitária — não só teve continuidade na
II FASE, como também lhe serviu de suporte.
Sem obliterar, nem menosprezar a ênfase dada a
outros Setores, não resta dúvida que a II FASE RURAL é
fortemente marcada, caracterizada e contradistinta da
1a, pela preponderância do que chamamos de “luta pela
mudança de estruturas”.
Quanto a este aspecto, temos duas considerações a fazer.
Em primeiro lugar, observe-se que o Movimento praticamente circunscreveu o conceito de “mudança de estruturas” à transformação dos sistemas tradicionais que,
de direito ou de fato, regulavam as relações políticas,
político-administrativas e de trabalho (inclusive a relação “homem-terra”). Trata-se, por conseguinte, de vir
conceito de estrutura social, circunscrito a determinados
setores desta. Acontece, porém, que o SAR, quando, na
I FASE RURAL, se propunha criar um novo tipo de líder
ALCEU RAVANELLO FERRARO
201
(democrático), suscitar novas formas associativas (grupos
voluntários) e cooperativas (ação comunitária), ou, para
usar a própria terminologia do SAR, quando este pretendia “transformar aglomerados humanos em verdadeiras
comunidades”31, de fato visava suscitar, dentro do âmbito
de uma vizinhança, de um aglomerado (a fazenda, o sítio, o povoado, a sede municipal), novo sistema de relações sociais, isto é, relações comunitárias.
Em segundo lugar, em sua “luta pela mudança de estruturas” o SAR não só visava a transformação efetiva
de estruturas ou sistemas de relações sociais (preferimos
falar em relações sociais), como também — através da
ação educativa, especialmente da politização e conscientização — intencionava transformar as próprias concepções a respeito destas mesmas relações. Neste sentido
— uns, visando mais diretamente as relações, e outros,
as concepções — praticamente todos os setores do SAR,
inclusive a Emissora e A Ordem, estiveram mais ou menos
intensamente engajadas nesta “luta”.
3) A ampliação de objetivos da 1a para a II FASE RURAL
teve uma série de implicações.
O próprio objetivo característico da I FASE — o desenvolvimento (“soerguimento”) das comunidades rurais
— está a indicar que se tratava de promover a união e
cooperação entre os comunitários ou moradores de uma
mesma localidade. Já os objetivos típicos da II FASE - pelas
próprias distinções e contraposições e fazem entre trabalhador e patrão, eleitor e político, eleitor e cabo eleitoral, povo e “autoridades” locais (juiz, delegado de polícia,
tabelião prefeito patrão)... – aparecem como mais propensos a criar divisões e a suscitar conflitos.
202
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Por outro lado, o raio de ação definido pelo “binômio
escola-paróquia” (de fato, “binômio escola-comunidade”,
entendida esta como a fazenda, o sítio, o povoado, a sede
municipal uma vizinhança, enfim) já não comportava
uma ação que visasse atingir os objetivos da II FASE. Daí
um alargamento do raio de ação para o âmbito de classes
sociais, para o plano municipal, intermunicipal, estadual
e mesmo regional e nacional.
A própria estratégia do SAR foi redefinida em função
dos novos objetivos. Embora o trabalho típico da 1a FASE
tenha tido continuidade na 2a, no que esta apresenta
de mais característico – a “luta pela mudança de estruturas” – já não encontramos o simples tripé: líder (de
comunidade)-grupo (associação voluntária do pequeno
porte) – comunidade (vizinhança, localidade). Temos um
novo tripé, semelhante, sim, ao da 1a FASE, mas montado sobre bases mais amplas: líder “especializado” (cooperativista, sindical...) – grupo tipicamente secundário
(associação voluntárias de grande porto, que extrapolam
os limites da simples vizinhança: cooperativas e sindicatos) – classes social (trabalhador rural, pequeno proprietário) ou categorias sócias (agricultor, eleitor, etc.).
4) Deixando para a II Parte uma avaliação do volume
de treinamentos realizados e de pessoal treinado, destacamos aqui apenas alguns aspectos conexos com a caracterização das duas FASES RURAIS.
Os treinamentos característicos da I FASE RURAL a)
tiveram geralmente, longa duração (1 ou mais meses), b)
visaram formar líderes de comunidade, c) atingiram quase
que exclusivamente elementos do sexo feminino, d) na
maioria, jovens. Estes treinamentos foram promovidos
ALCEU RAVANELLO FERRARO
203
pelo C.T.L. (Centro de Treinamento de Líderes) um dos
setores do SAR. Tiveram início em 1952 e perduraram
até 1964, reaparecendo em 1966 (julho), mas já com características um tanto diversas: trata-se de um treinamento que acaba de ser realizado em Pium, com o objetivo de transformar líderes de núcleos artesanais em
líderes de comunidade. Mais uma prova de que a 2a FASE
RURAL se caracteriza por uma ampliação e não por uma
substituição de objetivos.
Os treinamentos característicos da 2a FASE RURAL a)
tiveram geralmente curta duração (menos de 15 dias),
b) visaram formar líderes “especializados” (monitores de
escolas radiofônicas monitores de saúde, artesães, e —
os mais característicos desta FASE – elementos do sexo
masculinos, líderes cooperativistas e sindicais), c) atingiram elevado número de elementos do sexo masculino,
d) sendo significativa a participação de adultos. Iniciados
em 1956, os primeiros — ainda raros — treinamentos especializados foram coordenados pelo C.T.L. Aos poucos,
porém cada setor do SAR passou a assumir seus próprios
treinamentos o que se explica tanto pelo caráter especializado, quanto pelo elevado número destes. Basta lembrar que, entre 1960 e 1964, o número de participantes
em treinamentos se elevou a mais de 3 mil.
5) A esta altura poderíamos perguntar-nos: O que foi
que tornou possível esta expansão do Movimento, da 1a
para a 2a FASE RURAL? Sem dúvida alguma, um melhor
conhecimento dos problemas do meio rural, notadamente de suas causas, e a tão simples, quanto dinâmica
“filosofia da bicicleta”, segundo a qual só se mantém o
equilíbrio, andando (32)... Mas não só isto!
204
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Já dissemos e voltamos a insistir neste particular: a
II FASE RURAL foi montada, em grande parte, sobre as
bases lançadas no interior durante a I FASE. Estas bases,
mantidas e reforçadas durante a II FASE, foram mobilizadas no sentido dos objetivos desta servindo-lhe de suporte.
Além disto, novos suportes somaram-se aos da I FASE.
Mencionemos os principais:
— a Emissora de Educação Rural (o mais decisivo, certamente, da 2a FASE), inaugurada no momento preciso
(agosto de 1958) em que, após o embate do SAR contra os
“industriais da seca”, tomava vulto a “luta pela mudança
de estruturas”;
— A Ordem, que recomeçou a circular, como semanário, a partir de outubro de 1960;
— a CNEG (Campanha Nacional de Educandários Gratuitos), cuja Secção Estadual, de fato integrada no SAR,
possibilitou a expansão do ensino médio;
— novos recursos financeiros propiciados pelos Poderes Públicos, notadamente através do Convênio entre
a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a
Presidência da República, o qual — celebrado em 1961
e renovado nos anos seguintes (com relutância e cortes, após 31 de março de 1964) — possibilitou não só a
difusão do ensino radiofônico (da educação de base) em
outros estados da União, como também sua expansão a
outras áreas da Arquidiocese de Natal;
— a significativa ajuda exterior, financeira e técnica.
Este último aspecto merece alguns esclarecimentos.
Nos anos 60 — especialmente a partir de 1962, quando
foi criado o Secretariado Nordeste da Conferência Nacio-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
205
nal dos Bispos do Brasil — Natal, sede do Secretariado
Regional, transformou-se numa espécie de Meca.
Entre 1962 e 1964, só os treinamentos, encontros e
estágios, realizados com vistas à renovação pastoral na
Região, carrearam para Natal aproximadamente mil
pessoas, talvez mais. Este fato, mais a própria expansão
das atividades temporais no meio rural da Arquidiocese e, inclusive, a projeção internacional do Nordeste
como “grande Região subdesenvolvida e explosiva”, contribuíram para que o Movimento de Natal se tornasse
conhecido no exterior. Desta projeção resultou uma tríplice presença estrangeira no Movimento:
a) a vinda de numerosos observadores e estudiosos,
interessados em conhecer (novas) experiências de ação
pastoral e temporal;
b) a presença atuante de vários técnicos estrangeiros,
na maioria provenientes dos Estados Unidos e do Canadá, devendo-se, porém, salientar a grande contribuição dada, especialmente na reestruturação do SAR,
pelo técnico do Governo Holandês, o sociólogo Henk van
Roosmâlen, que, sob o nome mais familiar de “Eurico”,
esteve por mais de dois anos à disposição do Movimento;
c) a significativa ajuda financeira, vinda principalmente de duas organizações católicas alemãs (da “ADVENIAT”, para o setor religioso, e da “MISEREOR”, para o
setor temporal), como também, embora em menor proporção, de outros países, como a Bélgica, a Holanda, os
Estados Unidos...
A ajuda financeira exterior, exatamente por propiciar novos recursos ao Movimento, permitiu-lhe também
determinar com maior autonomia sua própria linha de
ação.
206
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Estas ajudas financeiras destinaram-se à contratação
de novos funcionários para o SAR, à realização de cursos,
à manutenção e, em alguns casos, à aquisição de transportes, ao equipamento da emissora e à construção de
um prédio para treinamentos (Prédio III, em Ponta Negra). Isto, porém, não nos deve fazer esquecer que todo o
trabalho desenvolvido no interior estribou-se na participação voluntária de líderes, grupos e, de modo geral, das
comunidades interessadas.
6) Referindo-nos à I FASE RURAL, dizíamos, na conclusão do Capítulo anterior, que o SAR visou promover,
através da educação de base, o desenvolvimento das comunidades rurais.
Da mesma forma os objetivos da II FASE - lembramos
particularmente o cooperativismo, a colonização de Punaú e o sindicalismo rural — estiveram longe de se circunscrever a educação. Contudo mesmo nestes casos, o
meio empregado continuou sendo fundamentalmente o
mesmo: a educação de base. Esta, porém, não deve ser
entendida como simples processo de transmissão de padrões mentais e de comportamento consagrados pela
cultura local; na mente dos líderes do Movimento o processo educativo consistia na criação de novos padrões mentais
ou concepções (conscientização e politização) e de novos padrões de comportamento.
Poderíamos dizer que a educação foi encarada como
primeiro objetivo e como meio para atingir ulteriores
objetivos. Teríamos, assim três etapas lógicas, não necessariamente cronológicas, cada uma servindo de meio
para a seguinte:
— a EDUCAÇÃO, compreendendo a mudança de concepções e de comportamento;
ALCEU RAVANELLO FERRARO
207
— a ORGANIZAÇÃO dos interessados (diversas formas
associativas e cooperativas), servindo de suporte para a
ação e para a própria educação;
— a AÇÃO grupal, comunitária, de classe...
Quanto mais se distancia da EDUCAÇÃO, por um lado
e, por outro, quanto mais se aproxima da AÇÃO sobre o
sistema de relações político-econômicas — o campo mais
propício ao surgimento de conflitos — tanto menos direta
se torna a presença do SAR. Assim, por exemplo este educou para o sindicalismo, criou condições para a organização da classe trabalhadora rural, treinou pessoal, mas os
sindicatos rurais são autônomos com relação ao movimento. Os próprios treinamentos e o assessoramento aos
sindicatos rurais estão, a partir de novembro de 1964, a
cargo da FUP (Fundação da Universidade Popular), que é
constituída por representantes do SAR da Escola de Serviço Social e das Federações de Sindicatos rurais e urbanos.
Esta nossa conclusão parece coincidir com as já citadas
palavras de D. Eugênio (cfr. § 3, neste Capítulo), segundo
as quais, não compete à Igreja resolver problemas de ordem econômica, cabendo-lhe, porém o direito de “ensinar
o caminho e organizar seus filhos”, para que o possam fazer.
5. ESTRUTURA DO MOVIMENTO
O Movimento de Natal é um misto de “movimento social” e de “movimento religioso”. Tomado nesta dupla
dimensão, só impropriamente se poderia falar em estrutura do Movimento. Este não é uma organização, embora
208
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tenha inspirado e compreenda organizações em ambos
os campos — temporal e religioso — de ação da Igreja.
O Secretariado Arquidiocesano de Pastoral é o órgão
de planejamento e coordenação da Pastoral de Conjunto
na Arquidiocese. Deste, na medida em que tiver relação
com o presente estudo, falaremos na III Parte.
Inicialmente o SAAS (Secretariado Arquidiocesano de
Ação Social) era o órgão de cúpula para tudo o que dizia
respeito à ação temporal, tendo-se, porém, praticamente
limitado à Capital, em sua atuação. Após a criação do
SAR, continuou, em princípio, o SAAS como órgão de
cúpula, agindo diretamente na capital e, através do SAR,
no meio rural. De fato, talvez por se tratar mais de obras
sociais, só muito precariamente agiu o SAAS como órgão
coordenador das atividades na capital, e, quanto ao meio
rural, nunca interferiu — nem tinha condições para isto
(33) — nas atividades do SAR. Este nunca esteve subordinado a aquele. Na realidade, de seu bureau, instalado no
SAR, D. Eugênio, com sua equipe de leigos, coordenava
diretamente as atividades na Capital e no interior.
Em 1966 foi criado novo órgão especializado para a
capital. Temos, assim, para o meio rural, o SAR (Serviço
de Ação Rural (34), como se pretende denominá-lo hoje)
e, para a Capital, o SAUR (Serviço de Ação Urbana). Representantes de ambos integram o SAAS. Na prática, funcionam o SAR e o SAUR. No organograma, figura também
o SAAS.
No que concerne ao SAR, havia, até 1963, tantas coordenadorias quantos Setores, todas elas subordinadas a
uma coordenadoria central. Em 1964, continuando cada
um com sua coordenadoria específica, os Setores foram
assim agrupados:
ALCEU RAVANELLO FERRARO
209
SETORES DE CONSCIENTIZAÇÃO E EDUCAÇÃO
— Escolas Radiofônicas (MEB)
— Migração
— Centros Sociais (incluídos os Clubes)
— Treinamento de Líderes
— Ensino Médio
SETORES DE AÇÃO IMEDIATA
— Cooperativismo
— Sindicalismo Rural
— Colonização
— Artesanato
— Saúde
Esta reestruturação parece não ter mudado muito as
coisas. Os Centros Sociais e Clubes protestaram, dizendo
visarem também a ação. Por outro lado, os treinamentos
continuaram a cargo de cada Setor. Assim os Setores de
Ação Imediata, como os de Sindicalismo Rural, Cooperativismo e Artesanato, fazem também conscientização
e educação. O setor de Saúde, se se pensa nas maternidades, cabe no segundo grupo; ao contrário, se se pensa
no treinamento e ação dos monitores de saúde, deveria
figurar no primeiro grupo. Enfim, todos os Setores, mesmo os assim chamados “de Ação Imediata”, se ocupam
também da conscientização e educação; apenas, não se
limitam a isto.
Esta imprecisão e flexibilidade entendem-se pelo seguinte: trata-se de um Movimento, mais do que de uma
organização. À medida que vão surgindo novos tipos de
atividades, são colocados novos bureaux, novas cadei-
210
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ras..., e os novos Setores estão encaixados no SAR. Onde
e como, fica para ser resolvido nas horas vagas... Assim,
onde se enquadrará a nova experiência de Coordenação
de Base, recentemente iniciada em alguns municípios?
Não é coordenação central, nem se circunscreve a nenhum dos dois grupos de Setores, de vez que os abrange
todos.
6. PERSPECTIVAS ATUAIS
O ano de 1964 constituiu um momento crítico para o
Movimento.
Por um lado, o impacto da Revolução sobre o que denominamos “luta pela mudança de estruturas” levantou
sérias interrogações quanto ao futuro ou pelo menos
quanto à futura orientação do movimento.
Por outro lado, não faltou quem (geralmente pessoas
alheias ao Movimento) entrevisse na transferência de D.
Eugênio para a Bahia “o começo do fim” do Movimento.
Na opinião destes o Movimento era o próprio D. Eugênio.
Embora admitamos tratar-se de ótima ocasião para
averiguar até que ponto se identificavam o Movimento
e seu principal líder, parece-nos prematura uma tal previsão, especialmente se se tem em conta que o SAR, após
a fase crítica de 1964, viu abrirem-se novas perspectivas
para seu trabalho no meio rural.
Assim, em 1965, em consequência de um Convênio
com o Ministério da Educação e Cultura e a Secretaria
de Estado da Educação e Cultura, o SAR instalou o SERTE
ALCEU RAVANELLO FERRARO
211
(Setor de Rádio-TV Educação), cujo objetivo principal é
oferecer a adolescentes e adultos a oportunidade de fazer
ou concluir, pelo rádio, o curso ginasial. As aulas são gravadas em Natal e transmitidas pelas Emissoras de Educação Rural de Natal e de Mossoró, aguardando-se que, em
fins de 1966, o sejam também pela Emissora de Caicó.
No Rio Grande do Norte, o SERTE funciona dentro do
sistema de recepção organizada (grupos), embora conte
também com certo número de alunos isolados.
Um Convênio recentemente firmado entre o INDA
(Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário) e o SAR
prevê a participação deste em programas de treinamento de líderes rurais de todo o estado, visando capacitá-los
a participar ativamente nos projetos do INDA de desenvolvimento agrário no Rio Grande do Norte.
Há também perspectivas de vir a ser firmado com o
MEC (Ministério da Educação e Cultura) um Convênio,
pelo qual o SAR, através de treinamentos adequados,
capacitaria as professoras do meio rural a assumirem a
liderança do “movimento social” nas respectivas comunidades.
O mais importante de todos e o mais arrojado (para
vários bilhões de cruzeiros) é, sem dúvida, o Projeto recentemente encaminhado à MISEREOR. Para a montagem do Projeto, SAR e SAUR contaram com o assessoramento de dois técnicos do CERIS (Centro de Estatística
Religiosa e Investigações Sociais), incumbidos, para isto,
pela própria MISEREOR. Foram três semanas de intenso
trabalho. A presença atuante dos dois técnicos, um economista e um sociólogo, que “ameaçavam” bilhões, constituiu ótima motivação para uma revisão de objetivos e
212
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
métodos. Pelo que pudemos observar, este trabalho de
revisão e planejamento, independentemente da (provável) a provação do Projeto por parte da MISEREOR, já deu
alguns frutos.
A Arquidiocese promoveu imediatamente um levantamento de todo o seu patrimônio, com o intuito de uma
melhor utilização econômica do mesmo.
No que diz respeito ao SAR, o Projeto prevê grande impulso ao cooperativismo, especialmente ao de produção,
que é quase desconhecido no Nordeste. Com este ‘objetivo o SAR acaba de instalar uma Cooperativa Central.
Se for aprovado o Projeto no que concerne ao cooperativismo (este absorverá mais de metade do financiamento previsto para o Projeto global), teremos provavelmente uma III FASE RURAL, marcadamente econômica.
Mas ninguém se iluda: se o cooperativismo de crédito e
produção atingir o trabalhador rural, estará novamente
aberta a “luta pela mudança de estruturas”. O patrão,
que retira do Banco empréstimos a juros de 8% ao ano e
financia o trabalhador a juros de 4-6 e mesmo 8% ao mês,
estará ameaçado numa de suas principais e mais seguras
fontes de renda. O mesmo se diga do cooperativismo de
produção: o patrão, habituado à diferença entre o preço
de compra (na folha, não raro) e de venda do produto de
seu trabalhador, ver-se-á cerceado noutra fonte segura de
renda.
Outro aspecto interessante foi a preocupação dos dois
técnicos acima mencionados: “Não estaríamos nós preparando — perguntaram-nos — e não viria a aprovação
do Projeto dar o golpe de misericórdia no “espírito” do
Movimento”?
ALCEU RAVANELLO FERRARO
213
De fato, é palpável o processo de burocratização por
que está passando o Movimento, especialmente o SAR.
Por um lado, uma maior racionalização do trabalho seria mais condizente com o processo de desenvolvimento.
Por outro, surge a pergunta: a perda de sua motivação
específica — preponderantemente não-econômica ou
pelo menos não imediatamente econômica — não poderia marcar o início de uma estagnação do Movimento?
É difícil prever agora as consequências de uma provável
aprovação do Projeto-MISEREOR. Os técnicos quereriam
maior racionalização no trabalho, conservando o Movimento o seu “espírito” O Movimento, por sua vez, também tem consciência do problema. E o pesquisador está
curioso para ver o que acontecerá com uma provável injeção de bilhões num Movimento que optou pelos “meios pobres” e que sempre lutou com serias dificuldades
financeiras, iniciando atividades HOJE, na esperança de
AMANHÃ aparecerem os meios!
CONCLUINDO esta visão histórica, não podemos deixar de lembrar experiências e atividades hoje de âmbito
nacional, mas que tiveram início na Arquidiocese de Natal e devem sua origem ao Movimento Assim, de Natal
irradiaram-se para o país todo as Escolas Radiofônicas os
Sindicatos Rurais, a Campanha da Fraternidade, os Planos de Pastoral de Conjunto, e na experiência-piloto do
Secretariado dos Bispos do Nordeste inspirou-se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para a formação
de idênticos Secretariados Regionais no resto do país.
214
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
NOTAS AO CAPÍTULO IV
1. Cfr. D. Eugênio Sales, Educação de base (Trabalho apresentação do I Encontro de Emissoras Católicas, Rio de Janeiro, 25 a 29 de setembro de 1959)
e a alucução no ato da inauguração da Emissora, no dia 10 de agosto de 1958
(Documentação de D. Eugênio).
2. Nesta mesma viagem D. Eugênio teve oportunidade de observar a) a cotonicultura e algarobicultura no peru (Departamento de Pirura), b) a experiência
de organização de comunidade em Porto Rico e c) o trabalho desenvolvido
nos Estados Unidos pela American Catholic rural Life, Além disso, participou, em
Porto Rico, do congresso Internacional de Serviço Social e presidiu no Panamá,
a 5a Mesa de trabalho do seminário Inter-Americano de desenvolvimento e
Crédito Rural (cfr., na documentação de D. Eugênio, o relatório de viagem
apresentando ao ETA).
3. Decretos nº. 50.370, de 21-03-1961, e nº 52.267, de 17-07-1963. O MEB é órgão
da CNBB e não do governo, este apenas assegura ao movimento de Educação
de base recursos financeiros. As dioceses interessadas colocam á disposição
suas Emissoras, e o MEB se responsabiliza pelo treinamento e mobilização de
monitores voluntários no interior.
4. Entende-se por conscientização processo pelo qual indivíduos ou grupos
são levados a tomar ou tomam consciência de seus problemas, necessidade,
direitos e obrigações, e se gera nos mesmos uma insatisfação pelas condições
de vida presentes e uma atitude favorável à mudanças no que concerne a estas
mesmas condições. Este processo pode englobar, de si, todos os aspectos da
vida de uma pessoa, grupo ou comunidade. Já o termo politização tem geralmente um sentido mais restrito abrangendo apenas o aspecto político da conscientização. Não raro, porém, emprega-se o termo politização no mesmo sentido amplo de conscientização. Trata-se, em ambos os casos, de neologismos.
5. Veja, por exemplo, a cartilha do MEB de Natal – Educar para construir,
gráfica do SAR, Natal, 1964, 68 p. por medidas de prudência, esta cartilha não
foi distribuída. Pouco antes da Revolução havia sido apreendida no Rio uma
cartilha do MEB nacional, que tivera e aprovação da comissão Episcopal que
representavam a CNBB junto ao MEB. Quando não diretamente envolvidos em
IPM´s (Inqueritos Policiais-Militares), autor e seguidores do método de alfabetização “ Paulo Freire” (Inclusive elementos da equipe nacional, e de equipes
do MEB em vários Estados) eram tidos entre os da “ linha dura” do novo governo, como suspeitos de subversão.
6. SAR, revisão de 1962 e planejamento de 1963, gráfica do SAR, 1963, p. 7. Na
II Parte deste trabalho teremos ocasião de avaliar o impacto produzido pela
companhia (curso) de politização realizada pelo MEB em 1962.
7. “Pau-de-arara” designa o sistema, até pouco tempo generalizador, de transporte de migrantes nordestinos que demandavam o sul ou Centro-Oeste:
indivíduos ou famílias inteiras viajando agarrados, como araras, encima de
caminhões de carga. Na maioria dos casos o migrante geralmente flagelado,
não podia pagar o transporte. Alguns fazendeiros interessados em mão de
obra barata, como era nordestina, passaram a pagar o motorista pelo novo
braço para a fazenda. Como o sistema desse “bons” resultados para ambos –
motorista e fazendeiros- desenvolveu-se uma verdadeira exploração comercial
da migração. Sem mencionar as péssimas condições de viagem, o migrante
tornava-se praticamente um escravo, sem nunca saber quando integraria o
ALCEU RAVANELLO FERRARO
215
preço de seu resgate. Este fenômeno, graças, em grande parte, à publicidade
dada pela imprensa, tornou-se um escândalo nacional. “pau-de-arara”, designa
também o próprio migrante que se serve deste sistema de transporte.
8. “carta pastoral dos bispos do Rio Grande do Norte sobre o problema Rural”,
A Ordem, 02-06-1951.
9. Municípios de São Paulo do Potengi, Nova Cruz, Santa Cruz, São Tomé (todos na Arquidiocese de Natal, e trabalhos pelo SAR) e Currais Novos (na Diocese de Caicó).
10. A ANCAR colaborou em muitos treinamentos do SAR e, por outro lado,
serve-se, ainda hoje, dos centros deste para seus próprios treinamentos e encontros. O planejamento anual de cada órgão passou a ser feito com conhecimento do programa do outro. A ANCAR reconhece ter encontrado nas comunidades trabalhadas pelo SAR um campo mais propicio para o seu trabalho:
nos centros sociais, grupos e líderes rurais e nos vigários encontrou suportes
institucionais e colaboradores para o desenvolvimento de seus programas,
cooperação, por sua vez, nas atividades promovidas por estes. Em algumas
comunidades a comunidades a cooperação entre SAR e ANCAR foi tão estreita,
que não é possível distinguir o que se deve a aquele e o que a esta.
11. Relatório do setor de artesanato, 1964 (Arquivos do SAR-coordenação).
12. Veja a integra do discurso do presidente Juscelino Kubitschek no II encontro dos bispos do Nordeste (Natal, 24 a 26 de maio de 1959), serviço de documentação da presidência da república, p. 9-16.
13. O Dr. Eloy de Souza foi, sem dúvida, um dos que mais se tem batido pelo
aproveitamento agrícola dos vales úmidos. (Veja, por exemplo, os seguintes
artigos da série “ pela vida do Nordeste”, publicados em O Diário de Natal:
TV – “localização dos retirantes” (22-4-1932), VIII – “Devemos Colonizar os
Vales” (11-5-1932), IX — “Saneamento dos vales” 14-5-1932) e XI — Profilaxia
Necessária” (22-5-1932). Neste último artigo o autor comenta: “A COLONIZAÇÃO dos vales úmidos, objeto de cogitação minha desde 1906, como já tive
oportunidade de demonstrar, e defendida em artigos publicados n’A Tarde
em fins do ano passado, me foi sugerida um tanto pela observação do fato
econômico e também pela leitura dos relatórios de vários Presidentes que
administraram a Província em épocas calamitosas”. Em 1933, embora velho
defensor dos vales úmidos, o Dr. Eloy de Souza, deportado de seu Estado, em
entrevista concedida no Recife insurgiu-se contra a “Lei do Cerco do Gado”,
de autoria do seu próprio deportador, o Interventor Federal Bertino Dutra:
“O Interventor — diz o entrevistado — entendera que não estaria à altura de
sua missão se não fizesse sentir também sua autoridade sobre os quadrúpedes.
Dai a “Lei do Cêrco do Gado... Para mostrar a infantilidade do comandante
Bertino Dutra basta dizer que ele pensou resolver com um simples traço de
sua pena ditatorial uma questão secular, cuja história pregressa passo a resumir. Há precisamente cem anos, em 1833, o presidente da província Basílio
Quaresma Torreão fazia votar uma lei proibindo a criação de gados soltos em
áreas delimitadas dos municípios litorâneos. A desobediência passiva revogoua; e dela já ninguém se recordava mais quando em 1894 reapareceu um projeto apresentado ao Congresso do Estado... Transcorridos trinta e cinco anos
o Presidente Lamartine obteve da Assembleia uma lei dividindo o Estado em
zonas distintas de criação e lavoura mais ou menos obedecendo aos limites
da Lei Quaresma Torreão e do Projeto precitado. Foi mais uma tentativa frus-
216
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
trada; e de sua inexequibilidade o primeiro a se convencer foi o Presidente que
a pleiteou, resolvendo não regulamentá-la para tranquilidade das populações
sobressaltadas...” Não passados três anos, veio, em 1933, a “Lei do Cerco do
Gado”, contra a qual se insurgiu o Dr. Eloi de Souza, invocando os argumentos seguintes: o prazo de apenas sessenta dias para cercar todo gado grosso e
miúdo no estado, a escassez de arame, o gravamento do imposto sobre o arame farpado, a tributação sobre os animais de serviço nas fazendas, a época de
seca, os litígios possessórios que decorreriam da aplicação da Lei, as limitadas
áreas agricultáveis no Estado, a falta de água para o gado em muitas pequenas
fazendas de criação... (Cfr. A Província, Recife 19-5-1933). Não cabe aqui discutir
a conveniência do cerco do gado em todo o Estado, nem a exequibilidade da
última Lei dentro do prazo previsto pela mesma (sessenta dias!). Lembre-se,
contudo, que ainda hoje, mesmo em extensas áreas agricultáveis, cria-se solto
o gado e cerca-se a lavoura, o que não deixa de gravar pesadamente a agricultura norte-rio-grandense. E toda esta luta mais que secular no plano legislativo
pelo cerco do gado — e é isto o que mais nos interessa aqui — visava de modo
especial (a Lei Quaresma Torreão visava exclusivamente) criar condições para
o aproveitamento agrícola dos valos úmidos no litoral norte-rio-grandense.
Evidentemente a voracidade dos quadrupedes soltos estavam longe de ser a
única responsável pelo não aproveitamento agrícola de tais vales. Outras medidas se faziam necessárias, entre as quais a eliminação do impaludismo e
outras de que falamos a seguir.
14. Vejamos alguns exemplos mais recentes. Em abril de 1942 a seca e a fome
imperava no sertão. Imediatamente o DONOD (departamento Nacional de
Obras e saneamento) encaminhou ao ministério de viação e obras públicas
um projeto de saneamento dos vales úmidos, com o fim de “atenuar as consequencias das secas”, e o engenheiro Hildebrando de Góis salientava ser tal
obra de saneamento “velha aspiração dos nordestinos” (A Ordem, 7-4-1942).
No ano seguinte o Brasil entrava em guerra. A “Batalha de Produção” provocou uma “reunião de estudo dos Vales úmidos do Nordeste”, realizada em
Natal, de 6 a 9 de abril de 1943 (A Ordem 6-4-1943), passadas a seca e a guerra,
arquivaram-se os projetos... para serem novamente desarquivados em 1951,
ante a perspectiva de nova seca. Assim A ORDEM de 2 de março de 1951, sob o
título: “problemas dos vales úmidos – cresce a importância ante a perspectivas
da seca – fonte de abastecimento”, comentava telegrama do então governador
do Estado ao DNOS, convidando aquele órgão para uma discussão conjunta
dos problemas do saneamento dos vales úmidos (A Ordem, 2-3-1951).
15. “Não adiantaria intervir grandes capitais na recuperação de um vale – comenta o agrônomo Roberto Bezerra Freire – para depois entrega-lo ao abandono. É indispensável que haja, em seguir, o aproveitamento agrícola das terras
conquistadas as águas e a conservação contínua dos rios e canais”. O citado
agrônomo sugere ainda a desapropriação dos vales inaproveitados, o saneamento por parte do DNOS, o loteamento e a localização de colonos (Cfr. “Na
ordem do dia os vales úmidos”, A Ordem, 13-3-1951).
16. O Diário, Belo Horizonte, 13-4-1960.
17. “Antes do advento do INIC, teve o Dr. Coelho Malta notícia de uma bomba
de sucção, que fora julgada imprestável em Alagoas. Adquiriu-a por seis mil
cruzeiros e reformou-a. comentou o fato com D. Eugênio, que imediatamente
procurou ajudá-lo. Foram então iniciados os trabalhos em vales secos. Hoje,
ALCEU RAVANELLO FERRARO
217
terras outrora entregues ao maior abandono, estão ultrapassando todas previsões de produção” (Cfr. “Ação do Clero na Recuperação do Nordeste” o diário
de Belo Horizonte, 13-4-1960). No Encontro dos Bispos do Nordeste em Campina Grande (maio de 1956), depois de bater-se pelo aproveitamento dos vales
úmidos, D. Eugenio acrescentava: “No vale do Açu, temos doze mil hectares
de aluvião com água e cinco metros de profundidade. Fosse essa terra irrigada
com motobombas e, chovendo ou não no estado, o Rio Grande do Norte teria
sempre feijão, arroz, milho e outros cereais durante o ano inteiro. Até então
não podíamos pensar nisso senão como um sonho. Agora, porém, temos fundadas esperanças que deste encontro resultarão muitos e bons frutos para o
Nordeste”. (O Globo, Rio, 25-05-1956). Como, porém, os vales secos irrigáveis através de
motobombas, estão fora da Diocese de Natal, D. Eugênio preocupou-se mais
com os vales úmidos, Aliás, os vales secos encontraram na pessoa do então
Bispo de Mossoró, D. Eliseu Mendes, um devotado apóstolo.
18. Vales úmidos – Projeto 51 do II Encontro dos Bispos do Nordeste – trabalho
de operação do ETA, Ministério da Agricultura e governo do Estado, trata-se
de um projeto de saneamento e colonização do vale Fonseca, ou, maisprecisamente, da fazenda Punaú.
19. A Ordem, 4-6-1966.
20. Veja o art. 7, § 3, da primeira constituição republicana, de 24 de fevereiro
de 1891.
21. Veja decreto no. 979, de6-1-1903.
22. Em 1960, quando teve início a sindicalização rural no estado do Rio Grande
do Norte, havia para cada sindicato rural reconhecido. (6, ao todo no país) dois
Decreto, Decretos leis ou portarias (12 ao todo) dispondo sobre a matéria! São
os seguintes: 1) Decreto n°. 979, de 0-1-1903; 2) Decreto n°. 1.637, de 5-1-1907;
3) Decreto n°. 6.532, de 20-6-1907 ; 4) Decretonº 19.770, de 19-3-1931; 5) Decreto n°. 23.611, de 20-12-1933; 6) decreto nº 24.694, de 12-7-1934; 7) decreto
nº 7.038, de 10-11-1944; 8) Portaria nº. 14 (Ministério do trabalho), de 19-31945; 9) Portaria nº 126, de 28-6-1958; 10) Decreto lei nº 7.449, de 9-4-1945; 11)
Decreto-lei nº 8.127, de 24-10-1945 12) Decreto nº 19.882, de 24-10-1945. Seria
longo transcrever aqui as três páginas em que a SUPRA (Superintendência de
Política Agrária) enumera, em sua publicação “Sindicatos Rurais — Relação no.
1”, de 31-12-1963, os Decretos, Decretos- Leis e Portarias que, de 1903 àquela
data, dispõem sobre Sindicalização Rural (página e meia), e sobre Previdência
Social, Caderneta e principais Direitos do trabalhador rural (outra página e
meia).
23. Cfr. Sindicalização Rural no Brasil, divulgação da Coordenadoria Nordeste de
Sindicalização Rural, Natal, dezembro de 1962, p. 7 e 23, ou a supramencionada publicação da SUPRA, p. 18. O reconhecimento do primeiro sindicato rural
no Brasil (o dos Empregados Rurais de Campos, no Estado do Rio de Janeiro)
data de 9 de agosto de 1946.
24. Em Pernambuco, ainda em janeiro de 1955, Francisco Julião, Advogado e
Deputado Estadual pelo Partido Socialista, conseguira legalizar a Sociedade
fundada pelos “Galileus” (moradores do Engenho Galiléia, liderados pelo
próprio feitor Zezé da Galiléia), ameaçados de despejo pelo filho do senhor-deengenho. Esta e outras sociedades semelhantes que foram surgindo em Pernambuco e em outros Estados tornaram-se conhecidas pelo nome de “Ligas
Camponesas” (Cfr. Manoel Correia de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, p.
218
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
244-245). Em 1959, quando o SAR planejou a sindicalização rural no estado do
Rio Grande do Norte, as Ligas constituíam ainda um fato circunscrito a Zona
da Mata de Pernambuco (a zona açucareira). Tanto a criação do “mito-Julião” e
a ereção das Ligas Camponesas em verdadeiro “espantalho” nacional, como o
avolumar-se do assim chamado “perigo vermelho” são fatos intimamente ligados à fase aguda de radicalização politico- ideológica, que foi de 1960, especialmente de 1962, a 31 de março de 1964. Diríamos que foi mais o mêdo “capitalista” (a revolta contra as injustiças sociais) o que motivou o sindicalismo rural
no Estado do Rio Grande do Norte. Foi, aliás, o que nos confessou D. Eugênio
em entrevista: “Animavam-nos duas coisas: a preocupação pelo homem, pela
miséria, pelo sofrimento das Secas e uma revolta contra as injustiças... Isto,
quanto ao meio rural. Quanto à capital, um ponto que movimentou bem foi
a necessidade de defender a Igreia contra a penetração de certos elementos
que procuravam dar outra orientação à classe pobre da cidade. Isto pesou,
também, sensivelmente — talvez um fator menos nobre — mas só pesou na
fase final, de poucos anos para cá” (a partir de 1963).
25. “Desde o começo — disse-nos D. Eugênio em entrevista — houve preocupação pela mudança de estrutura, embora de maneira um tanto confusa.
A reação tornou-se mais forte com a sindicalização rural. Mas eu creio ove a
causa mais profunda foi o mêdo do Serviço Rural. Enquanto podia parecer a
eles uma iniciativa da Igreja, que podiam apoiar, não houve problema. Mas
quando começaram a sentir os efeitos do Serviço pela mudança de mentalidade, então começou a reação. Isto foi agravado pela preocupação de reforma
agrária aqui sempre pregada. Eu me lembro que, em 1947, antes, portanto,
da fundação do SAR, eu pregava sobre reforma agrária na Igreja do Rosário.
No dia seguinte houve pessoas reclamando contra isto, na Cidade. (A reação)
não é coisa recente. Tomou vulto quando começaram a temer o Serviço Rural,
confirmando, portanto, o seu valor”.
26. “Sendo a finalidade da Semana (I Semana Rural) a recuperação do homem
do campo, serão discutidos os seguintes meios como possíveis conclusões:
prudente aplicação da legislação social ao trabalhador rural; instalação de
Círculos Operários de cunho rural... (Cfr. Ata da Sessão de instalação do SAR,
em Livro de Atas do SAR, 23-10-1950). De fato, a criação de Círculos Operários
Rurais figurou entre as conclusões da I Semana Rural (Cfr. A Ordem, 29-1-1951).
Contudo — ou porque a visada “prudente aplicação da legislação social” era
“prudente” demais para despertar interesse por parte do trabalhador rural;
ou porque, pela sua própria natureza, os Círculos Operários não constituíam
resposta adequada às aspirações da classe operária rural; ou porque esta não
tinha ainda aspirações nem condições de se organizar; ou porque o SAR não
tinha ainda objetivos bem definidos a este respeito; ou por todas estas razões
juntas — os Círculos Operários Rurais não tiveram nenhum sucesso como
tentativa de organização da classe operária rural.
27. Maria Julieta Costa Calazans, que, desde 1950, como Supervisora do SESI
(Serviço Social da Indústria), trabalhara junto aos operários salineiros de Areia
Branca, matriculou-se. Em 1955, como bolsista daquela instituição, na Escola
de Serviço Social de Natal. Em 1959, depois de dois anos de atuação junto aos
Sindicatos de Trabalhadores da Indústria, apresentou sai “Trabalho de Conclusão de Curso sobre Sindicato, SESI e Serviço Social (Escola de Serviço Social,
Natal, 1959). No mesmo ano, de duas conversas entre D. Eugênio e Julieta (as-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
219
sim é conhecida em Natal), surgiu a ideia de promover a sindicalização rural
no Estado do Rio Grande do Norte. Daí a fundação do Setor de Sindicalismo.
28. Embora, exasperado com a violenta reação contra os Sindicatos, houvesse
falado em “marra” e “revolução”, o então Presidente da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte — simples trabalhador
de enxada e um dos poucos que votara contra a Frente única Sindical — afirmou haver recusado oferta de emprêgo altamente remunerado, que visava
reduzi-lo à subserviência, quando não, afastá-lo da Presidência da Federação.
De pouco lhe valeram estes antecedentes: esteve preso e respondeu a IPM.
Seu pedido de licença do cargo e sua viagem ao exterior foram a fórmula
conciliatória encontrada para evitar uma intervenção direta da Revolução na
Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, no Estado.
29. No Rio Grande do Norte, como, de modo geral, em todo o Nordeste, praticamente se identificam o patrão (grande proprietário) e o político. De um lado,
todo grande proprietário é “político”, no sentido de que ocupa, almejar ocupar
ou decide, com “seus” votos, sobre quem irá ocupar cargos públicos eletivos.
É também ele quem, no fim das contas, decide sobre quem terá acesso a cargos
públicos não eletivos, os quais, pelos critérios de distribuição, não deixam de
ser também “políticos”. Por outro lado, praticamente todo “político” (eleito,
candidato ou cabo eleitoral) é patrão. Continuando a ser a posse da terra a
fonte principal de prestígio, dificilmente alguém que não seja grande proprietário terá acesso à vida política. Daí falarmos em classe político-patronal rural.
30. Solicitado, em entrevista, a indicar qual, dentre as múltiplas iniciativas
ou realizações do SAR, reputava mais importante, D. Eugênio declarou: “Há
várias que reputo muito importantes. Uma delas é a sindicalização: a que,
talvez, virá a ter, no futuro, maior repercussão. Mas a sindicalização está ligada
a outras iniciativas, sem as quais teria desaparecido. É a própria iniciativa do
SAR como conjunto, como articulação de obras e atividades, sem a qual não
poderia ter-se mantido a sindicalização. Depois podemos mencionar também
as Escolas Radiofônicas, dada a sua repercussão de caráter. nacional. E não
podemos deixar de lado os treinamentos de líderes, que têm sido realmente a
base da todo o trabalho do SAR”.
31. Relatório das Atividades do SAR em 1954.
32. Perguntado sobre o que possibilitara a continuidade e a expansão do SAR,
D. Eugênio assim se exprimiu: “A grande preocupação do SAR foi de não ficar
numa coisa só... Em vez de limitar o trabalho a um setor e aperfeiçoar somente
um lado, o SAR achou que sua sobrevivência dependeria de sua própria força
expansiva... Comparo com uma bicicleta: parou, você não consegue mais ficar
de pé. Um serviço como o SAR, que depende do idealismo das pessoas, tem de
estar sempre em movimento. Houve, durante algum tempo, uma pressão muito grande do SAR — não do pessoal mais diretamente ligado ao trabalho, mas
de outros — para que não se multiplicassem atividades: achavam que eu era
maluco; que era doido. Desde o começo achei que, se eu não multiplicasse o
trabalho, não poderia mantê-lo. Há nisto uma certa técnica errada, pois é melhor fazer uma coisa ou outra e ir aperfeiçoando. Mas, dentro das condições do
Nordeste e do SAR, só o elã que provoca novas coisas possibilitou a expansão.
Isto é muito importante. A própria força expansiva do SAR é que mantinha o
SAR, como, quem anda na bicicleta, só se mantém na bicicleta, enquanto está
andando. E, para estar andando, qualquer problema que apareça está dentro
220
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
da alçada do SAR: tenta-se, contanto que haja pessoas que, sem ser as mesmas
(dos outros setores), possam assumir o novo setor”.
33. O SAR, incluído o pessoal da Emissora, da Gráfica e das Cooperativas Arquidiocesana e de Artesanato, contava, em seus diversos Setores, com quase
uma centena de funcionários, enquanto que o SAAS não tinha, na coordenação, mais do que 2 ou 3 elementos. O SAAS nunca dispôs de transporte
próprio; precisando, recorria a frota de transportes do SAR.
34. Apesar de certo horror, mais ou menos generalizado, à assistência, parece
que nova denominação – Serviço de Ação Rural – não está vingando. No uso
corrente, diz-se SAR ou Serviço Rural.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
221
II PARTE
SAR E DESENVOLVIMENTO
VERIFICAÇÃO EMPÍRICA
CAPÍTULO V
METODOLOGIA
1. OPÇÕES
Nosso interesse voltava-se principalmente para o meio
rural. Na impossibilidade de abranger, em profundidade,
todas as atividades temporais, na Capital e no interior,
do Movimento de Natal, decidimos circunscrever-nos,
nesta II Parte, a uma avaliação sistemática e empírica das
atividades empreendidas pelo SAR (Serviço de Assistência Rural), a partir de 1951, no interior da Arquidiocese
de Natal.
Mesmo assim, dada a pluralidade de atividades, a extensão da área atingida e a limitação dos recursos financeiros de que dispúnhamos, impusemo-nos outras limitações. Na I PARTE distinguimos duas FASES RURAIS do
Movimento: uma, voltada para o desenvolvimento de comunidade, entendida esta como a pequena cidade, a vila,
o povoado, o sítio, a fazenda; a segunda, extrapolando
já os limites da comunidade, voltada para a “luta pela
mudança de estruturas”, entendida esta especialmente
como mudança nos sistemas tradicionais de fidelidades
políticas e de relações de trabalho. Tendo iniciado nossa
pesquisa poucos dias após a Revolução de 31 de março
ALCEU RAVANELLO FERRARO
225
de 1964, não víamos, pelo exposto no Capítulo IV, parágrafo 3, condições de levar a bom termo uma pesquisa
por amostragem que visasse verificar empiricamente o
impacto desta “luta pela mudança de estruturas”. Para
uma tal verificação a área propícia seriam as grandes fazendas, onde — tudo indicava — nos depararíamos com
a desconfiança dos patrões e o retraimento dos moradores. Daí termo-nos orientado, seja na escolha de área,
seja na elaboração do questionário, especialmente para
uma avaliação do programa de ação comunitária, típico
da I FASE RURAL.
Para a verificação empírica da hipótese da funcionalidade das atividades do SAR do ponto de vista de desenvolvimento, optamos pelo seguinte modelo experimental: confrontar, ex post facto, comunidades submetidas com bastante intensidade à ação do SAR, com
comunidades não submetidas a tal influência, mas semelhantes às primeiras sob outros pontos de vista.
O êxito na aplicação de tal modelo experimental dependeria precisamente de conseguirmos isolar ou manter
constantes outras variáveis ou fatores, excetuado, no
caso, o trabalho do SAR. Como, dada geralmente a presença de outras agências de mudança, seria mais difícil
conseguir isto nas sedes municipais, deixamos estas de
lado e voltamo-nos para pequenas comunidades no interior dos municípios, isto é, povoados e sítios, compreendida também a população circunvizinha, ligada àqueles
pequenos aglomerados por centros de interesse comum
(escola, capela, pequeno comércio — mercearias ou bodegas — e, no caso das comunidades trabalhadas pelo
SAR, Centros Sociais, Clubes, JAC, etc.).
226
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
2. ESCOLHA DA ÁREA
Como vimos na I Parte, algumas das atividades empreendidas pelo SAR atingem também áreas das Dioceses
de Mossoró e Caicó. Na pesquisa por amostragem limitamo-nos à Arquidiocese de Natal. Contrariamente ao que
acontece com aquelas duas Dioceses, que compreendem
áreas bastante homogêneas, todas tipicamente sertanejas, na Arquidiocese de Natal, que cobre parte do Sertão,
todo o Agreste e toda a Zona da Mata do Rio Grande do
Norte, estão representadas as três Regiões típicas do Nordeste. (Sobre as características destas três Regiões veja
Apêndice 1.1).
Na Introdução (parágrafo 2) e no Apêndice I a este Trabalho, chegamos a duas conclusões: 1) que o Nordeste
dos anos 1950-1960 — o Nordeste anterior à SUDENE
— se revelava, segundo quase todos os indicadores empregados, como sendo a Região mais subdesenvolvida do
país e 2) que o estado do Rio Grande do Norte, teatro do
Movimento de Natal, dificilmente poderia figurar entre
os 4 estados menos subdesenvolvidos dentre os 9 estados da Região.
Não sem alguma surpresa para alguns norte-riograndenses, chegamos a outra constatação de suma importância do ponto de vista metodológico, isto é, que
o principal campo de atuação do SAR — o meio rural da
Arquidiocese de Natal, especialmente o Litoral-Agreste
apesar de mais próximo à Capital, constitui a área mais
subdesenvolvida do estado.
Com efeito, segundo os dados do Censo de 1950, a Capital, com 62% de alfabetizados entre a população de 10
ALCEU RAVANELLO FERRARO
227
e mais anos (o índice mais elevado no estado), constitui
uma ilha dentro da área de índices mais baixos de alfabetização no estado. De fato, se tomarmos como limite
o índice de 30% de alfabetizados (tabela V.l — dados do
Censo de 1950 e divisão municipal de 1954, segundo
aparecem na Enciclopédia dos Municípios), o contraste é
evidente: enquanto, dos 31 municípios abrangidos pela
Arquidiocese de Natal, 25 ficavam aquém, e apenas 6
superavam os 30% de alfabetizados, dos 33 municípios
abrangidos pelas outras duas Dioceses, apenas 6 ficavam
aquém, e 27 superavam os 30% de alfabetizados.
Se olharmos mais detalhadamente a tabela V.I., o contraste se torna mais patente ainda. Dos 20 municípios
com menos de 25% de alfabetizados, apenas 1 (na Zona
Serrana — Diocese de Mossoró) ficava fora, enquanto
que 19 se situavam dentro da Arquidiocese de Natal. Por
outro lado, dos 21 municípios com 35 ou mais por cento
de alfabetizados (a média para o estado era de 31,98%),
9 ficavam na Diocese de Mossoró, 9 na Diocese de Caicó, e 3 apenas na Arquidiocese de Natal: a Capital, 2
municípios da Zona Centro-Norte, e, se considerada somente a área rural, isto é, excluída a capital, nenhum no
Litoral-Agreste, a área de maior densidade demográfica
do estado.
Por conseguinte, não só a área rural da Arquidiocese
de Natal, principal campo de atuação do SAR, é a que
apresenta os índices menos elevados de alfabetização no
estado, mas também a área por nós escolhida para a pesquisa (Agreste e limite entre Litoral e Agreste) se apresenta como a área menos alfabetizada dentro da própria
Arquidiocese.
228
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
É tal a correlação entre os diversos indicadores de desenvolvimento e subdesenvolvimento (veja Introdução,
parágrafo 2, e Apêndice I), que seria supérflua a aplicação de outros indicadores. Apenas acenamos para
alguns outros aspectos. Assim, se o sertanejo costuma
ser definido como um forte, à medida que, através do
Agreste, nos aproximamos do Litoral Oriental (área açucareira e praia de pescadores), o homem é menos empreendedor, menos resistente ao trabalho, precisamente
por ser menos bem nutrido (o consumo de carne, por
exemplo, é menor do que no sertão), e mais doentio (a
área de atuação da Campanha de Erradicação da Malária,
por exemplo, praticamente coincide com o Litoral Oriental e Agreste). Agrônomos da ANCAR acabam de nos
confiar que o sertanejo, o seridoense, por exemplo, é
mais receptivo às inovações técnicas, do que o agrestino.
Os vigários por nós entrevistados reconhecem unanimemente que seu trabalho é mais fácil no Sertão do que
no Agreste e Litoral Oriental, o praieiro vive da pesca,
empregando geralmente os métodos mais primitivos —
o anzol e o arrastão. A Zona açucareira é a que mais se
ressente do antigo sistema escravagista. O sistema de
meação é, para o trabalhador rural, menos favorável
no Agreste (meia do algodão e cereais) do que no Sertão
(meia somente do algodão). O vaqueiro do Agreste está
totalmente proletarizado, enquanto que o vaqueiro de
certas áreas do Sertão ainda tem parte no gado (sistema
de quarta).
Tudo isto justifica nossa afirmativa de que o principal
campo de atuação do SAR — a área rural da Arquidiocese
de Natal — constitui a parte mais subdesenvolvida do
estado.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
229
Dentre as diversas Zonas abrangidas pela Arquidiocese
de Natal, excluímos, em nossa pesquisa por amostragem,
a parte de Sertão (Zona Centro-Norte, que mais se assemelha às áreas cobertas pelas Dioceses de Mossoró e Caicó) e a Zona do Litoral (áreas açucareira e praieira), tomando somente comunidades situadas no Agreste (veja,
adiante, Io, 2o e 4O pares de comunidades) e no limite
entre Litoral e Agreste (3° par de comunidades). É precisamente nesta faixa onde se concentram os índices
menos elevados de alfabetização no estado. Sob outros
aspectos, a área escolhida para a verificação empírica das
hipóteses pode, no máximo, ser considerada como ocupando uma posição intermediária (do ponto de vista de
desenvolvimento) entre o Litoral e a Zona Centro-Norte
(Sertão) da Arquidiocese de Natal.
3. ESCOLHA DAS COMUNIDADES
Na escolha das comunidades, nossa maior preocupação foi a de isolar ou manter constantes, quanto possível,
fatores outros que não o trabalho do SAR (veja o quadro
a seguir).
Tomamos 4 PARES de comunidades, situadas no interior dos municípios e paróquias, constando cada par de
uma COMUNIDADE TRABALHADA pelo SAR (que, por
brevidade, chamaremos CT), e de uma COMUNIDADE
NÃO TRABALHADA (CNT). Com excessão do 3o par, onde
isto não foi possível, as comunidades de cada par (CT e
CNT) estão situadas dentro da mesma paróquia, a uma
230
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
distância, porém, suficientemente grande uma da outra,
de maneira a excluir a possibilidade de uma influência
pelo menos direta da primeira sobre a segunda.
Segundo os dados do Censo de 1950, as duas comunidades de cada par (CT e correspondente CNT) pertenciam, naquela data, a municípios de idêntico (no 3o par,
quase idêntico) índice de alfabetizados entre a população
de 10 e mais anos. Se confrontarmos os dados do quadro
acima com os da tabela 5.1, é óbvio tratar-se de índices
de alfabetização dos mais baixos em todo o estado.
No que tange à presença de Grupo Escolar, foi favorecida a CNT 1, tendo sido mantido constante este fator
nos outros três pares.
Em termos de distância da sede da respectiva paróquia
(o centro mais importante na vizinhança), o grau de isolamento de cada CT e correspondente CNT foi mantido
ALCEU RAVANELLO FERRARO
231
relativamente constante em cada um dos 4 pares de comunidades. Em termos de distância da sede do respectivo município, as CNT foram favorecidas nos pares 1 e
3, tendo-se mantido relativamente constante (levemente
mais favorável às CNT) nos outros dois pares de comunidades. Em termos de quilômetros a serem percorridos
para tomar um transporte coletivo, as CNT foram grandemente favorecidas nos pares 3 e 4.
No que se relaciona com a presença de trabalho da
ANCAR (Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural), foi favorecida a CT 2 (primeiro caso em que
uma CT é favorecida). Nos outros três pares este fator
foi mantido constante. A maior dificuldade encontramola precisamente em isolar ou manter constante o fatorANCAR. Esta atua em quase todas as comunidades mais
ou menos intensamente trabalhadas pelo SAR. Não raro
procura precisamente estas por encontrar ali, segundo
nos confiaram alguns técnicos, maior receptividade. Não
resta dúvida que a ANCAR exerceu influência, especialmente no setor agropecuário. Embora seja nossa intenção comparar conjuntamente as 4 CT com as 4 CNT, vez
por outra estabeleceremos confrontação entre cada CT
e correspondente CNT, o que nos permitirá controlar o
fator-ANCAR, que só não é constante no 2o par de comunidades.
A variável mais importante a ser mantida constante
era o nível econômico das comunidades pesquisadas, o
qual, enquanto fator independente do trabalho do SAR,
podia ser determinado pela distribuição profissional dos
chefes de família dos dois grupos de comunidades (das 4
CT e das 4 CNT). Não dispondo de dados fundamo-nos em
232
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nossa observação in loco e em depoimentos de técnicos
da ANCAR, guardas da CEM (Campanha de Erradicação
da Malária) vigários e outras testemunhas qualificadas,
conhecedores do lugar. Os próprios dados da pesquisa
nos possibilitaram controlar em que medida fora satisfeita esta exigência. Assim, segundo a tabela V.2 observamos a seguinte distribuição dos chefes das famílias
pesquisadas segundo as 4 categorias profissionais estabelecidas: 13,5% nas CT e 11,4% nas CNT eram patrões
(proprietários de terra, com dependentes); 32,8% nas CT
e 31,7% nas CNT eram pequenos proprietários (proprietários de terra própria, isto é, trabalhando exclusivamente em terra de outros); 7,4% nas CT e 9,6% nas CNT
não eram agricultores – a estes chamaremos simples
“outros”. O teste de quiquadrado revela que tais diferenças em aproximadamente 85 sobre 100 casos poderiam
ser imputadas a variações da própria amostragem, o que
nos leva a conclusão de que variável em questão foi mantida satisfatoriamente constante.
Mais do que o número de famílias de cada comunidade (sobre isto veja o quadro no paragrafo seguinte),
interessa aqui confrontar as comunidades de cada par
de ponto de vista do tamanho dos respectivos par do
respectivo aglomerado (“sedes”). Nesse sentido, confrontada cada uma com a comunidade do respectivo par,
as CNT 1, CTN 2, CT 3 apresentavam um número levemente mais elevado de famílias concentradas em torno
do(s) centro(s) de interesse (capela, escola, etc.). No que
tange ao 4º par, Serrinha (CNT 4), já com vantagens por
ser a única, a dispor de transporte coletivo diário, as
portas, para Natal, foi mais uma vez grandemente favo-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
233
recido: sua população estava praticamente toda concentrada na sede do povoado que acabara de tornar-se sede
de um novo município, enquanto que redenção (CT 4)
tinha cerca de metade de sua população dispersa, fora
da sede do povoado. A razão de mesmo assim havermos
opta-do por estas duas comunidades para formar o 4o par
é a seguinte: já havíamos inutilizado 110 questionários
preenchidos, por apresentarem as comunidades do 4o
par características completamente diversas quanto à distribuição profissional dos chefes — a principal variável,
segundo nosso modo de ver, a ser mantida constante.
Percorremos imediatamente mais de mil quilômetros
no sentido de substituir ambas as comunidades deste
par. As alternativas que se nos apresentavam ou iriam
favorecer a CT 4 ou a CNT 4. Para maior segurança no resultado da pesquisa e não podendo adiar por mais tempo
a aplicação dos questionários, por se avizinhar a campanha eleitoral para Governo do Estado, optamos pela
segunda alternativa.
Esta — favorecer antes às CNT do que às CT — foi,
para maior segurança no resultado, a norma conscientemente seguida toda vez que se demonstrou inviável
isolar ou manter constante uma variável em algum dos
pares de comunidades. A única excessão, controlável,
aliás, através dos próprios dados da pesquisa, diz respeito ao fator- ANCAR, presente na CT 2 e ausente na CNT 2.
Os outros fatores ou variáveis foram, na grande maioria dos casos, isolados ou mantidos constantes e, quando
não, a situação foi mantida favorável às comunidades
não trabalhadas pelo SAR (às CNT).
234
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
4. A AMOSTRAGEM
As 8 comunidades tinham conjuntamente 939 unidades elementares (famílias), de cuja lista seria extraída a
amostra. Estabelecemos os seguintes limites de precisão:
probabilidade ou margem de erro que não deve ser superada na pesquisa = 5%; consequentemente, intervalo
de confiança = 95%; erro padrão das razões ou frequências estimadas a partir das subamostras = 2%; valor de
duas vezes o erro padrão = + -4% (0,04). Isto significa que,
se repetida 100 vezes a mesma pesquisa com amostragens semelhantes, mas independentes, em não mais de
5% dos casos (1/20) as verdadeiras proporções da população total iriam, por mais do que o limite estabelecido
(4%), superar ou ficar abaixo das proporções encontradas na presente pesquisa. Satisfeitas estas exigências,
resultou (veja Anexo II) em 376 o número de unidades
a serem incluídas na amostra. Esta foi subdividida em
10 subamostras independentes, a fim de obtermos uma
precisão maior com um número menor de unidades, e
um controle mais eficiente do erro padrão efetivo na pesquisa.
Tivemos, contudo, que introduzir algumas alterações.
Como as variáveis foram mantidas constantes ou isoladas em cada par de comunidades (em cada CT e correspondente CNT) e não nas 8 comunidades conjuntamente, era aconselhável dar, quanto possível, a mesma
representação às comunidades de cada par. Por outro
lado, embora intencionássemos principalmente confrontar as 4 CT com as 4 CNT conjuntamente, vez por outra
estabeleceríamos confrontação entre cada CT e corres-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
235
pondentes CTN. Isto nos aconselhava a assegurar uma
representação mínima (40 unidades) às comunidades
menores. Estabelecemos assim em um mínimo de 1/3
(comunidades maiores) e um máximo de 1/2 a representação de cada comunidade. Conforme o número de famílias, foi estabelecido para cada comunidade o número de
unidades a serem incluídas na amostra, de maneira a satisfazer às duas exigências acima. Tratando-se de extrair
10 subamostras, a proporção oscilou entre 10/20 e 10/30
unidades. Sorteamos para cada comunidade 10 números
casuais compreendidos entre 1-20 e 1-30, conforme o
caso. Deste processo resultou uma amostragem composta de 365 famílias — 11 unidades a menos, portanto,
do que o montante requerido (376 unidades) para o grau
de precisão almejado. Acreditávamos que nem este fato,
nem as alterações acima iriam mudar substancialmente
o grau de precisão. Em todo caso, teríamos possibilidade
de controlar, através dos próprios dados da pesquisa,
qualquer alteração.
O questionário A (Anexo I.A) se destinava aos chefes de
todas as 365 famílias que compunham a amostra. As perguntas diziam respeito, ora à família, ora aos membros
de cada família tomados individualmente, ora ao próprio
chefe (concepções, atitudes, comportamento). Decidimos estender certo número de perguntas (veja nota no
fim do questionário A) também a outras pessoas, além
dos chefes. A escolha destas obedeceu aos seguintes critérios: tomaríamos, dentre os membros das 365 famílias
que compunham a amostra, 50% das pessoas de 14 anos e
mais (excluídos os chefes), figurando cada membro escolhido na mesma subamostra do chefe da respectiva famí-
236
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
lia. Optamos por 50%, pois — estimada em 2 (excluídos
os chefes) a média de membros de 14 anos e mais por
família — teríamos um número aproximado de 365 outras pessoas (de fato, 368), o que nos permitiria, no caso
de perguntas dirigidas também a estas, não só não superar o erro padrão previsto, mas mesmo mantê-lo a um nível mais baixo do que +- 4% (aproximadamente + - 3,2%).
A escolha se processou da seguinte maneira: cada entrevistadora, à medida que entrevistava os chefes, ia anotando numa caderneta os nomes de todos os membros
de l4 anos e mais, hierarquizando-os, família por família,
em ordem decrescente de idade, independentemente de
sexo, mas mantendo uma enumeração seguida, de 1-N,
para os membros de todas as famílias dos chefes por ela
entrevistados e aplicando questionários a todas as pessoas cujos nomes figurassem sob número par (50%): 2, 4,
6, 8 ... N.
O quadro acima dá, para cada comunidade, 1) o número de famílias e 2) o número de chefes e de outros membros aos quais foram aplicados questionários. A CNT 4
ALCEU RAVANELLO FERRARO
237
apresenta, com relação à CT 4 um total de entrevistados bastante menor (81 contra 92), devido à proporção
mais baixa de membros de 14 anos e mais nas famílias
daquela comunidade.
O erro padrão na pesquisa não foi calculado para todas
as perguntas. Tomamos apenas, ao acaso, 14 perguntas
do questionário A que proporcionaram 41 valores de 2
erros padrão, correspondentes a 41 tipos de respostas (características). Segundo os dados do Apêndice II podemos
concluir:
— Em apenas 9 sobre os 41 casos o valor de 2 erros
padrão superou os limites estabelecidos (+- 4%), ficando
abaixo de tais limites nos outros 32 casos.
— Mais de 50% dos valores calculados ficam compreendidos entre + — 2,000 e 3,999%, ficando 9 acima e
9 abaixo destes limites.
— A classe modal dos 41 valores obtidos está situada
entre + - 2,500 e 2,999 (8 casos), situando-se também nesta classe a mediana dos valores de 2 erros padrão.
Podemos, por conseguinte, concluir que o erro de
amostragem na presente pesquisa ficou, de modo geral,
bem abaixo dos limites máximos previstos (4% a mais ou
a menos), com tendência a se concentrar em torno de
+ - 2,500 e 2,999%.
Por outro lado, os valores calculados do viés (“bias”),
isto é, de eventuais erros não imputáveis ao processo
de amostragem, mas a outras causas, geralmente não
excederam os dois décimos de 1%. Veja, sobre isto, no
Apêndice II, os 41 valores calculados do viés, correspondentes às mesmas características para as quais foi calculado o erro padrão.
238
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
5. HIPÓTESES
Depois do que vimos até aqui, podemos reformular e
precisar nos seguintes termos a 1a hipótese enunciada na
Introdução a este trabalho:
HIPÓTESE
As atividades temporais empreendidas pela Igreja,
através do SAR, no meio rural da Arquidiocese de
Natal, demonstraram-se funcionais ao desenvolvimento, seja 1) conformando concepções e atitudes com
padrões mais funcionais ou mais compatíveis com
os objetivos e o processo de desenvolvimento, seja
2) conformando com idênticos padrões o comportamento dos indivíduos atingidos e, em consequência
e na medida; disto, desencadeando, no mesmo sentido, um processo de mudança nos sistemas tradicionais de relações do homem com os meios físico,
social e cultural, seja 3) criando condições de vida já
identificáveis com os próprios objetivos do desenvolvimento.
Nesta nova formulação, nossa hipótese restringe-se às
atividades empreendidas no meio rural. Não dissemos
“contribuíram”, mas “demonstraram-se funcionais”, de
vez que o primeiro termo nos delimitaria ao próprio processo e à realização dos objetivos do desenvolvimento,
enquanto que o segundo, incluindo estes aspectos, engloba mais explicitamente a criação de precondições
para o desenvolvimento.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
239
Se, em que sentido e em que medida esta hipótese deve
ser aceita ou rejeitada, verificaremos, nos capítulos seguintes: 1) empiricamente, no que tange especialmente
à I FASE RURAL (desenvolvimento de comunidade), e 2)
através de outros métodos, no que tange de modo especial à assim chamada “luta pela mudança de estruturas”.
Introduzimos aqui outra hipótese, não enunciada na Introdução a este trabalho. Referindo-nos à 1a FASE RURAL,
dissemos que a estratégia do SAR consistiu no treinamento de líderes de comunidade, visando habilitá-los
a promover, através da ação grupai, o desenvolvimento
das respectivas comunidades, ou seja, que o trabalho do
SAR se estribou no tripé: líder (treinado) — grupo — comunidade. Acontece que nem todos os participantes de tais
treinamentos chegaram a formar grupos, e nem todos os
grupos formados subsistiram. Posteriormente, os treinamentos de monitores de Escolas Radiofônicas, embora
atingindo bom número de elementos pertencentes a grupos, como a JAC e Clubes, não orientaram diretamente
os participantes para a formação de tais ou semelhantes
grupos. Entendemos aqui grupos de pequeno porte, com
raio de ação mais ou menos circunscrito ao âmbito da vizinhança (pequena cidade, vila, povoado, sítio, fazenda).
Dito isto, podemos enunciar nossa hipótese, que deverá ser verificada empiricamente a partir dos dados da
pesquisa feita nas 8 comunidades rurais e especialmente
dos dados de outra pesquisa realizada entre 248 líderes
(monitores de Escolas Radiofônicas), da qual falaremos
oportunamente.
240
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
II HIPÓTESE
O rendimento do líder associado foi maior do que
o rendimento do líder isolado ou não associado.
6. CRITÉRIOS DE VERIFICAÇÃO
No que concerne à verificação da 1a hipótese prestaremos especial atenção a eventuais mudanças de concepções, atitudes, comportamento e mesmo condições de
vida, relacionadas corn os seguintes critérios ou indicadores, seja de desenvolvimento, seja de precondições
de desenvolvimento: saúde, especialmente preventiva;
técnicas agropecuárias; crédito agrícola; associações de
caráter tipicamente secundário, especialmente de classe,
como cooperativismo e sindicalismo; associações ou grupos voluntários de pequeno porte e cooperação comunitária; alfabetização e escolaridade; grau de consciência
dos problemas; grau de inconformismo, de aspiração
ou espectativa; capacidade de iniciativa ou empreendimento; sistemas de fidelidades políticas e relações de trabalho. Por último, verificaremos se e em que medida os
membros das comunidades pesquisadas têm consciência
das mudanças eventualmente constatadas e apontam o
SAR como agente responsável por tais mudanças.
Quando de sua utilização nos capítulos seguintes,
daremos maiores esclarecimentos sobre os indicadores
e testes usados na verificação empírica. Por ora, basta
observar que, dentre o vasto elenco de critérios comumente aceitos e empregados pelos técnicos para identifi-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
241
cação do fato ou do grau de desenvolvimento de um país,
região ou comunidade, escolheremos aqueles indicadores e testes que de fato estejam relacionados com as metas estabelecidas e com o tipo de trabalho empreendido
pelo SAR.
Careceria de sentido partirmos para uma verificação
empírica de aspectos de desenvolvimento (industrialização, por exemplo), que nem sequer figuraram entre as
metas do SAR e que constituem limitações que já emergiram na I Parte deste trabalho. Resta, portanto, fazer,
nesta II Parte, uma avaliação a partir das metas e das realizações do SAR.
A II hipótese, surgida em estado já avançado da pesquisa, ressente-se, por isso mesmo, de técnicas mais
elaboradas de verificação empírica. Ao testarmos esta
hipótese no Capítulo XI.2, referirnos-emos aos seguintes
critérios: opinião dos entrevistados das comunidades trabalhadas, responsabilidade na administração das Escolas
Radiofônicas, comportamento com relação à alimentação e saúde preventiva e participação em associações de
classe (cooperativismo e sindicalismo).
CAPÍTULO VI
SAÚDE
Neste Capítulo prestaremos atenção às concepções e
ao comportamento com relação à saúde, especialmente
preventiva: conhecimentos mais científicos e um maior
domínio sobre as causas exógenas de determinadas
doenças, como a verminose, constituem um indicador
de desenvolvimento. Estabeleceremos, sob vários pontos
de vista, uma comparação entre as CT e as CNT.
1) DADOS ADMINISTRATIVOS
É praticamente impossível uma avaliação quantitativa
global do trabalho de educação sanitária desenvolvido,
desde 1951, pelo SAR no meio rural. Inúmeras campanhas de hortas caseiras, de queima ou enterro de lixo,
de fossa, de água fervida ou filtrada, de uso de calçado...
foram realizadas pelos Centros Sociais, Clubes, JAC, Escolas Radiofônicas. Os dados encontrados nos Relatórios
do SAR ou de seus diversos Setores são parciais, fundando-se em depoimentos extraídos de cartas de líderes do
242
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
243
interior (nem todos escrevem!) ou colhidos em encontros
de revisão e planejamento (nem todos participam!). Por
outro lado, os dados fornecidos por um Setor podem
ser os mesmos de outro Setor. Assim, por exemplo, as
artesãs são também clubistas e, onde existem Centros
Sociais, participam das atividades destes. Vejamos alguns
dados referentes ao ano de 19611:
o Centro de Treinamento de Líderes Rurais dá que 208
famílias fizeram hortas, 35 construíram privadas e 210
passaram a enterrar o lixo;
segundo a Federação dos Clubes Agrícolas, cerca de
200 hortas foram feitas em 1961 (as mesmas mencionadas acima?);
o Setor de Centros Sociais fornece, por sua vez, os seguintes dados referentes a 6 dos 26 Centros: Surubajá —
15 hortas; Itajé — 8 hortas- Taipu — 28 hortas, 20 fossas
(numa campanha mais recente foram construídas 40), e
72 famílias que passaram a enterrar o lixo, e 6, a ferver
água; Redenção — 16 hortas; Pirangi — 2 hortas; Senrote — 8 famílias passaram a ferver água e 4 construíram
fossa.
Referentes às atividades de 15 Clubes de Jovens que se
reuniram, em fins de 1962, para revisão e planejamento,
temos os seguintes dados2:
— fizeram hortas domésticas ..................... 800 famílias
— passaram a filtrar água ........................... 105 famílias
— passaram a enterrar o lixo ..................... 240 famílias
— construíram privada .................................. 51 famílias
Mas, e os outros Clubes de Jovens, que não estiveram
representados no encontro? E os 30 Clubes Agrícolas, os
7 Clubes de Mães as dezenas de Secções e Núcleos de
244
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
JAC e as centenas de Escolas Radiofônicas — todos, de
uma ou de outra forma, se preocupando com a educação
sanitária em centenas de pequenas comunidades rurais?
Dos 26 Centros Sociais existentes em 1964, 12 reuniram-se para revisão e planejamento. Nestes funcionavam 30 Clubes. Os 7 Centros que haviam promovido, em
1963, a campanha da horta, acusavam 179 hortas feitas
nas respectivas comunidades. Por sua vez, os 3 Centros
que haviam promovido campanha de saúde mencionavam a construção de 25 fossas e 200 vacinações contra a
varíola, não fornecendo dados sobre queima ou enterro
do lixo e tratamento da água potável3.
A Cooperativa de Artesanato também desenvolve uma
ação educativa entre suas associadas. Em consequência,
estas já adquiriram, através da Cooperativa, pagando a
prestações com a própria produção artesanal, cerca de
50 filtros e 20 aparelhos para privada. Outras porém, fizeram suas aquisições no comércio da Capital, e não se
sabe quantas.
Em Umari, povoadozinho pertencente ao município
de Ielmo Marinho, asseguraram-nos que antes, apesar de
condições favoráveis (beira de lagoa), não se cultivavam
verduras. Com a ação da JAC e de uma Escola Radiofônica, cerca de 10 famílias já tinham em 1965 suas pequenas hortas.
Demos alguns dados parciais, referentes aos últimos
anos. Nos parágrafos seguintes procuraremos estabelecer uma comparação entre as 4 comunidades trabalhadas pelo SAR (CT) e as 4 não trabalhadas (CNT), nas quais
foram aplicados questionários a 733 membros de 365
famílias.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
245
2. FOSSA
O Questionário A (veja Anexo I.A), aplicado a pessoas
das 8 comunidades rurais pesquisadas, continha duas
perguntas sobre fossa ou privada.
A pergunta A. 16, que visava identificar as concepções
existentes a respeito da utilidade de fossa ou privada, foi
dirigida a 733 pessoas dos dois grupos de comunidades:
365 chefes de família e 368 outros membros (50%) de 14
e mais anos. Dos dados da tabela 6.1, referentes às 672
respostas, aparece que 89,4% dos entrevistados, nas 8 comunidades conjuntamente, consideram necessária uma
fossa, restando ainda 10,6%, que a consideram supérflua.
Confrontando os dois grupos de comunidades, temos nas
CT uma proporção menos elevada de pessoas que a consideram supérflua (apenas 7,4% contra 14,0% nas CNT).
A aplicação do teste de qui-quadrado revela que esta
diferença encontrada entre os dois grupos de comunidades é significativa ao nível de 1%, ou seja, que é inferior a 1% a probabilidade de tal diferença resultar do
próprio processo de amostragem, e, consequentemente,
superior a 99% a probabilidade de os dois grupos de comunidades diferirem realmente quanto à proporção de
pessoas (mais elevada nas CT) que reconhecem a necessidade de privada.
Os chefes das 365 famílias pesquisadas nas 8 comunidades foram interrogados sobre a existência e o tipo de
fossa ou privada nas respectivas casas (pergunta A.19).
Segundo os dados da parte A da tabela 6.2, referentes
às 342 respostas, o número relativo de famílias que dis-
246
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
põem de privada é levemente mais elevado nas CT (26,7%)
do que nas CNT (22,4%). Esta diferença, porém, não chega
a ser significativa ao nível mínimo estabelecido na pesquisa (5%). Não podemos, por conseguinte, concluir que
os dois grupos de comunidades sejam significativamente
diversos, quanto à frequência de privada.
Os chefes das 85 famílias que dispunham de privada
foram solicitados a indicar o tipo da mesma. As informações pedidas nos possibilitaram estabelecer duas categorias de privada: as de tijolo e as de palha ou aveloz.
As primeiras contam realmente com fossa cavada na
terra. As de palha ou aveloz, ao contrário, consistem geralmente numa “casinha” (sem fossa), não passando, assim, de uma mera proteção mais eficaz contra olhares
indiscretos e de um sistema bastante econômico de alimentar algum porquinho “caseiro”..., que se encarrega
de distribuir vermes por toda a redondeza da casa. Estas últimas, por conseguinte, têm pouco significado do
ponto de vista higiênico.
Nos dados da parte B da tabela 6.2, referentes às 81 respostas, é evidente a grande diferença existente entre os
dois grupos de comunidades: enquanto, nas CT, 80% das
privadas são de fossa e apenas 20%, de palha ou aveloz,
nas CNT as privadas de Solo constituem apenas 33,3%
do total sendo de palha ou aveloz as restantes 66,7%. Do
teste de qui-quadrado tal diferença resulta altamente significativa (ao nível de 1/1.000).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
247
3. USO DE CALÇADO
Os chefes das 365 famílias pesquisadas foram solicitados a declarar o próprio hábito e, no caso, o da esposa e
dos filhos, quanto ao uso de calçado.
A parte A da tabela 6.3 diz respeito somente aos homens chefes de família. Se confrontarmos os dois extremos, encontramos nas CT uma percentagem levemente
mais baixa de homens que costumam andar sempre
calçados (29%, contra 31,8% nas CNT) e bastante mais elevada de homens que costumam andar sempre descalçados (22,5%, contra apenas 16,9% nas CNT). Se, porém,
reduzimos a duas as quatro categorias de respostas, a
situação é inversa: 54,3% nas CT, contra 51,3% nas CNT,
andam sempre ou geralmente calçados, e 45,7% nas CT,
contra 48,7% nas CNT, andam geralmente ou sempre descalços. Tais diferenças não são significativas a nenhum
nível.
Comparemos agora o comportamento das mulheres
(chefes de família ou esposas) dos dois grupos de comunidades (parte da tabela 6.3). A proporção das que andam sempre descalças é praticamente idêntica nas CT e
CNT: 12,6% e 12,5%, respectivamente. A proporção das
mulheres que andam geralmente descalças é bem menos elevada nas CT (apenas 18,2%, contra 29,3% nas CNT).
Por outro lado, é mais elevado nas CT do que nas CNT o
número relativo de mulheres que costumam andar, seja
sempre, seja geralmente calçadas. Juntas, estas duas categorias (sempre + geralmente calçadas) compreendem
69,2% das mulheres das CT, contra apenas 57,9%, nas
CNT. Esta diferenças encontrada no comportamento das
248
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mulheres dos dois grupos de comunidades é significantiva ao nível de 5%.
3) A parte C da tabela 6,3 se refere às 288 famílias que
tinham filhos, e cujos chefes se pronunciaram a respeito
do comportamento dos mesmos, tomados não individual,
mas coletivamente (um ou mais filhos de cada família).
Dos dados da tabela resulta que em maior número de
famílias das CT do que das CNT costumam os filhos andar sempre (23,3%, contra apenas 13,4%) ou geralmente
calçados (28,1%, contra 23,2%). Aqui a diferença entre os
dois grupos de comunidades é significativa ao nível de
1% - mais significativa, portanto, do que a encontrada entre as mulheres.
4) Agrupando numa só as categorias “sempre” e “geralmente calçados” e distinguindo as três categorias de
pessoas e os dois grupos de comunidades, podemos tirar
as duas conclusões seguintes:
a — quanto ao andar sempre ou geralmente calçados,
em ambos os grupos de comunidades as mulheres figuram em 1°, os homens 2o, e os filhos em 3o lugar;
b — confrontando, do mesmo ponto de vista, os dois
grupos de comunidades, a diferença (em favor da CT) é
mínima entre os homens-chefes de família (+ 3%), intermédia entre as mulheres-chefes de família ou esposas
(+ 11,3%) e máxima entre os filhos (+ 14,8%).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
249
4. CHUPETA
Tivemos oportunidade de observar, certa ocasião, que
deixando a criança cair a chupeta no chão, a mãe apanhou-a, esfregou- a na saia e deu-a novamente ao filho.
De outra feita, conversando com uma mãe, em Serrote
(a primeira das 4 CT), a criança de poucos meses deixou
também cair a chupeta no chão. A um simples aceno
da mãe, um menino de três a quatro anos apanhou-a,
lavou-a com água do filtro e deu-a novamente à criança.
“Desde quando - perguntamos à mãe — se costuma agir
assim em sua família?”. “Desde que participo do Clube
de Mães” — foi a resposta. Estes dois fatos inspiraramnos a pergunta A. 17, que despertou boas gargalhadas
por parte dos entrevistados:
“Quando o filhinho deixa cair o consolo (bubu) no
chão, Dona Josefa costuma limpá-lo na saia antes
de dá-lo novamente à criança. O sr. (sra.) acha que
a maneira de agir de Dona Josefa é certa ou errada?
tados foram: lavar ou escaldar (lavar com água quente)
a chupeta. Bom número dos que indicaram “escaldar”,
acrescentaram: “para matar o micróbio”, “para matar o
verme”, ou coisa que equivalha, demonstrando, assim,
preocupação por uma medida mais eficaz do que simplesmente lavar a chupeta com água fria. Aqui a diferença entre os dois grupos de comunidades é ainda maior e
mais significativa (ao nível de 1/1.000) do que na parte
A da tabela. De fato, dos 604 entrevistados que discordaram da maneira de agir de Dona Josefa e souberam dar
alguma sugestão, 15,4% nas CT, contra apenas 6,8% nas
CNT, sugeriram que se deveria escaldar a chupeta.
É interessante relacionar os dados desta tabela com os
da anterior, onde constatamos, precisamente entre os filhos, a maior discrepância entre os dois grupos de comunidades (14,8% a mais nas CT), quanto ao hábito de usar
calçado. Mais adiante teremos ocasião de confrontar os
dois grupos de comunidades do ponto de vista das concepções existentes sobre a mortalidade infantil.
(Se “errada”)
O que deveria fazer?”
Segundo os dados da parte A da tabela 6.4, referentes às 677 respostas, aparece ser menos elevada nas CT
(8,0%) do que nas CNT (13,8%) a proporção de pessoas que
aprovaram a maneira de agir de D. Josefa ou que não souberam indicar outra medida higiênica, mais eficaz. Tal
diferença se revela significativa ao nível de 2%.
A parte B da tabela diz respeito somente a aqueles
que discordaram da maneira de agir de D. Josefa e sugeriram outra medida. As sugestões dadas pelos entrevis-
250
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
5. ÁGUA E VERMINOSE
A maior parte da população interiorana abastece-se
de água em rios, barreiros, açudes ou lagoas, bebendo-a
“como Deus dá”. Aí também se toma banho, e vão beber — quando se limitam a beber! — os animais. Assim,
por exemplo, todo um bairro da cidade X tira água de
uma lagoa, onde bebem, pastam e... defecam dezenas de
animais. Outros, mais “sabidos”, preferem tirar água de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
251
uma cacimba, cavada a poucos metros da lagoa, porque a
água vem “filtrada”. Mas, como à lagoa, assim também à
cacimba o gado tem livre acesso. “É limpa esta água?” —
perguntamos a um grupo de senhoras que enchiam suas
latas e cântaros, aproveitando o tempo para falar das
vizinhas ausentes. “Tá muito cebosa “ — responderam.
“Tá cheirando a urina”. E não tinham conhecimento de
ninguém que fervesse ou filtrasse essa água. Na cidade Y
a situação é idêntica, com vim agravante: na lagoa também se lavam caminhões. A água constitui-se, assim, um
dos principais veículos de transmissão de doenças, entre
as quais a verminose.
As 733 pessoas sorteadas (chefes de família e outros
membros (50%) de 14 anos e mais) foi proposto o caso
seguinte (A.14c):
“Na localidade de Umbuzeiro há muitas crianças
e mesmo adultos doentes de vermes por conta da
água que não é limpa. Não há outro lugar de onde
o novo possa tirar água para tomar. O Sr. acha que,
mesmo tomando essa água, o povo de Umbuzeiro
pode fazer alguma coisa para evitar a doença de
vences? (Se sim) O quê?”
A tabela 6.5 apresenta a distribuição das 676 pessoas
que, depois de satisfeita a curiosidade de saber a qual dos
tantos “Umbuzeiros” conhecidos se referiam as entrevistadoras, se pronunciaram a respeito do caso proposto.
Os dados da tabela revelam primeiramente, que, embora
alta em ambos os grupos de comunidades é bem menos
elevada nas CT (51,4%) do que nas CNT (66,4%) a proporção de pessoas que não conhecem nenhuma medida pro-
252
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
filática e consequentemente, bem mais elevada nas CT
(48,6%) do que nas CNT (apenas 33,6%) a proporção das
que souberam indicar alguma medida.
Em segundo lugar, a esta primeira diferença acrescese o fato de as pessoas das CT haverem também, em
maior proporção do que as das CNT, indicado medidas
mais eficazes — filtrar ou ferver Assim, contra apenas 3
(0,9%) nas CNT, 45 pessoas das CT (12,8%) mencionaram
ambas estas medidas. Se somarmos os dados dás colunas
3, 4 e 5, observamos que 130 pessoas das CT (37%), contra
apenas 61 (18,8%) nas CNT, sugeriram filtrar ou ferver, ou
ambas estas medidas. Já a proporção dos que souberam
indicar somente outras medidas — menos eficazes: coar
a água, limpar ou cercar o barreiro – é menos elevada nas
CT do que nas CNT: 11,6 e 14,8%, respectivamente.
O teste de qui-quadrado nos revela que esta diferença
encontrada entre os dois grupos de comunidades, quanto ao conhecimento de medidas profiláticas da água potável, é significativa a um nível muito elevado (1/1.000).
Nossa intenção, no presente trabalho, foi confrontar
os dois grupos ou categorias de comunidades (4 trabalhadas e 4 não trabalhadas), e não, cada uma das CT com
a correspondente CNT. Vez por outra, contudo, estabeleceremos tal comparação. Foi o que fizemos no presente
caso. Assim, dos dados seguintes aparece claramente
que, nos 4 pares de comunidades, o número relativo de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
253
pessoas que souberam indicar alguma medida profilática
para o caso proposto é entre 9,9% e 20,1% mais elevado
em cada uma das comunidades trabalhadas pelo SAR, relacionada com a respectiva comunidade não trabalhada4.
Isto vem, evidentemente, confirmar a conclusão anterior de que os dois grupos de comunidades são significativamente diversos quanto à proporção de pessoas que
têm conhecimento de medidas preventivas contra a verminose adquirível pela água.
É lógico que nos perguntemos agora se, a esta diferença verificada no plano do conhecimento ou das concepções, corresponderia um comportamento igualmente
diverso, nos dois grupos de comunidades. Os dados da
tabela 6.6, concernentes às 339 famílias cujos chefes responderam às perguntas A.20b (uso de filtro) e A.20c (costume de ferver a água potável), demonstram que sim.
De fato, contra apenas 14 (8,5%) nas CNT, encontramos,
nas CT, 36 famílias (20,7%) que fervem — sempre ou às
vezes — ou filtram a água. Esta primeira diferença já se
demonstra altamente significativa (ao nível de 5/1.000).
Se porém observarmos o tipo de tratamento aplicado
a água, a diferença é ainda mais notória. Assim, das 14
famílias das CNT, que, de alguma maneira, tratam a
água, apenas 2 filtram, 1 ferve sempre e as restantes 11
fervem somente às vezes. Ao contrário, nas CT, das 36
famílias que tratam a água, 18 filtram, 4 fervem sempre e “ fervem às vezes. A diferença mais palpável reside
no número de famílias que têm filtro: 18 (10,3%) nas CT,
contra apenas 2 (1,2%) nas CNT.
Consideremos, agora, somente as 12 famílias das comunidades não trabalhadas, que fervem, pelo menos às
254
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
vezes, a água. Destas famílias, 8 eram da localidade de
Fonte sendo que três declararam haver aprendido a ferver a água potável, na Escola Radiofônica. É que membros de uma destas famílias haviam frequentado, noutro
lugar, e membros das outras frequentavam, na vizinhança, uma Escola Radiofônica. Das outras 5 famílias uma
aprendeu do médico, outra dos guardas da CEM (Campanha de Erradicação da Malária), e três não souberam
dizer de quem haviam aprendido.
3) Aos 276 chefes de família residentes havia pelo menos 7 anos na localidade (o trabalho do SAR nas 4 CT
pesquisadas datava de pelo menos 7 anos) foi feita a seguinte pergunta (A.14).
“No interior há geralmente muita gente doente de
vermes. O sr. poderia dizer se, nos últimos 7 anos,
essa doença diminuiu (muito, bastante, um pouco),
continuou tão frequente como antes, ou aumentou
(um pouco, bastante, muito) em sua família”?
A tabela 6.7 distribui, segundo a escala proposta, as
257 famílias cujos chefes informaram.
Considerando primeiramente só os subtotais (colunas
2, 6 e 10), constatemos que os chefes de família das CT:
1) em maior proporção acusam que diminuíram (22,5%,
contra apenas 8 4% nas CNT), 2) em menor proporção
declaram continuarem tão frequentes quanto antes
(44,2%, contra 52,1%) e 3) também em menor proporção, acusam que aumentaram os casos de verminose
nas respectivas famílias nos últimos 7 anos (33,3% nas
CT, contra 39,5% nas CTN). Portanto, embora em ambos
os grupos de comunidades as opiniões se concentrem
ALCEU RAVANELLO FERRARO
255
ainda em torno de “continua como antes” e “aumentou”,
revela que a diferença encontrada entre os dois grupos
de comunidades é significativa não só ao nível de 5%,
mas também ao de 1%.
4) Depois do que acabamos de verificar neste parágrafo
sobre “água e verminose”, não deixa de ser surpreendente encontrarmos, nos dois grupos de comunidades,
segundo declarações dos chefes, praticamente a mesma
proporção de famílias (61,9% nas CT e 62 3% nas CNT)
com membros afetados de verminose (5), e até uma proporção levemente mais elevada nas CT (41,5%), do que
nas CNT (40,0%), de membros afetados desta doença (6).
Poderíamos formular três hipóteses explicativas deste
fato:
— ou as conclusões, a que nos levaram os dados das
tabelas anteriores, carecem de fundamento;
— ou, antes do trabalho do SAR, as CT apresentavam
uma maior incidência de casos de verminose, do que as
CNT;
— ou, finalmente, o fato que acabamos de mencionar
se deve simplesmente a uma consciência mais desperta
e a um melhor conhecimento, com relação à presença
desta doença.
Voltaremos, em seguida, a estas hipóteses. Por ora,
prosseguiremos nossa confrontação dos dois grupos de
comunidades. Os chefes que declararam existirem, nas
respectivas famílias, membros doentes de vermes foram
solicitados a indicar (A. 14a) se estes faziam ou não
tratamento. Os dados da tabela 6.8 demonstram, com
evidência, ser bem mais elevado nas CT (58,7%), do que
nas CNT (apenas 44,2%), o número relativo de famílias,
cujos membros doentes faziam tratamento contra a ver-
256
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
minose. Precisamente nesta tabela encontramos o quiquadrado mais elevado (=27,133) e, consequentemente, a
diferença mais altamente significativa (a um nível muito
superior a 1/1.000) até aqui encontrados.
Voltando às hipóteses acima formuladas sobre o fato
de os dois grupos de comunidades praticamente não
diferirem, segundo informações dos chefes, nem quanto à proporção de famílias com pessoas doentes, nem
quanto à proporção de pessoas doentes de verminose,
podemos concluir:
a — Parece insustentável a hipótese de que careçam de
fundamento as diferenças até aqui encontradas entre as
CT e as CNT: por um lado, tais diferenças em favor das CT
são constantes, segundo todos os outros critérios aplicados (melhor e mais frequente conhecimento de medidas
profiláticas da água potável; mais frequente adoção de
tais medidas; consciência, da parte de um maior número
de entrevistados, de uma menor ocorrência de tal doença e, finalmente, adoção mais frequente de medidas terapêuticas); por outro lado, segundo todos estes critérios
aplicados, as diferenças encontradas entre os dois grupos
de comunidades se demonstraram significativas a um
nível muito elevado.
b — Não parece de todo improvável a segunda hipótese, isto é, que, antes do trabalho do SAR, os casos de
verminose fossem mais frequentes nas CT do que nas
CNT, particularmente se lembrarmos que aquelas eram
e continuam sendo relativamente mais isoladas do que
estas.
c — A explicação plausível parece-nos ser a de uma
maior preocupação pela erradicação da doença, o que
ALCEU RAVANELLO FERRARO
257
levaria a uma mais fácil e mais frequente identificação
dos casos de verminose; a proporção, muito mais elevada
nas CT, de pessoas doentes que se tratam, sugere esta
explicação.
6. DOENÇAS EM GERAL
Perguntados (A.15) sobre a ocorrência de algum caso
mais grave de doença, nos últimos 5 anos, na família,
55,4 % dos chefes, nas CT e 53,3% nas CNT, responderam
afirmativamente. Embora não significativa a nenhum
nível, novamente encontramos nas CT uma proporção
levemente mais elevada de chefes que acusam tais casos.
Os chefes de família que assim declararam, foram
solicitados a informar (A.15a) a quem ou a que haviam
recorrido os membros doentes. As respostas aparecem
na tabela 6.9.
Comunidades mais desenvolvidas — as CT, por hipótese — apresentariam, com relação às CNT, menor
frequência de práticas supersticiosas (“rezas” e benzeduras ou curandeirismo) e maior procura ao farmacêutico
e, especialmente, do médico.
a — Quanto ao recurso a “rezas” e benzeduras — contrariamente ao que esperávamos — as CT acusam maior
frequência de tais práticas (33%, contra apenas 21,8% nas
CNT), Tal diferença não chega a ser significativa ao nível
de 5% (nível mínimo estabelecido na pesquisa), mas o é
ao nível de 10%.
b — Já o recurso ao curandeirismo é menos frequente
nas CT do que nas CNT (5,8% e 9,5%, respectivamente),
258
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
não sendo, porém, significativa, a nenhum nível, tal diferença.
c — É quanto ao recurso ao farmacêutico, que encontramos a diferença maior entre os dois tipos de comunidades: 67,4% nas CT, contra 53,1% nas CNT. Tal diferença
é significativa ao nível de 6%, isto é, quase ao nível mínimo estabelecido (5%).
d — É também mais frequente nas CT (46,2%), do que
nas CNT (34,5%), o recurso ao médico, em caso de doença.
Esta diferença, porém, só é significativa ao nível de 15%.
Os dados da tabela 6.9, por conseguinte, não nos permitem tirar nenhuma conclusão dentro do limite de
significância estabelecido na pesquisa (5%). Apenas, os
dados das partes C, D e A respectivamente da tabela, a
um nível de significância entre 15% e 6%, nos levam a
desconfiar que, em caso de doença as pessoas das CT
recorriam, com maior frequência do que as das CNT, ao
farmacêutico, ao médico e, inclusive (o que não deixa de
parecer um contrasenso) a rezas e benzeduras. No capítulo seguinte voltaremos a falar destas práticas surpersticiosas (“rezas” e benzeduras), com relação aos animais.
Aí a situação é levemente inversa, entre os dois grupos
de comunidades.
7. MORTALIDADE INFANTIL
De certa feita, tivemos oportunidade de ouvir um
sarcedote, que se dirigia nos seguintes termos a um
grupo de líderes de sindicatos de Trabalhadores Rurais,
ALCEU RAVANELLO FERRARO
259
reunidos na sede da FUP: “Como é que diz o povo das comunidades de vocês, quando morre uma criança? “Mais
um anjinho no céu”, “Deus quis assim” — não é? Pois
bem! Deus não quer isto!” E o sacerdote esforçou-se, por
mais de 10 minutos, por fazê-los entender que muitas
crianças morriam de fome, outras morriam por falta de
assistência médica, outras, enfim, por falta de higiene,
ou porque as mães não sabiam alimentá-las convenientemente, e que Deus não queria isto. Ao final da palestra
procuramos saber quantos dos presentes eram pais.
Os treze homens casados, de 24 a 53 anos de idade, tinham tido, conjuntamente, 127 filhos, 72 dos quais já haviam morrido, restando apenas 55 vivos.
Esta é a origem do caso seguinte (A.21), sobre o qual
foram solicitadas a manifestarem-se 733 pessoas dos dois
grupos de comunidades (365 chefes de família e 368 outros membros (50%) de 14 anos e mais):
“Dona Maria teve 12 filhos. Sete destes morreram
antes de chegar à idade de 1 ano. Ela se consola dizendo que tem 7 anjinhos no céu. Nem se preocupa
com isto, porque — diz ela — foi Deus que quis assim, e, quando Deus quer uma coisa, não adianta a
gente fazer nada. O sr. concorda com a maneira de
pensar de Dona Maria?”
Evidentemente, a interpretação de Dona Maria, além
de não ser conforme com os princípios originais do cristianismo, traduz uma atitude fatalista, desfuncional ao
desenvolvimento. Dos dados da tabela 6.10, que distribui, segundo quatro categorias precodificadas de respostas, as 668 pessoas que se declararam, aparece que,
260
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
embora ainda muito elevado em ambos os grupos de
comunidades, é menos elevado nas CT (62,3%), do que
nas CNT (75%), o número relativo de pessoas que concordam com a maneira de pensar de Dona Maria. Por outro
lado, é levemente mais elevado nas CT, do que nas CNT,
o número dos que não souberam opinar (6,9%, contra
5%), e dos que discordaram em parte (11,8%, contra 10%).
Já os que simplesmente discordaram da maneira de pensar de Dona Maria, são bem mais numerosos nas CT, do
que nas CNT (19%, contra apenas 10%, respectivamente).
O teste de qui-quadrado, aplicado aos dados assim distribuídos segundo as quatro categorias de respostas, que
vão da discordância total à pura e simples concordância
com a interpretação de Dona Maria, acusa uma diferença
altamente significativa (ao nível de 2/1.000) entre os dois
grupos de comunidades, quanto às concepções com relação à mortalidade infantil.
Aos chefes de família residentes havia pelo menos 7
anos na comunidade foi pedido se declarassem sobre o
comportamento da mortalidade infantil, nas respectivas
comunidades, nos últimos 7 anos. A pergunta A.22 continha 7 categorias precodificadas de respostas: diminuiu
muito, bastante, um pouco; ficou no mesmo; aumentou
um pouco, bastante, muito. Dada a grande dispersão das
respostas, agrupamo-las em três categorias (diminuiu,
ficou no mesmo e aumentou), segundo as quais foram
distribuídas, na tabela 6.11, os 255 chefes de família que
se declararam. Dos dados assim agrupados, as CT apresentam, com relação às CNT:
— uma proporção quase idêntica e muito elevada de
chefes que acusam uma incidência maior (aumento) da
ALCEU RAVANELLO FERRARO
261
mortalidade infantil nos últimos 7 anos (42,7% e 43,5%,
respectivamente);
— uma proporção menos elevada de chefes que não
veem nenhuma mudança “ficou no mesmo” — (29,8%,
contra 36,3%);
— e uma proporção mais elevada de chefes que
acusam uma melhora ou uma diminuição de casos de
mortalidade infantil, nos últimos 7 anos, nas respectivas
comunidades (27,5%, contra apenas 20,2%, respectivamente nas CT e CNT).
No conjunto, por conseguinte, um maior número de
chefes de família das CT, do que das CNT, veem uma
melhora, nos últimos 7 anos. Embora tal diferença não
atinja o nível de significância de 5%, a íntima correlação
encontrada entre quase todos os critérios aplicados aconselha a não menosprezar a hipótese de uma baixa, maior
nas CT do que nas CNT, da taxa de mortalidade infantil,
nos últimos 7 anos.
Resta explicar porque, em ambos os grupos de comunidades, um número tão elevado de chefes de família
(42,7% nas CT e 43,5% nas CNT) afirmam que a situação
piorou, deste ponto de vista, nos últimos 7 anos, o que
parece pouco provável. Talvez porque, sem que tenha
havido mudança sensível na situação real, estes chefes
de família estariam começando a encarar de outra maneira o fenômeno: a morte de uma criança, habitualmente interpretada sob a forma consoladora de “mais
um anjinho no céu”, estaria deixando de constituir, para
estas famílias, um fato “normal”, fatalisticamente aceito.
262
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
8. MATERNIDADES
É manifesto que a quase totalidade dos municípios do
interior do Estado não conhecem, no campo da assistência à maternidade, senão os precários serviços da tradicional “curiosa”. A partir de 1957, algumas comunidades
procuraram resolver este problema, através de pequenas
Maternidades. O Setor de Saúde do SAR, atualmente coordenado por uma enfermeira profissional, canadense,
Voluntária do Papa, treinou parteiras e vem prestando
assessoramento às mesmas.
A Maternidade de S. Antônio do Salto da Onça foi construída pelos “políticos”, como diz o povo. Estes, precisamente por tratar- se de obra “política”, não conseguindo
entender-se para colocá-la em funcionamento, resolveram entregá-la à Paróquia e ao SAR. de S. Paulo do Potengi (1959) funciona em prédio cedido pela L.B.A que
estava abandonado. As outras - Taipu (1957), Serra Caiada (1958), São Rafael (1959), Arês (1960), Touros (1962) e
Lajes – funcionam em modestas casas residenciais, adquiridas ou construídas com tal finalidade.
Além de outros serviços – injeções, curativos, pronto
socorro – estas Maternidades prestam, cada mês, assistência a cerca de 120 parturientes, geralmente às mais
pobres. Contudo mesmo parturientes de famílias mais
remediadas estão paulatinamente passando a fazer seus
internamentos nestas Maternidades, recorrendo a Capital só em casos mais delicados.
Os aspectos mais importantes residem no seguinte:
a — em se estar progressivamente substituindo nestas
comunidades, a tradicional “curiosa”, que, de cachimbo
ALCEU RAVANELLO FERRARO
263
na boca “assiste” ao parto, por parteiras que contam
com algum treinamento (estágio em Maternidades) e
com o assessoramento de uma profissional e que podem,
em tempo, encaminhar para a Capital os casos mais delicados;
b — em se estar criando, nestas comunidades, o hábito
de as parturientes se internarem para o parto;
c — no trabalho de educação sanitária, desenvolvido
especialmente junto às parturientes;
d — e, mais que tudo, em se terem transformado estas
Maternidades em verdadeiras escolas de cooperação.
Consideremos mais demoradamente este último aspecto o mais importante, a nosso ver, do ponto de vista
de desenvolvimento suscitar e mobilizar recursos locais,
através da participação cooperativa ou comunitária.
Tomemos o caso da Maternidade de São Paulo do Potengi cujos relatórios anuais, de 1960 a 1964, pudemos
coletar. Tendo iniciado e concluído o exercício de 1960
com um saldo de 66 cruzeiros a Maternidade teve,
naquele ano, a seguinte receita:
Destes dados aparece que apenas 10,3% da receita total
se deveu aos Poderes Públicos, ultrapassando os 60,0%
as contribuições da comunidade (alimentação fornecida
pelas Donas de Casa — 39,0%; campanhas — 22,9%), de-
264
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
vendo-se o resto às próprias parturientes, Mas isto não
é tudo. A direção da Maternidade é toda constituída de
pessoal voluntário. A maioria das parturientes que não
podem contribuir em dinheiro, trazem uma galinha,
ovos, gerimu, batata, inhame, etc... Evidentemente, se
a Diretoria fosse remunerada, tal receita não daria nem
para pagar o Diretor!
Já no ano seguinte a Maternidade contou com uma receita de 427.872 cruzeiros, não se devendo um centavo
sequer aos Poderes Públicos. A contribuição do Clube das
Donas de Casa foi estimado em 148.000 cruzeiros, ou sejam, 34,6% da receita total. Tal estimativa, porém, é feita
a um preço muito baixo. Melhoraram, neste mesmo ano,
as contribuições das gestantes.
Da mesma forma, a Maternidade não recebeu nenhuma ajuda dos Poderes Públicos nos dois anos seguintes.
Em 1964 o Ministério da Saúde deu uma subvenção
de 200.000 cruzeiros, igual a 13,4% da receita total do
ano (1.489.490). Tirando as contribuições das gestantes,
61,6% deveram-se a contribuições da própria comunidade (Clube das donas de casa, campanha, doações, contribuições do Centro social).
Em Lajes foi construído imenso prédio para Maternidade, sem que, até o presente, o Estado tenha podido
equipá-la e fazê-la funcionar. Ao lado, numa casa mais
que modesta, funciona uma Maternidade, em condições
muito precárias, mas que, a final de contas, presta alguma assistência, especialmente às parturientes pobres
que não podem recorrer à Capital, distante cerca de 200
quilômetros.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
265
Em Goianinha, há decênios está em construção um
prédio para Maternidade — verdadeiro sumidouro de
verbas. Na cidade vizinha em Arês, durante anos funcionou uma pequena Maternidade, mantida quase que
exclusivamente pela comunidade. Por falta de continuidade de motivação do povo, esta acabou fechando os
batentes em 1965. Sabendo que tais obras não podem
estribar-se em auxílios dos Poderes Públicos, o SAR acaba
de realizar, em Arês, uma Semana de Ação Comunitária.
Em consequência, o povo está organizando-se para “ressuscitar” proximamente a Maternidade.
A história das outras é semelhante. Apenas, as de Touros e Taipu contaram com maiores ajudas governamentais para compra de aparelhos.
Talvez devêssemos ainda lembrar a Maternidade
“política” de Nova Cruz, que também figura no rol dos
assim chamados “monumentos fantasmas” — sumidouros de verbas. Este prédio está hoje completamente inutilizado, devido à demora na construção, que só avançava
em vésperas de eleição. Embora nunca tenha abrigado
ninguém, senão alguns flagelados das enchentes de
1964, pessoas fidedignas asseguram-nos que jornais do
Sul publicaram manchetes da primeira parturiente! A algumas centenas de metros, acaba de ser instalado, em
convênio com o SESP, um Hospital da Paróquia. Este
também, é verdade, contou com boa ajuda dos Poderes
Públicos. A diferença está em que os promotores do empreendimento não são remunerados e em o dinheiro ter
sido realmente aplicado.
A propósito das 8 comunidades pesquisadas, vale lembrar que apenas 4 delas têm acesso relativamente fácil a
266
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
alguma destas Maternidades: Potengi (CT) e Santo Estevam (CNT), distantes cerca de 2 léguas da Maternidade de
São Paulo do Potengi, e Redenção (CT) e Serrinha (CNT),
distantes cerca de uma légua da Maternidade de S. Antônio.
9. SERROTE
Em um documento do MEB (Revisão: Maio — Agosto de
1962), encontramos o seguinte relatório de uma visita de
supervisão à Escola Radiofônica de Serrote (a primeira
das 4 CT), que, embora não diga exclusivamente respeito
ao tema tratado neste Capítulo, transcrevemos textualmente:
“Tivemos oportunidade de visitar, no dia 9 de junho de 1962, a comunidade de Serrote. A Escola
Radiofônica de Serrote foi fundada em 1958. Tratase de fato de uma Escola que é o Centro da Comunidade. Junto à mesma surgiram o Clube Agrícola,
o Clube de Jovens e o Clube das Mães”.
“O Clube Agrícola possui um trabalho de horta, realmente excelente. Interessante é notar que, além da
horta comum, as crianças já treinadas plantaram
suas hortas particulares. Vimos estas crianças. Sentimos sua alegria em nos mostrar suas plantações.
Crianças educadas. Crianças desenvolvidas, que a
todos cumprimentavam. Note-se, por exemplo, o
orgulho de um menino de seis anos mais ou menos, que dizia só beber água fervida”.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
267
“O Centro Social por ora funciona na casa da moni-
“Enfim nesta Escola Radiofônica reúne-se toda a co-
tora (Em 1964, quando conhecemos Serrote, o Cen-
munidade; chegamos de improviso e lá encontra-
tro já funcionava em sede própria, construída pela
mos umas 20 mocinhas planejando festas juninas”.
comunidade). As monitoras são o fermento de todo
“Desta Escola parte, além da instrução, toda uma
este desenvolvimento comunitário. Excelente tam-
intensa campanha de politização. Dela sai também,
bém o fato de o irmão destas monitoras ser líder
com a vibração e despertar “vivências”, todo um
sindical. Aí se reúnem por isso, também os sindi-
cristianismo de amor. Cristianismo que e consci-
calizados locais. Aí fazem suas reuniões, seus de-
ente: dar- se a Deus e à comunidade”.
bates”.
“Ponto a aprofundar, foi a declaração dos líderes
locais. O primeiro movimento que surgiu foi a JAC”
(Juventude Agrária Católica). A JAC é formidável.
Fez a fermentação. Depois veio a Escola Radiofônica. Daí foi se alastrando”.
“Na Escola Radiofônica de Serrote, cartazes os mais
diversos espalham-se pelas paredes. Na entrada
ria casa há um que diz: “Aprenda a ler pelo rádio”.
Na sala onde funciona a Escola Radiofônica, há um
jornal noticioso. Nêle a monitora coloca recortes de
jornais artigos, manchetes, etc... Toda uma motivação espalha-se pela casa. Assim, em cima do pote,
lê-se: “Beba já fervida”. Na copa, um bonito cartaz
ilustrado faz alusão ao consumo de verduras e frutas”.
“Quando lá chegamos, encontramos uma turma
empenhada em confeccionar cartazes de politização (foi o ano da politização!). Frases como: “Voto
não se vende consciência não se compra”, “Na democracia o voto é a arma do povo”, etc..., espalhavam-se sobre as diversas mesas estes cartazes serão
colocados nas paredes das casas, nas feiras, nas bodegas e na sala de aula”.
268
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Até aqui, o texto do relatório. Quanto à JAC, esta não
só constituiu o início, mas continua sendo a “alma” de
todo o trabalho desenvolvido em Serrote.
Além das cobras que costumam habitar o teto (durante
a pesquisa matamos duas, de bem um metro de comprimento), pendem das paredes do Centro Social cartazes
como estes: “Ou você acaba com os vermes, ou os vermes
acaba (sic!) com você!” “Ande calçado e pise sossegado”.
“Coma verdura e goze saúde”.
Convidado, em uma família, a experimentar uma
pamonha, foi-nos oferecida também água. Prevenindo
uma possível surpresa — a água era meio barrenta — a
moça explicou: “É a água que temos aqui. Mas pode tomar sem cuidado, que é fervida e filtrada”.
“Que tal, Serrote? — perguntamos ao Dr. Paulo Sobral,
agrônomo piauiense e chefe do Escritório da ANCAR, em
Nova Cruz. “Leva vantagem de 10 anos sobre as comunidades vizinhas”, foi a resposta. E lembrou-nos, entre
outros, o fato seguinte: quando de tuna campanha de
vacinação das crianças promovida pelo SESP, o trabalho foi mais fácil em Serrote, dó que na própria cidade
de Nova Cruz. “Bastou mandar um recado, marcando a
ALCEU RAVANELLO FERRARO
269
hora”, prosseguiu Dr. Paulo, que acompanhara o pessoal
do SESP. “Devido a um “prego” no caminho, chegamos
perto de meio dia, com quase três horas de atraso e pouca esperança de encontrar o povo ainda reunido. Mas,
foi só ouvir zoada do jeep, que começou a sair gente de
todas as casas vizinhas: “Nós sabíamos — disseram-nos
— que devia ter acontecido qualquer coisa no caminho,
e que os senhores não iam faltar”. Em algumas ruas de
Nova Cruz, mais de uma criança teve que ser vacinada na
“marra”, porque as mães não queriam. Em Serrote não
houve problema”.
Concluindo este Capítulo, poderíamos perguntar-nos
sobre quais as causas das diferenças encontradas entre
os dois grupos de comunidades, quanto às concepções
e comportamento com relação à saúde. Teremos ocasião de tratar disto, com mais vagar, no Capítulo sobre
“Agentes de Mudança”. Por ora, transcrevemos apenas o
diálogo que tivemos com a mãe de dois líderes de Serrote, quando, em fins de junho de 1965, lá chegamos, já
ao pôr do sol.
— Dalvina está? — perguntamos.
— Estava numa reunião do Clube de Mães. Agora deve
estar reunida com as outras moças da JAC, no Centro Social, fazendo a revisão do semestre.
— E Cecílio?
— Está com os rapazes da JAC, fazendo o planejamento
para o segundo semestre.
— Houve mais alguma reunião, hoje?
— Hoje, só houve isto. Sim! Houve também catequese
para adultos.
270
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Quando, pouco depois, inocentemente perguntamos
a estes líderes quantas famílias aproximadamente moravam na localidade, um deles nos observou que, na comunidade de Serrote, deviam morar cerca de 150 famílias.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
271
NOTAS AO CAPÍTULO VI
1. SAR — Revisão de 1961 e Planejamento de 1962—1964, Tipografia do SAR,
Natal,1962, pp.6, 12,18-19.
2. SAR (Equipe de Clubes) — Clubes Rurais e Promoção (mimeogr.), Natal, 1963,
p.6.
3. SAR, Revisão de 1963 — Planejamento de 1964, Natal, Tipografia do SAR maio
de 1964, p. 47-49.
4. Os números absolutos correspondentes às percentagens acima são os seguintes: Serrote 41/100; Potengi — 49/91; Jundiá de Cima — 39/74; Redenção
— 43/87; Barra do Geraldo — 28/90’ S. Estevam — 29/89; Fonte — 27/70; Serrinha — 25/75. Total de pessoas declaradas nas 8 comunidades — 676 (CT —
352, CNT — 324); não declaradas — 57 (CT — 19, CNT — 38).
5. Questionandos — 365 chefes de família. Os dados se referem às 343 famílias
cujos chefes responderam (CT -r- 17.: CNT — 167), sendo que 22 (CT — 7, CNT
— 15) não responderam.
6. As 343 famílias cujos chefes responderam à I parte da pergunta A.14a, totalizavam 1.830 membros. As percentagens acima se referem aos 1.748 membros a respeito dos quais os chefes informaram (CT — 926, CNT — 322), restando 82 (CT — 41, CNT — 41), não especificados.
272
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
CAPÍTULO VII
SITUAÇÃO
TÉCNICO-ECONÔMICA
1. TÉCNICAS AGROPECUÁRIAS
O fato seguinte deu-se por volta de 1956, na localidade de Potengi Pequeno, distante cerca de duas léguas
da sede municipal e paroquial de São Paulo do Potengi, onde acabara de ser instalado um dos primeiros Escritórios da ANCAR, no estado. Foi num “dia de missa”.
Era quase meio dia. Mons. Expedito concluíra sua parte:
confissões, missa, pregação e batizados. Chegara a hora
de o técnico da ANCAR fazer a sua “pregação” a várias
dezenas de agricultores, bem motivados, aliás, pelas palavras do vigário. Mas, onde reunir, numa sombra, tanta
gente? O povo de Potengi Pequeno não tinha ainda construído seu Centro Social, onde funciona hoje também
a Escola da comunidade, nem seu Mercadinho (para o
lanche nos dias de missa), levantado com dinheiro de
uma festa, tomado emprestado ao Santo padroeiro, que
até hoje não cobrou a dívida! “O jeito — disse-nos Mons.
Expedito — foi pedir ao povo que entrasse novamente
na igreja, e ao técnico, que subisse os degraus do altar,
a fim de fazer sua “pregação” sobre pragas da lavoura e
inseticidas, sobre doenças de animais e vacinação”.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
273
Provavelmente este foi o único agrônomo que, no
cumprimento de sua missão técnica, subiu os degraus do
altar. Mas, exatamente por se tratar de um órgão isento
de interferências políticas, o SAR e os vigários, de modo
geral, sempre colaboraram com o trabalho da ANCAR
como por outro lado, contaram sempre com a cooperação deste. Esta colaboração tornou-se tão habitual, que,
ainda recentemente, desinteresse demonstrado por certo
vigário constituiu motivo de queixa da parte de um dos
técnicos da ANCAR. De mais de uma dezena destes, com
os quais tivemos oportunidade de manter conctato, ouvimos que, onde o SAR atua ou atuou, a ANCAR encontra
terreno mais propício para o seu trabalho de orientação
técnica.
Aos agricultores dos dois grupos de comunidades
foram propostos o caso e a pergunta (A. 13b) seguintes:
“Alguns agricultores acham que os conselhos dos
técnicos podem ajudar o agricultor a melhorar sua
lavoura ou sua criação. Já outros não acreditam
muito nos conselhos dos técnicos, porque - dizem
- os técnicos são gente de cidade, que nunca pegou
numa enxada, e pouco entendem dos problemas
do homem do campo. O que o agricultor precisa
— dizem — e de terra para trabalhar, chuva e vontade de trabalhar. O que o senhor acha; 1) que os
conselhos dos técnicos são úteis ao agricultor ou 2)
que basta ao agricultor terra, chuva e vontade de
trabalhar?”
Dos agricultores que responderam, respectivamente
nas CT e nas CNT, 60,8% e 59,3% reconheceram a utilidade dos conselhos dos técnicos; 30,1% e 33,3% os con-
274
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
sideraram inúteis, e os restantes 9 1% e 7,4% declararam
não saber ou responderam com ambiguidade à pergunta.
Deste ponto de vista, portanto, praticamente não diferem os dois grupos de comunidades, restando ainda em
ambos um numero elevado de agricultores (cerca de 40%)
que não reconhecem a utilidade dos conselhos dos técnicos.
Os agricultores foram solicitados a dizer se seus roçados haviam sido atacados, nos últimos três anos, pela
formiga ou pela lagarta (A.6), ao que, respectivamente
nas CT e nas CNT, 90,6% e 87,3% responderam afirmativamente quanto à formiga, e 85,6% e 90,3%, quanto à
lagarta. Dos que acusaram a existência destas pragas,
respectivamente nas CT e nas CNT, 95,9% e 97,6% usaram veneno contra a formiga, e 53,3% e 50,8% contra a
lagarta: um número levemente mais elevado nas CNT,
no primeiro caso, verificando-se o inverso no segundo,
mas em ambos, sem nenhuma diferença significativa entre os dois grupos de comunidades.
Quanto à prática de adubação da terra (A.ll), apenas
12 agricultores das CT (7,8%) e 13 das CNT (9%) responderam afirmativamente.
Aos agricultores que afirmaram possuir animais (gado,
cavalos, jumentos, porcos), foi pedido que declarassem
se os haviam vacinado em 1964 e 1965 (A.5c). Segundo
os dados da tabela 7.1, as CT acusam um número relativamente mais elevado de agricultores que vacinaram os
animais em 1964 e em 1965 (13%, contra apenas 7,1% nas
CNT), ou em ao menos um destes dois anos (22,8%, contra 18,4% nas CNT), sendo, ao contrário, menos elevado
nas CT do que nas CNT o número dos que não vacinaram
ALCEU RAVANELLO FERRARO
275
em nenhum dos dois anos (64,2% e 74,2%, respectivamente). Embora bastante elevada, tal diferença entre os
dois grupos de comunidades não chega a ser significativa
ao nível de 5%.
Aos mesmos agricultores que afirmaram possuir animais foi perguntado se costumavam recorrer a “rezas”
ou benzeduras, quando adoecia algum animal (A.5b), ao
que, respectivamente nas CT e nas CNT, 3,4% e 7,2% declararam recorrer geralmente; 18,0% e 16,5%, às vezes, e
78,6% e 76,3%, nunca recorrer a tais práticas. Tal diferença — práticas supersticiosas levemente menos frequentes nas CT do que nas CNT — está longe de ser significativa ao nível de 5%.
Os dados dos itens 2) e 3) não revelam nenhuma diferença significativa entre as CT e as CNT, do ponto de
vista de técnicas agropecuárias. A única diferença sensível, mas não significativa ao nível de 5%, diz respeito
à prática de vacinação dos animais, mais frequente nas
CT do que nas CNT. Isto, porém, não equivale a dizer que
não tenha havido nenhuma mudança (melhora) sob este
aspecto, mas sim que, se alguma mudança houve, esta
deveria ser atribuída à ANCAR, que atuou em cinco das
oito comunidades pesquisadas: em três trabalhadas e em
duas não trabalhadas.
2. CRÉDITO
As tabelas 7.3 e 7.4, referentes às perguntas A. 12 e A.
12a, nos permitem confrontar os dois grupos de comu-
276
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nidades quanto ao comportamento ou à atitude dos agricultores com relação ao uso de crédito e tipo de crédito.
À parte o fato de serem ainda muito limitadas para o
pequeno agricultor e especialmente para o trabalhador
rural as possibilidades de crédito bancário, lembre-se que
ambos são, não raro, avessos a este tipo de crédito — o
simples pensamento de ficarem “desacreditados”, isto é,
de não poderem pagar, é o bastante para desestimulá-los
de qualquer tentativa — preferindo o crédito particular
a juros altíssimos (7-12% ao mês).
Comecemos pela tabela 7.3. Segundo os dados desta,
a diferença entre os dois grupos de comunidades, sem
distinção de categorias profissionais, não reside tanto na
proporção de agricultores que de fato obtiveram (18,9%
nas CT e 16,9% nas CNT), quanto na dos que, sem ter conseguido, tentaram obter empréstimos para o plantio de
1965 (12,2% nas CT, contra apenas 2% nas CNT). Por outro
lado a proporção dos que nem sequer tentaram obter é da
ordem de 68,9% nas CN, contra 81,1% nas CNT. Esta diferença encontrada em favor das CT se revela altamente
significativa, ultrapassando não só o nível (mínimo) de
5%, mas, mesmo, o nível de 0,5%, ou seja, de 5 por 1.000.
A mesma tabela 7.3 revela que o número dos que nem
sequer tentaram conseguir empréstimo para o plantio em 1965 é menos elevado nas CT do que nas CNT,
seja entre os patrões (40,0%, contra 52 6%) seja entre os
pequenos proprietários (70,2%, contra 78,9%), seja entre
os trabalhadores rurais (76,8% contra 89,6%). Quanto aos
primeiros, a diferença está em que um maior número
de patrões das CT (56%) do que das CNT (42,1%) de fato
conseguiram empréstimo.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
277
Consideremos agora somente os que obtiveram ou
tentaram obter algum empréstimo. Os dados seguintes,
referentes às mesmas perguntas A. 12 e A. 12a, nos permitem concluir:
Quanto aos que obtiveram empréstimo, a diferença
entre os dois grupos de comunidades reside precisamente no crédito cooperativista (8 nas CT, contra apenas
1 nas CNT); em consequência também do crédito cooperativista, inverte-se a situação quanto aos empréstimos
tomados a particulares: 14/25 (56,0%) nas CTN, contra
apenas 10/31 (32,3%) nas CT.
Quanto aos que, embora sem sucesso, tentaram obter
empréstimos, as CT acusam um maior número de tentativas com relação a todas as fontes de crédito; com relação ao crédito cooperativista, temos 6 tentativas nas CT,
contra nenhuma nas CNT.
Reside, por conseguinte, especialmente nas novas —
embora ainda limitadas — perspectivas abertas pelo
crédito cooperativista a principal razão das diferenças encontradas entre os dois grupos de comunidades, quanto
ao comportamento dos agricultores com relação ao uso
de crédito agrícola. Que isto se deve principalmente ao
trabalho do SAR — seja através de sua rede de cooperativas, seja simplesmente motivando os agricultores para
que se associem mesmo a outras cooperativas — ficará
278
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mais claro no parágrafo 3, ao tratarmos explicitamente
do cooperativismo.
2) Já dissemos que não são nada sorridentes para o
agricultor nordestino, especialmente para o pequeno
proprietário e o trabalhador rural, as perspectivas de
crédito bancário. Suponhamos, porém, que o Governo
mudasse, neste campo, sua política. Como se comportariam, ou que atitude poderíamos esperar dos agricultores dos dois grupos de comunidades?
Dos dados da tabela 7.4, referentes, também estes, às
perguntas A. 12, 12a e 12b, resulta ser mais elevado nas
CT do que nas CNT o número relativo de agricultores
1) que obtiveram empréstimo bancário em 1965 (8,1%,
contra 5,9%), 2) que, embora sem sucesso, tentaram conseguir (6%, contra 2,2%) e, finalmente, que, embora não
o tenham ainda feito, gostariam de tentar (43,6%, contra
36,8%, respectivamente nas CT e CNT).
Por outro lado, ainda que alta em ambos os grupos de
comunidades, é bem menos elevada nas CT (42,3%) do
que nas CNT (55,1%) a proporção de agricultores que não
só não obtiveram, nem tentaram, mas nem sequer gostariam de tentar obter empréstimo bancário.
Aplicado da seguinte forma: conseguiram + tentaram
+ gostariam de tentar x nem sequer gostariam de tentar, o teste de qui-quadrado revela que a atitude, com
relação a empréstimos bancários para a agricultura, é
significativamente (ao nível de 5%) mais favorável entre
os agricultores das CT, do que entre os das CNT. Que o
crédito bancário a juros módicos seja condição indispensável para o desenvolvimento da agricultura, é por demais evidente. Por outro lado, uma atitude favorável por
ALCEU RAVANELLO FERRARO
279
parte dos agricutores, com relação a este tipo de crédito,
pode ser considerada como um pré-requisito para o desenvolvimento da agricultura.
3. COOPERATIVISMO
É característico de áreas subdesenvolvidas a quase inexistência de grupos de tipo secundário, ou seja, de associações voluntárias, no campo econômico. Por outro
lado, a proliferação de tais formas associativas pode ser
considerada como um indicador de desenvolvimento
pelo menos incipiente. No presente parágrafo limitarnos-emos ao cooperativismo.
Antes de passarmos à análise do que o SAR realizou
através de sua rede de cooperativas, vejamos o que representa o cooperativismo para as 8 comunidades pesquisadas.
Aos 315 agricultores dos dois grupos de comunidades
foi primeiramente dirigida a seguinte pergunta (A.40):
“O sr. acha que uma cooperativa, para um agricultor como o senhor, seria: 1) necessária; 2) útil, mas
não necessária; 3) inútil, ou 4) prejudicial?”
As 308 respostas foram reduzidas a duas categorias (tabela 7.5), tendo sido agrupados em “desnecessária” todos
os que não afirmaram a necessidade de uma cooperativa,
inclusive 3 agricultores das CNT, que a acharam prejudicial.
Considerando os dois grupos de comunidades conjuntamente, constatamos que 4 agricultores de cada
280
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
5 (79,2%) afirmam a necessidade de lima cooperativa,
ou de se associarem a alguma cooperativa. O número,
porém, dos que assim pensam, é bastante mais elevado
nas CT (83,9%) do que nas CNT (apenas 74,1%), diferença
esta que se revela significativa ao nível de 5%. Encontramos, por conseguinte, entre os agricultores das CT, uma
propensão significativamente mais acentuada ao cooperativismo, do que entre os das CNT.
A esta atitude diversa (mais favorável), corresponderia, nas CT um comportamento também diverso, isto é,
uma proporção maior do que nas CNT, de agricultores
associados a alguma cooperativa? Foi o que procuramos
saber através da pergunta A.41. A tabela 7.6 nos permite
dois tipos de confrontação: entre as 4 CT e as 4 CNT, e
entre cada CT e correspondente CNT.
Confrontando os dois grupos de comunidades, observamos que o número relativo de agricultores efetivamente associados a alguma cooperativa é muito mais
elevado nas CT (20,5%) do que nas CNT (apenas 3,4%). Se,
como vimos acima, os dois grupos de comunidades diferem significativamente (ao nível de 5%) quanto à atitude
com relação ao cooperativismo, a diferença, aqui encontrada, quanto ao comportamento associativista (associados a alguma cooperativa), se demonstra significativa a
um nível muito mais elevado (1 por 1.000).
Considerando, do mesmo ponto de vista, cada um dos
quatro pares de comunidades, encontramos em cada
uma das 4 CT, relacionada com a correspondente CNT,
uma proporção maior de agricultores associados a cooperativa. Assim temos, respectivamente para cada CT e
correspondente CNT, os seguintes números de associados:
ALCEU RAVANELLO FERRARO
281
1. 8 (19,5) em Serrote, contra nenhum em Barra do Geraldo;
2. 10 (21,7%) em Potengi, contra 1 (2,8%) em S. Estevam;
3. 9 (23,1%) em Jundiá de Cima, contra nenhum em Fonte;
4. 6 (17,1%) em Redenção, contra 4 (12,9%) em Serrinha.
Multiplicando o número de associados pelo inverso da
proporção de famílias pesquisadas em cada uma das 8
comunidades, temos, aproximadamente (+ - cerca de 3%),
86 agricultores chefes de família, associados a cooperativa nas CT, contra apenas 10, nas CNT.
Do que veremos a seguir, aparece que as 4 comunidades trabalhadas pelo SAR e por nós pesquisadas não
chegam a representar 2% do total de associados à rede
de cooperativas suscitadas (“ressuscitadas”, algumas), assessoradas e coordenadas pelo Setor de Cooperativismo
do SAR.
4. SETOR DE COOPERATIVISMO
Neste e nos parágrafos seguintes deixaremos momentaneamente de lado nosso estudo comparativo entre
as 4 CT e as 4 CNT, para tentarmos uma avaliação de
conjunto do trabalho desenvolvido pelo SAR no campo
propriamente econômico. Neste parágrafo veremos as
realizações do Setor de Cooperativismo, deixando para
o seguinte as atividades do Setor de Artesanato, embora
também este desenvolva seu trabalho sob forma cooperativa. Concluiremos o capítulo com algumas considerações sobre a experiência de colonização, levada a termo
pela Fundação Pio XII, em Punaú.
282
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
1) Como praticamente todas as atividades do SAR, também o cooperativismo teve seu início com treinamentos
de líderes (cooperativistas). A educação cooperativa constituiu, desde o início, a maior preocupação do Setor, não
só no sentido de formar líderes imbuídos de espírito cooperativista, mas também, de capacitá-los a administrar
cooperativas. Podemos sintetizar da seguinte maneira as
realizações do Setor, neste campo, desde 1956 até agosto
de 1966:
— 14 treinamentos de líderes cooperativistas (2 em
1956);
— por ano, em 1958, 1960 e 1962 a 1965; e 5, de janeiro
a agosto de 1966, com uma duração de 5 a 15 dias, todos,
com excessão de 3, em regime de internato, atingindo
um total de cerca de 340 participantes, 11 dos quais provenientes de outros estados;
— outros 8 cursos (noturnos) em bairros da Capital ou
junto a, e a pedido de outras Instituições;
— 151 palestras sobre cooperativismo (excluídas as
dos cursos), geralmente a pedido de outras Instituições;
— 12 estágios de elementos do interior do estado e de
outros estados, no Setor;
— 23 programas radiofônicos;
— 253 viagens (até fins de 1965), seja para a organização de Cooperativas, seja para supervisão, seja ainda
para assessoramento às diretorias reunidas (34 reuniões);
— 4 encontros com dirigentes e sócios de Cooperativas.
Em 1966 o trabalho de educação cooperativista foi intensificado. Assim, além dos 5 cursos acima mencionados e de dois estágios, o Setor, de janeiro a agosto de
1966, realizou:
ALCEU RAVANELLO FERRARO
283
— 68 reuniões com sócios de Cooperativas (52 no interior, com participação média de 15 pessoas);
— 24 visitas de supervisão a Cooperativas do interior;
— 5 contatos com diretorias, no interior;
— orientação a dois elementos para assumirem trabalhos de tesouraria;
— 1 dia de estudo, com a participação de elementos
de diversas cooperativas, para a fundação da Cooperativa
Central.
Todo este trabalho educativo resultou na organização
de 14 Cooperativas (apenas duas, anteriores a 1962), e na
restauração de outras duas. A tabela 7.7, que analisaremos a seguir, sintetiza o movimento de apenas 12 destas
Cooperativas. Os dados que nos acabam de ser fornecidos
pelo Setor omitem 4 Cooperativas — a do Sindicato dos
Produtores Autônomos de Caicó, a Agrícola de Açu, a Escolar, da Escola Doméstica de Natal, e a de Consumo, do
Pessoal Civil e Militar da Marinha — todas organizadas
pelo Setor, mas que este achou por bem não incluir, por
não lhes estar podendo prestar todo o assessoramento
necessário. Também não foi incluída a Cooperativa de
Pium, que, embora não tenha sido organizada pelo Setor,
recebe assessoramento deste.
Além de o Setor se ver em dificuldades para prestar
todo o assessoramento necessário às Cooperativas por
ele fundadas ou restauradas, vem-lhe pedido da FUNDHAP (Fundação de Habitação Popular) para um trabalho
de motivação, na Cidade da Esperança, para a instalação
de uma Cooperativa de Produção, enquanto o DCOR (Departamento de Cooperativismo e Organização Rural) lhe
pede que “tome conta” da Cooperativa Agropecuária de
284
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
S. Paulo do Potengi, e a Companhia Hidro-Elétrica de Boa
Esperança (Piauí) solicita o chefe do Setor, a Assistente
Social Severina Porpino, a verificar in loco as possibilidades de implantação de uma cooperativa naquela zona,
pedido este que será em breve atendido.
Assim, novamente, senão o impossível, pelo menos o
inesperado acontece: enquanto o Setor conta com apenas 6 elementos (1 coordenadora, 2 educadores cooperativistas, 2 técnicos em contabilidade e 1 secretária), o
DCOR tem 30 funcionários, sem que o Diretor saiba o
que fazer com a maioria destes. A SUDENE mantém um
funcionário no Setor, com a condição de este colocá-lo à
disposição para todo curso que o DCOR venha promover.
E o Diretor de um órgão que mantém convênios com a
SUDENE, o INDA e o Governo do Estado vê-se na contingência de dizer: “Severina fabrica (técnicos) e manda
para lá”!
2) A tabela 7.7 sintetiza o movimento de 12 cooperativas das quais acabam de nos ser fornecidos dados pelo
Setor.
De apenas duas em 1961 (fundadas já em 1957 e 1958),
o número de Cooperativas elevou-se sucessivamente a 7,
9 e 12, respectivamente nos anos de 1962, 1964 e 1965.
Por outro lado, o número de sócios, que não ultrapassava
os 500 em fins de 1961, subiu a 1 877 em 1962, e superou
os 5.000 em 1965 e primeiro semestre de 1966. A leve
baixa verificada entre dezembro de 1965 e junho de 1966
(de 5 091 a 5.053) deveu-se ao “expurgo” de cerca de duas
centenas de sócios que não estavam pagando regularmente suas quotas-partes, baixa esta quase totalmente
compensada pela entrada de novos sócios.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
285
Apesar de não ser ainda suficientemente elevado, é
interessante observar como, de apenas 3.326.000 cruzeiros em dezembro de 1962, o capital social subiu para
51.445.000 a 30 de junho de 1966.
O mesmo se diga do movimento de crédito e venda de
mercadorias. O valor total, em cruzeiros, dos empréstimos feitos pelas Cooperativas de Crédito e pela Secção de
Crédito da Cooperativa Mista Arquidiocesana, de pouco
mais de 15 milhões em 1962, elevou-se a quase 144 milhões em 1965 e, só no primeiro semestre de 1966 a quase
194 milhões, com perspectivas de atingir e mesmo superar os 400 milhões em fins do mesmo ano. Da mesma
forma, de cerca de 13 milhões e meio de cruzeiros em
1962, o valor total das vendas de mercadorias efetuadas
pelas Cooperativas Mistas, elevou-se a quase 248 milhões
em 1965, atingindo, só no primeiro semestre de 1966, os
158 milhões com perspectivas de superar os 300 milhões
no fim do mesmo ano.
A Cooperativa Mista Arquidiocesana de Natal representava, no primeiro semestre de 1966, cerca de 40%
(2.050) do total de sócios! quase 60% (30.615.600) do capital social total, cerca de 55% (106.765.500) do valor total
dos empréstimos efetuados e quase 84% do valor total
das mercadorias vendidas.
Outra relativamente forte é a Cooperativa de Crédito
de Santana do Matos. Esta, também no primeiro semestre de 1966, representava quase 28% (1.357) do total de
sócios, 25% (12.921.Í00) do capital social total e 37% do
valor total dos empréstimos efetuados.
As restantes 10 Cooperativas não representavam, no
mesmo período, mais do que 32% dos associados, 15% do
286
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
capital social, 8% do valor total dos empréstimos e 16%
do valor total das vendas de mercadorias.
A mais antiga é a Cooperativa Popular Mista de Surubajá. Fundada em 1957, numa vila de pescadores, contra o parecer de vários técnicos, subsistiu até hoje. A falta
de capitalização foi a razão principal de seu pouco desenvolvimento. Enquanto, de 1962 a 1965, os sócios passavam de 86 a 132, seu capital social elevou-se de 50.000 a
apenas 70.000 cruzeiros. Contudo, no primeiro semestre
de 1966, tendo entrado apenas 3 novos sócios, seu capital social quase duplicou com relação ao ano anterior.
Em consequência, o movimento de vendas, que superara
de pouco os 3 milhões de 1965, só nos meses de janeiro a
junho de 1966 superou os 4 milhões. Isto vem sendo conseguido desta e de outras cooperativas, graças ao intenso
trabalho educativo desenvolvido pelo Setor no corrente
ano.
A 22 de julho de 1966, por ocasião de um encontro
de dirigentes de Cooperativas, foi fundada uma Cooperativa Central. A esta filiaram-se 7 Cooperativas: a Arquidiocesana de Natal, as Populares Mistas de Nísia Floresta,
Surubajá e Santana do Matos, e as Agrícolas Mistas de
Espírito Santo, Várzea e Pium. Visa-se, com isto, através
de compras em comum (gêneros de consumo, ferramentas, inseticidas, material veterinário, etc.), de vendas em
comum da produção agrícola e de maiores facilitações de
financiamentos por parte de instituições bancárias, possibilitar um maior desenvolvimento destas Cooperativas.
Além da Central, deverão proximamente ser fundadas
outras duas Cooperativas no interior: uma em Monte
Alegre e outra em São Gonçalo. Com o pequeno “expur-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
287
go” feito este ano, a intensificação do trabalho educativo
e as crescentes exigências feitas aos associados, tudo indica que o cooperativismo tomará grande impulso, especialmente se for aprovado (já recebeu parecer favorável
da Comissão Técnica) o PROJETO-MISEREOR, que prevê
um financiamento, em cinco anos, da ordem de cerca
de 1/5 do orçamento anual do estado do Rio Grande do
Norte.
Em 1963, quando da fundação da Cooperativa, havia cerca de 450 artesãs, 60 das quais se associaram.
O número de sócias elevou-se a 429 no ano seguinte, 670
em 1965 e 680 em meados de 1966. O capital social realizado, de menos de 100.000 cruzeiros em 1963, elevou
se sucessivamente para pouco mais de 1 milhão no ano
seguinte, cerca de 3 milhões em 1965, tendo alcançado
os 4.100.000 em meados de 1966.
O movimento da Cooperativa nos anos de 1964 a 1966
foi da seguinte ordem, em cruzeiros:
5. SETOR DE ARTESANATO
Também a organização, em 1963, da Cooperativa dos
Produtores Artesanais do Litoral-Agreste foi precedida
por um bom número de treinamentos, atingindo particularmente os núcleos trabalhados pela extinta Missão
Rural do Agreste.
Assim, entre 1959 e 1965, o Setor promoveu 33 treinamentos de artesãs (5 em 1959, 2 em 1960, 6 em 1961, 10
em 1962, 8 em 1963, 1 em 1964 e 1 em 1965), somando
um total de 450 participantes. Apenas 4 foram realizados
na capital, e os restantes 29, no interior. 15 tiveram uma
duração de 5 a 8 dias, e 17, de 10 a 15 dias, sendo que 1
se prolongou por três semanas.
Tendo-se observado que era fraco, em vários núcleos,
o trabalho de comunidade, foi promovido, em julho de
1966, um treinamento de 1 mês, com participação de 27
artesãs, de 19 áreas e 9 municípios, com o objetivo de
capacitá-las a empreender ou intensificar a ação comunitária nos respectivos lugares.
288
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Dos dados acima resulta:
a — levando em conta o índice inflacionário nos últimos anos, praticamente não houve aumento de produção
a partir de 1964;
b — considerando o aumento de valor da mercadoria
entre uma operação e outra (compra e venda), está havendo um progressivo aumento de estoque;
c — não há proporção entre o número “oficial” de
artesãs e o valor da produção entregue pelas mesmas à
Cooperativa.
Segundo nosso modo de ver, tudo isto resulta de um
único ponto de estrangulamento — a precária organização da Comercialização dos produtos manufaturados. Foi
isto, aliás, que observamos desde nosso primeiro contato com a Cooperativa, em 1964. A não solução deste
problema continua sendo o único responsável pelo não
aproveitamento, pelo menos integral, de centenas de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
289
artesãs treinadas Se Natal, apesar de a loja — um verdadeiro mimo de loja — estar situada fora dos centros comerciais da Cidade, absorve mensalmente uma produção
num montante de mais de 1 milhão de cruzeiros uma
melhor organização da exportação para os grandes centros consumidores do Centro-Sul poderia elevar facilmente as vendas a várias dezenas de milhões por mês.
O preparo profissional das artesãs a ótima qualidade da
produção e o sistema rígido de controle da mesma (devolvida, quando imperfeita) justificam plenamente esta
previsão.
Ninguém melhor do que os dois técnicos do Setor,
para treinamentos, supervisão, recebimento e controle
da produção. Ninguém melhor do que Assistentes Sociais, para a ação comunitária. Mas uma Cooperativa deste
tipo é uma emprêsa e requer também outro tipo de técnicos!
Apesar disto, é admirável a transformação verificada
em certas áreas onde atuou o Setor de Artesanato. Ainda
em 1964 tivemos oportunidade de entrevistar, coletivamente, em cerca de 10 núcleos por nós visitados, quase
uma centena de artesãs.
“Desde quando se faz labirinto em Arês?” — perguntamos a um grupo de artesãs. “Desde a descoberta do Brasil!” — respondeu uma senhora. “Meus primeiros dentes
nasceram no labirinto!” - atalhou uma môça. Quando
as primeiras senhoras e moças de Arês, no início de
1964, se associaram à Cooperativa, os intermediários
pagavam 2.200 cruzeiros pela confecção de uma colcha.
A Cooperativa contratou os primeiros trabalhos por
5.500, preço que foi de imediato a- companha do pelos
290
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
intermediários. No ato de entrega, a Cooperativa pagou 7.200, elevando, depois, o preço para 12.000 e, em
agosto do mesmo ano, para 13.000. A esta altura os intermediários já estavam pagando 9.000 em Arês, enquanto
em Touros, pelo mesmo trabalho, ainda se pagava 2.500
cruzeiros.
“O que é que a senhora faz com o dinheiro que ganha
no labirinto?” — perguntamos a outra senhora. “Dou até
para meu marido se divertir!” — foi a resposta; “o que ele
ganha não dá nem pra isto!”
Outra artesã nos confiou o seguinte: ainda recentemente, um intermediário, que ia de avião vender os trabalhos no Rio, pagava 3.500 pela confecção de uma colcha e toalha. Da Cooperativa ela já estava ganhando, em
agosto de 1964, 19.000 cruzeiros. “Ganhavam nas costas
da gente!” — acrescentou a artesã.
Jundiá de Cima é um dos melhores núcleos artesanais.
Percorridos a pé os três últimos quilômetros (as chuvas
de 1964 haviam acabado com a estrada que dá acesso ao
povoado), chegamos lá, ao entrar do sol. Umas 20 artesãs
nos aguardavam. Sem saber quem era a líder da turma,
jogamos a pergunta: “O que vocês fazem com o que ganham no artesanato?” Uma moça levantou-se, apanhou
uns papéis e foi explicando:
Começando por mim mesma, comprei dois garrotes,
11 porcos 1 lâmpada Coleman (12.000), 1 tear (4.000),
1 máquina de costura (45.000), 1 rádio (45.000), 1 filtro
(5.000). A primeira coisa que comprei foi um garrote, por
12.000 cruzeiros. Sim, e botei alguém para trabalhar no
roçado, em meu lugar.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
291
Tudo isto traduzido em termos de 1966, representa
várias centenas de milhares de cruzeiros. Só uma máquina de costura está custando cerca de 200.000 cruzeiros.
É tudo? perguntamos.
Enquanto as outras se entreolhavam e sorriam, talvez
querendo dizer que também o vestido e o penteado tinham vindo da Capital e com dinheiro das bolsas vendidas, a líder, sempre com os olhos na sua folha-controle
de aplicação do dinheiro, continuou:
Estas duas (apontou para duas irmãs) compraram 7
porcos, 1 filtro, 1 terreno para casa, 1 máquina de costura, pagam outro para trabalhar no roçado e, com o irmão, mantém a família.
As duas irmãs, órfãs de pai, confirmaram, enquanto uma acrescentava: “Quando não falta trabalho, faço
25.000 por mês”. Ora, naquela mesma data, um trabalhador rural assalariado não fazia mais do que 300 a 350 cruzeiros por dia, dificilmente atingindo os 10.000 por mês.
Umas ganhando mais, outras — seja por falta de trabalho, seja por só se dedicarem ao artesanato nas horas
vagas — ganhando menos: todas estavam satisfeitas, e
algumas achavam graça ao se lembrarem que ganhavam
mais do que o próprio pai ou marido, que dava duro, de
sol a sol, no roçado. A única mágoa, constatada em todos
os núcleos, era a de não terem sempre trabalho.
Cotizando-se, as artesãs de Jundiá de Cima haviam
adquirido um terreno para a construção de um Centro
Social. Com um “balaio-de-São-João” e a rifa de um rádio, haviam podido depositar 63.000 cruzeiros na Cooperativa, para a construção do Centro. Achando que a
rua estava suja, haviam promovido uma operação-limpeza; quem não pôde comparecer, pagou outra pessoa para
292
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
fazer o serviço. Em 1964, a Campanha da Fraternidade
rendeu mais em Jundiá de Cima, do que em Estivas, incluída a Usina e todo seu pessoal.
Da mesma forma, já haviam sido adquiridos, pelas
artesãs de Manoel Paz, relógios, filtros, rádios, porcos,
garrotes, 4 máquinas de costura, etc., tudo com dinheiro
de artesanato.
Em outra localidade encontramos uma professora do
Estado, que percebia um salário de 3.000 cruzeiros. De
fato, não recebera um vintém em todo o ano de 1963,
e já dispendera quase 1/3 do total (36.000) em viagens
inúteis à Capital para receber o dinheiro. No artesanato
estava fazendo cerca de 10.000 por mês, além de tomar
conta da casa. Esta artesã está capacitada a fabricar qualquer novo tipo de bolsa: acabara de remeter à Cooperativa amostras de um novo modelo de bolsa, projetado
pelo Setor.
O que nenhuma artesã se lembrou de observar foi que,
graças ao contato com a capital e com a moda, a uma
melhor aprendizagem de corte e costura e à aquisição de
máquinas de costura, estavam ficando cada vez mais exigentes em questão de moda. Já não se encontram, pelo
menos entre as artesãs, tantos “espantalhos”!
Se os fatos acima mencionados constituem a história
de, talvez, não mais de 200 artesãs, que têm trabalho
mais ou menos permanente, poderiam, uma vez melhor organizada a comercialização, constituir também a
história, por ora apenas começada e descontínua das outras mais de 400 artesãs já treinadas. No momento o SAR
está empenhado em conseguir um técnico em comércio
que possa assumir o setor de vendas.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
293
6. A COLONIZAÇÃO DE PUNAÚ
Com o rompimento da comporta construída pelo
DNOCS no Rio Pium, deixando entrar, rio acima, as águas
da maré, ficou comprometida a primeira experiência
de colonização de vale úmido no estado, realizada pelo
INIC. A obra fora tecnicamente mal construída. Dr. Estélio Fonseca Ferreira, antes mesmo de o DNOCS ter dado
início à obra, previra que a comporta não resistiria ao
volume de água.
No presente parágrafo, porém, interessa-nos particularmente a experiência de colonização levada a efeito
pela Fundação PIO XII, na Fazenda Punaú, no Vale do
Fonseca. Como já dissemos na I Parte, a Fundação é integrada pelo Governo do Estado, SAR e Escola de Serviço
Social. Destes, o grande ausente no empreendimento
tem sido o Governo do Estado. Não fossem os financiamentos da MISEREOR, a experiência-piloto teria ficado
na compra do terreno e nos primeiros trabalhos de saneamento.
Em 1960 instalaram-se em Punaú 10 famílias japonesas. Pensava-se, com isto, facilitar a solução do problema
técnico: os colonos japoneses serviriam de exemplo e estímulo aos futuros colonos brasileiros. Em 1963 foram
instaladas 21 famílias de colonos potiguares.
Até 1964, Pium e Punaú abasteciam de verduras a Cidade do Natal, exportando excedentes para o Recife. Em
1964, quando os colonos brasileiros se preparavam para
a primeira colheita em Punaú, vieram chuvas torrenciais, que atingiram 39 municípios, danificando 5.015 propriedades agrícolas, desabrigando milhares de famílias
294
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
e destruindo cerca de 23.000 hectares cultivados nos diversos vales do estado. O Vale do Fonseca, onde se situa
a Colônia de Punaú, não fugiu à regra geral: cerca de 330
hectares de cultura no vale foram arrasados pelas águas:
10 hectares de batata; 50 de milho; 60 de feijão; 10 de
mandioca; 10 de cana; 120 de banana; 40 de arroz e 30
(praticamente todos na Colônia) de hortaliças.
Foi a esta altura que, em meados de 1964, tivemos
oportunidade de visitar pela primeira vez a Colônia de
Punaú. Era evidente que a obra de saneamento ficara incompleta: os últimos 5 a 6 quilômetros do rio não haviam
sido drenados. Junto ao mar, as águas passam imprensadas entre os morros, num leito de cerca de 2 metros de
largura, que não permite o escoamento rápido das águas.
D. Eugênio e os técnicos reconhecem haver sido precipitada a instalação dos primeiros colonos no vale.
A razão foi a seguinte: conseguido um financiamento da
MISEREOR, procedeu-se imediatamente à construção de
51 casas. Construídas, estas corriam o risco de serem invadidas, o que comprometeria toda a experiência. Daí
haverem sido selecionadas de afogadilho e imediatamente instaladas, ainda em 1963, 21 famílias de colonos,
sem que houvesse sido concluída a obra de saneamento.
Em tais condições, os técnicos só asseguram cultura
de pequeno ciclo: de agosto a janeiro. É evidente que,
em tais condições, a Colônia não pode prosperar. Ao contrário, a partir das cheias de 1964, a maior preocupação
da Fundação tem sido a manutenção dos colonos, na espera de que o órgão competente concluísse a obra de saneamento.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
295
Em 1964, ao lhe ser oferecida a Secretaria Executiva
da Fundação, o agrônomo Dr. Estélio Fonseca Ferreira só
aceitou, com a condição de D. Eugênio ir ao Rio pleitear
do Ministério de Viação e Obras Públicas uma draga para
concluir a abertura do canal. Depois de quase dois anos
de insistência, acaba de chegar (agosto de 1966) a draga,
tendo sido reiniciado o trabalho.
Teria constituído um insucesso a experiência de Punaú? Até o presente momento não se pode dizer que
constitua um sucesso. Se o DNOCS completar a abertura do canal — dizemos se, porque peças das dragas do
DNOCS “se” quebram com muita facilidade, ficando as
mesmas paralisadas por meses! — sem dúvida, não só
a Colônia do Punaú, como todo o vale do Fonseca terá
sido conquistado para uma agricultura permanente (de
janeiro a dezembro). Que a produtividade por hectare de
vale seja compensadora, já foi amplamente demonstrado, tanto em Pium, como em Punaú. Entre os colonos
japoneses, o valor da produção por hectare ao ano atingiu um mínimo de 1.800.000 e um máximo de 5.500.000
cruzeiros. Dr. Estélio acha perfeitamente viável uma
produção média da ordem de 3 milhões de cruzeiros
por hectare ao ano. Pium, no tempo das “vacas gordas”,
chegou a produzir 30 toneladas de tomate, 22 toneladas
de cenoura, 20 toneladas de cebola, e 15 a 18 toneladas
de gerimu por hectare. Em Punaú, um colono japonês
colheu 2.200 quilos de arroz e, depois, no mesmo terreno
e no mesmo ano, 18.000 quilos de melão e melancia, por
hectare. Fora dos vales, nenhuma outra área agricultável
no estado pode alcançar tal produtividade.
296
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Segundo nosso modo de ver, o principal significado,
do ponto de vista de desenvolvimento, da experiência
de Punaú reside na teimosia em demonstrar aos Poderes
Públicos que é viável e economicamente compensador
o aproveitamento agrícola dos 40.000 hectares de vales
úmidos do estado do Rio Grande do Norte.
Mas não poderíamos obliterar este outro aspecto: é
tradicionalmente insignificante o consumo de verduras
entre os potiguares: “Não sou coelho”, ouvimos algumas
vezes dizer no interior. É reconhecido Que as Colônias
de Pium e Punaú contribuíram para incrementar, entre
a população de Natal, o consumo de verduras. Dr. Estélio, por sua vez, assegurou-nos que, a exemplo de Pium
e Punaú, outros colonos, em outras áreas, estão se dedicando ao cultivo de verduras. A própria ANCAR, no interior, tem orientado, neste sentido, parte de seus esforços.
E que todos estão convencidos de que o consumo de verduras constituiria ótimo complemento à tradicional alimentação nordestina. Contudo, ainda hoje, grande parte
da verdura consumida em Natal provém de outros estados, especialmente de Pernambuco.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
297
CAPÍTULO VIII
INSTRUÇÃO
Antes de passarmos ao estudo comparativo dos dois
grupos de comunidades (CT e CNT) do ponto de vista
de alfabetização e escolaridade, tentaremos uma avaliação do que teriam representado, do ponto de vista de
instrução, as atividades desenvolvidas pelos Setores de
Ensino Médio e Escolas Radiofônicas.
1. ENSINO MÉDIO
É muito cedo ainda para uma avaliação da recente
experiência de Ensino Médio pelo rádio (SERTE — Setor
Rádio e TV Educação), empreendida pelo SAR, em 1961,
em Convênio com o Ministério da Educação e Cultura e a
Secretaria de Estado da Educação e Cultura.
Limitar-nos-emos, no presente parágrafo, a uma rápida apreciação do trabalho desenvolvido pelo Setor de
Ensino médio do SAR em entrosamento com a CNEG
(Campanha Nacional de Educandários Gratuitos).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
299
Do próprio número de Educandários fundados a partir de 1957, aparece a rápida expansão do Ensino Médio:
1957 -1; 1958 - 2; 1959 - 6; 1960 - 11; 1961 - 12; 1962 - 12;
1963 - 14; 1964 - 21; 1965 - 23; 1966-28 (dados cumulativos). Dos 28 estabelecimentos, 16 surgiram entre 1963 e
1966.
O número de alunos, que era de 664 em 1961 e 1.646
em 1964, elevou-se rapidamente para 2.242 em 1965 e
2.924 em 1966: uma média de pouco mais de 100 alunos
por Educadário. Dentro de 3 anos, quando estes estabelecimentos estiverem com todas as séries funcionando,
o número de alunos poderá elevar-se facilmente para 6
mil, independentemente da criação dos novos estabelecimentos atualmente em projeto.
Com excessão de 5, na capital, todos os outros 23 estabelecimentos estão localizados no interior do estado,
a maioria em sedes municipais onde não havia nenhum
estabelecimento de Ensino Médio.
Como na FASE URBANA, assim também nas duas FASES
RURAIS o Movimento de Natal demonstrou-se inovador
no que tange ao ensino: ao invés do ensino particular
católico não gratuito, o Movimento orientou-se para o
ensino particular gratuito. Como as Escolas Radiofônicas
e o SERTE, assim também os 28 estabelecimentos de Ensino Médio acima mencionados ministram ensino praticamente gratuito.
Tornou-se possível o Ensino Médio gratuito graças 1)
à ajudas dos Poderes Públicos, através da CNEG, e 2) à
participação das comunidades interessadas.
Assim, da receita total de todos os estabelecimentos
no ano de 1963, cerca de 1/3 proveio das respectivas comunidades, através de contribuições dos sócios (sócios
300
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
dos Setores locais mantenedores dos Educandários), de
donativos (de particulares) e de festivais. Os outros 2/3
deveram-se a auxílios dos Poderes Públicos, principalmente através da CNEG.
Da mesma forma, a contribuição das comunidades
(renda própria, contribuições dos sócios, festivais, donativos, etc.) constituíram cerca de 1/3 (Cr$ 16.318.122) da
receita total no exercício de 1964 (Cr$ 49.067.622).
Os responsáveis pelo Setor nos asseguram que a participação das comunidades na manutenção destes reducandários foi, em 1965, e está sendo, em 1966, mais elevada do que nos anos anteriores.
A participação das comunidades estimada em 1/3 não
diz tudo. Os Setores locais, encarregados da construção
dos prédios, não são remunerados. O mesmo se diga das
Diretorias dos Educandários. quando o saldo é positivo
no fim do ano, recebem uma gratificação (simbólica!).
Em muitos casos, pelo menos na fase inicial, o honorário
dos professores constitui mais uma gratificação do que
um salário propriamente dito: trata-se de uma participação parcialmente voluntária. Se tudo fosse levado em
conta, a participação das comunidades representaria
provavelmente 2/3 da receita total (em dinheiro ou trabalho voluntário).
Esta mobilização de recursos locais, através da cooperação comunitária, apressando o advento do Ensino
Médio em diversas cidades do interior; a motivação para
o estudo, feita junto aos jovens e, através dos Círculos
de Pais e Mestres, junto aos pais; o ensino gratuito: tudo
isto nos parece de suma importância do ponto de vista
de desenvolvimento.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
301
Já falamos no Capítulo IV das relações entre SAR e
CNEG. Esta deve ao Movimento sua própria instalação
no Estado. Apesar de funcionar em sede própria e de ser
hoje “independente”, a Diretoria e o Conselho Estadual
continuam em mãos de elementos voluntários, quase todos engajados no SAR ou em outros setores do Movimento. A CNEG beneficiou-se também de todo o trabalho
desenvolvido pelo SAR no meio rural: encontrou comunidades motivadas e sempre contou com a colaboração
dos vigários e de líderes locais engajados no Movimento.
Até recentemente o SAR arcava com parte considerável
na manutenção do Serviço. Assim, em 1961, de 736.000
cruzeiros (receita total), 706.000 deveram-se ao SAR, e
apenas 30.000 à CNEG. Posteriormente inverteram-se os
papéis.
2. AS ESCOLAS RADIOFÔNICAS
Já observamos que, desde o início, o ensino radiofônico objetivou a educação de base e não apenas a alfabetização. De 1962 a março de 1964 foi dada pelo menos
tanta ênfase à conscientização-politização (inclusive motivação para alfabetizar-se), quanto à alfabetização propriamente dita. Não podemos, por conseguinte, avaliar o
trabalho do Setor de Escolas Radiofônicas ou, após 1961,
do MEB, considerando apenas um de seus objetivos. No
presente paragrafo, contudo, limitar-nos-emos a alguns
aspectos mais relacionados com a alfabetização.
Número de Escolas e de alunos. Como veremos a seguir,
são muito imprecisos os dados fornecidos pelo Setor a
302
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
respeito do número de Escolas e de alunos nos anos de
1958 a 1964 (encerramos a pesquisa, neste campo, em
meados de 1965):
A baixa verificada no número de Escolas entre 1959
e 1960, atribuída pelo Setor à inexperiência neste campo — primeira experiência no Brasil! — deveu-se mais
concretamente à verificação, em 1960, que várias Escolas fundadas no ano anterior ou não haviam nem sequer
começado a funcionar ou não estavam mais funcionando como Escolas de alfabetização. Os dados referentes
a 1959 são, por conseguinte, exageradamente elevados.
O ano de 1961 foi, sem dúvida alguma, o de maior expansão do ensino radiofônico na Arquidiocese de Natal.
O Planejamento 1961- 1963 previa a criação de 410 novas Escolas, em três anos. Este número foi ultrapassado
de muito já no primeiro ano, instalando-se, só em três
anos. Este número foi ultrapassado de muito já no primeiro ano, instalando-se, só em 1961, 779 novas Escolas, elevando-se assim o número das mesmas para 927.
Parte deste crescimento foi anterior, e parte posterior à
assinatura do Convênio entre a CNBB e a Presidência da
República e à consequente instalação do MEB em Natal.
este número (927 Escolas) representa mais a quantidade
de tentativas, do que de Escolas realmente funcionando.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
303
Em junho de 1962 o MEB contava 1.201 Escolas, elevando-se o número das mesmas para 1.327 no fim do
mesmo ano, atingindo 50 municípios da Arquidiocese
de Natal. Contando com apenas 11 elementos e 1 transporte, o MEB, dentro da estrutura por ele montada (desta
falaremos a seguir), não estava em condições de preparar
devidamente a criação, nem de assegurar uma supervisão adequada às Escolas que a “sede radiofônica”, que
tão subitamente tomara conta de centenas de localidades
do interior, exigia, com ou sem condições, em qualquer
localidade e a qualquer momento, mesmo durante o ano
letivo. Lembre-se ainda que 1962 foi o ano da politização:
se nem todas as Escolas alfabetizavam, todas conscientizavam e politizavam — o que também constituía objetivo explícito do Setor.
Felizmente, a esta altura o idealismo começou a ceder
lugar ao bom senso; em maio de 1963 a Equipe Central
fez uma análise da situação, chegando às constatações
seguintes:
— o surgimento de Escolas pela mera distribuição de
rádios, sem a devida preparação das (de todas as) comunidades interessadas e sem o adequado treinamento de
monitores;
— o surgimento de Escolas durante o ano letivo;
— a falta de quadros, na Equipe Central e na base, capazes de assegurar uma supervisão eficiente;
— a falta de transportes (apenas 1);
— o grande número de Escolas não localizadas pela
Equipe Central;
— ótimas experiências no Setor de Politização e alguns programas radiofônicos de grande aceitação no
meio rural;
304
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
— começo de estruturação de alguns Comitês locais;
— insuficiente potência da Emissora (1 kw) para cobrir satisfatoriamente determinadas áreas, problema
este agravado pela interferência da Rádio Tupinambá, de
Sobral.
Em face destas constatações, foi constituída uma Equipe de Supervisão. Esta, em 1963, em 38 encontros conseguiu reunir 747 monitores para uma revisão do trabalho.
Nos 24 municípios atingidos pela Equipe de Supervisão
no trimestre junho-agôsto de 1963, foram localizadas e
visitadas 640 Escolas, tendo sido recolhidos 173 rádios
“parados” Neste mesmo ano foram fundadas apenas 93
novas Escolas. Entre setembro de 1963 e março de 1964
outros 300 aparelhos “parados” foram recolhidos, cerca
de 100 foram dados como estraviados, elevando-se para
944 o número de Escolas localizadas e visitadas pela
Equipe de Supervisão.
Do que acabamos de dizer aparece claramente que,
para os anos de 1959, 1961 e 1962, pecam por exagero
os números estimados de Escolas (de alfabetização) e
de alunos. As estimativas para os outros anos são mais
próximas à realidade. Os totais de alunos matriculados,
por outro lado não compreendem todos os alunos que
frequentaram Escolas Radiofônicas nos anos de 1962,
1963 e 1964: dos 203 monitores entrevistados (B.ll) e que
haviam ensinado em 1964, 12% (24) não haviam enviado
ficha de matrícula, devendo acrescentar-se a isto o estravio, todo ano, de certo número de fichas enviadas pelo
correio ou por portadores.
2) Os alunos Um levantamento feito pelo Sociólogo Dr.
Henk van Roosmalen (técnico do governo holandês, que
ALCEU RAVANELLO FERRARO
305
esteve durante dois anos à disposição do SAR) permitiu
uma serie de constatações. interessantes a respeito dos
16.133 alunos matriculados em Escolas Radiofônicas em
1962.
a) Ao contrário do que se dá comumente nas Escolas
Primárias no interior, as Escolas Radiofônicas apresentam maior número de alunos do sexo masculino do que
do sexo feminino: respectivamente 8 592 (53,3%) e 7.541
(46,7%) (tabela 8 . 1 ) . Os dados que pudemos colher em
nossa pesquisa realizada em 1965 junto a 248 monitores
(B.l) acusam uma proporção ainda levemente mais elevada de alunos do sexo masculino: dos 3.723 alunos das
203 Escolas, cujos monitores entrevistados haviam ensinado em 1964 (os outros eram novos), 54,6% (2.004) eram
do sexo masculino e 45,4% (1.663), do sexo feminino (não
declarados — 56).
Do total de alunos matriculados, de ambos os sexos,
56,5% (9.106) tinham 15 anos ou mais: 15 a 30 anos —
49% (7.770); 31 a 49 anos — 6,5% (1.141); 50 anos e mais
— 1% (195). O significado destes dados torna-se óbvio, se
lembrarmos que, no meio rural, especialmente no interior dos municípios, onde se encontra a quase totalidade
das Escolas Radiofônicas, já a partir dos 11 anos a enxada
começa a subtrair da Escola crianças, particularmente do
sexo masculino, não restando, aos 13 — 15 anos, senão
algumas mocinhas.
Embora destinando-se, em princípio, a adultos (15
anos e mais), as Escolas Radiofônicas — seja por não haver outra Escola na localidade, seja para atender a crianças e adolescentes requisitados pelos pais para o roçado
durante o dia, — funcionavam como Escola Primária co-
306
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mum para os restantes 42,5%, isto é, para 5.927 alunos de
14 anos e menos (tabela 8.1). Segundo os dados de nossa
pesquisa, referentes às 203 Escolas acima mencionadas,
em 1964 os alunos de 14 anos e menos constituíam apenas 32,9% contra 67,1% de 15 e mais anos (B.14).
Os dados da tabela 8.1 revelam também que os alunos
do sexo masculino são relativamente mais idosos do que
os do sexo feminino: respectivamente 60% e 54%, de 15
anos e mais.
Dos alunos matriculados em 1962, 40% dos alunos do
sexo masculino, 51% dos do sexo feminino e 45% dos de
ambos os sexos já eram alfabetizados (em Escolas Radiofônicas antes de 1962 ou em outra Escola). Para estes,
a Escola Radiofônica representou uma oportunidade de
prosseguimento na aprendizagem. Para os restantes 60%
dos alunos do sexo masculino, 49% dos do sexo feminino e 55% dos de ambos os sexos — isto é, para cerca de
11.000 pessoas, se estimarmos em 20.000 o número de
alunos em 1962: número superior ao dos alunos matriculados (16.133) e inferior à estimativa do MEB (25.399) — a
Escola Radiofônica constituía, naquele ano, na área da
Arquidiocese de Natal, a única oportunidade de alfabetização (tabela 8.2).
Segundo a mesma tabela 8.2, encontram-se nos grupos
de idade de 15-30 e 31-49 anos as percentagens mais elevadas de alunos já alfabetizados no início do ano letivo
de 1962: respectivamente 42% e 48% entre os alunos do
sexo masculino, 55% e 54% entre os alunos do sexo feminino, e 49% e 50% entre os de ambos os sexos.
Sempre segundo a mesma fonte (omitimos de transcrever a tabela), á distribuição dos alunos de ambos os
ALCEU RAVANELLO FERRARO
307
sexos era a seguinte, segundo as 4 séries: 70% — 1a série;
20% — 2a série; 8% — 3a série; 2% — 4a série. Isto nos leva
a concluir não só que a maioria dos alunos matriculados
em 1962 frequentavam a 1a série (70%), mas também
que a maioria dos alunos das Escolas Radiofônicas só frequentavam a 1a série. De fato, a mais de 12 mil alunos
matriculados na 1 a série em 1961, correspondia um total
de pouco mais de 3.000 alunos matriculados na 2a série
no ano de 1962. Que isto não se deva somente ao desinteresse dos alunos é manifesto: as aulas para as séries mais
adiantadas eram transmitidas mais cedo, em horários
impraticáveis especialmente para os que trabalham no
campo desinteresse dos alunos é manifesto: as aulas para
as séries mais adiantadas eram transmitidas mais cedo,
em horários impraticáveis especialmente para os que
trabalham no campo. Assim, do total de alunos matriculados em 1962, 15% dos do sexo feminino, contra apenas
5% dos do sexo masculino, frequentavam a 3a ou 4a série,
sendo que mais da metade destes, de ambos os sexos,
tinham mais de 15% anos. Outro fator a ser lembrado
é o baixo nível intelectual de bom número de monitores, ao que alguém humoristicamente nos observou:
“Quem não tem cão caça com gato!” Os dados de nossa pesquisa nos revelam que a situação melhorou um
pouco nos anos seguintes: dos alunos matriculados em
1964 nas Escolas dos 203 monitores entrevistados e que
haviam ensinado naquele ano, 60,3% (contra 70% em
1962) eram da Turma A, 29,1% da Turma B e 10,6% da
Turma C. Em 1965 as Séries foram reduzidas a duas (Turmas A e B).
308
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
g) Dr. Henk van Roosmalen tentara, sem sucesso, utilizar as fichas de frequência de 1962. Foi-nos, também,
absolutamente impossível chegar, com base nos dados
administrativos, a qualquer conclusão sobre a frequência dos alunos das Escolas Radiofônicas no ano de 1964:
alguns monitores não haviam enviado nem sequer uma
ficha (mensal) de frequência, enquanto outros — a maioria — haviam-nas enviado irregularmente (salvo estravios) ou mal preenchidas As causas devem ser buscadas
não tanto no desinteresse dos monitores, quanto 1) na
falta de organização do serviço de distribuição das fichas,
2) no isolamento de muitas Escolas, o que obstacula não
só a distribuição, como também a devolução das fichas
preenchidas e 3) no fato de bom número de monitores
não saberem preencher as fichas (estas soem aparecer
após o período de treinamentos!).
Em nossa pesquisa procuramos contornar o problema,
solicitando, dos 203 monitores entrevistados e que haviam ensinado em 1964 uma estimativa da frequência
média, nas respectivas Escolas, naquele ano. As 185 Escolas cujos monitores souberam fazer tal estimativa totalizavam 3.393 alunos (18,3 por Escola — média esta
bem elevada, particularmente se observarmos que os
monitores, ao indicar o número de alunos, geralmente
subtraíam os que se haviam afastado no decorrer o ano)
e apresentavam, segundo as estimativas dos monitores,
uma frequência total diária de 2.567 alunos, o que representaria, para todas as Escolas conjuntamente, uma
frequência média diária de 75,7% dos alunos, ou seja, de
3 alunos de cada 4. um índice de frequência desta ordem
quer-nos parecer um tanto exagerado, mesmo limitando
ALCEU RAVANELLO FERRARO
309
a estimativa às 185 Escolas pesquisadas: seria mais elevado do que o apresentado por bom número das Escolas municipais e estaduais do meio rural. Contudo, encontramos Escolas Radiofônicas — várias — com uma
frequência de quase cem por cento. É por exemplo, o
caso da “Radiofônica” de seu Severino, onde estudam
10 pessoas da família do monitor e 3 de uma família vizinha. “De dia, boto todo mundo no roçado — confiounos ele, referindo-se à sua família — e de noite, na Radiofônica. Ninguém escapa, a não ser por doença!”
Foi também impossível, com base nos dados administrativos concluir qualquer coisa para o conjunto das
Escolas Radiofônicas, quanto ao aproveitamento dos alunos. Sabemos que, como tantos outros monitores, Dona
Emília — única pessoa alfabetizada (semi- analfabeta!) e
única eleitora em sua localidade — preparou, em dois
anos, 10 eleitores (com 11 eleitores já não foi difícil interessar o Prefeito para a fundação de uma Escola Municipal;) e que Lindalva, de 17 anos de idade, líder de
sua comunidade e monitora há vários anos (desde os 13
anos), só tinha dois meses de Escola quando entrou na
“Radiofônica” e, em 1965, já havia concluído, com outros
3 alunos, o 4o ano primário, enquanto outros já haviam
terminado ou frequentavam as demais séries.
Mais adiante, a propósito das 4 CT pesquisadas, teremos oportunidade de voltar ao assunto.
3) Os Monitores. Vejamos algo sobre este imenso voluntariado — os monitores de Escola Radiofônica.
Os primeiros monitores foram recrutados dentre os líderes rurais que, seja antes, seja nos anos de 1958 a 1960,
passaram pelo Centro de Treinamento de Líderes.
310
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Os primeiros treinamentos especializados para monitores tiveram início em 1961. Entre 1961 e 1964 foram,
realizados 84 treinamentos, todos no interior, geralmente em sedes de município, com uma duração de 3 a
4 dias, atingindo um total de 2.137 participantes. Devido
à já lembrada “sede radiofônica” em um número sempre
crescente de sítios, fazendas e pequenos povoados do interior, o MEB, visando precisamente multiplicar as oportunidades, optou por um maior número de treinamentos
e uma menor duração dos mesmos.
Os 245 monitores que responderam à pergunta B.4
(entrevistados — 248) distribuem-se da seguinte maneira, segundo a idade: 15 anos e menos — 17 (6,9%); 16-20
anos — 93 (38,0%);21 - 30 anos — 84 (34,3%); 31-40 anos
— 30 (12,2%); 41 e mais anos — 21 (8,6%). É, por conseguinte, elevado o número de jovens entre os monitores:
quase metade destes (44,9%) têm 20 anos ou menos; apenas 20,8% passam dos 30 anos.
Dos 1 084 participantes dos 45 treinamentos realizados em 1963 e 1964, foi-nos possível distribuir, segundo o sexo, 803 participantes de 31 destes treinamentos.
destes 803, 16,7% (134) eram do sexo masculino, e 83,3%
(669) do sexo feminino.
Dos 248 monitores entrevistados em 1965, 14,1% (35)
eram do sexo masculino, dos quais 60,0% (21) eram casados, enquanto que, dentre as mulheres monitoras, apenas 24,4% (52) eram casadas, 1,9% (4) de situação irregular, e as restantes 73,7% (157); solteiras.
Considerando que o ensino primário no interior está
confiado quase que exclusivamente a mulheres, parecenos elevada a proporção de homens entre os monitores
ALCEU RAVANELLO FERRARO
311
(cerca de 1/6), particularmente se considerarmos que,
contrariamente ao que acontece entre as mulheres, a
maioria dos monitores-homens são casados. Isto significa
que, como tantos outros, seu Severino, pai de família e
pequeno agricultor no interior do município de São Pedro do Potengi, ainda com duas horas de sol deve trocar a
enxada pelo giz, para tornar-se o mestre (gratuito) de um
bando de analfabetos, de 8 a 25 anos, que, diariamente,
se apinham na pequena sala de sua mais que modesta
casa.
Dos 248 monitores entrevistados, 243 especificaram
o próprio grau de instrução (B7): 2,5% tinham apenas o
1o primário; 8,6%, o 2º primário; 37,9%, o 3º primário;
33,3%, o 4º. primário, e apenas 17,7 % haviam concluído
o 5º ano primário. E os monitores são escoados sempre
dentre as pessoas mais instruídas na localidade!
Mas isto não é tudo. Em bom número de casos, o primeiro passo foi completar a obra de alfabetização dos
próprios monitores. De fato, dos 248 monitores entrevistados, 137, ou sejam, 55,3% haviam estudado pelo menos 1 ano em Escola Radiofônica: 50 (20,2%) – 1 ano; 26
(14,5%) – 2 anos; 30 (12,1%) – 3 anos; 21 (8,5%) – 4 e mais
anos.
e) Por outro lado, a distribuição dos 248 monitores entrevistados segundo as respostas dadas as perguntas B.5,
B.9 e B.10 nos permite fazer uma série de constatações
de suma importância.
1 – dos 248 monitores entrevistados, 116 (46,8%) ensinavam somente em Escol radiofônica, enquanto que os
outros 132 (53,2%) ensinavam também em outra Escola:
Estadual – 0; Municipal – 48; Particular – 54 (tabela 8,3).
312
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
2 – dos 116 monitores que não ensinavam em nenhuma outra Escola, 72 (62,1%) haviam estudado pelo menos
1 ano em Escola Radiofonicas; 1 ano- 26; 2 anos – 17; 3
anos – 17; 4 e mais anos – 12 (tabela 8.1).
3 – dos 30 monitores que em 1965 ensinavam tanto
em escola radiofônica como em escola estadual: 1) 9
(30,0%) haviam frequentado algumas escolas radiofônicas durante pelo menos 1 ano (tabela 8.3); 2) 7 monitores
(23,3%) haviam começado a ensinar primeiro em escolas
radiofônicas; 16 (53,4%), primeiro em escola estadual, e
7 (23,3%) haviam iniciado simultaneamente em ambas
(tabela 8.4).
4 – dos 48 monitores que ensinavam em escolas radiofônicas e municipal; 1) 32 (66,7%) haviam frequentado
escola radiofônica durante pelo menos 1 ano (1 ano – 13;
2 anos – 7; 3 anos – 8; 4 e mais anos- 4) (tabela 8,3); 2) 17
(35,4%) haviam ensinado primeiro em escola radiofônica; 15 (31,3%), primeiro em escola minicipal e 16 (33,3%)
haviam iniciado simultaneamente em ambas a ensinar
(tabela 8,4).
5 – dos 54 monitores que além da radiofônica, ensinavam também noutra escola particular; 1) 24 (44,4%) havia
estudado durante pelo menos 1 ano em escola radiofônica (tabela 8,3); 2) 12 (22,2%) haviam ensinado antes em
escola radiofônica; 27 (50,0%) haviam ensinado antes em
outra escola particular e 15 (27,8%) haviam começado simultaneamente em ambas (tabela 8,4).
6 – sintetizando, podemos concluir o seguinte a respeito dos 132 monitores entrevistados que ensinavam também em outra escola: 1) 65 (49,2%) destes haviam estudado pelo menos 1 ano em escol radiofônica (1 ano – 24;
ALCEU RAVANELLO FERRARO
313
2 anos – 19; 3 anos – 13; 4 anos e mais – 9), contribuindo
assim, o ensino radiofônico para elevação do nível educacional também de professores de outras escolas (tabela
8.3); 2) se, por um lado, o MEB recrutara 58 pessoas que
já ensinavam em outras escolas, por outro, 36 de seus
monitores (dos 248 entrevistados) haviam passado a ensinar também em Escola Estadual (7), municipal (17) ou
particular (12), enquanto que 38 haviam começado simultaneamente em ambas (tabela 8.4).
O ensino radiofônico, por conseguinte, elevou o nível
intelectual de seus monitores, diversos dos quais ensinavam também em outras Escolas, e foi, em bom número
de casos, o ponto de partida para o surgimento de outras
Escolas, inclusive preparando-lhes professores e deixando comunidades motivadas para o estudo.
4) Outros aspectos. Em longo estudo sobre o MEB, feito
ainda em 1964, apontávamos uma série de causas, responsáveis pelas limitações encontradas no ensino radiofônico.
1. Limitada potência da Emissora.
2. Interferência da Rádio Tupinambá (Ceará).
3. Demora no conserto dos aparelhos avariados: estes
devem ser enviados a Natal, sem que possam ser sempre
imediatamente substituídos por outros.
4. Salas pequenas (quase todas as Escolas funcionam
em casas de família); falta de inação adequada (talvez
apenas metade das Escolas disponham de lâmpadas a ar,
funcionado as outras à luz de candeeiros); falta de quadro
negro em bom numero de Escolas; alunos que, por falta
ou por impossibilidade número de mesas e cadeiras,
apoiam os cadernos sobre os joelhos ou, em pé, apoiam-
314
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nos sobre a mão esquerda contra a parede ou o ombros
do vizinho da frente. (D. Maria Juanara feição Lapa), que
começara com 25 alunos em 1962, 30 em 1963, ensinavam, em 1964 a 38 alunos, 30 dos quais ficavam em pé:
nem caberiam de outra torma numa sala de cerca de 3 x
4 metros!)
5.Baixo nível intelectual de bom número de monitores.
6. Aumento demasiadamente rápido do número de novas Escolas, especialmente nos anos de 1961 e 1962, em
muitos casos sem a devida motivação das comunidades
e o adequado treinamento dos monitores e sem que a
Equipe Central estivesse em condições de assegurar uma
supervisão eficiente às novas Escolas.
7. Supervisão pouco eficiente, particularmente pela
ausência, na maioria das áreas, de comitês locais que colaborem com a Equipe de supervisão do MEB.
8. O próprio
O próprio período escolar, que – sem lembrar os rios
cheios, que, durante o inverno, impedem a frequência
de certo número de alunos – inclui os dois períodos de
trabalho agrícola mais intensos: o plantio e a colheita.
(Em 1965 o período escolar foi modificado, começando já
no fim das chuvas, apos a época do plantio).
9. A oposição da parte de alguns patrões (ameaças e
expulsões da propriedade, inclusive), por conta do trabalho de conscientização e politização desenvolvido
pelas escolas (combate ao “curral” eleitoral e apoio a sindicalização).
10. Falta de cooperação dos alunos, em algumas localidades, para a compra de pilhas e querosene e para a confecção de bancos e mesas.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
315
A propósito do item 7, a Coordenadora do MEB, que
lera nosso trabalho sobre as Escolas Radiofônicas, fez,
à margem, a seguinte observação que só agora, ao retomar o texto para a redação deste capitulo, percebemos:
“gostaria que o senhor desse, como fez noutro lugar, a
atuação dos monitores e comitês, o sentido profundo
que precisam ter: povo assumindo o movimento para a
própria promoção. Seu trabalho (dos monitores) não é
colaboração conosco. Não deve ser, pelo menos Não é que
somos assessores. Isto muda muito tudo. O senhor sabe”
(Grifo da autora). A própria pesquisa nos quase dois anos
que se seguiram após a redação daquele texto nos leva
a afirmar que apesar de todos os obstáculos acima mencionados, muitos do quais independiam de boa vontade
e de capacidade organizativa o ensino radiofônico teria
lucrado muito em eficiência, tivesse o MEB levado com
mais empenho à prática a norma de “povo assumindo o
movimento” acima expressa nas palavras da Coordenadora. Vejamos.
As Escolas Radiofônicas estão quase todas situadas
em pequenos povoados sítios e fazendas no interior dos
municípios, geralmente afastados da já precária rede de
estradas intermunicipais. Acompanhando elementos da
equipe de supervisão em vistas a cerca de 60 escolas em
12 municípios, tivemos oportunidade de dar-nos pessoalmente conta da dureza do trabalho realizado pelos
supervisores, andando antena a beira do caminho, por
dentro dos roçados ou atrás dos morros. Nesta peregrinação, mais de uma vez andamos quilômetros a pé, por
dentro de roçados ou matas, em busca de escolas que –
informavam os moradores a beira da rodagem – estavam
logo aí... atrás do morro!
316
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Dados o elevado número de escolas, a precariedade
das estradas e o alto custo de cada visita, a equipe não
conseguiria assegurar nem sequer uma visita anual a
cada uma das escolas. Daí ter o MEB pensado na criação
de uma infraestrutura entre a equipe central (inclusive
supervisão) e a base. Dos 30 comitês locais (municipais)
organizados em 1963 e 1964, talvez 15 funcionaram de
fato. A observação direta em mais de 30 municípios da
arquidiocese de Natal, os contatos pessoais com cerca de
200 monitores, as vistas a aproximadamente 60 escolas
nos confirmaram na conclusão de queas melhores escolas radiofônicas se concentraram precisamente naquelas
áreas em que de fato funcionou a supervisão descentralizada, seja através de elementos da equipe de supervisão
residentes no interior (dois), seja através de comitês municipais atuantes.
Tivesse o MEB revisto em tempo a “maquina” por ele
montada e concentrado seus esforços na efetivação desta infraestrutura, descentralizado a supervisão: 1) teria
conseguido, com economia de dinheiro, um maior rendimento no trabalho; 2) teria mais facilmente superado
os problemas advindos dos cortes nas verbas federais em
1964 e 1965. 3) teria montado um sistema – realista –
capaz de ser mantido mesmo após a não-renovação do
convenio em 1966.
Provavelmente por não ter tido problemas sérios de
ordem financeira (era mantido pelo convenio) o “irmão
rico” (os outros setores do SAR consideravam-se os “irmãos pobres”) incorreu, segundo nosso modo de ver, em
alguns erros graves na montagem do sistema radiofônico
de Natal.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
317
a — Antes do advento do MEB, as comunidades interessadas organizavam-se e adquiriam o seu rádio. O MEB
passou a distribuir gratuitamente os aparelhos. É verdade: isto estava no Convênio. Mas, pelo que pudemos
observar, tudo o que é simplesmente dado, mais dificilmente consegue ser educativo. A experiência dos Centros Sociais confirma este ponto de vista: os Centros Sociais construídos exclusivamente com recursos locais,
além de, geralmente, haverem sido construídos mais
depressa, são mais “nossos” — para os comunitários — e
mais dinâmicos.
b — Desde nosso primeiro contato com o MEB, ficamos surpreendidos com o grande número de estudantes entre os componentes da Equipe Central (de Coordenação, Produção e Supervisão). Pudemos constatar
que, em 1964, novos estudantes foram admitidos contra
a vontade explícita de D. Eugênio: era preciso combater
o clericalismo e, além disto, o MEB de Natal tinha bem
consciência de, em virtude do Convênio, estar diretamente subordinado à Equipe Nacional, no Rio! O mais
grave foi ter confiado a supervisão a uma equipe composta quase que exclusivamente de estudantes. Em consequência, as viagens de supervisão, mesmo quando em
áreas distantes 100, 200 e mais quilômetros da Capital,
não podiam durar mais do que três dias, um dos quais
era dispendido em viagem de ida e volta. A maior parte
do tempo a Equipe de Supervisão, que chegou a contar
com 10 elementos, apinhava-se numa estreita sala em
Natal! Acreditamos que três elementos sem compromissos escolares poderiam ter feito o mesmo trabalho, com
grande economia não só de pessoal, mas também de
318
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
quilômetros rodados, de vez que poderiam permanecer
por mais tempo no interior, diminuindo o número de
deslocamentos a grandes distâncias, economizando tempo e diminuindo o custo da supervisão de cada Escola.
Com a redução feita nas subvenções federais após 31
de março de 1964, o MEB consumou seu erro, demitindo
os dois únicos elementos da Equipe de Supervisão que
residiam no interior e supervisionavam as duas áreas
(Nova Cruz e S. Paulo do Potengi) de maior densidade e,
provavelmente, de melhores Escolas radiofônicas.
c — Poderíamos, finalmente, observar que o sistema
montado pelo MEB, porque centralizado, requeria grande
número de funcionários e. consequentemente, só poderia ser mantido enquanto durasse o Convênio. Acontece
que os cortes vieram, inesperadamente em 1964, repetiram-se em 1965, recusando-se o Governo, em 1966, por
razoes óbvias e já mencionadas na I Parte, a renovar o
Convênio. Consultados, não pelo MEB, que está agonizante, mas por D. Nivaldo, querer a todo custo salvar as
Escolas Radiofônicas, observamos--lhe que isto nos parecia perfeitamente viável, com as seguintes condições:
— que o Setor possa dispor de aproximadamente 1/3
dos recursos financeiros que antes lhe facultava o Convênio;
— que o Setor volte ao realismo dos “Irmãos Pobres”,
substituindo o sistema centralizado, dispendioso e, por
isso mesmo, demasiadamente vinculado à continuidade
de ajudas externas, por um sistema mais descentralizado, menos dispendioso e, porque estribado numa participação voluntária ainda mais ampla, menos dependente
de ajudas externas;
ALCEU RAVANELLO FERRARO
319
— que, em vez dos 30 elementos de antes, se reduza
a Equipe Central a não mais de 7 a 10 funcionários, a
tempo integral e sem compromissos escolares;
— que, sempre que possível, se faça uso de transportes
coletivos, bem menos dispendiosos;
— que se organizem imediatamente Comitês locais,
preferivelmente de âmbito paroquial, que, após treinamento adequado e contando com o assessoramento de
um elemento da Equipe Central, possam assumir a supervisão das Escolas;
— que a supervisão, em vez de consistir em visitas
de 15 minutos a cada Escola, se oriente para reuniões
de revisão e treinamento de monitores, aproveitando-se
para isto o afluxo espontâneo dos mesmos às sedes de
capela, nos dias de missa, e às sedes paroquiais ou sedes
municipais, nos domingos ou dias de feira;
— que, em caso de criação de novas Escolas, não se
distribua gratuitamente o rádio, mas se motive a comunidade para adquiri-lo;
— que o órgão Federal competente conceda finalmente a, há dois anos, pedida e esperada autorização,
para que a Emissora possa funcionar com pelo menos
metade da potência de seu novo transmissor de 10 kw,
instalado já em 1964!
3. ALFABETIZAÇÃO
Ficou demonstrado no Capítulo V que, segundo os dados do Censo de 1950, cada CT e correspondente CNT
320
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
situavam-se, naquela data, em áreas de idênticos índices
de pessoas alfabetizadas. A atuação dos Poderes Públicos
após 1950 não só foi mantida constante r pares de comunidades, mas até mais favorável às comunidades não
trabalhadas, de vez que, na data da pesquisa (julho de
1965), contra apenas duas das quatro CT, três das quatro
CNT tinham Grupo Escolar.
O único outro fator que interveio após 1950 foi o trabalho do SAR: intenso nas quatro CT e nenhum ou mínimo nas CNT. Nossa hipótese era que, apesar de a ação dos
Poderes Públicos haver sido relativamente mais intensa
nas CNT, as CT, em consequência do trabalho do SAR,
apresentariam, com relação às primeiras, uma proporção
mais elevada de pessoas alfabetizadas, diferença esta que
se concentraria nas faixas de idade compreendidas entre
11 e 30 anos (a população mais atingida) e que seria mínima ou nenhuma entre a população de 31 e mais anos
(a menos atingida pelo trabalho do SAR, neste campo).
A própria tabulação dos dados foi feita de maneira a permitir a verificação desta hipótese.
A tabela 8.5 apresenta a distribuição, segundo a instrução, por grupos de comunidades e de idade, dos 1.247
membros de 11 anos e mais, de 357 famílias pesquisadas. O número de não-respostas não ultrapassou os 2,2%;
cerca de 28 pessoas, de 11 anos e mais, de 8 famílias (CT
— 3, CNT — 5).
O resumo seguinte dos dados da tabela 8.5, representados no gráfico 8.1, nos permite tirar uma série de conclusões quanto à alfabetização nos dois grupos de comunidades.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
321
a — Entre toda a população de 11 anos e mais (TOTAL), a proporção de pessoas alfabetizadas é da ordem de
1/3 (33,7%) nas CT, contra menos de 1/4 (23,9%) nas CNT.
O teste de qui-quadrado revela ser inferior a 1 por 1.000 a
probabilidade de tal diferença (9,8% a mais nas CT) resultar do próprio processo de amostragem, ou seja, que tal
diferença entre os dois grupos de comunidades é significativa a um nível muito alto, superior a 1/1.000.
b — para os grupos de idade de mais de 30 anos temos
as seguintes proporções de pessoas alfabetizadas, respectivamente nas CT e nas CNT: 10,0% e 10,3% (-0,3% nas
CT) entre a população de 51 e mais anos; 13,2% e 9,6%
(+3,6% nas CT) entre a população de 41-50 anos; e 27,8%
e 29,3% (-1,5% nas CT) entre a população de 31-40 anos.
Em ambos os grupos de comunidades a proporção de alfabetizados passa de cerca de 10% entre a população de
41-50 e 51 e mais anos, para quase 30% entre a população
de 31-40 anos. Considerando toda a população de 31 e
mais anos (os três grupos de mais de 30 anos), temos,
respectivamente nas CT e nas CNT, 18,1% e 15,5% de alfabetizados. A pequena (não significativa) diferença em
322
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
favor das CT (2,6% a mais de alfabetizados) entre a população de mais de 30 anos ficaria reduzida a apenas 0,5%
(16,0% e 15,5% de alfabetizados, respectivamente nas CT
e nas CNT), não fossem 6 pessoas das CT de mais de 30
anos, alfabetizadas em Escolas Radiofônicas. Independentemente do trabalho do SAR, por conseguinte os dois
grupos de comunidades não diferem por mais de 0,5%
(em favor das CT) quanto à proporção de alfabetizados
entre a população de mais de 30 anos.
c — A diferença altamente significativa encontrada
entre os dois grupos de comunidades quanto à proporção de alfabetizados entre todas as pessoas de 11 anos e
mais, concentra-se quase totalmente entre as pessoas de
11-30 anos.
De fato, temos as seguintes percentagens de alfabetizados, respectivamente para as CT e CNT. 47,2% e 29,7%
(+ 17,5% nas CT) entre as pessoas de 21-30 anos 45,3% e
28 4% (+ 16 9% nas CT) entre as pessoas de 16-20 anos;
46,2% e 32,3% (+ 13,9% nas CT) entre as pessoas de 11-15
anos. Se considerarmos toda a população de 11-30 anos
(os três grupos de idade: 11-15, 16-20 e 21-30) temos, respectivamente para as CT e CNT, 46,4% e 30,3% de alfabetizados (+ 16,1% nas CT). Esta diferença é ainda mais
significativa (a um nível muito superior a 1/1.000) do que
a encontrada entre toda a população de 11 anos e mais.
d — Outros dados, que não figuram na tabela 8.5, nos
permitem ir ainda mais longe na confrontação entre os
dois grupos de comunidades do ponto de vista de alfabetização. Assim, entre as pessoas de 11 anos e mais, as CT
apresentam, com relação às CNT, não só uma proporção
maior de pessoas alfabetizadas, mas também um nível
ALCEU RAVANELLO FERRARO
323
de instrução mais elevado. De fato, de cada 100 pessoas
de 11 e mais anos, 5,9% nas CT, contra apenas 2,9% nas
CNT (proporção de 2 para 1) tinham, na data da realização da pesquisa, 4o ou 5o ano primário completo. Se considerarmos somente as pessoas de 11 anos e mais que
sabiam ler e escrever, o número dos que tinham 4o ou 5o
ano primário completo em julho de 1965 era da ordem
de 17 4% nas CT (37/212 alfabetizados), contra apenas
12,2% nas CNT (18/148 alfabetizados).
e — Relacionando os dados seguintes com os números
absolutos da tabela 8.5 referentes às CT, observamos
que 78 sobre 629 pessoas de 11 e mais anos (12,4%) — 7
sobre 282 pessoas de 31 anos e mais (2,5%) e 71 sobre
347 pessoas de 11-30 anos (20,5%) — haviam aprendido
alguma coisa em Escola Radiofônica: 31 — somente, 5
principalmente, 21 — igualmente e 21 — só secundariamente em Escola Radiofônica. O total acima (78) exclui
algumas pessoas que frequentaram Escola Radiofônica
sem terem aprendido nem sequer a assinar o nome, mas
inclui 15 pessoas que, embora não se possam dizer alfabetizadas, aprenderam pelo menos a assinar o nome, o
que já constitui para as mesmas — na maioria pessoas
de mais de 20 anos — uma promoção, pois lhes possi-
324
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
bilita participar, através do voto. na vida política do país.
Aliás, temos encontrado bom número de pessoas adultas
que frequentaram Escola Radiofônica com o objetivo primeiro de tornar-se eleitores. Mas, sobre isto, voltaremos
a falar em outro Capítulo.
Se multiplicarmos o total de 78 por 2,675 (pelo inverso da proporção de famílias e, consequentemente, de
pessoas pesquisadas nas CT), podemos, com 95% de probabilidade, estimar em 209 + - 0 (203-215) o número de
pessoas de 11 anos e mais que, nas 4 CT pesquisadas, frequentaram Escola Radiofônica com algum proveito, seja
que este se deva somente, principalmente, igualmente
ou só secundariamente ao ensino radiofônico.
Embora em proporção muito menor do que as CT, as
CNT acusam um número relativamente elevado de pessoas que afirmaram ter aprendido alguma coisa em Escola Radiofônica: somente — 1 (Serrinha); principalmente
— 0; igualmente — 6 (Barra do Geraldo - 1; S. Estevam
— 5); e só secundariamente em Escola Radiofônica - 7
(todos em Fonte): 14 pessoas ao todo. Contrariamente às
informações que nos haviam sido dadas pelo MEB, encontramos em Fonte, que supúnhamos não trabalhada,
uma Escola Radiofônica; a influência desta Escola revelou-se também no que tange à saúde preventiva, como
já tivemos oportunidade de observar. Igualmente, nas vizinhanças de S. Estevam funcionam Escolas Radiofônicas,
que atingiram algumas pessoas desta localidade. Outras
das 14 pessoas das CNT, que declararam haver aprendido algo em Escola Radiofônica, haviam frequentado tais
Escolas, quando residentes em outras localidades. Isto
nos leva a concluir que as CNT deveriam ser considera-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
325
das como pouco trabalhadas e não como simplesmente
não trabalhadas pelo SAR. Não fosse, por conseguinte,
esta influência do ensino radiofônico nas próprias comunidades não trabalhadas, a diferença entre os dois grupos de comunidades, do ponto de vista de alfabetização,
seria provàvelmente mais acentuada do que a que acabamos de encontrar.
A longa observação nos confirma na opinião de que
esta diferença encontrada entre os “dois grupos de comunidades quanto à alfabetização não deve ser atribuída
exclusivamente ao ensino radiofônico, mas ao trabalho
do SAR, no seu conjunto. Antes das Escolas Radiofônicas
já funcionavam, em alguns casos, escolas de alfabetização, motivadas pelo SAR. Em Serrote (Ia. CT), por exemplo, contrariamente ao que acontece em Barra do Geraldo (1a CNT), bom número de pessoas de 15 anos e mais
frequentam a Escola Isolada que aí funciona, motivadas
indiscutivelmente pelo trabalho do SAR, iniciado a cerca
de 10 anos naquela comunidade.
Concluindo este parágrafo, podemos dizer que, no que
tange a alfabetização, nossa hipótese verificou-se plenamente (veja gráfico 8 1): 1) as CT apresentam, com relação às CNT, uma proporção significativamente maior de
alfabetizados entre as pessoas de 11 anos e mais; 2) esta
diferença concentra-se quase que totalmente nas faixas
de idade compreendidas entre 11 e 30 anos; 3) esta diferença deve-se ao trabalho do SAR.
326
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
4. ESCOLARIDADE
A alfabetização é função da escolaridade: uma proporção mais elevada de pessoas alfabetizadas só poderia resultar de uma proporção mais elevada de pessoas
que estudam. Neste particular, nossa hipótese era de
que as CT apresentariam uma curva de escolaridade mais
levada do que as CNT. Para a verificação desta hipótese
incluímos um item sobre a escolaridade de todas as pessoas de 7 anos e mais, de todas as famílias pesquisadas.
O número de não respostas foi novamente mínimo: cerca de 25 pessoas de 7-40 anos, de 8 (CT — 3, CNT — 5) das
365 famílias pesquisadas. Os dados referentes a todas as
pessoas de 7-40 anos (após esta idade ninguém estudava)
encontram- se na tabela 8.6 e aparecem representados
nos gráficos 8.2 e 8.3.
Comecemos por considerar o gráfico 8.2 e os respectivos números percentuais no fim da tabela 8.6 (totais CT
e CNT). Seguindo o padrão habitualmente encontrado no
meio rural, as 4 CNT apresentam conjuntamente, para
cada grupo de idade, as seguintes proporções de pessoas
que estudam: 7-10 anos — 51,7% (escolaridade máxima);
11-15 anos — 38,3%; 16-20 anos — 18,6%; 21-30 anos
— 4,2%; 31- 40 anos — 2,7% (escolaridade mínima e, a
partir daí, nula). As 4 CT, ao contrário, apresentam para
cada grupo de idade as seguintes percentagens de pessoas que estudam: 7 -10 anos — 54,5% (curva crescente,
deste para o seguinte grupo de idade); 11-15 anos.
— 73,5% (escolaridade máxima e diferença máxima
com relação às CNT: 73,5%, contra 38,3%); 16-20 anos —
32,6%; 21-30 anos — 10,6%; 31 -40 anos — 1,7% (escolaridade mínima e, a partir daí, nula).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
327
Entre a população de 7-10 anos as CT apresentam,
com relação às CNT, uma percentagem levemente mais
elevada, mas não significativamente diversa (p=.70), de
pessoas que estudam: 54,5% e 51,7%, respectivamente.
Dos 7-10 para os 11-15 anos observamos um fenômeno interessante: enquanto, do primeiro para o seguindo grupo de idade, a escolaridade baixa, nas CNT,
de 51,7% para 38,3%, nas CT a escolaridade segue sentido
contrário, elevando-se de 54,5% para 73,5%, atingindo assim a curva de escolaridade das CT o seu ápice aos 11-15
anos, e alcançando a diferença entre os dois grupos de
comunidades o seu máximo (73,5%, contra apenas 38,3%,
numa proporção de quase 2:1). Tal diferença revela-se
significativa a um nível extremamente elevado (muito
superior a 1 por 1.000).
Nos grupos de idade seguintes também a curva de escolaridade das CT passa a ser descendente. Entre as pessoas de 16 - 20 anos, as CT continuam apresentando uma
escolaridade significativamente mais elevada do que as
CNT, embora com uma diferença menor entre os dois
grupos (32 6% contra 18,6%) e a um nível mais baixo de
significância (5%) Com relação às pessoas de 21-30 anos
encurta-se ainda mais a distância entre as CT e as CNT,
com uma escolaridade de 10,6% e 4,2%, respectivamente.
Esta diferença embora não o alcance, beira o nível de
significância de 5%.
Daí por diante, em ambos os grupos de comunidades a
escolaridade é mínima e quase idêntica entre as pessoas
de 31-40 anos (1,7% nas CT e 2,7% nas CNT) e nula entre
as pessoas de 41 anos e mais.
328
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Como já observamos, nossa hipótese era de que as
CT apresentariam, com relação às CNT, uma curva mais
elevada de escolaridade, mas de maneira alguma suspeitáramos apresentassem uma curva diversa de escolaridade, com seu ápice deslocado dos 7-10 para os 11-15
anos. Ao apercebermo-nos do fato, pensando tratar-se
de algum equívoco, controlamos outra vez, minuciosamente todos os dados, recorrendo depois à confrontação
em cada um dos 4 pares de comunidades: até que ponto
cada CT e correspondente CNT manifestariam as mesmas tendências encontradas nos dois grupos de comunidades? É o que veremos, referindo-nos ao gráfico 8.3,
construído com base nos dados da tabela 8.6.
a — Na sua origem (7-10 anos) a curva de escolaridade
de cada CT, relacionada com a correspondente CNT,
apresenta-se levemente menos elevada nos pares I e III,
levemente mais elevada no IV par e bem mais elevada
no II par. Tais dados não nos permitem concluir sobre
uma diversidade de comportamento nos dois grupos de
comunidades quanto à escolaridade entre as pessoas de
7-10 anos.
b — Com relação aos outros grupos de idade (a partir
dos 11 anos) as CT dos pares I, II e III apresentam curvas
de escolaridade nitidamente mais elevadas do que as das
correspondentes CNT. Apenas no IV par, a curva de escolaridade de Redenção (CT), inicialmente mais elevada (7
-10 e 11-15 anos) passa, a partir dos 16 anos, a situar-se
num nível mais baixo do que a de Serrinha (CNT).
c — Dos 7 -10 anos para os 11-15 anos, a curva de escolaridade das CT é ascendente nos pares I, III e IV (respectivamente de 36,0% para 66,7%; de 48,3% para 85,3%; e
ALCEU RAVANELLO FERRARO
329
de 68% para 72,4%), permanecendo no mesmo nível no II
par (70% e 70%), sendo que, neste último caso, a própria
escolaridade entre 7-10 anos atingiu um índice muito
elevado. O importante é observar que, em nenhum caso, a
curva é descendente, sendo, em três casos, ascendente.
d — Ao contrário do verificado nas CT, dos 7-10 para
os 11-15 anos a curva de escolaridade das CNT em nenhum
caso é ascendente, sendo descendente nos pares I, II e III
(respectivamente de 45,5% para 31,2%; de 31,8% para
19,4%; e de 50,0% para 30,0%), permanecendo no mesmo
nível no IV par (65,8% e 65,8%).
Quanto às CT apresentarem curvas de escolaridade
tipicamente diversas (escolaridade máxima aos 11-15
anos) das encontradas nas CNT (escolaridade máxima
aos 7-10 anos), os dados parecem deixar pouca dúvida.
Quanto às CT, pelo menos no que concerne a população de 11 anos e mais, apresentarem curvas de escolaridade mais elevadas do que as oferecidas pelas CNT, não
resta dúvida no que tange aos pares I, II e III de comunidades. Quanto ao par IV, não podemos dizer a mesma
coisa. Levemente mais elevada aos 7-10 e 11-15 anos, a
partir dos 16 anos a curva de escolaridade de Redenção
(CT 4) passa a mover-se num nível mais baixo do que a de
Serrinha (CNT 4). Aqui, porém, importa lembrar o que
já dissemos no Capítulo V. Serrinha apresenta uma série
de vantagens com relação a Redenção: além de ser menos isolada, sua população (a da localidade e que foi considerada na pesquisa, não a do município) residia praticamente toda no aglomerado (então vila e hoje cidade,
sede do Município), enquanto que mais de metade da
330
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
população de Redenção vivia dispersa Não nos é possível
determinar até que ponto estes fatores tenham influência nas duas curvas de escolaridade. O povo de Redenção,
contudo, tem consciência da mudança havida, o que, em
grande parte atribui ao trabalho do SAR (dos líderes locais, motivados e orientados pelo SAR). A mudança do
nome de “Gangorra” para Redenção e a expressão desta
consciência.
3) Acabamos de receber de uma professora e líder de
Serrote (CT 1) dados referentes à matrícula, naquela localidade, em agosto de 1966. Estes dados, distribuídos,
no quadro seguinte, segundo o tipo de Escola frequentada, e a idade e sexo dos alunos, além de confirmar o
que acabamos de ver sobre a escolaridade nas CT, nos
permitem uma série de observações interessantes.
Infelizmente a informante não explicou a idade de
cada um dos 20 alunos da Escola Radiofônica, limitandose a dizer que todos estavam compreendidos entre 14 e
30 anos.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
331
Dos 72 alunos que frequentam a Escola Primária comum (Escola Isolada), apenas 20 (27,8%) são do sexo masculino. Destes 20,17 frequentam a 1a série, e 3, a 3a série,
sendo que nenhum deles tem mais de 15 anos, e apenas
6 tem mais de 10 anos. Dos 52 alunos do sexo feminino,
ao contrario, 11 frequentam a 4a ou 5a série, sendo que
9 tem mais de 15 anos. É o que acontece comumente
no meio rural: dos alunos do sexo masculino, por serem
muito cedo requisitados pelo pais para o trabalho agrícola, poucos continuam a frequentar nos períodos de
intenso trabalho nos campos, e dificilmente vão além
da 2a série primária. É interessante observar como, em
Serrote, 20 rapazes de 14-30 anos, que, em outras circunstâncias, não teriam oportunidade de alfabetizar-se
ou de prosseguir nos estudos, encontram refúgio na Escola Radiofônica (noturna). Como pudemos constatar,
alguns destes rapazes, quando crianças, não haviam frequentado a escola.
Já as moças, diversas das quais, inicialmente, como
os rapazes, recorriam a Escola Radiofônica, passaram a
frequentar a Escola Isolada, cujas professoras são remuneradas pelo estado, mas devem ao SAR seus cursos de
aperfeiçoamento. Lembrem-se ainda que a Escola funciona no prédio do centro social da comunidade, por falta,
em Serrote, de um grupo Escolar do Estado.
O Curso de Madureza (Ginásio pelo Rádio), iniciado
pelo SAR em 1965, em Convênio com o Ministério da
Educação e Cultura e com a Secretaria de Estado da Educação e Cultura, veio abrir novas perspectivas para a população de Serrote, até então, por distar cerca de 3 léguas da sede do Município, sem acesso ao curso ginasial.
332
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Assim, 10 pessoas (9 moças e um rapaz) estão atualmente
fazendo o Ginásio.
Se considerarmos somente os que frequentam as Escolas Isolada ou Radiofônica, temos, em Serrote. 40 alunos
do sexo masculino, para 52 do sexo feminino, numa proporção de 4 para 5, respectivamente. Não fosse o ensino
radiofônico, esta proporção provavelmente não seria
muito superior a 2 para 5, respectivamente do sexo masculino e feminino.
Tanto Serrote (CT 1) como Barra do Geraldo tinham,
em meados do decênio dos anos 50, quando teve início o
trabalho do SAR na primeira comunidade, apenas 1 professora. Em meados de 1965 (data da pesquisa) Barra do
Geraldo, com uma populaçao um pouco maior e mais
aglomerada do que Serrote, dispondo de um Grupo Escolar do Estado, continuava com 1 professora, esta mesma
vinda de fora (uma légua de distância) e, por isso mesmo, faltando com frequência, e não mais de 40 alunos
matriculados, praticamente todos, crianças. Serrote, não
dispondo de Grupo Escolar e com uma população relativamente menor e mais dispersa do que Barra do Geraldo além de ter “exportado” uma professora para uma
localidade próxima contava com 4 pessoas ensinando,
em 1965, a cerca de 90 alunos e em 1966 a 102 alunos,
a maioria .dos quais, jovens e adultos. Já havia sido conseguida do Estado contratação de mais uma professora
para Escola Isolada. As duas professoras desta Escolas
com a ajuda de outras duas pessoas - uma moça e um rapaz - ensinavam gratuitamente num dos turnos da Escola Isolada, no curso de madureza e na Escola Radiofônica.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
333
A propósito desta ultima, não restam, em Serrote senão
o símbolo (o rádio sobre a mesa) e o nome (radiofônica):
bem ouvida pela manhã (6 horas) no curso de Madureza,
a emissora deixou de ser ouvida a noite, na hora da transmissão das aulas para as Escolas Radiofônicas. Para atender aos rapazes, todo o “professorado” (as 4 pessoas de
ensinar) passou a revezar-se voluntariamente no ensino,
transformando a “radiofônica” numa escola de ensino
direto, mantendo, porém, o horário noturno.
CAPÍTULO IX
5. CONCLUSÃO
O associativismo, isto é, a pertinência a grupos voluntários, em contraposição a grupos espontâneos, está intimamente relacionado com o fenômeno do desenvolvimento. No que tange a formas associativas tipicamente
secundárias, já observamos no Capítulo VII que as CT
apresentam um número significativamente mais elevado de associados a Cooperativas e teremos ocasião de
tratar do Sindicalismo no próximo capítulo. No presente
Capítulo limitar-nos-emos à consideração de formas associativas voluntárias — permanentes ou ocasionais —
mais de perto relacionadas com o desenvolvimento de
pequenas comunidades: 1) grupos voluntários permanentes, de caráter de si secundário, mas que, pelo pequeno porte dos mesmos e o âmbito restrito das comunidades em que atuam, facilmente evoluem para grupos
de tipo primário, e 2) outras formas associativas ou cooperativas não permanentes, dentro do âmbito de pequenas comunidades rurais (tais são as 8 comunidades por
nós pesquisadas). Em outras palavras, poderíamos dizer
Concluindo este Capítulo, podemos dizer que o trabalho do SAR representou, nas 4 comunidades trabalhadas e por nós pesquisadas, uma notável contribuição
no que tange à instrução, seja elevando significativamente o índice de alfabetização entre a população de
11-30 anos, seja elevando significativamente (com a ressalva feita com relação ao IV par comunidades) a curva
de escolaridade a partir dos 11 anos, seja ainda modificando a própria curva de escolaridade, deslocando-lhe o
ápice dos 7-10 para os 11-15 anos. A funcionalidade, do
ponto de vista de desenvolvimento, de tais mudanças é
manifesta: técnicos em desenvolvimento são unanimes
em apontar a alfabetização e a escolaridade como critérios de desenvolvimento. A terceira, a mudança da curva
de escolaridade, o fato mais surpreendente, porque totalmente inesperado, na pesquisa – reputamo-la, pelas
razões já indicadas no decorrer deste capítulo, a de maior
significado do ponto de vista de desenvolvimento.
334
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
FORMAS ASSOCIATIVAS
E COOPERATIVAS,
AÇÃO COMUNITÁRIA
E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
ALCEU RAVANELLO FERRARO
335
que se trata de verificar se e em que sentindo o trabalho
do SAR teria modificado as concepções, as atitudes e o
comportamento dos habitantes das CT, no que tange às
relações sociais existentes entre os habitantes de uma
mesma comunidade, ou seja, no que tange às relações
comunitárias.
1. FORMAS ASSOCIATIVAS PERMANENTES,
DE PEQUENO PORTE
Interessam-nos aqui somente os grupos voluntários
permanentes, de pequeno porte, restritos ao âmbito da
comunidade local.
Centro Social. Das 8 comunidades pesquisadas, somente
três as quatro CT (Serrote, Potengi e Redenção) tem Centro Social. Estes centros estão abertos à participação de
todas as pessoas da comunidade, mesmo que não sejam
associadas. Das 138 famílias cujos chefes nestas três comunidades, se declararam 67, ou seja, 48 ,6% das famílias
eram, em meados de 1965, associadas a Centro Social.
Por categoria profissional, temos os seguintes números
relativos de associados: patrões – 66,7% (14/21); pequenos proprietários – 52,2% (24/26); trabalhadores rurais
– 38,6% (22/57); outros – 50,0% (7/14). Esta forma associativa e cooperativa interessou, por conseguinte, a todas
as categorias profissionais. Os trabalhadores rurais são
proporcionalmente menos representados (38,6%), mas
apresentam, depois dos pequenos proprietários (24), o
número absoluto mais elevado de associados (22). Sur-
336
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
preendente é que patrões – os mais avessos a tais formas
associativas – estejam tão bem representados (66,7%).
Segundo a idade dos respectivos chefes, temos as seguintes proporções de famílias associadas: chefes até 30
anos — 61,9% (13/21); 31-40 anos — 52,4% (22/42); 41-50
anos — 47,1% (16/34); 51 anos e mais — 39,0% (16/41).
As famílias mais jovens, ou de chefes mais jovens, estão
representadas em maior proporção. Contudo, mesmo as
famílias de chefes de 51 e mais anos estão bem representadas (39,0%).
Associações de mulheres. Das 168 mulheres (esposas ou
mães viúvas ou separadas), membros das famílias pesquisadas nas 4 CT, 39 (23,2%) pertenciam a Clube de Mães.
Segundo as comunidades, a proporção de mulheres associadas era a seguinte: Serrote — 50,0% (23/46); Redenção
— 22,5% (9/40); Potengi — 9,1% (4/44); Jundiá de Cima
— 7,5% (3/38). Nas duas últimas, em proporção bem inferior à das outras duas comunidades. Se considerarmos
todas as mulheres (não só as das famílias pesquisadas)
teremos, nas CT, cerca de 90 associadas a Clube de Mães.
Em contraposição, entre todas as mulheres das CNT
encontramos apenas quatro senhoras (tôdas de Serrinha
e já bem idosas) associadas ao Apostolado da Oração, sendo que uma delas era também terceira franciscana e carmelita — todas estas, associações católicas tradicionais.
Grupos de rapazes e moças. Embora bom número de crianças e adolescentes (de menos de 14 anos) pertençam,
nas CT, a Clubes Agrícolas e, alguns, à Pré-JAC, limitamonos aqui a considerar o associativismo entre os solteiros
— rapazes e moças — de 14-30 anos.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
337
A proporção de associadas a um ou mais grupos, sobre
o total de moças de 14 - 30 anos pertencentes às famílias
pesquisadas em cada uma das 4 CT, é a seguinte: Serrote — 10/24; Potengi — 16/23; Jundiá de Cima — 6/13;
Redenção — 9/23. Nas 4 CT conjuntamente, de 83 moças
de 14-30 anos (membros das famílias pesquisadas), 41, ou
sejam, 49,4% eram associadas a um ou mais grupos:
— JACF (Juventude Agrária Católica Feminina) ....... 12
— JACF e Clube de Jovens ............................................. 10
— Clube de Jovens ......................................................... 14
— Clube de Jovens e Clube Agrícola ............................ 3
— Clube Agrícola ............................................................. 2
Nas CNT, ao contrário, só encontramos 3 moças, todas
elas de Serrinha, associadas à JACF, e uma delas também
a Clube de Jovens. Mas isto já é o começo do Movimento
em Serrinha.
Nas CNT não encontramos nenhum rapaz associado a
que quer que fosse. Nas CT, ao contrário, dos 91 rapazes
de 14 - 30 anos, membros das famílias pesquisadas, 21,
ou sejam, 23,1% eram associados à JAC, sendo que 12
destes pertenciam também a outro grupo.
Dados recentes que nos chegam de Serrote (CT 1) nos
dizem que, naquela comunidade, 67 famílias são associadas ao Centro Social.
73 mães, ao Clube de Mães; 17 rapazes, à JAC; 15 moças,
à JACF e 37 crianças e adolescentes, ao Clube Agrícola.
Isto. numa comunidade de cerca de 150 famílias.
Para julgar da extensão e da importância dada pelo
SAR a estas formas associativas, basta lembrar que, dos
248 monitores entrevistados em meados de 1965 (Ques-
338
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tionário B) 111, ou sejam, 44,8% pertenciam pelo menos a um grupo: JAC Clube de, Jovem, Clube Agrícola de
Mães, Movimento Familiar Cristão (casais), sem lembrar
outras formas associativas de âmbito mais vasto, como o
cooperativismo e sindicalismo.
2. COOPERAÇÃO COMUNITÁRIA
l) O caso de Carnaúba. Com o intuito de averiguar-lhes
a capacidade de imaginar soluções e de verificar até que
ponto julgavam poder provir da própria cooperação comunitária a solução de determinado problema – a ausência de Escola, no caso – propusemos a todas as pessoas sorteadas, de 14 e mais anos, dos dois grupos de
comunidade, o fato seguinte (A.34):
“Na localidade de Carnaúba não há Escola. O que o
senhor sugere para resolver este problema?”
a) Os entrevistados distribuem-se da seguinte maneira
segundo as categorias em que foram agrupadas as respostas (tabela 9.1). respectivamente nas CT e nas CNT,
32,5% e (apenas) 14,3% observa que o povo do lugar (todos juntos, todos unidos, a comunidade...) poderia ou
deveria construir uma Escola; 4% e 1,9%, que o povo deveria falar com as autoridades; 10,9%contra 17 1% que as
autoridades deveriam construir uma Escola; 25,3% e 25,1%
(na rnesma proporção, praticamente) que se deveria construir uma Escola, sem especificar a quem caberia fazelo; e, sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 27,3%
ALCEU RAVANELLO FERRARO
339
e 41,6% (em proporção muito mais elevada nas CNT)
demonstraram-se conformados com a situação ou declararam não ter sugestão a dar. Conjuntamente, 72,7%
dos entrevistados das CT, contra 58,4% dos das CNT, deram ao povo de Carnaúba alguma das 4 sugestões acima
mencionadas. O mais interessante, porém, é observar as
duas categorias extremas: de todos os informantes, contra apenas 1/7 nas CNT, nas CT quase 1/3 declarou que o
povo do lugar poderia construir uma escola, enquanto
que, contra mais de 2/5 nas CNT, pouco mais de ¼ dos
entrevistados das CT demonstrou-se conformado com a
situação ou não soube dar nenhuma sugestão.
O teste de qui-quadrado acusa nas CT, com relação as
CNT, uma proporção significativamente mais elevada, a
um nível de significância superior a 1/1.000, de pessoas
que deram alguma sugestão. Por outro lado, aplicado aos
dados agrupados em três categorias de respostas (colunas 3+4 x 5+6 x 7), o teste de qui-quadrado revela que os
entrevistados das CT são, a um nível ainda mais elevado
de significância, mais propensos a resolver através da
cooperação comunitária um problema como a falta de
Escola.
b) Com relação ainda à pergunta A.34, os dados foram
distribuídos, na tabela 9.2, por comunidades e por grupos de idade, mantidas distintas as duas categorias extremas de respostas, e agrupados em “outra sugestão”
todos aqueles que, sem dizer que o povo do lugar poderia
construir uma Escola, deram alguma das outras três sugestões mencionadas na tabela anterior. Dos dados assim
agrupados e distribuídos, podemos, sem entrar muito
em detalhes, tirar uma série de conclusões, que vêm confirmar o que acabamos de ver.
340
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
a — A proporção de pessoas que souberam dar alguma
sugestão é mais elevada em todas as 4 CT, seja cada uma
delas relacionada com a correspondente, seja com todas
as 4 CNT. De fato, contra um máximo de 82,5% (Jundiá
de Cima) e um mínimo de 65,5% (Redenção) nas CT, o
número relativo dos que souberam dar alguma sugestão
fica compreendido, nas CNT, entre um mínimo de 48,9%
(Barra do Geraldo) e um máximo de 64,3% (Fonte), máximo este inferior ao mínimo encontrado nas CT (65,5%).
De outra forma e considerando a última coluna da tabela
9.2, aparece que o número relativo máximo de pessoas
conformadas ou sem sugestão a dar encontrado nas CT
(Redenção — 34,5%), fica aquém do mínimo encontrado
nas CNT (Fonte — 35,7%) (tabela 9.2-A).
b — A parte A da tabela 9.2 nos permite observar também como o número relativo de pessoas inclinadas a solucionar o problema através da cooperação comunitária
é mais elevado em todas as 4 CT, seja que se confronte
cada uma destas com a correspondente, seja com cada
uma das 4 CNT. De fato, respectivamente a cada CT e
correspondente CNT de cada um dos 4 pares de comunidades correspondem os seguintes números relativos
de pessoas que indicaram que o povo do lugar deveria
construir uma Escola: 41,7%, contra 15,9%; 26,4%, contra
10,7%; 39,2%, contra 18,6%; e 23,0%, contra 12,3% sempre
respectivamente para cada CT e correspondente CNT o
número relativo mínimo dos que assim opinaram nas CT
(2d,u /o em Redenção) é bastante mais elevado do que o
máximo encontrado nas CNT (18,6%).
c — O número relativo dos que, em cada grupo de
comunidades e de idade (tabela 9.2-B), souberam apre-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
341
sentar alguma sugestão: 1) é quase idêntico nas CT e
nas CNT (respectivamente 52,0% e 51,0%) para o grupo
de idade mais avançada (51 e mais anos), é levemente
mais elevado nas CT do que nas CNT ( respectivamente
72,2% e 68%) para o grupo de idade de 41-50 anos e 3) e
acentuadamente mais elevado nas CT do que nas CNT,
com uma diferença de cerca de 20% a mais, para cada um
dos grupos de idade mais jo vem: respectivamente 80%
contra 60,0%, para a população de 31-40 anos; 80,5% contra 57,1%, para a população de 21-30 anos; e 79,0% contra
61,4%, para a população de 14-20 anos. Quanto a capacidade de imaginar soluções para o problema dado por
conseguinte sem apresentar diferenças, pelo menos não
acentuadas nos grupos de idade mais avançada (a partir
dos 41 anos), as CT levam, no que tange aos três grupos
de idade mais jovem, grande vantagem sobre as CNT.
A julgar somente pelo número relativo dos que souberam apresentar alguma sugestão, sem distinguir os tipos
de sugestões dadas, deveríamos concluir que, sob o aspecto analisado, o SAR só teria atingido a população de
40 anos e menos.
d — Segundo todos os grupos de idade, mesmo entre
as pessoas de 51 e mais anos, onde encontramos a menor
diferença entre os dois grupos de comunidades (respectivamente 25% e 17%), as CT apresentam um número
relativo nitidamente mais elevado do que as CNT, de pessoas que opinaram que o problema poderia (deveria!) ser
resolvido através da cooperação comunitária, isto é, que
o próprio povo do lugar deveria construir uma Escola.
A proporção mais elevada de pessoas que assim declararam encontra-se, nas CNT, entre a população de 14-20
342
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
anos (17,1%), proporção esta que fica muito aquém da
mínima encontrada nas CT e precisamente entre a população de 51 e mais anos (25,0%). Segundo estes dados, a
população mais idosa das CT (51 e mais anos) teria uma
atitude mais favorável à cooperação comunitária, do que
a própria população mais jovem das CNT (14-20 anos).
Embora não possamos determinar em que intensidade, as próprias declarações de alguns entrevistados
das CNT, que afirmaram que o próprio povo do lugar
poderia construir uma Escola, deixam transparecer uma
influência do próprio trabalho do SAR. Assim um chefe
de família de S. Estevam (CNT 1) observou: “Se o povo
de Potengi (CT 1) construiu uma Escola (o Centro Social
onde funciona a Escola), porque o povo de Carnaúba não
pode fazer o mesmo?”.
O caso de Bela Vista. Uma sociedade subdesenvolvida,
assim como tem tendência a atribuir fatalisticamente à
vontade de Deus tudo o que acontece (a morte prematura de uma criança, por exemplo), da mesma forma está
inclinada a esperar tudo dos Poderes Públicos e a responsabilizá-los por todos os males ou carências existentes.
Com o objetivo de verificar se as CT apresentavam uma
atitude menos fatalista com relação aos Poderes Públicos, propuzemos o caso seguinte (A. 35):
“Na localidade de Bela Vista também não há Escola.
O povo foi falar com o Prefeito. Este disse que não
podia fazer nada. Falaram então com o Governador. Este se prontificou a pagar uma professora,
mas não pode construir a Escola. Na localidade não
há nenhuma sala suficientemente grande para os
30 alunos que querem estudar. O povo não sabe o
ALCEU RAVANELLO FERRARO
343
que fazer. O que é que o senhor acha que se poderia fazer neste caso: 1. Esperar até que o Prefeito
ou o Governador de decida a construir uma Escola?
2. Ou tem outra sugestão? (Se tem) Qual?”.
a) Em proporção mais elevada, em ambos os grupos
de comunidades, do que no caso anterior, mas com uma
diferença igualmente significativa (a um nível superior
a 1/1.000) em favor das CT, 47,6% nestas, contra apenas
33,6% dos entrevistados das CNT, repudiaram a atitude
fatalista e afirmaram que o próprio povo do lugar deveria construir uma escola, enquanto que os outros 52,4%
e 66,4%, respectivamente nas CT e nas CNT, não viam
outra possibilidade, senão esperar pelas Autoridades (tabela 9.3-A).
b) A parte B da tabela 9.3 nos permite duas observações quanto à distribuição dos informantes segundo o
sexo. Primeiramente, o número relativo dos que afirmaram que o povo do lugar deveria construir uma Escola é
mais elevado nas CT do que nas CNT, tanto entre os entrevistados do sexo masculino (respectivamente 50,7%,
contra apenas 37,6%), como entre os do sexo feminino
(43,4%, contra apenas 27,4%, respectivamente nas CT e
nas CNT).
Embora isto independa do trabalho do SAR, observese, em segundo lugar, que, em ambos os grupos de comunidades, os homens, em proporção maior do que as mulheres, apelaram para a solução do problema através da
cooperação comunitária (povo do lugar): assim opinaram
50,7% dos homens e apenas 43,4% das mulheres das CT, e
37,6% dos homens e apenas 27,4% das mulheres das CNT.
344
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
c) Vejamos agora a atitude dos diversos grupos de
idade nos dois grupos de comunidades (tabela 9.3-C).
Oscilando entre 29,3% (população de 21-30 anos) e 36,4%
(população de 31-40 anos), não difere sensivelmente entre os diversos grupos de idade o número relativo dos
que, nas CNT, declararam que o próprio povo do lugar
deveria, sem esperar pelas Autoridades, resolver o problema. Nas CT, ao contrário, o número relativo dos que
assim opinaram, partindo de um mínimo de 37% entre
a população de 51 anos e mais mínimo este levemente
superior ao número do correspondente grupo de idade
(35,4%) e praticamente idêntico ao máximo (36,4%) encontrado nas CNT), eleva-se, à medida que passamos para
os grupos de idade mais jovem, sucessivamente para
40,4%, 47,7% e 55,8%, atingindo os 57,9% (o máximo) entre a população mais jovem (14-20 anos).
d) Aos que, no caso proposto (A.35), em ambos os grupos de comunidades, declararam que o “jeito” era esperar pelas Autoridades, foi perguntado (A.35a): “O senhor
acha que o povo mesmo do lugar poderia construir uma
sala de aula?”
Respectivamente nas CT e nas CNT (os dados não aparecem em tabela), 58,1% e 47,3% responderam “sim”, e
19,7% e 13,2%, “talvez” (em proporção acentuadamente
mais elevada nas CT, por conseguinte) 8,6% nas CT e 8,8%
nas CNT (praticamente na mesma proporção) declararam
não saber; os “não”, por sua vez, foram muito menos frequentes nas CT do que nas CNT (respectivamente, 13,6%,
contra 30,7%). Se às diferenças anteriormente encontradas (A.35 — tabela 9.3) adicionarmos as aqui observadas
(A.35a), torna-se ainda mais evidente que a população
das CT é acentuada e significativamente mais propensa
ALCEU RAVANELLO FERRARO
345
“Em Pitombeira não há nenhum local onde o povo
b) Deixando para o parágrafo 3 o resto da tabela 9.4
(dados distribuídos segundo o sexo), vejamos como se
manifestaram os entrevistados dos dois grupos de comunidades com relação à possibilidade de concretização da
ideia de seu João e seu Pedro. Aos que se haviam manifestado favoravelmente à ideia dos dois foi feita a pergunta A. 36b:
se possa reunir para uma festinha, uma diversão,
“A reunião foi feita, e a maioria se entusiasmou com
uma reunião ou para discutir os problemas do
a ideia e decidiu construir uma sala para o povo se
lugar. Seu João e seu Pedro pensaram em convidar
reunir. O senhor acha que o povo de Pitombeira,
o povo para uma reunião, para tratar do assunto.
que é pobre, poderá construir o seu Centro Social?”
à solução de problemas através da cooperação comunitária, do que a população das CNT.
3) O caso de Pitombeira. Continuando a confrontação sob
o mesmo ponto de vista, vejamos a atitude manifestada
pelos entrevistados de 14 anos e mais, dos dois grupos de
comunidades, com relação ao caso seguinte (A.36):
As esposas de seu João e seu Pedro não gostaram
muito da ideia, porque acham que eles devem
preocupar-se com a família e não com reuniões e
construção de sala, o que só vai criar confusão na
localidade. Quem o senhor acha que tem razão: seu
João e seu Pedro, ou as esposas deles?”
a) Considerando todos os entrevistados de 14 anos e
mais (tabela 9.4, homens + mulheres), a proporção dos
que deram razão a seu João e seu Pedro, isto é, dos que
se demonstraram favoráveis ao empreendimento comunitário dos dois, é muito mais elevada nas CT do que
nas CNT (70,5% e 52,2%, respectivamente), sendo, consequentemente, muito menos elevada nas CT do que
nas CNT a proporção de pessoas que desaprovaram o
empreendimento (29,5% e 47,8%, respectivamente para
cada grupo de comunidades). Esta diferença, como as encontradas nas tabelas 9.1 e 9.3, revela-se extremamente
significativa, a um nível muito superior e 1/1.000.
346
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Os que já se haviam manifestado contrários ao empreendimento planejado pelos dois homens de Pitombeira foram computados como tendo respondido “não” à
presente pergunta. Assim, sobre o total de entrevistados
dos dois grupos de comunidades, 52,1% (182/- 349) entre
os das CT, contra apenas 31,4% (100/318) entre os das CNT
declararam que, apesar de pobre, o povo de Pitombeira
tinha possibilidade de construir seu Centro. Se, já nos dados da tabela 9.4, encontramos uma diferença altamente
significativa em favor das CT (a um nível muito superior
a 1/1.000), esta diferença demonstra-se, aqui, ainda mais
elevada e mais significativa.
Este fato pode ser expresso de outra forma: nas CT
70,5% (246/349) aprovaram a ideia, e, dentre os que
a aprovaram, 74,0% (182/ 246) acreditam na possibilidade de. o povo de Pitombeira concretizá-la; nas CNT,
ao contrário, apenas 52,2% (166/318) aprovaram a ideia,
e dentre os que a aprovaram, apenas 60,2% (100/166)
acreditam na possibilidade de esta vir a ser concretizada.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
347
As CT, por conseguinte, não só apresentam um número
relativo, significativamente mais elevado, de pessoas que
aprovaram, mas também, dentre os que aprovaram um
número relativamente mais elevado de pessoas que acreditam na possibilidade de o povo de Pitombeira levar a
termo o empreendimento planejado.
3. ATITUDES SEGUNDO O SEXO
Os dados referentes às perguntas A.36 e A.36a, nos permitem uma série de observações sobre a atitude dos entrevistados dos dois grupos de comunidades com relação
à participação social, tanto das pessoas do mesmo sexo,
como das do outro sexo.
a) Voltemos à tabela 9.4. Entre os homens, a proporção
dos que se manifestaram favoravelmente ao empreendimento comunitário de seu João e seu Pedro foi da ordem
de 71,9% nas CT, contra 60,8% nas CNT, demonstrandose esta diferença significativa ao nível de 5%. Entre as
mulheres, a proporção das que manifestaram a mesma
atitude com relação àquela forma de participação social
dos homens foi da ordem de 68,6% nas CT, contra apenas
39,5% nas CNT, revelando-se esta diferença significativa
a um nível extremamente elevado (superior a 1/1.000).
Estes dados, por conseguinte, não só demonstram
que as CT apresentam um número relativo, significativamente mais elevado, de pessoas — tanto homens,
como mulheres — favoráveis à participação dos homens em
empreendimentos fundados na cooperação comunitária,
348
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mas também que o número relativo dos que manifestaram tal atitude é, nas CT, quase tão elevado entre as mulheres (68,6%), quanto entre os homens (71,9%), enquanto que, nas CNT, é muito menos elevado entre as mulheres (39,5%) do que entre os homens (60,8%). Em outras
palavras isto significa que, com relação àquela forma de
participação social dos homens, o número relativo de
mulheres das CT que a “permitem” é quase tão elevado,
quanto o de homens que, no mesmo grupo de comunidades, a “reivindicam”, ao passo que, nas CNT, o número
de mulheres que a “permitem” fica muito aquém do de
homens que, no mesmo grupo de comunidades, a “reivindicam”. Portanto, se nas CT, a mudança atingiu as
pessoas de ambos os sexos, esta parece ter sido mais intensa entre as mulheres do que entre os homens.
b) Vejamos agora a atitude dos entrevistados de ambos
os sexos, dos dois grupos de comunidades, com relação
à participação social da mulher. Aos que se manifestaram
favoráveis à iniciativa tomada por seu João e seu Pedro
foi feita a pergunta seguinte (A.36a):
“A quem o senhor acha que seu João e seu Pedro
deveriam convidar para a reunião: somente os homens e rapazes, ou também as mulheres e moças?”
Não havendo por que esperar-se o contrário, os que
se haviam manifestado desfavoravelmente à iniciativa
dos dois homens de Pitombeira foram computados como
tendo-se manifestado desfavoravelmente também à participação das mulheres na reunião desaprovada. Assim,
65,3% dos homens e 65,4% das mulheres das CT contra
51,3% dos homens e apenas 31,8% das mulheres das CNT,
ALCEU RAVANELLO FERRARO
349
demonstraram-se favoráveis à participação da mulher na
reunião convocada pelos dois.
Estes dados merecem ulterior análise. Observe-se primeiramente que, em ambos os grupos de comunidades
e entre as pessoas de ambos os sexos, o número relativo
dos que aprovaram a participação da mulher é menos
elevado do que o daqueles que haviam aprovado a a
participação dos homens; esta baixa, porém, foi relativamente menor nas CT (respectivamente de 71,9% para
65,3% entre os homens e de 68,6% para 65,4% entre as
mulheres), do que nas CNT (respectivamente de 60,8%
para 51,3% entre os homens e de 39,5% para 31,8% entre
as mulheres).
Observe-se, em segundo lugar, que nas CT, semelhantemente ao encontrado na atitude com relação à participação dos homens, também com relação à participação
da mulher no empreendimento comunitário, é praticamente tão elevado o número de mulheres que a “reivindicam”, quanto o de homens que a “permitem”. No que
tange às CNT, observamos um fato curioso: embora sempre menos elevado do que entre os homens e mulheres
das CT, é mais elevado nas CNT tanto o número relativo
de homens que “reivindicam” para os do mesmo sexo,
do que o de mulheres que lhes “permitem”, quanto o
de homens que “permitem”, do que o de mulheres que
“reivindicam” para as do mesmo sexo a participação no
empreendimento comunitário.
O que observamos neste Capítulo nos leva a concluir:
1) que, independentemente do trabalho do SAR, os homens seriam mais propensos a participar e a permitir
que as mulheres participem de tais atividades comuni-
350
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tárias, do que estas lhes permitiriam ou reivindicariam
para as do mesmo sexo; 2) que, em consequência do
trabalho do SAR, elevou-se significativamente nas CT o
número relativo de homens e especialmente de mulheres
que demonstram tal atitude, atingindo praticamente o
mesmo nível o número de pessoas que “reivindicam”
para as do mesmo sexo e o de pessoas que “permitem”
às do outro sexo tal forma de participação social; 3) que,
embora menos do que nas CT, também nas CNT é relativamente elevado o número especialmente de homens
que se manifestaram favoravelmente a tal forma de participação social, seja dos homens, seja das mulheres; 4)
que, em consequência, as múltiplas formas associativas e
cooperativas encontradas nas CT, devem-se não somente
ao desenvolvimento de uma atitude favorável, mas particularmente ao fato de o SAR ter dado oportunidades e ter
criado condições para isto; 5) que a quase total ausência,
nas CNT, de tais formas associativas e cooperativas deve
ser atribuída não só a uma atitude menos favorável, mas,
também, e principalmente, ao fato de não lhes haverem
sido dadas oportunidades e criadas condições isto como,
por exemplo, através de treinamentos e formação de
grupos).
4. PARTICIPAÇÃO SOCIAL DA MULHER
Se considerarmos também o associativismo tipicamente secundário (cooperativismo e sindicalismo rural),
é extremamente mais elevado o número de homens
ALCEU RAVANELLO FERRARO
351
pertencentes a associações voluntárias, do que o de mulheres. Se, porém, nos limitarmos àquelas formas associativas circunscritas ao âmbito da pequena comunidade interiorana (grupos de pequeno porte e tendentes a evoluir
para grupos primários), o índice de associativismo é bem
mais elevado entre as mulheres do que entre os homens.
No que diz respeito ao trabalho do SAR (dados de 1965)
os 26 Centros Sociais e os 31 Clubes Agrícolas atingem
pessoas de ambos os sexos, enquanto que os 31 Clubes
de Jovens e os 12 Clubes de Mães (o de Serrote tem 73
associados) atingem somente a população feminina.
Lembre-se ainda a Juventude Agrária Católica (JAC), que,
só na Arquidiocese de Natal tem mais de 60 Secções ou
Núcleos ativos, atingindo a juventude tanto masculina
como feminina — esta, em maior proporção. Observese que a JAC, embora sendo um movimento missionário
e, por isso mesmo, independente do SAR, sempre, seja
na cúpula, seja na base, desenvolveu suas atividades em
estreita colaboração com este no conjunto, tais formas
associativas atingem em maior proporção a população
feminina do que a masculina.
Se é verdade que o trabalho do SAR esteve, na base,
estribado na participação voluntária tanto de homens
como de mulheres, não se pode não lembrar que, no tocante à atuação dentro do âmbito das pequenas comunidades interioranas, as mulheres tiveram um papel de
destaque não só no que tange à participação em grupos
voluntários, mas também à participação em outras formas cooperativas. Assim, por exemplo, cerca de 85% dos
monitores de Escolas Radiofônicas são mulheres. Estas,
em bom número de casos, lideraram em suas comunidades o próprio movimento de sindicalização dos ho-
352
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
mens. Tais fatos nos chamam a atenção para um aspecto
possivelmente de extrema importância em se tratando
de desenvolvimento de pequenas comunidades rurais: a
participação da mulher.
Independentemente do trabalho do SAR, a mulher desempenha papel de destaque nas comunidades interioranas: o ensino primário é função quase privativa da mulher. Partindo precisamente de uma função sancionada
pela tradição — o ensino — o SAR estendeu paulatinamente a outros campos — notadamente à ação comunitária — a participação social da mulher, enquanto que,
nas comunidades não atingidas pelo SAR, especialmente
no interior dos municípios, a mulher, excetuados o ensino e a participação nas atividades religiosas, fica quase
que exclusivamente circunscrita ao âmbito da família.
Do ponto de vista de desenvolvimento de comunidade
(pelo menos, de pequenas comunidades rurais), parecenos de estrema importância o fato de o SAR haver ampliado a função social da mulher ou de lhe haver atribuído
novos papéis sociais na comunidade: o nível de instrução
é mais elevado entre as mulheres, e são precisamente
elas que têm mais tempo disponível. Não teria, por conseguinte, a mulher um papel de destaque no desenvolvimento de comunidades do tipo que analisamos?
5. ALGUNS DEPOIMENTOS
Deixemos de lado a assim chamada “Área Piloto” do
Movimento de Natal — a Paróquia de São Paulo do Po-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
353
354
tengi — que abrange 4 municípios, com uma população
superior a 30.000 habitantes, e que mereceria, por si só,
não um Capítulo, mas um estudo à parte.
Deixemos também de lado as quatro CT, nas quais
foram aplicados questionários, bem como tantas outras
comunidades trabalhadas pelo SAR, e de cujas atividades
tivemos oportunidade de inteirar-nos pessoalmente. Vejamos apenas, a título de exemplificação do que analisamos neste Capítulo, o trabalho desenvolvido em alguns
pequenos sítios do interior, isolados e nunca por nós
visitados, tal qual nos é descrito por monitores de Escolas Radiofônicas, em cartas de 1962. Para não truncar
demasiadamente o texto e não perder outros detalhes
interessantes, transcrevemos também trechos referentes
a outros aspectos do trabalho do SAR, que não os analisados neste Capítulo. Embora tenhamos feito correções
na ortografia e pontuação, procuramos manter intacto o
estilo. Grifamos alguns termos, cuja ocorrência vale ser
observada.
1) A “Radiofônica de seu Severino. Seu Severino, agricultor, participara do “movimento” no povoado de Redenção (CT 4). Mudando-se para Tanques, pequeno sítio no
município de Santo Antônio do Salto da Onça, iniciou aí,
com uma Escola Radiofônica, “movimento” semelhante.
Segue a história narrada por ele próprio:
fazer!’ - gritem todos os alunos, e eu, animando
“Dona Carmem! Estou muito sacrificado com a
O prefeito daqui deu ‘uma mil covas’ de terra para
minha Escola, porque os alunos não querem estu-
a Escola. Um vereador deu 70 carnaubeiras de 20
dar pelo rádio e não estão acompanhando a leitura
palmos cada uma ‘Quero fazer e faço até sozinho!’
do livro. É por isto que me sinto perturbado. Outra
- e o meu grito, todo o dia Nada mais de um moni-
coisa que me perturba: eu estudei em Redenção,
tor que trabalha para a melhora deste povo que me
no meio da sociedade (!), e aqui em Tanques o povo
estima. (Idem, 8/6/62)”.
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
é rebelde, malicioso e não quer saber de religião.
Apenas deram o nome de católicos. Dona Carmem,
eu ensinei nos dias em que não teve aula, porque,
se eu faltar, eles saem da Escola, porque são ignorantes, e é muito dificílimo (!) acabar com ela (a ignorância). Outro motivo de fracasso: eu não tenho
tempo de escutar os programas, porque sou agricultor e, além disso, a escola é isolada (distante), e
eu só vejo o rádio na hora das aulas ou então no
domingo Eu só estou ensinando porque tenho dó
dos pobres analfabetos e também porque sou mariano.
Tenho este privilégio”. (Descreve, a seguir, a situação dos alunos: alguns mais adiantados, outros menos. Tanques, Monitor Severino Lourenço da Silva,
28/2/62).
“A minha escola continua cada vez com mais entusiasmo e progresso. Eu estou trabalhando para fazer
uma festinha na noite de São João, e para isto nós já
temos Cr$4.250, que o povo vai dando em beneficio
da Escola... Espero que vá render mais de Cr$ 8.000.
Os alunos com os moradores da comunidade gritam
‘avante’ para fazer a sede da Escola, e, depois deste
mês, nós iremos continuar na construção da sede
que será o futuro Centro Social de Tanques. ‘Vamos
ALCEU RAVANELLO FERRARO
355
356
“O que me desgosta é eu não fazer este curso de
um povo politizado É por isto que estamos poden-
politização. Já faz mais de 20 dias que não pude dar
do conseguir tudo, porque eu só trabalho para liber-
mais aulas pelo rádio. Procure dar um jeito. (Não
tar o povo brasileiro da escravidão que está havendo
sabemos se se tratava de defeito técnico do apare-
agora. Dona Zelia, as Escolas Radiofônicas estão tra-
lho ou interferência da rádio Tupinambá). Fizemos
zendo a liberdade para o Brasil por intermédio da
uma festinha na noite de São João, mas não prestou,
Emissora de Educação Rural, graças a D. Eugênio.
devido a um aluno que interrompeu todo o tra-
Zélia, para a melhora desta terra ou de minha
balho. Mas eu fiquei satisfeito, porque foi em paz.
terra, eu resolvi mudar o nome de tanques. Fiz
Dei uma suspensão (!) nas aulas por sete dias e, du-
uma reunião e foi aprovada pelo povo a mudança
rante este período, mudei a Escola para outra casa,
para ‘Nova Esperança’. Falta só a Câmara aprovar”.
porque o povo da casa onde eu ensinava era contra
(Idem, 13/7/62).
a Escola. Mas eu não desanimo. Continuo trabalhan-
“O trabalho desta localidade está bem beneficiado
do pelo povo que me odeia. Não houve prova na
e bem progressivo, graças a Deus. Já fiz duas cam-
minha Escola, devido o rádio não prestar. Estamos
panhas em benefício da escola, e todas as duas ti-
trabalhando para comprar uma mesa, porque a que
veram grandiosos proveitos. Na primeira, a cam-
tínhamos era emprestada. Nós arranjamos 4 ban-
panha do tijolo todo o mundo cooperou bastante.
cas no valor de Cr$4.000 e vamos comprar também
As moças e as mulheres do lugar trabalharam como
uma lâmpada Colman e estamos estudando um
nunca eu esperava; os moços fizeram tijolos, fize-
plano para começar a construção de um Centro, de
ram campanhas e chegaram a carregar muita água
que já falei. Sim, na reunião que houve em Nova
para a fabricação do tijolo, e finalmente, mostra-
Cruz, eu fiquei como representante do Sindicato”.
ram as suas bravuras sociais. A ia a campanha da
(Idem, 28/6/62).
pedra. Os homens quebraram as pedras e os moços
“Nesta mando para você algumas novas. O movimen-
fizeram um bingo, que rendeu a importância de
to educativo aqui em Tanques vai evoluindo mais e
Cr$ 2.500 em beneficio desta campanha. Nós es-
mais. Nós estamos trabalhando para construir um
tamos na campanha da telha para terminar cam-
Centro Social nesta localidade. E para isso já com-
panha do material do Centro Social da Escola Santa
pramos as portas, os caibros, as ripas, as linhas,
Luzia. Se Deus nos ajudar a vencer as dificuldades
as telhas e finalmente já arranjamos quase todo o
inauguraremos, daqui para o dia 12 de dezembro
material para a construção do futuro prédio. Não
no Centro Social de Tanques. A maior dificuldade
foi tudo comprado mas já tivemos possibilidade de
deste lugar é fazer a união deste povo. Tanques e
arranjar tudo isto O povo deste lugar está ficando
povoado por três grandes famílias, e estas famílias
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
357
cada uma quer ser melhor, e nunca se unem para
Porque sei ler, e meu irmão não sabe; tenho o que
estudar e trabalhar juntas. Eu tenho mais de 50 alu-
comer e meu irmão não tem; tenho sapato, meu
nos mas só assistem 28, por não haver união entre
irmão não tem; tenho roupa, meu irmão não tem;
as famílias.
tenho casa para morar, meu irmão não tem. É isto
Tem mais de 40 alunos esperando que faça a casa,
que faz meu coração sentir que morrerei em de-
ou seja, o Centro Social. Nem estudam e nem tra-
fesa do próximo... Vou terminar porque a minha
balham, e por isto é que não posso dizer quantos
história é um discurso, e o papel não dá”... (Idem
alunos tenho. Vou terminar
17/11/62).
porque estou com
sono”. (Idem, 13/10/62).
358
Não nos consta que a Câmara tenha aprovado a mudança do nome de Tanques, mas isto não impede que o
trabalho ali desenvolvido signifique “Nova Esperança”:
O estilo quase impecável demonstra tratar-se de pessoa bastante instruída. O tom é, por vezes, oratório, mas
os fatos estão aí para demonstrar a transformação de um
líder, o qual, por sua vez, transforma uma comunidade!
“No dia 1o de novembro fiz a campanha do ali-
“Lúcia chegou a oportunidade de me dedicar a
cerce do Centro Social da Escola. Foi maravilhoso!
escrever para você, contando a evolução social de
Compareceram 6 homens e trabalharam com tan-
minha comunidade. Graças a Deus nós já estamos
to entusiasmo, que pareciam querer acabar com
terminando de construir o Centro Social pelo qual
a miséria do mundo (!). Serviço de gastar 15 dias
há muito tempo trabalhávamos. No dia 23 deste eu
eles fizeram em 6. Estou reunindo o povo para
fiz uma reunião com o povo do lugar, e neste dia
começar no dia 27 deste, porque de material só fal-
nós fundamos o Centro Social E neste mesmo dia
tava a telha, mas, graças a Deus, já encontramos
foi escolhida a diretoria... (Seguem os nomes das 9
quem desse. No dia 27 temos certeza que iniciamos
pessoas escolhidas sendo que seu Severino foi elei-
a construção daquele maravilhoso prédio, que vai
to Presidente). No dia da posse tive o maior prazer
acabar com a cegueira deste povo pobre que vive
na minha vida, porque eu não esperava que che-
morrendo na ignorância. D. Carmen, hoje eu estou
gassem a assistir uma média aproximada de 200
com uma viva lembrança daquelas doces palavras
pessoas. Eu já criei um time de futebol e creio que
que ouvi saindo da boca de Raimunda e Lúcio, que
vai dar um grande resultado ao Centro. Se Deus
diziam: ‘O monitor é um líder que gira em tômo da
quiser e o povo quiser, tudo se vence. O Centro So-
comunidade na prática do bem’. Foi naquele dia que
cial Educador Santa Luzia, criado pelo povo, está em
entrou no meu coração o prazer de perder ate a
acabamento e já nos estamos preparando para a
minha própria vida por amor do próximo. Por quê?
inauguração no dia 20 de janeiro. Já estamos traba-
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
359
lhando para arranjar uma máquina de costura para
cio, Cr$ 50 para as primeiras despesas: gás, pilha,
dar um curso de corte e costura às moças pobres
antena. No dia 15 de fevereiro convidei todo o pes-
desta terra. Para isto eu já planejei que no dia 20 (dia
soal para uma reunião. Iniciei explicando aos pais
da inauguração do Centro Social) nós deveríamos
e aos alunos o que era a Escola Radiofônica e falei
fazer uma festa, para, com a renda, comprar uma
também em Centro Social. Depois que terminou
máquina a prestações. Nós arranjamos a máquina,
a reunião, uns saíram dizendo: ‘Sabe que a coisa
eu já arranjei a professora paga pelo Vice-Prefeito.
vai!’ Outros diziam: ‘Vai nada!’ Continuei trabal-
Prezadas amigas do M.E.B.! Eu acredito, se não mu-
hando... (Passa a narrar as diversas campanhas fei-
dar, Tanques será uma das maiores comunidades do
tas em prol da construção do Centro, já descritas
Município de S. Antônio, e espero que você esteja à
anteriormente, ressaltando que a melhor de todas
frente para fazer uma visita a meu lugar, junto com
foi a dos tijolos, ‘porque — diz ele — trabalharam
a equipe... Eu vou colocar um ponto final porque
até as mulheres’). “No dia 26 foi a inauguração (do
não é jornal, e mesmo porque eu só posso contar
Centro). Depois, por iniciativa do Presidente do Sin-
todo o passado do meu movimento com 10 folhas de
dicato Rural, o sr. Sebastião Getúlio da Silva, veio
Papel”. (Idem, 28/12/62).
a construção de uma capela, em frente ao Centro
“Tanques era uma localidade abandonada como
Social. Assim a localidade melhorava dia a dia. Ser
muitas outras” — historiava seu Severino, em
monitor foi o maior passo que dei em minha vida,
carta, após um ano de trabalho. Não havia Escolas.
porque aprendi a viver com Deus e conheci que o
Mas o povo estava querendo estudar. Falei da Es-
homem não pode viver só e vi o valor da união.
cola Radiofônica. De início, não acreditavam muito.
Monitores, precisamos estar unidos para podermos
Depois que expliquei, todo mundo ficou entusias-
ajudar uns aos outros Porque no amor e na união
mado. Saí um dia e matriculei 20 pessoas. Comecei
podemos tudo e sem isto nada seremos. Tanques,
a pensar no que devia fazer para fundar aquela Es-
um ano atrás, não tinha nada Hoje tem Escola,
cola: tínhamos o problema do local, dos assentos,
Centro Social, Catecismo para as crianças! brinque-
do lampeão, do gás. As autoridades não se interes-
dos em família para todo o povo. Reuniões todos
saram. No primeiro dia de aula chegaram os alunos
os meses para educar o povo. Tudo isto se deve a
matriculados. Primeiro expliquei para todos o que
uma pequena Escola Radiofônica”. (Idem. A Ordem,
era uma Escola Radiofônica, e que era preciso a co-
que publicou esta carta, data-a de 12/12/61. Deve
laboração e ajuda de todos para manter a Escola.
ter havido um equívoco, devendo ser posterior a 26
A Escola era de todos, todos deviam ajudar. Eles
de dezembro de 1962).
cooperaram de boa vontade. Cada um deu, de iní-
360
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
361
2) A “Radiofônica” de Francisca. As cartas de Francisca
Mendes e Silva, Monitora de uma Escola Radiofônica na
Fazenda Jacu, nos descreve o que representaram para a
sua localidade a Escola Radiofônica e os grupos ali organizados.
“Pergunto se recebeu a ficha de matrícula, feita no
dia 28 de fevereiro, com o número de 45 alunos...
Estou bem satisfeita com a Escola. Todos os alunos
são bem comportados e cooperam no que for preciso. Aqui segue o que comemoramos e fizemos durante este 1º semestre de 1962.1) todos os alunos
“Sinto-me feliz com minha Escola. Os alunos (es-
assistiram pelo rádio, com a comunidade, todos os
tão) entusiasmados com o ensino radiofônico.
atos da semana santa, com muita atenção, como
Cooperam para que a Escola não dê fracasso (!).
Agora mesmo fizemos uma rifa para comprar lâmpada e querosene. Estou preparando 11 meninos
e meninas e 3 rapazes para a primeira comunhão...
Estamos organizando a festa para o Dia das Mães,
com cânticos, poesias e recreações... Estamos fazendo uma horta na Escola isto é, juntamente com
os alunos. Consegui que 20 pais de alunos tirassem
a carteira do Sindicato. Estou dando um curso de
bordado a 8 moças da Escola Radiofônica. No encerramento estamos pensando fazer uma festinha. O
catecismo é bem comparecido pelos alunos e pessoas adultas. Todos os primeiros domingos de cada
mês nós fazemos reunião com os alunos. Eles di-
se estivessem na igreja. 2)... No dia 1º de maio foi
lançada a campanha da pascoa, com cartazes, e
comemorando o dia das mães. No dia 13 de maio
foi celebrada a missa na capela local. Dos alunos,
fizeram a primeira comunhão, e 32 a Páscoa. Incluindo a comunidade, houve 40 primeira comunhão, e 47 homens e 129 moças e senhoras fizeram
a pascoa. Um total de 216 comunhões. As 19 horas
comemoramos o dia das mães... cada aluno trouxe
um presente para oferecer as mães... O programa
constou de poesias, cânticos e recreação. Tendo sido
encerrado com uma palestra sobre o dia das Mães,
feita por mim. 4) no dia 18 de maio recebemos a
visita de Célia vale, acompanhada de uma moça da
JACF do Ceará, que veio conhecer nosso trabalho...
zem que estão prontos para ajudar em qualquer
5) No dia 27 de maio comemoramos o congresso
coisa que precisar para a Escola. Eu, como moni-
mundial da JAC. Fomos a passagem, participar da
tora, me considero feliz com os meus alunos. Antes
concentração dos jovens Rurais. Nós nos fizemos
da Escola Radiofônica, minha localidade era uma
representar com 230 pessoas. Participaram a escola
luz apagada. Graças a Emissora de Educação Rural,
radiofônica com os seguintes grupos de redenção:
com o ensino Radiofônico estamos felizes, saindo
Clube de Jovens, Clube de Rapazes, Clube Agrícola
da escuridão”. (Monitora Francisca Mendes e Silva,
e outros membros da localidade... Estou esperando
Fazenda Jacu, Santo Antônio, 7/4/62).
portador para ir até aí na emissora e trazer 37 testes...” (idem, 28/5/62).
362
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
363
“A Escola vai ótima” — escrevia a mesma moni-
tra solução. Com a ajuda de Deus, tudo faremos...”
tora 4 meses mais tarde. “Os alunos continuam
(Idem, 21 /9/62).
muito entusiasmados com os estudos. Continuam
ca. A festa constou de novena, barraca, leilão e pes-
3) A “Radiofônica” de Eunice. O testemunho de Eunice
monitora da Escola Radiofônica ‘São José’, em Outeiros,
fundada em março de 1962, nos mostra como uma monitora, orientada num treinamento, não só se dedica à alfabetização do povo de sua localidade, mas também desperta-o para a cooperação comunitária e introduz, nas
mínimas coisas, o sistema democrático.
caria. Renda da barraca — 18 520 cruzeiros. Renda
“Moro num sítio por nome Outeiros. É um pouco
do leilão — 23.500 cruzeiros. Renda pescaria —
atrasado, mas confio em Nosso bom Deus que hei
1.050 cruzeiros. Os alunos que não deram galinha,
de ver tudo melhorado. Para isto estou trabalhando,
deram outra coisa para o leilão. Uma aluna deu
procurando unir o povo, porque, unidos, podemos
uma galinha assada, com a qual se fez um sorteio
vencer. A Escola Radiofônica foi iniciada no dia 19
que rendeu 2.300 cruzeiros. As Comissões feitas na
de março (1962). Temos 22 alunos... A turma tinha
comunidade renderam a importância de 9.120 cru-
dois candidatos (para Patrono da Escola): Santa
zeiros. A comunidade participou da festa e ajudou
Maria Goretti e São José. Para não haver confusão,
ao máximo. A festa deixou um saldo de 41 385 cru-
fizemos eleição, porque a maioria é quem vence. Foi
zeiros. Nossa Escola tinha material emprestado.
uma coincidência: sendo o dia de São José, o mes-
Fizemos esta festa para organização da mesma.
mo foi eleito. Em seguida dividi o grupo (dos alu-
Graças a Deus, agora está uma beleza. Já compra-
nos) em 4 equipes, para comprar querosene. Cada
mos 22.000 cruzeiros de material: uma lâmpada Col-
equipe tem 5 pessoas, e cada pessoa colabora com
man, bancos, mesas e já entregamos o material em-
6 cruzeiros e compra um litro de querosene para
prestado. A turma da Escola manda dizer que estão
a lâmpada. Em cada grupinho há um responsável,
muito felizes por estarem estudando numa Escola
que apanha os 30 cruzeiros, compra o querosene e
organizada por eles, com a ajuda da comunidade.
me entrega... Faltando querosene, eu aviso dois dias
Temos em caixa a importância de 19.385 cruzeiros
antes para providenciarem. (Para o) álcool, como se
Pensamos fazer, com esse dinheiro, um salão para
gasta menos, temos dois alunos responsáveis... Eu
a Escola, mas tiramos a conta, e o dinheiro não dá
aviso: ‘chegou o dia de vocês’, e eles sabem com-
para a construção do mesmo. Vamos pensar nou-
prar... Para monitora não houve eleição, porque a
estudando 40. Continuam também ouvindo os programas educativos, como sejam: Em Marcha Para
o Campo (o programa dos sindicatos), O último
Pau-de-Arara, Conversa com Monitores e Alunos, a
Missa do domingo, etc... Realizamos, no dia 25 de
agosto, uma festa em benefício da Escola Radiofôni-
364
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
365
turma toda concordou. Seis dias depois vieram à
com seus irmãos, não é? E também ter uma casinha
minha casa para se matricular. Gostei, porque não
limpa, bem higiênica, de maneira que as visitas se
precisei ir à casa deles. Sentem-se como um cego
sintam bem nesse ambiente.” (Idem, 22/6/62). E, na
a quem tivesse voltado a vista. Em continuidade,
mesma data, a outra professora: “Aviso-lhe que se-
fiz com a turma duas reuniões: uma para escolher
guem 6 testes. Não vão os 22, como pensava, porque
o local e fazer um ambiente para o funcionamento
só 6 alunos foram capazes de preencher. 16 ainda
e outra para dividir a turma em grupos e distribuir
não sabem fazer escrita sem ser pelo quadro. Te-
tarefas. Dividimos o (os do) sexo masculino em duas
mos agora (só) três meses de aula, e, quando inicia-
equipes: uma para providenciar madeiras e ou-
mos, eles não sabiam escrever um ‘a’. Hoje, graças
tra para construir o ambiente (para a Escola), que
a Deus, já escrevem alguma coisa”(Idem, 22/6/66).
chamamos latada. No primeiro dia de aula combinei com os alunos para comprarem pilhas para o rádio. Perguntei como é que eles queriam: pagar 5 ou
10 cruzeiros por mês. Toda a turma concordou em
pagar 10 cruzeiros de mensalidade... (Monitora Eunice, Outeiros, São Gonçalo do Amarante, 8/6/62).
“... Estamos animados para fazer uma festinha escrevia a mesma monitora poucos dias mais tarde
- o que nunca houve aqui no sítio. Será a primeira
vez Os alunos querem muito conhecê-las (as Professoras). Venham. O sítio é atrasadíssimo, e as casas
muito pobres. Temos vontade de melhorar. Confiamos em Deus e queremos o progresso de nosso
meio rural. As casas são pobres, não temos nada,
mas não (nos) importamos com isso. Antigamente
eu sentia decepção quando chegava alguma pessoa
como vocês, porque era pobre e não tinha nada a
apresentar. Já pensou. Depois que fui fazer o curso
de líderes em Ponta Negra e Pium, melhorei muito...
Entendo que o que vale é a pessoa ser boa, caridosa, ter boas maneiras, bom procedimento e se unir
366
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
4) A “Radiofônica” de Maria Nazinha. “(A festinha em
benefício da Escola) foi muito animada e em paz, graças
a Deus. O leilão, com a barraca, rendeu 25.000 cruzeiros.
Os alunos todos cooperaram para a festa. Houve novena
de Nossa Senhora do Destêrro. Aqui nunca houve festa.
A primeira foi esta. Todo o dia me pedem para fazer
outra, breve. Fiz 8 eleitores e todos votaram consciente
(conscientemente): não venderam voto a ninguém, que
não deixei. Aqui quase todos vendem seu voto para ficarem escravizados. Trocam voto por vestido ou sapato
ordinário, mas os meus eleitores não receberam nada.
Votaram livre para melhorar o país”. (Monitora Maria Nazinha Xavier, Salgado, 10/11/62).
5) A “Radiofônica” de Damiana. “Comunico-lhe que minha Escola está um fósforo na escuridão. Tenho 17 alunos.
São bem estudiosos. eles dizem que se sentem bem felizes pelas atividades de D. Eugênio, pois sentem-se como
um cego a quem tenha voltado a vista, retirando-se da
ignorância e trabalhando por um Brasil melhor. Interesso-me muito pela aprendizagem das pessoas de minha
ALCEU RAVANELLO FERRARO
367
localidade e tenho fé em Deus que breve verei uma localidade bem organizada. Estamos trabalhando para organizar um Clube de Jovens em minha localidade. Estamos
fazendo horta. Organizamos a festa da páscoa, levando
diante do altar de Deus pessoas que não frequentavam
a igreja. Organizei uma festa para comprar pertences para
a Escola. Quanto ao curso de politização, foi bem ouvido.
(Monitora Damiana Araújo da Silva, Santa Tereza, Mun.
de Santana do Matos, 26/8/62).
CAPÍTULO X
POLITIZAÇÃO E
SINDICALIZAÇÃO
No presente Capítulo analisaremos alguns aspectos
do trabalho do SAR, referentes à assim chamada “Campanha de Politização” e à sindicalização rural.
1. VOTO
Embora ao termo “politização” tenha sido dado sentido bem mais amplo, em nossa pesquisa por amostragem
circunscrevemo-nos a investigar dois aspectos mais relacionados com este conceito: voto e sindicalização rural.
No que tange ao voto (é disto que nos ocuparemos neste
parágrafo), a Campanha de Politização levada a efeito
pelo SAR em 1962 insistiu nos aspectos seguintes: 1) no
dever do voto e 2) no combate à venda do voto e ao voto
no “cabresto”. Com o intuito de determinar uma possível
mudança de atitude nas CT a este respeito, foram propostas as três perguntas seguintes aos entrevistados de
18 anos e mais, de ambos os grupos de comunidades:
368
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
369
“Seu Manoel sabe ler e escrever. Não tem título de
eleitor e, portanto, não pode votar. Não tira o título, porque — diz ele — não tem tempo para perder
com política. O que é que o senhor aconselharia a
seu Manoel: tirar o título ou não perder tempo com
política?” (A.47).
“Um político estava oferecendo aos eleitores 5.000
cruzeiros em troca do voto. O que é que o senhor
aconselharia fazer: receber os 5.000 cruzeiros e votar no candidato - receber os 5.000 cruzeiros, dizendo que vota nele, votando, depois, em quem julgar
melhor, ou não aceitar os 5.000 cruzeiros e votar
em quem julgar melhor?”
(A.48).
“No município de Touros um patrão, que é um
grande proprietário, ameaçou expulsar da propriedade os moradores que não votassem nele. Seu Antônio, que é morador dele, acha que o outro candidato e melhor do que o patrão. O que é que o
senhor aconselharia a seu Antônio fazer: votar no
patrão para não arriscar ser expulso da propriedade
ou votar no outro candidato, que ele julga melhor,
mesmo arriscando ser expulso da propriedade?”
(A.49).
Dos 647 questionados no primeiro caso (todas as pessoas de 18 anos e mais incluídas na amostragem), 58 (CT
- 19 e CNT-- 39) não responderam. Dentre os 589 declarados, 90,1% nas CT (283/314) e 87,6% nas CNT (241/275)
aconselharam a seu Manoel tirar o título.
370
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
A proporção dos que assim se manifestaram é bem elevada em ambos os grupos de comunidades, não se revelando significativa ao nível de 5% a pequena diferença
encontrada em favor das CT.
No segundo caso, de 647 questionados (todas as pessoas de 18 anos e mais incluídas na amostragem), 59 (CT
— 17 e CNT — 42) não responderam, tendo-se declarado
588 (CT — 316 e CNT - 272). Dentre estes, respectivamente nas CT e nas CNT: 76,0% e 72,7% aconselharam a
não receber os 5.000 cruzeiros e votar em quem julgar
melhor. 6,3% e 5.5%. a receber o dinheiro, votando, depois, em quem julgar melhor: 13,6% e 19,1%, a receber
o dinheiro votando no candidato doador, e, sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 4,1% e 2,6% declararam
não saber aconselhar. Em ambos os grupos de comunidades, por conseguinte, mais de 70% repudiaram a venda
do voto. A pequena diferença encontrada em favor das
CT não chega a ser significativa ao nível mínimo estabelecido (5%).
No que diz respeito ao terceiro caso, consideramos
somente as pessoas de 18 anos e mais, membros de
famílias de agricultores. Dos 567 questionados, 28 (CT
— 13 e CNT — 15) não responderam, tendo-se declarado
539 (291 e 248, respectivamente nas CT e nas CNT). Em
ambos os grupos de comunidades menos de 1/3 dos entrevistados (28,9% e 26,3%, respectivamente nas CT e nas
CNT) “ousou” aconselhar seu Antônio a votar contra o
patrão, isto é, a dar seu voto ao candidato considerado
melhor. Responderam evasivamente 4,8% (14) nas CT e
0,4% (1 apenas) nas CNT, o que provavelmente deve ser
interpretado no sentido de recusar o voto ao patrão. Embora em proporção menos elevada nas CT do que nas
ALCEU RAVANELLO FERRARO
371
CNT (66,3% e 73,3%, respectivamente), em ambos os grupos de comunidades um mínimo de 2/3 dentre as pessoas
declaradas aconselharam seu Antônio a não se arriscar
a negar o voto ao patrão. Os patrões das CT constituem
a única excessão às proporções acima indicadas: dentre
estes, 57,8% aconselharam a votar no outro candidato
(melhor); 40%, a votar no patrão, sendo que 2,2% declararam não saber aconselhar. Feita esta excessão, segundo
as três categorias profissionais, segundo todos os grupos
de idade (18-30; 31-40; 41-50; 51 e mais anos) e em ambos
os grupos de comunidades (embora levemente menos
elevada nas CT), foi de 64% a proporção mínima dos que
aconselharam seu Antônio a votar no patrão, para não
se arriscar a ser expulso da propriedade. A única conclusão que podemos tirar destes dados é que cerca de
2/3 dos entrevistados não ousaram manifestar-se contra
a norma tradicional, ou seja, contra a fidelidade “devida”
ao patrão, no que tange ao voto.
Mas traduziriam estes dados as atitudes reais e o comportamento efetivo do trabalhador rural? Nossa observação por ocasião das eleições para Governador em 1965
nos leva a duvidar que o trabalhador seja de fato tão
dócil ao patrão! Nos 15 dias que precederam às eleições
percorremos algumas áreas do Litoral-Agreste do estado.
Infalivelmente, sobre todas as moradias de cada fazenda
— casa-grande ou mocambo de trabalhador — erguiamse ou só bandeiras verdes, ou só bandeiras vermelhas,
demonstrando que, pelo menos naquelas áreas, não haviam mudado as expectativas dos patrões. Soubemos depois que, em duas destas áreas, uma no Litoral e outra
no Agreste, cada uma compreendendo meia dúzia de
372
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
grandes fazendas, mais de 50% das bandeiras vermelhas
haviam depositado nas urnas um “voto verde”. Deve atribuir-se isto exclusivamente ao “fenômeno Aluízio Alves”?
Não foram do mesmo parecer os patrões interessados, os
quais, desde 1962, vêm culpando os sindicatos por suas
sucessivas derrotas ém seus próprios domínios. Ademais,
como se explicaria que, em outras áreas, também por
nós visitadas nas vésperas das eleições, bom número de
bandeiras verdes escondiam “votos vermelhos”?
Contudo, os dados referentes às três perguntas analisadas não nos permitem concluir nada sobre uma eventual mudança de atitudes com relação ao voto, resultante
do trabalho do SAR. Embora sempre favoráveis às CT, as
diferenças encontradas não chegam, em nenhum dos
três casos, a ser significativas ao nível de 5%.
2. CURSO DE POLITIZAÇÃO
No Apêndice III.A, transcrevemos alguns documentos
que podem dar uma ideia do conteúdo ideológico da assim chamada “Campanha de Politização” lançada pelo
SAR em 1962. De toda a abundante documentação que
tivemos oportunidade de analisar, é manifesto que não
se tratou de simples conversa “para boi dormir”!
1) Análise da Correspondência. Neste parágrafo limitar-nos-emos a tentar uma avaliação, através da correspondência dos alunos e monitores de Escolas Radiofônicas, da Campanha de Politização e, especialmente, do
Curso de Politização realizado pelo MEB em julho de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
373
1962. Antes de passarmos ao resultado desta pesquisa,
cabem aqui algumas observações metodológicas.
— O quadro analítico foi construído e testado a partir de três amostragens prévias. A seguir — para o que
contamos com a valiosa cooperação da Assistente Social
Maria da Conceição Bezerra — as cartas foram analisadas
uma a uma, anotando-se, no quadro analítico, as diversas
ocorrências.
— Uma amostragem de cartas de 1962 nos permitiu
determinar as diversas categorias de missivistas. Quase
2/3 das cartas (68,8%) haviam sido escritas por monitores, e pouco mais de 1/3 (34,2%), por alunos de Escolas Radiofônicas. Dentre as cartas escritas por monitores,
apenas 10,4% provinham de monitores do sexo masculino, sendo que estes, naquele ano, representavam cerca
de 15% de todos os monitores. Das escritas por alunos,
apenas 18% provinham de alunos do sexo masculino,
os quais, naquele ano, representavam 53,3% de todos os
alunos. No conjunto, apenas 13% das cartas provinham
de monitores ou alunos do sexo masculino. Por conseguinte, as pessoas do sexo masculino — precisamente as
mais visadas pela Campanha de Politização, intimamente ligada à sindicalização rural — estão relativamente
pouco representadas na correspondência analisada.
— Em outras partes deste trabalho teremos ocasião
de referir-nos a outros temas analisados. Aqui limitarnos-emos aos temas relacionados mais de perto com
“politização”.
Feitas estas observações e ressalvas, passemos à análise
dos dados da tabela 10.1, onde as cartas referentes aos
anos de 1959 e 1962 aparecem distribuídas segundo
374
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nove itens relacionados mais de perto com politização
1959 foi o primeiro ano (completo) de funcionamento
das Escolas Radiofônicas. 1962 foi o ano da Politização
e, no mês de julho, do Curso de Politização promovido
pelo MEB. As Escolas Radiofônicas eram muito mais numerosas em 1962 do que em 1959, e, consequentemente,
também as cartas.
Dos dados da tabela 10.1 aparece claramente a grande
diferença entre os anos de 1959 e 1962: contra apenas
2,6% em 1959 (1o ano completo de funcionamento das
Escolas Radiofônicas), 22,4% das cartas escritas por monitores e alunos em 1962 continham um ou mais temas
(itens 1-9) relacionados com politização. Se considerarmos separadamente as cartas de cada um dos meses de
1962, aparece mais claramente a mudança. De fato, de
cerca de 10% no primeiro trimestre (janeiro — 12,2%,
fevereiro — 7,8% e março — 11,6%) o número relativo
de cartas que continham um ou mais temas especificados sobe sucessivamente para quase 20% no segundo trimestre (abril — 16,7%, maio — 19,3%, junho — 18,5%) e
para 33,3% em julho (precisamente no mês do Curso de
Politização), continuando aproximadamente na mesma
altura nos 4 meses seguintes (agosto — 34,2%, setembro
29,3%, outubro 32,3% e novembro — 29,6%), baixando
para 25,0% no mês de dezembro.
Observe-se ainda que os temas ocorridos nas cartas de
1959 (item 6 — desenvolvimento, progresso, e item 9 —
comunidade) são exatamente os mais “inocentes” dentre os 9 temas especificados na tabela. São estes também
que, juntamente com o item 8 (união, colaboração, tema
também relativamente “inocente”), aparecem, já desde
ALCEU RAVANELLO FERRARO
375
376
os primeiros meses de 1962, em número relativamente
elevado de cartas.
Já antes deste Curso de Politização, o MEB, seja através
das aulas, seja através de treinamentos e encontros de
monitores, ia carreando para o interior aquilo que o
monitor Manoel Felipe de Melo confessa ter levado do
encontro de monitores de Lajes, isto é, a memória repleta de inovações, de ideias novas”, “muita vontade de
trabalhar para promover um movimento renovador na
comunidade , cuja população - o que ele, Manoel Felipe,
apontava coma indício de dias melhores” — já apresentava “outro aspecto”, “outra atitude” (Monitor Manoel
Felipe de Melo, Pedra Preta, 14-5-62).
2) Alguns depoimentos. No capítulo anterior transcrevemos alguns depoimentos relacionados com os itens
8 e 9 da tabela 10.1 (união-colaboração e comunidade).
No final deste Capítulo teremos ocasião de fazer o mesmo com relação a sindicalização rural. Limitamo-nos
aqui a transcrever alguns depoimentos relacionados com
os outros itens, especialmente com o voto, o que nos
permite identificar algumas das ideias veiculadas para o
meio rural em 1962.
“Fiz 8 eleitores, e todos votaram consciente. Não
“Chegou aqui um político oferecendo-me um di-
“Eu tenho gostado bastante do Curso de Politização
nheiro Eram 20.000 cruzeiros. Eu disse que não.
... Eu aqui e meu pessoal não nos vendemos mais.
Não quero ser escravo, nem levar o povo para a es-
Nossos votos agora vão ser votos livres. Nós até gos-
cravidão. Ganhando esse dinheiro, a minha carne
távamos de arranjar alguma coisa pelo voto, mas
fica saciada. Mas, meu espírito? Este fica escravisa-
agora estou ciente que voto não se vende.” (Moni-
do”. (José M., Guaramiranga, ?-?-62).
tora Maria Creuza, Barra de Pajuçara, 14-7-62).
“Eu estou na Escola Radiofônica. Já sei fazer uma
“Eu acho que a Escola Radiofônica é uma porta
carta. Vou ver se faço meu título para votar.” (Aluno
aberta para os analfabetos. Há gente, aqui no sítio,
João de Deus, Barra da Condessa, 9-6-62).
que nunca tinha tido intenção de aprender a ler, e
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
venderam voto a ninguém, que não deixei. Aqui
quase todos vendem seu voto para ficarem escravizados. Trocam seu voto por vestido ou sapato
ordinário, mas os meus eleitores não receberam
nada. Votaram livre para melhorar o país”. (Monitora Maria Nazinha, Salgado, 10-11-62).
“Meus alunos dizem que não votam porque não
têm idade ainda. Mas, quando for para o outro ano,
eles dizem que votam. Olhe, meus alunos só falam
em voto, que devemos votar bem, que não devemos
sujar nossa arma por besteira que se acaba, e a pessoa fica na mesma. Falo no voto, porque é só o que
vejo (ouço).” (Maria das Neves, Nova Cruz, 23-7-62).
“Gostei do Curso de Politização, que todos os alunos escutaram. Nesta localidade havia muitos políticos (!), mas, por causa destes programas, ficaram
politizados (!). Uns só queriam votar por roupas ou
sapatos; só queriam viajar de jeep a troco do voto.
Agora estão a saber que voto não se vende, e consciência não se compra.” (Aluna (e monitora?) Maria
das Neves, Mangericão, ?-?-62).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
377
muitos deles votaram neste ano. Sim, aqui todos
que as lágrimas lhe vieram aos olhos... Com a fé
votaram bem”. (Monitora Alaída F. Silva, Trinchei-
que tem em Deus, com dois meses de aula se fez
ras, 14-10-62).
eleitor. ele envia o retrato dele para Dona Cármen.”
“No dia 25 passado fizemos uma reunião, falando
(Monitora-aluna Maria das Dôres, Pôrto Carão, 7-8-
sobre politização. Todos ficaram cientes que um
62).
povo politizado é um povo livre. 45 pessoas par-
“Olhe, existe gente aqui que tinha título e rasgou,
ticiparam. Ficamos combinados para de 15 em 15
dizendo que não votava mais nunca. E agora, escu-
dias fazer uma reunião para o povo da localidade.
tando os programas, estão qualificados para novo
De 8 em 8 dias, catecismo, e, depois, reunião, fa-
título. É isto mesmo que nós queremos para um
lando sobre politização. Todos já sabem que voto
não se vende e consciência não se compra. Estamos
combatendo a verminose, fervendo a água e vamos
comprar um filtro para a Escola.” (Monitora Almira
Maria, Jacuzinho, 8-9-62).
“Serra do Algodão era um lugar sem escola, sem
desenvolvimento. Mas, desde 1961, luto para ver o
povo sair da ignorância... Sim, saber é coisa boa,
e este rádio veio trazer, para nós do campo, um
grande desenvolvimento: a luta pela vida do camponês, que vive sem escola, sem medicação, sem
nada na vida. E também o Curso de Politização
(nos ensinou) que devemos votar num candidato
de consciência, num homem que saiba trabalhar
pelo povo. Quem sofre mais é o povo do campo. An-
378
mundo melhor. Não é isso mesmo?” (Monitora Hilda, Quirambu, 23-5-62).
“Fiz muito esforço para que nossa comunidade
ficasse sabendo o que é Reforma Agrária. E hoje todos sabem que unidos podemos tudo, e sozinhos
nada podemos.” (Lourdes N., Cuité, 8-8-62).
“Os meus alunos não sabiam o que era comunidade, e eu expliquei. Outros não sabiam pegar no
lápis e agora já estão melhor...” (Monitora (?), Logradouro, 16-3-62).
“Tenho fé em Deus que hei de aprender para desempenhar meu papel de cidadão brasileiro”. (Aluno Francisco F., Serra do Lombo, 9-11-62).
“Nós somos uma pequena luz que clareou no
Sertão, pois é para clarear aqueles que vivem na
escravidão, isto é, que não conhecem seus direitos.
tes das eleições não faltam escolas... Mas, quando
Pois queremos todos os nossos irmãos unidos. Te-
terminam as eleições, os pobres eleitores sofrem.”
mos que ser um por todos e todos por um. Unamo-
(Monitor Sebastião Batista, Serra do Algodão, 7-7-
nos no Sindicato. Pedimos Reforma Agrária, pois
62.)
tudo isto falta ao campesino.” (Epílogo de um dis-
“Já fizemos dois eleitores. Imagine que um tem 50
curso pronunciado pela Monitora Elza Maria, por
anos e só agora conseguiu ser cidadão, como ele
ocasião da inauguração de uma nova Escola Ra-
diz. Ele ficou tão emocionado quando fez a petição,
diofônica. Anexo à carta de 30-11-62, Várzea Fria).
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
379
“Sei que nós lutamos pelo Brasil de amanhã: mais
para baixo. O Prefeito daqui me dizia zangado: “Na
escolas, menos analfabetos. Procuramos melhorar
próxima eleição nenhum chefe político vai poder
a situação do homem do campo. Eu faço jeito (!)
controlar esse povo. Antigamente, quando o povo
para melhorar minha localidade. Trabalho com fé
precisava de alguma coisa, procurava o chefe políti-
em Deus que hei de vencer. 30 eram alfabetizados.
co. Hoje ninguém mais dá bola para os políticos.” Já
Hoje já tem 40 alfabetizados na localidade. Ama-
no segundo dia da Revolução — continua o vigário
nhã já podem ser todos alfabetizados...” (Monitora
foram enviados bilhetes anônimos intimidando os
(?), Saúna, 25-12-62).
líderes do Sindicato Rural.
Os próprios depoimentos citados parecem sugerir que
nem tudo ficou em palavras!
Da mesma opinião parece ser também a família X,
que, depois de ter governado o município Y durante
vários lustros, se viu inesperadamente apeada do posto.
Pelo prejuízo, por haverem-se atrevido a optar por um
“menos pior” — como o qualificou um trabalhador —
pagaram os monitores de Escola Radiofônica, ou suas
famílias, e os líderes sindicais, residentes em áreas de
domínio daquela família.
O depoimento de um vigário do interior também é
elucidativo:
“Os chefes políticos tinham antigamente o padre a
seu serviço. Felizmente acabamos com isso. Em 1962
saiu uma Carta Pastoral dos três Bispos do Estado,
contendo 10 conselhos práticos para os cristãos se
orientarem nas eleições. Insistia sobre a dignidade
da pessoa humana. Espalhamos também três “sueltos” sobre a Carta Pastoral, explicando o direito do
voto. O patrão ameaça botar para fora da propriedade o trabalhador que não votar com ele ou com o
candidato dele. É uma injustiça organizada de cima
380
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
3. O SINDICALISMO RURAL
1) Associações de classe. Nas 4 CT pesquisadas, de 155
agricultores chefes de família que se declararam a respeito da pergunta A 42, 23 ou sejam, 14,8% pertenciam a
alguma associação de classe: 10 a Sindicatos de Trabalhadores Rurais, 10 a Sindicatos de Pequenos Proprietários,
e 3 a Associações Rurais (patronais). Em Jundiá de Cima
(CT 3) não encontramos nenhum associado.
Nas CNT por outro lado, de 152 agricultores declarados, apenas 5, ou sejam, 3,3% pertenciam a alguma associação de classe: 4 a Sindicatos de trabalhadores Rurais e
1 a Associação Rural. Em Barra do Geraldo e Fonte (CNT
1 e 3) nao encontramos nenhum associado.
O que mais nos interessa aqui é tentar uma avaliação
do que tenham representado para a classe trabalhadora
rural os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, que, nas vésperas da revolução de 31 de março de 1964, contavam,
no estado do Rio Grande do Norte aproximadamente
45.000 associados. Ora, se dermos credito as declarações
ALCEU RAVANELLO FERRARO
381
dos entrevistados — é bem possível que alguns, por temor, tenham negado pertencer ao Sindicato — teríamos,
nas 8 comunidades conjuntamente, não mais de 35 (dos
quais cerca de 25 nas CT) trabalhadores rurais, chefes
de família, sindicalizados. Nao podemos. Portanto considerar estas comunidades, nem mesmo as CT, como
representativas do sindicalismo rural (do trabalhador)
no estado. Estas comunidades, ademais, não são as áreas
adequadas para um tal tipo de avaliação, como o seriam
as grandes fazendas — a Lapa, por exemplo. O próprio
clima de desconfiança e de temor que reinava entre os
trabalhadores rurais sindicalizados nos aconselhava a
não falar muito em Sindicato, o que poderia comprometer toda a pesquisa. Assim, só incluímos, já pelo fim
do questionário, duas perguntas referentes a Sindicato,
que passaremos a analisar.
2) Opinião dos agricultores. Os dados da tabela 10.2,
referentes à pergunta A 43 e representados no gráfico
10.1, nos permitem uma série te constatações quanto à
opinião do grupos de comunidades, com relação à situação do trabalhador rural após a criação do Sindicato.
1 — Os agricultores das CT, em proporção acentuadamente mais elevada do que os das CNT, acusam uma melhora na situação do trabalhador (respectivamente 42,6%
contra apenas 28,8%) concentrando-se esta diferença em
“melhorou muito” (respectivamente 22,7% contra apenas 11,0%).
2 — Embora apenas levemente, é também mais elevado nas CT do que nas CNT a proporção dos que acham
que a situação do trabalhador piorou após a criação do
sindicato (respectivamente 24,8% e 212%) em ambos os
382
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
grupos de comunidades, porém, o número relativo dos
que assim pensam fica aquém do daqueles que acusam
uma melhora.
3 — Contra 50% nas CNT, apenas 32,6% dos agricultores das CT declararam que á situação do trabalhador
não mudou em nada com o Sindicato.
4 — Embora os agricultores das CT, em proporção
acentuada e significativamente mais elevada (nível superior a 2 % ) acusem uma melhora, importa lembrar
que quase 1/3 (28,8%) aos agricultores das CTN, apesar de
estas terem lido pouco atingidas pelo sindicalismo, afirmam da mesma forma que, nos respectivos municípios
a situação do trabalhador rural melhorou com a sindicalização o que equivale a um reconhecimento, também
por parte dos agricultores CNT, de benefícios advindos
àquela classe, através da sindicalização rural promovida
pelo SAR.
5 — Observe-se ainda que a proporção de não-respostas
(18%- 56/315) foi muito mais elevada do que no resto de
questionário, o que confirma nossa previsão quanto às
dificuldades (reservas) que encontraríamos ao pesquisar
este aspecto.
6 — Os dados da tabela 10.3 (referimo-nos a esta, a
partir daqui) confirmam as três primeiras observações
feitas acima. Com efeito, segundo todas as três categorias profissionais, os agricultores das CT, com relação aos
das CNT, a) em proporção bastante mais elevada (menos
entre os patrões) acusam uma melhora, b) em proporcão
levemente mais elevada (mais entre os pequenos proprietários) Selaram que a situação piorou e c) em proporção
muito menos elevada do que nas CNT afirmam que o
ALCEU RAVANELLO FERRARO
383
Sindicato não mudou em nada a situação do trabalhador
rural nos respectivos municípios.
7 — Entre os pequenos proprietários e os trabalhadores rurais de ambos os grupos de comunidades é mais
elevado o número dos que acusam uma melhora, do que
o daqueles que vêem uma piora na situação do trabalhador rural, dando-se precisamente o inverso no que tange
aos patrões, entre os quais, em ambos os grupos de comunidades, é menos elevado o número dos que veem
uma melhora, do que o daqueles que acham que o Sindicato veio piorar a situação do trabalhador rural.
8 — Podemos hierarquizar da seguinte maneira, em
ordem decrescente, os agricultores de ampos os grupos
de comunidades que acusaram uma melhora na situação
do trabalhador:
1º lugar — os trabalhadores rurais das CT ........... 46,1%
2º lugar — os pequenos proprietários da CT ....... 41,8%
3º lugar — os pequenos proprietários das CNT .. 34,2%
4º lugar — os patrões das CT .................................. 33,3%
5º lugar — os patrões das CNT ............................... 29,4%
6º lugar — os trabalhadores rurais das CNT ....... 25,0 %
É interessante observar como, com relação a todas as
três categorias de agricultores de ambos os grupos de comunidades, os trabalhadores rurais — os mais interessados, no caso — situem-se, respectivamente nas CT e
nas CNT, precisamente em primeiro (46,1%) e em último
lugar (25,0%), quanto ao reconhecerem na sindicalização
uma melhora para os da própria classe, nos respectivos
municípios.
384
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
3) Melhora. O quadro seguinte nos permite observar o
tipo de melhora atribuída ao Sindicato. Juntamos os dois
grupos de comunidades, mantendo distintas as três categorias de agricultores.
Dentre os que haviam acusado uma melhora, 21 (em
proporção menor entre os trabalhadores rurais) não souberam indicar em que. Dos outros: 35 (19 dos quais, trabalhadores rurais) observaram que o trabalhador rural encontrou defesa, direitos; 28 (16 dos quais, trabalhadores rurais) acusaram uma melhora na situação econômica), e 8 na situação geral do trabalhador rural.
Os depoimentos seguintes poderão ilustrar melhor,
com as Próprias palavras dos entrevistados, o tipo de
melhora acusada.
Depoimentos de patrões: “A classe é Sindicalizada”;
“Libertou mais os trabalhadores do carrancismo dos
patrões”; “Ajudou na agricultura, e os trabalhadores passaram a ter algum direito”; “O trabalhador ficou mais liberto”; “O Banco está facilitando dinheiro (empréstimos)
para o trabalhador”; “Deu direito ao trabalhador”.
Depoimentos de pequenos proprietários: “Deu conhecimento ao povo e melhorou os pagamentos”; “Deu valor
ALCEU RAVANELLO FERRARO
385
ao trabalho do homem do campo, dando-lhe direito”;
“O povo ficou mais liberto”; “Veio dar justiça”; “Melhorou o preço do trabalho”; “O morador é valido nos seus
direitos”; “Não trabalham tão aperreados”.
Depoimentos de trabalhadores rurais: “Facilitou dinheiro (empréstimos) para o trabalhador”; “Os proprietários
melhoraram”; “Melhorou a situação do trabalho do pobre”; “Dá segurança: antigamente o patrão expulsava os
moradores por qualquer besteira”; “O Sindicato dá razão
a quem tem”; “As atitudes do patrão são outras, com relação aos moradores”; “Ganha-se mais”; “Melhorou o salário e deu garantia no trabalho”; “Ajuda na agricultura,
e o homem passa a ter algum direito”.
Piora. Dentre os que declararam que a situação do trabalhador piorou com a sindicalização, 4 (dos quais, 3 trabalhadores rurais) não souberam indicar em quê, e outros 4 (dos quais 2 patrões) não deixam ver, em suas respostas, se a situação piorou para o trabalhador ou para o
patrão. Os outros foram distribuídos, no quadro abaixo,
segundo os diversos tipos de respostas, sendo que os dois
386
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
primeiros tipos englobam a grande maioria dos declarantes: 22 (12 trabalhadores, 7 pequenos proprietários, e
apenas 3 patrões) afirmaram que a situação piorou para
os trabalhadores, porque os patrões expulsaram, ou se
negam a dar morada e trabalho aos sindicalizados, e 19
(dos quais, apenas 1 trabalhador), que os trabalhadores
sofreram, apanharam, perderam, porque quiseram prevalecer-se (tomar o que era dos outros, mandar mais do
que o patrão, ter sempre razão), por serem sindicalizados.
Depoimentos de patrões: “O pessoal ficou doido e queria tomar as terras dos outros”; “Os moradores querem
sempre ter razão”; “Ia desgraçar, porque queriam roubar
os proprietários”; Eles não querem mais ter superior”;
“Porque tem uma infiltração comunista muito grande”
(patrão da CNT 4: o único a falar em comunismo); “No
preço” (para o trabalhador ou para o patrão?).
Depoimentos de pequenos proprietários: “Os moradores querem se adiantar em muitas coisas, e por isso o
povo (os patrões) não quer botar moradores”; “Ficaram
com medo da revolução e houve quem deixasse a família”; “Os patrões não pagam o salário que deviam pagar,
e houve mais castigo”; “Não teve futuro”; “Querem dar
direito a quem não tem”; “Os proprietários não querem
mais moradores”; “O proprietário não quer mais moradores que pertençam ao Sindicato e bota fora”; “Surgiram questões com os patrões”; “Os moradores correm,
por qualquer coisa, ao Sindicato”.
Depoimentos de trabalhadores rurais. “Os proprietários não querem mais empregar quem pertence ao Sindicato”; “Muitos proprietários dispensaram os moradores”;
ALCEU RAVANELLO FERRARO
387
“Não consegue mais moradia”; Muita gente sofreu com
isso, e outros, como eu conheço, ganharam os matos”;
“Houve briga com o povo que tem carteira do Sindicato”;
“Os proprietários não querem mais arrendar terra”; “Diminuíram os trabalhos”; “O trabalhador está mais caro,
e os patrões não dão trabalho”; “Trabalho para morrer
e nunca Sindicato veio em meu auxílio” (não sindicalizado: CNT 3); “O Sindicato faz o trabalhador brigar com
o patrão” (CNT 3).
Lembramos que os entrevistados foram perguntados
se e em que sentido o sindicalismo teria mudado a situação do trabalhador rural nos respectivos municípios e
não apenas nas respectivas localidades. De tudo o que
vimos neste parágrafo aparece que, na opinião de 2/3 nas
CT e de 1/2 dos entrevistados nas CNT, o sistema tradicional de relações de trabalho, foi, nos respectivos municípios, abalado Pelo sindicalismo. As consequências é
que nem sempre foram favoráveis para o trabalhador:
em ambos os grupos de comunidades conjuntamente,
para 36,3% dos entrevistados (CT - 42,6% e CNT - 28,8%)
a situação melhorou para o trabalhador, enquanto que,
para 23,2% (CT - 24,8% e CNT - 21,2%), a situação piorou
para o trabalhador, devido à forte reação da classe patronal. Mas, não constituiria esta mesma reação dos patrões
uma prova de que o sindicalismo colocou em cheque os
padrões tradicionais que regulavam o sistema de relações de trabalho entre patrão e trabalhador rural?
5) Atitudes. O simples fato de o número de sindicalizados entre os trabalhadores rurais haver subido, no estado do Rio Grande do Norte, de zero, no início de 1960,
a cerca de 45.000 em março de 1964 — em pouco mais
388
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
de 4 anos, portanto — parece não deixar dúvidas quanto
à mudança profunda de mentalidade e de atitude entre
os trabalhadores rurais, no que tange à organização da
própria classe. Com o objetivo tão somente de determinar até que ponto os agricultores das 8 comunidades
pesquisadas seriam favoráveis à sindicalização do trabalhador rural mesmo contra a vontade do patrão, propusemos a seguinte pergunta:
“Seu Pedro foi sempre muito bom para com seus
moradores, mas não quer que entrem no Sindicato,
porque acha que isto só vai atrapalhar as boas relações dele com os moradores. O que é que o senhor
aconselharia aos moradores de seu Pedro: entrar
no Sindicato ou não entrar?”
“Não entrar no Sindicato!” — respondeu secamente,
ao se ver diante de uma entrevistadora de lápis e questionário na mão, um agricultor que liderara a sindicalização dos trabalhadores rurais na área, não raro contra
a vontade dos patrões. Da mesma opinião foram 52% dos
entrevistados em todas as 8 comunidades, em número
maior, porém, nas CNT (56,6%) do que nas CT (47,8%).
Apesar de saberem muito bem quais tenham sido as
consequências para o trabalhador sindicalizado contra
a vontade de seu “senhor”, assim mesmo cerca de 1/3
(32,9%) dos agricultores de ambos os grupos de comunidades — em proporção mais elevada nas CT (36,8%) do
que nas CNT (28,7%) — aconselharam aos moradores
de seu Pedro filiaram-se ao Sindicato, mesmo contra a
vontade do patrão. Quer se considere os que declararam
não saber, quer se os omita, em nenhum caso a diferença
ALCEU RAVANELLO FERRARO
389
encontrada entre os que assim pensam nos dois grupos
de comunidades chega a ser significativa ao nível de 5%.
Esta diferença, porém, é constante, em favor da CT, segundo todas as três categorias profissionais. De fato, assim aconselharam, respectivamente nas CT e nas CNT,
36,4% e 31,6% dos patrões, 39,3% e 28,6% dos pequenos
proprietários e 35,0% e 28,4% dos trabalhadores rurais.
Embora não significativa, a constância com que tal diferença aparece em favor das CT nos leva a crer que a mudança tenha sido mais acentuada nas comunidades consideradas trabalhadas. Não vemos, porém, a que atribuir,
senão ao trabalho do SAR, o quase 1/3 dos agricultores
de todas as três categorias profissionais que, nas comunidades consideradas não trabalhadas, optaram pela independência do trabalhador no que diz respeito à sindicalização.
A mesma tabela 10.4 nos permite ainda uma constatação importante: os trabalhadores rurais — a classe que
arcou com as consequências da sindicalização contra a
vontade de seus patrões — são precisamente os que, em
ambos os grupos de comunidades, em menor numero
aconselharam os moradores de seu Pedro a entrar no
Sindicato (35,0% e 28,4%, respectivamente nas CT e nas
CNT). O por que disto será ilustrado a seguir.
4. A REAÇÃO
Em entrevista concedida a A ORDEM de 26 de dezembro de 1964 o Dr. Edson Lucena, advogado da Federação
390
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do
Norte, assim definia as quatro espécies de casos mais frequentes entre proprietários e trabalhadores- “1) Rescisão
de contratos de arrendamento por tempo indeterminado e despejo sem notificação prévia ao arrendatário; 2)
rescisão de contratos de parceria agrícola, por parte do
proprietário da terra, antes de o parceiro colher a sua
parte; 3) destruição da lavoura do trabalhador pelo gado
do proprietário; e 4) falta de cumprimento da legislação
trabalhista pelo proprietário. No tocante à última espécie — continua o Dr. Edson Lucena — há a justificativa
de ser o Estatuto do Trabalhador Rural uma lei nova e
inteiramente desconhecida da maioria dos proprietários
rurais. Quanto às demais, não há justificativa para a sua
ocorrência, pois versam sobre assuntos regulados pelo
Código Civil, com todos os seus aspectos já conhecidos
pelos proprietários de terra.”
Tradicionalmente cabiam ao proprietário rural Poderes mais ou menos absolutos para a solução de casos
surgidos dentro de seus domínios. O que a grande maioria dos patrões não conseguiu ate hoje “engolir” foi a interferência de um órgão de classe, que visava substituir
às normas de fato existentes, as normas de direito, isto é,
as previstas no Código Civil e no Estatuto do Trabalhador
Rural.
Seja difundindo o conhecimento dos direitos assegurados por lei ao trabalhador rural, seja pregando o voto
livre e consciente, a Campanha de Politização de 1962
constituiu-se numa ameaça a sobrevivência dos sistemas tradicionais que regulavam as relações de trabalho
e as fidelidades políticas. Em alguns “currais” eleitorais
ALCEU RAVANELLO FERRARO
391
foram abertas brechas profundas. Por outro lado, a esta
altura, em áreas onde já havia Sindicatos organizados, os
patrões começaram a ver-se às voltas com questões trabalhistas. A primeira reação de vulto se fez sentir em
1962, quer no sentido de impedir a sindicalização dos
trabalhadores, quer expulsando da propriedade líderes
sindicais, trabalhadores sindicalizados e famílias de monitores de Escola Radiofônica engajados na Campanha
de Politização. Não é possível determinar o volume dessa
ação repressiva. Duas centenas de cartas de 1962, por nós
lidas, revelaram que dez famílias de monitores haviam
sido despejadas por conta de voto ou Sindicato.
Quer pela morosidade dos processos, quer pelos comprometimentos existentes, a Federação entendeu logo
que a Justiça era o caminho menos indicado. O acordo
passou a constituir a via mais comum para a solução de
questões. Com o progressivo fortalecimento dos Sindicatos, e contando a Federação com assessoria jurídica,
bom numero de patrões passou a conformar-se com o
fato consumado!
O Movimento Revolucionário de 31 de março, se não
acobertou, também não impediu que, a pretexto de extirpar a subversão no estado, se desencadeasse, frequentemente como concurso ostensivo da polícia, uma onda
de violências contra os sindicatos, violências essas que
foram desde a intimidação até as expulsões da propriedade e a prisão de líderes sindicais. A total paralização
dos sindicatos durante meses ocasionou a extinção total
de alguns sindicatos nascentes, o enfraquecimento de
outros, e, de modo geral, a debandada de quase metade
dos sindicalizados. Neste paragrafo limitar-nos-emos a
392
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
descrever a ação repressiva levada a efeito na área de
Nova Cruz, cujo Sindicato cobria também áreas limítrofes, no estado da Paraíba.
a) fornecemos nela carta de um patrão, que deixa entrever as verdadeiras razões da reação contra o Sindicato
de Nova Cruz. Em carta, com firma reconhecida, datada
de 25 maio de l964 dirigida a D. Eugênio Sales, com cópia remetida ao General Comandante de Natal, pedindo
providências no sentido de fazer “desaparecer de vez o
Pavor implantado entre todos os proprietários”, assim se
exprimira o Sr. José Paulino de Carvalho, proprietário de
uma fazenda no município paraibano de Caiçara, próxima à cidade norte-rio-grandense de Nova Cruz:
“Há muito tempo que necessitava falar com V.
Revma. no sentido de apresentar minhas sugestões
e necessidades, a respeito do Sindicato Rural de
Nova Cruz, do qual V. Revma. é o organizador (!).”
“E eu, na qualidade de proprietário, no Município
de Caiçara, estado da Paraíba, abaixo 9 km de Nova
Cruz, passo a expor o seguinte: quando chegou ao
meu conhecimento da organização do Sindicato
Rural, dirigido (!) por V. Revma. com a finalidade de
combater o comunismo, fiquei muitíssimo satisfeito,
dando todo o meu apoio a esta organização, não
proibindo a nenhum dos meus moradores a associarem-se ao Sindicato. Até esta altura corria tudo bem
entre eu, proprietário, e os meus moradores a associarem-se ao Sindicato. Até esta altura corria tudo bem
entre eu, proprietário, e os meus moradores. Depois
surgiriam casos que precisei tomar as providências...”
ALCEU RAVANELLO FERRARO
393
“Tudo eu resolvia — confessa o proprietário — sem
Êstes e outros fatos levaram o proprietário a concluir:
nunca haver briga e muito menos morte, isto den-
“Tinha, portanto, (o Sindicato) a finalidade de im-
tro de 30 anos que sou proprietário, adotando até
plantar a discórdia entre o morador e o propri-
agora o sistema de não consentir dentro de minha
etário. Vinha eu, com os meus moradores, viven-
propriedade a venda de água ardente, jogos nem
do, antes do Sindicato, dentro da maior harmonia
samba, e quando surge um elemento que não cor-
e compreensão, tratava a todos sem excessão com
responde às minhas recomendações então procuro
atenção e consideração, como também dando toda
hàbilmente e prudentemente botá-lo para fora...”
Ao surgir o caso de um morador, acusado de estar “procurando conquistar” a mulher de um vizinho, o proprietário, que sempre fora primeira e última instância na
solução de questões surgidas em seu domínio, em vez de
encaminhar o caso para a justiça, achou que “o caminho
certo era botar o J. M. (o faltoso) para fora”. Sua decepção e irritamento deveram-se ao fato de não mais terem
bastado sua “habilidade” e “prudência” para a solução do
caso, uma vez que o trabalhador apelara para o Sindicato
no sentido de assegurar-se a indenização que a Lei lhe
garantia em virtude da ação de despejo.
Foi também motivo de espanto o fato de alguns de seus
moradores haverem concorrido para duas “invasões” de
terra em propriedades vizinhas: numa, “arrancando um
partido de agave” que o patrão plantara no roçado de
um morador, e noutra, “botando um roçado de um associado”, sem o consentimento do patrão. O que o autor
esquece de lembrar na carta é que estes — o plantio de
agave no roçado do morador e a proibição de o morador
plantar na fazenda — constituem dois dos mais eficazes
expedientes usados pelos proprietários para que os moradores, “por livre e espontânea vontade” (!), deixem a
propriedade, sem direito a qualquer indenização!
394
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
assistência que eles precisavam... e hoje vivo com
os meus moradores sem eu poder confiar neles,
pois não posso confiar, porquanto saíram de minha
orientação...
“O que está visto — prossegue o autor — é que
Sindicato, Liga Camponesa e o Comunismo vinham
trilhando em um só caminho que era a guerra civil. Chegado a conclusão que ai de nós, se não fora
Deus com o seu infinito poder, ter compaixão de todos nós e do nosso Brasil, que na hora em que não
podia mais ser adiada, salvou a todos, iluminando o
espírito e unindo as gloriosas fôrças armadas para
um só fim, de livrar o nosso país do comunismo,
trazendo a paz, a ordem, a justiça, a liberdade e a
tranquilidade a todos nós, para nossa felicidade e
engrandecimento de nosso Brasil...”
Não é nossa intenção discutir aqui qual teria sido o
desfêcho da radicalização político-ideológica que antecedeu o 31 de março de 1964. Lembramos apenas que
a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do
Rio Grande do Norte foi uma das poucas que recusou integrar a assim chamada “Frente única”, tida então como
comunizante. Igualmente, sem entrar no mérito e nas
ALCEU RAVANELLO FERRARO
395
reais intenções do Movimento de 31 de março de 1964,
lembramos apenas o seguinte: não bastaram algumas declarações vagas, em Brasília, de que os Sindicatos continuariam a existir, de que a Revolução não fora feita contra os trabalhadores; palavras pronunciadas em Brasília
não chegavam aos ouvidos do trabalhador rural e frequentemente eram desmentidas pelos fatos. Foi o que
aconteceu, por exemplo, no Sindicato de Nova Cruz.
b) Neste município os patrões, com o concurso da Polícia local, quando necessário, aproveitaram a ocasião para
resolver “pacificamente” todos os casos existentes, inclusive os que estavam em mãos de advogados e na justiça.
Vejamos um caso. Antônio Alves da Silva, casado e pai
de 7 filhos, trabalhara durante 6 anos em Serrote da Macambira, em propriedade de um Deputado Estadual. No
início de 1964 o patrão pediu-lhe que deixasse a fazenda.
O morador apelou para o Sindicato, Recusando-se a sair
sem indenização pelas mais de 30 mil covas de terra que
havia amainado. Não tendo podido resolver sozinho o
caso nos primeiros 4 dias de abril, valeu-se o patrão do
concurso pronto Polícia. De fato, em intimação datada de
5 de abril de 1964, o Delegado de Polícia de Nova Cruz,
arvorando-se em “autoridade competente” (que seria o
juiz), mandou desocupar a moradia dentro de 48 horas,
por flagrante invasão” (o intimado morava havia 6 anos
na propriedade), Par atentado aos dispositivos Constitucionais no seu Art. 141 — Parágrafo 1°. — DIREITO DE
PROPRIEDADE” (este parágrafo estabelece Precisamente
que todo cidadão é igual perante a lei!), acrescentando
que, caso se recusasse a cumprir a ordem, seria “taxado
como comunista”, tendência esta manifestada pela ação
396
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
do intimado (recusa a sair aa propriedade sem a devida
indenização). Antes de completadas as 24 horas, o morador, acuado por policiais, ganhou a estrada, em busca de
outra morada.
Segue a íntegra do documento que, ao contrário de
outros, por descuido do Delegado, não foi recolhido em
tempo.
Rio Grande do Norte
SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA PÚBLICA
DELEGACIA DE POLICIA DE NOVA CRUZ
OFÍCIO S/N.°
do:
Ao:
Em 5 de abril de 1964
Io Tenente Delegado Especial
Senhor Antônio Alves de Lima,
vulgo Antônio de Celso
Assunto:
1. Deveis por ordem expressa da autoridade competente, cumprir as determinações legais, desocupando
a casa em que você estar morando motivamento como
um atentado aos dispositivos Constituas no seu Art.
141 - Parágrafo 1°. (DIREITO DE PROPRIEDADE) deste
modo prorrogo o prazo de 48 horas, para abandono
da residência em você estar morando, flagrante como
invasão, se isto não for cumprido mandarei o Poder de
Polícia tirá-lo da citada residência, taxado como comunista, porque sua ação mostra essas tendências.
2. No sentido de manter o direito de propriedade, esta
autoridade manda um militar explicar melhor o atentado que o Senhor esta contra os preceitos constitucionais e flagrante contra o código penal brasileiro.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
397
3. Esta determinação deve ser cumprida pelo senhor e
serve como intimação.
sando da bondade. Seu João, o sr. queria ser proprietário, para não mandar no que era seu? Seu João,
seja mais consciente. O sr. deve pensar melhor
(aa) José Luís Soares – 1º Tenente Delegado Especial
para poder criar seus filhos. Seja mais consciente.
Se aí não está bom para o sr. procure outro lugar e
c) Em fins de 1964, quando de nossa visita a algumas
Escolas Radiofônicas na Lapa, no município de Nova
Cruz, tivemos oportunidade de tomar conhecimento de
outro caso, muito comum, por sinal, nas grandes fazendas. Depois de conversarmos com a monitora, já conhecida através de suas cartas escritas em 1962, seu João
Felipe Neri pai de 13 filhos, entre os quais a monitora,
nascido e criado na Lapa, mostrou-nos uma carta recebida da esposa do patrão, que transcrevemos aqui:
“Sr. João Felipe! João Paulo não estando em casa eu
resolvi lhe escrever. Acabo de receber queixas do sr
Pois o senhor quer abrir serviços sem o consentimento do proprietário. O sr. acha certo isso? É melhor o sr. vir até aqui se entender com o proprietário, pois eu acho que o sr. se sairá melhor. Pois se
neste terreno que o sr. quer trabalhar o proprietário
vai fazer um cercado de criação o sr. não pode ir
contra a vontade do dono. O sr. acha que está certo
invadindo a propriedade alheia? Pois o sr. deve saber que invasão é contra o exército. ele agora é quem
resolve, não é mais o sindicato. Hoje quem fala em
sindicato é preso na hora. Cuidado também com a
família que continua mexendo nas canas. Seu João,
veja que desde que João Paulo tomou conta ou melhor comprou estas propriedades o sr. nunca pagou
renda, e hoje está tentando agora invadir. Está abu-
398
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
vá morar, não queira desinquietar, tirar o sossêgo
alheio. Eu estou lhe fazendo este apelo como amiga pois gosto muito do sr. e de sua família... E. M.”
Alguns detalhes ajudarão a entender o caso. Antes de
João Paulo adquirir a propriedade, João Felipe não pagava fôro, pois era administrador da fazenda. Substituído
na função pelo irmão do novo proprietário, prontificouse a pagar. A intenção do patrão, porém, era cercar a área
cultivada por João Felipe e por outros moradores, com
intuito de ampliar as pastagens para o gado. Embora
pudessem permanecer nas próprias moradias, os moradores não teriam mais terra em que trabalhar. Segundo
João Felipe, foi este o diálogo que teve com o Delegado
de Nova Cruz: “Veja, João Felipe, — teria dito o Delegado
— o gado está sem pasto, e o proprietário precisa fechar
esta Parte da propriedade para alimentar o gado”. “O proprietário pensa no gado — confessa ter respondido João
Felipe — mas eu penso em como vou alimentar meus
treze filhos!” Trata-se de expediente dos mais frequentes: impede-se o morador de trabalhar, sem, contudo,
despejá-lo da propriedade. Como tantos outros, assim
também seu João Felipe, quando lá estivemos, estava decidido a abandonar a fazenda, com destino a São Paulo,
desistindo dos direitos adquiridos Por uma vida inteira
de trabalho na fazenda (nascera na Lapa).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
399
d) Poderíamos analisar inúmeros outros fatos que diariamente são levados às Sedes de Sindicato ou à Federação. Bastam estes. Sintetizando, podemos dizer que a
subversão de que foram e continuam sendo acusados os
Sindicatos consiste substancialmente nisto: na luta Pela
substituição da ordem de fato pela ordem de direito, isto é,
das normas tradicionais que de fato regulavam as relações de trabalho no meio rural, pelas normas de direito
previstas no Código Civil e no Estatuto do Trabalhador
Rural. A reação patronal, por outro lado, consiste precisamente na luta pela manutenção da ordem de fato, ou seja,
pela sobrevivência do sistema tradicional de relações de
trabalho e, inclusive, de fidelidades políticas.
Trata-se, antes de mais nada, de uma questão de justiça
social. Contudo, o significado desta “luta pela mudança
de estruturas” parece-nos óbvio do ponto de vista do
desenvolvimento. A total insegurança ou “sujeição” do
trabalhador rural, consequência do sistema tradicional
de relações de trabalho e de fidelidades políticas, é, segundo nosso modo de ver, um dos maiores obstáculos
ao desenvolvimento agricola do Estado. “Quem mora no
alheio só vive de retirada! — observada, em carta de 1962,
uma monitora cuja família fora despejada propriedade
por conta de voto e de Sindicato. Esta insegurança desestimula qualquer investimento, qualquer melhora nos
métodos de produção por parte do trabalhador. Ademais,
os proprietários geralmente não pensam em termos de
produtividade: suas economias são canalizadas para a
aquisição de novas terras e não no sentido de aumentar a
produtividade das terras já cultivadas ou de melhorar as
pastagens. Uma pressão salarial por parte da classe traba-
400
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
lhadora poderia despertar por parte dos proprietários,
iniciativas tendentes a melhorar a produtividade. Neste
sentido encaramos como funcional ao desenvolvimento
a “luta pela mudança de estruturas” e como disfuncional, como um retrocesso, do ponto de vista de desenvolvi-mento a contra luta ou a repressão desencadeada
contra os Sindicatos Rurais Esta “contraluta” conseguiu
manter em grande parte inalterado o sistema tradicional
de relações de trabalho e de fidelidades políticas, mas,
sem dúvida alguma, não conseguiu fazer voltar ao estado anterior as novas expectativas despertadas no seio da
classe trabalhadora. Empregando o termo comumente
usado pelos trabalhadores poderíamos a classe trabalhadora continua ainda, em grande parte, ‘sujeita’, mas já
não se conforma com este estado de sujeição .
ALCEU RAVANELLO FERRARO
401
CAPÍTULO XI
CONSCIÊNCIA
E AGENTES DE MUDANÇA
1. CONSCIÊNCIA DA MUDANÇA
Os critérios aplicados nos Capítulos VI a X nos possibilitaram verificar que, sob vários aspectos, as comunidades trabalhadas pelo SAR são significativamente diversas das não trabalhadas, ou seja, que o trabalho do
SAR é responsável por uma série de mudanças nas comunidades por ele atingidas. Mas, teriam os habitantes dos
dois grupos de comunidades consciência diversa quanto
ao sentido, intensidade e tipo de mudanças verificadas
nas respectivas comunidades? Com o intuito de verificar
isto, propusemos às pessoas de 18 anos e mais, membros
de famílias residentes havia pelo menos 7 anos na localidade, a seguinte pergunta (A.50):
“Segundo seu modo de ver, o que é que aconteceu
com sua localidade nos últimos 7 anos: melhorou
(muito, bastante, um pouco), ficou no mesmo, piorou (um pouco, bastante, muito)?”
1) Na tabela 11.1 e no gráfico 11.1 as respostas aparecem distribuídas segundo os 7 graus da escala proposta.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
403
Um número relativamente baixo e quase idêntico de entrevistados de ambos os grupos de comunidades (11,3%
nas CT e 8,5% nas CNT) declararam que a situação das
respectivas comunidades piorou nos últimos 7 anos.
Considerando porém os outros dois subtotais, observamos uma diferença muito grande entre os dois grupos
de comunidades: 63,7% nas CT, contra apenas 30,7% nas
CNT, acusaram uma melhora, e apenas 25,0% nas CT contra 60 8% nas CNT, não acusaram nenhuma mudança nos
últimos 7 anos As CT apresentam, com relação às CNT,
uma proporção mais elevada em todos os três graus positivos da escala, concentrando-se porém em “melhorou
muito” a diferença entre os dois grupos de comunidades:
melhorou um pouco — 14,5%, contra 10,9%; melhorou
bastante - 13,3%, contra 9,4%; melhorou muito — 35,9%,
contra apenas 10,4%, respectivamente nas CT e nas CNT.
Como quer que se aplique (aos três subtotais ou aos 7
graus da escala), o teste de qui-quadrado revela uma diferença, entre os dois grupos de comunidades significativa
a um nível extremamente elevado, muito superior a 1/1
000. A representação gráfica (gráfico 11.1) evidencia que
as opiniões dos entrevistados das CT concentram-se em
“melhorou” — especialmente em “melhorou muito” —
enquanto que as opiniões dos entrevistados das CNT estão fortemente concentradas em ficou no mesmo”, dando, portanto, uma ideia de estagnação das respectivas
comunidades.
Os dados da tabela 11.1, distribuídos segundo as 8 comunidades, nos permitem ainda uma série de observações.
404
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
a — Os números relativos de entrevistados que acusaram uma piora são relativamente baixos e quase idênticos em cada CT e correspondente CNT nos 1o, 2o e 4o
pares de comunidades, sendo sensível a diferença apenas
no 3o par, onde precisamente a CT 3 (Jundiá de Cima)
apresenta o número relativo mais elevado de pessoas
que acusaram uma piora (21,6%), não só com relação à
correspondente CNT (6,8%), mas também com relação a
todas as 8 comunidades. Este fato não deixa de ser surpreendente, pois Jundiá de Cima é a comunidade mais
beneficiada pela entrada de dinheiro através do artesanato. Por outro lado, é a que apresenta, com relação às 4
CT, o trabalho de comunidade mais fraco.
b — O número relativo dos que não acusaram nenhuma mudança (ficou no mesmo) oscila, nas 4 CT, entre
10,5% e 34,2%, enquanto que, nas CNT, vai de 42,6% a
74,5%. Por conseguinte, o máximo encontrado nas 4 CT
(CT 2 - 34,2%) fica muito aquém do mínimo encontrado
nas 4 CNT (CNT 2 - 42,6%).
c — por outro lado, o número dos que acusaram uma
melhora é mais elevado em cada CT, do que em cada correspondente CNT: 1o par — 65,1% contra 14,6%; 2o par
— 61,9% contra 53,2% (a menor diferença encontrada); 3o
par — 51,7% contra 25,9%; 4o par — 77,2% contra 32,6%,
sempre respectivamente em cada CT e correspondente
CÍTT.
d — Se considerarmos apenas a coluna dos que responderam “melhorou muito”, as diferenças são igualmente notáveis, sempre em favor de cada CT comparada
com a correspondente CNT: 1o par — 34,9% contra 0,0%
(nenhum); 2o par — 34,2% contra 14,9%; 3o par — 26,7%
ALCEU RAVANELLO FERRARO
405
contra 12,1%; 4o par — 49,1% contra 15,3%. Contra um
máximo de 15,3% nas CNT (CNT 4), temos, nas CT, um
mínimo de 26,7% de entrevistados (CT 3) que declararam
que a situação das respectivas comunidades melhorou
muito nos últimos 7 anos.
2) Os que, na pergunta A.50, haviam acusado uma melhora na situação das respectivas comunidades foram solicitados a especificar em que estas haviam melhorado.
As respostas aparecem agrupadas, no quadro acima, em
8 categorias, sendo que as percentagens foram calculadas sobre o total de declarados em A.50.
sentam, nos itens 3, 5 e 7, números totalmente inexpressivos.
O que vimos neste parágrafo evidencia 1) que os entrevistados das CT, em número muito mais elevado do
que os das CNT, têm consciência de que a situação melhorou e 2) que o tipo de melhora acusada coincide, sob
vários aspectos, com as diferenças anteriormente encontradas entre os dois grupos de comunidades.
2. AGENTES DE MUDANÇA
1) Opinião dos entrevistados. Os entrevistados que, na
pergunta A.50, haviam acusado uma melhora na situação
das respectivas comunidades nos últimos 7 anos foram
perguntados sobre quem havia contribuído para esta
melhora. As respostas aparecem agrupadas no quadro
abaixo:
É quase idêntico e pouco elevado em ambos os grupos de comunidades o número dos que acusaram um
crescimento do lugar e uma melhora nas comunicações.
O mesmo se diga quanto à situação sanitária, apesar das
diferenças encontradas, no Capítulo VI, entre os dois
grupos de comunidades. Quanto a todos os outros itens
(situação geral, econômica, educacional, religiosa e formas associativas ou cooperativas), o número dos que
acusaram uma melhora é sempre e sensivelmente mais
elevado nas CT do que nas CNT, sendo que estas apre-
406
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
407
a — Os agentes não identificados com a ação do SAR
(itens 5-10) foram mencionados nas CT quase tantas vezes, quantas nas CNT — respectivamente 71 e 81 vezes.
Isto nos leva a crer que a influência destes agentes teria sido mais ou menos homogênea nos dois grupos de
comunidades, ou seja, que realmente fatores outros que
não o trabalho do SAR foram isolados ou mantidos constantes nos dois grupos de comunidades pesquisadas.
b — Nas CNT as 81 menções não identificadas com o
trabalho do SAR (itens 5-10) representam a quase totalidade de todas as menções feitas naquele grupo de comunidade (97,5%, ou sejam, 81/83).
Nas CT, ao contrário, as 71 menções de tais agentes
representam apenas 25,1% de todas as menções feitas no
mesmo grupo de comunidades; as outras 211 menções
(itens 1-4), que identificam precisamente o trabalho do
SAR, representam 74,9% do total.
c — Nas CNT figuram em 1o lugar (37 menções) os
crefes políticos locais (pràticamente todos grandes proprietários). Nas CT, ao contrário, cabe a estes o 5o, figurando em 1o. lugar os líderes locais engajados em atividades do SAR (79 menções). este fato não só confirma
a importância estratégica do treinamento de líderes de
comunidade, como também parece indicar que o SAR
teria mudado substancialmente a estrutura das comunidades por ele atingidas, despertando e formando uma
liderança não identificada com a liderança tradicional,
isto é, com o chefe político e (ou) o patrão.
d — De um total de 67 menções das diversas atividades
do SAR (item 2 — 2o. lugar), 35 (mais da metade) podem
ser identificadas como formas associativas de pequenos
408
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
porte, atuantes no âmbito da comunidade ou localidade
(Clubes e JAC — 19 menções). Além disto, praticamente
todos os líderes mencionados no item 1 estavam de fato
vinculados através de tais formas associativas. Aceito o
fato, manifestado, aliás, pelos próprios entrevistados,
de que os líderes de comunidade teriam sido os agentes
mais decisivos na mudança (melhora) verificada nas CT,
levantamos aqui a hipótese, a ser verificada logo adiante,
que o rendimento do líder associado teria sido maior do que
o do líder não associado..
e — Contra apenas 2 menções nas CNT, o “povo do
lugar” foi mencionado, nas CT, 37 vezes (3o lugar). Isto
vem fazer eco às conclusões a que chegamos no Capítulo
VIII, sobre a participação em empreendimentos comunitários.
f — Contra nenhuma menção nas CNT, nas CT os
vigários foram mencionados/29 vezes (4o lugar). Obesrvese que, nos pares 1, 2 e 4 de comunidades, o vigário da
CT e correspondente CNT era o mesmo. Não raro o SAR,
como, aliás, todo o Movimento de Natal, tem sido acusado de clericalismo, isto é, de se identificar, na cúpula,
com a pessoa de D. Eugênio e, na base, com os vigários.
No que tange à forma de atuação dos vigários nos empreendimentos do SAR nas 4 comunidades pesquisadas,
podemos observar o seguinte: 1) num total de 211 menções de agentes direta ou indiretamente identificados
com o SAR (itens 1-4), os vigários foram mencionados
apenas 29 vêzes, enquanto que os líderes locais (de comunidade) aparecem 79 vezes, e o povo do lugar, 37 vezes;
2) em 23 das 29 menções, os vigários foram citados juntamente com o povo, algum líder ou grupo do lugar. Eis
ALCEU RAVANELLO FERRARO
409
alguns exemplos: “O povo, o vigário, a Rural”; “O vigário,
o povo, as moças”; “Seu Pedro, do Centro Social, e Mons.
Expedito”; “Seu Alfeu, o padre e seu Pedro, do Centro”;
“O vigário e o povo mesmo”; “O padre e o povo”; “Padre
Armando, os moços da Emissora, O Clube de Jovens e o
Artesanato”; “Os homens. Deus, o vigário, Glória (chefe
do Setor de Artesanato — única menção nominal de um
elemento da cúpula do SAR) e Aparecida” (líder do Clube
de Jovens e do núcleo de artesanato de Jundiá de Cima);
“O vigário e seu Francisco”; etc. Tudo isto confirma o que
nossa observação apurou nas 4 CT pesquisadas, isto é,
que o trabalho é assumido por pessoas do lugar, agindo
os vigários mais como inspiradores, estimuladores e educadores. Ademais, os entrevistados têm consciência de
que o trabalho é deles, ou do povo, e não do vigário, ou,
pelo menos, que é mais deles do que do vigário. Não nos
parece se possa qualificar de clericalista o trabalho desenvolvido pelo SAR nestas comunidades.
Por último, encerrando o questionário A, foi proposta
a seguinte pergunta aos entrevistados das 4 CT (A.52):
“Quais destas coisas o senhor acha que mais contribuíram para melhorar a situação de sua localidade ou quais julga mais importantes: Centro
Social, Clube de jovens, Clube Agrícola, Clube
de Mães, JAC, Cooperativa, Sindicato, Escola Radiofônica, Artesanato?”
Os entrevistados podiam mencionar 4 atividades, em
ordem de importância. A maioria, porém, se limitou a
indicar uma ou duas. Segundo os dados da tabela 11.2, os
grupos de pequeno porte mereceram, tanto em 1o, como
410
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
em 2o, 3o e 4o lugares, o número mais elevado de menções, sendo seguidos ora pelos Centros Sociais, ora pelas
Escolas Radiofônicas. Considerando os 1° a 4o lugares
conjuntamente, foi o seguinte o número de menções
de cada atividade: grupos de pequeno porte — 260 vezes; Centro Social — 120 vezes; Escolas Radiofônicas
120 vezes; Cooperativa (excluída a de Artesanato) — 43
vezes; Cooperativa de Artesanato — 31 vezes; Sindicato
— 18 vezes. E evidente, por conseguinte, a importância
atribuída pelos próprios entrevistados das CT aos grupos
de pequeno porte. Isto se torna ainda mais claro, se lembrarmos que a vitalidade dos Centros Sociais repousa,
em grande parte, nestes grupos.
2) Pesquisa entre monitores. Acabamos de constatar que
os entrevistados das CT atribuíram especial importância aos líderes de comunidade e aos grupos de pequenos
porte, como agentes de mudança. Levantamos, também,
a hipótese de que o rendimento do líder associado teria sido
maior do que o do líder não associado. Especialmente com
o objetivo de verificar esta hipótese, foi realizada, em
meados de 1965 uma pesquisa (questionário B), atingindo 248 líderes treinados (no caso, todos monitores de
Escolas Radiofônicas), pertencentes a 31 municípios do
interior da Arquidiocese de Natal. Preenchidos os questionários, os monitores foram divididos em duas categorias: monitores associados a um ou mais grupos de
pequeno porte - Clube de Jovens, de Mães, Agrícola, JAC
(Juventude Agrária Católica) e MFC (Movimento Familiar Cristão) e monitores nao associados a nenhum destes
(nem semelhantes) grupos. Uma série de critérios aplicados nos permitiu estabelecer algumas confrontações en-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
411
tre o comportamento das duas categorias de monitores
e entre a situação das respectivas famílias. Por brevidade
falaremos simplesmente em monitores associados e não
associados, entendendo-se a grupos de pequeno porte,
quais os acima mencionados.
a) Responsabilidade dos monitores (B.ll e B.16). Dos 203
monitores declarados e que haviam ensinado em 1964,
94,4% entre os associados, contra 83,3% entre os não associados, declararam haver enviado, naquele ano, ficha
de matrícula à Equipe Central do MEB. O teste de quiquadrado revela ser esta diferença significativa ao nível
de 5% (parte A da tabela 11.3).
Quanto à regularidade na remessa de fichas de
frequência (parte B da tabela 11.3), temos as seguintes
percentagens, respectivamente entre os monitores associados e os não associados: nunca — 4,4% contra 17%;
1-2 meses — 13,2% contra 15,2%; vários meses — 26,4%
contra 19,6%; todos os meses — 56,0% contra 48,2%. Sem
a correção de Yates, a diferença entre as duas categorias
de monitores revela-se significativa ao nível de 5%; com
a correção, a diferença encontrada beira este nível de significância.
Os dois critérios conjuntamente parecem indicar que
os monitores associados se demonstram mais responsáveis, na administração das respectivas Escolas, do que
os não associados.
Cultivo de verduras (B.23). O SAR sempre se tem empenhado na difusão do cultivo e consumo de verduras.
Segundo a tabela 11.4, temos as seguintes percentagens,
respectivamente entre as famílias de monitores associados e as dos não associados: não plantavam nenhuma
412
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
qualidade de verdura — 3,6% contra 11,0%; 1-2 qualidades — 3,6% contra 10,2%; 3-4 qualidades — 16,2% contra 35,0%; 5-6 qualidades — 35,1% contra 36,5%; 7-8 qualidades de verduras — 41,5% contra apenas 7,3%, sempre
respectivamente entre as famílias de monitores associados e as dos não associados. O nível de significância das
diferenças encontradas entre as famílias das duas categorias de monitores é extremamente elevada, a um nível
muito superior a l/l.000.
Tratamento da água potável. No caso do tratamento da
água potável (B 25 e B 26), com o fim de manter constante o fator econômico distribuímos, por categoria profissional dos chefes, as famílias dos monitores. Assim,
segundo declaração dos 248 monitores entrevistados e
distribuídas as respectivas famílias por categoria profissional dos chefes (tabela 11.5), era da seguinte ordem o
número relativo de famílias, respectivamente de monitores-membros associados e não associados, que filtravam ou ferviam água: respectivamente 53,9% e 55,5%
entre as famílias de patrões; 44,9% e 29,3% entre as famílias de pequenos proprietários; 42,5% e 28,1% entre as
famílias de trabalhadores rurais - 55,6% e 38,5% entre as
famílias de não-agricultores (outros) Com excessão das
famílias de patrões, em todos os outros casos o número
relativo de famílias que filtravam ou ferviam água e bem
mais elevado no caso de monitores-membros associados.
Independentemente de categoria profissional dos
chefes, contra apenas 314% das famílias de monitores
não associados, 45,9% das famílias de monitores associados ferviam e filtravam a água potável.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
413
Fossa. Sempre com o objetivo de manter constante o
fator econômico, também neste caso (B.24) distribuímos,
por categoria profissional, as famílias dos monitores
entrevistados. Assim, segundo aparece na tabela 11.6, a
frequência de fossa, embora menos acentuadamente no
caso dos pequenos proprietários, é sempre mais elevada
entre as famílias de monitores associados do que entre
as de monitores não associados: respectivamente 61,5%
contra 33,3%, entre as famílias de patrões; 22,4% contra
17,5%, entre as famílias de pequenos proprietários; 25,6%
contra 6,9%, entre as famílias de trabalhadores rurais; e
55,6% contra 38,5%, entre as famílias de não-agricultores
(outros). Sem distinção de categoria profissional dos respectivos chefes, 30,9% das famílias de monitores associados tinham fossa, contra apenas 16,1% das famílias de
monitores não associados. Esta diferença é significativa
a um nível elevado (superior a 1%).
e) Cooperativismo e Sindicalismo. Segundo a parte-A da
tabela 11.7 (B.20), excessão feita dos não agricultores
(outros: respectivamente 22,2% e 23,1%), segundo todas
as outras categorias profissionais é mais elevado entre as
famílias de monitores associados do que entre as famílias de monitores não associados o número relativo das
que tinham um ou mais membros associados a alguma
cooperativa: famílias de pequenos proprietários, respectivamente 55,1% contra 20,7%; famílias de trabalhadores
rurais — 35% contra 24,6%; famílias de patrões — 61,5%
contra 22,2%. Tomando todas as categorias profissionais
conjuntamente’, o número de famílias que tinham um
ou mais membros associados a alguma Cooperativa era
da ordem de 45,9% entre as famílias de monitores asso-
414
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ciados, contra apenas 22,6% entre as de monitores não
associados. Neste caso a diferença é significativa a um
nível superior a 1/1.000.
Segundo a parte B da tabela 11.7 (B.21), excessão feita das famílias de trabalhadores rurais, onde a situação
é levemente inversa (55,0% contra 57,9%), em todos os
outros casos é mais elevado entre as de monitores associados do que entre as de monitores não associados
o número relativo de famílias que tinham um ou mais
membros sindicalizados: respectivamente 38,5% contra
11,1%, entre as famílias de patrões; 59,2% contra 34,5%,
entre as famílias de pequenos proprietários; 77,8% contra
46,2%, entre as famílias de não agricultores (outros). Sem
distinção de categoria profissional dos chefes, 56,8% das
famílias de monitores associados, contra apenas 43,8%
das de monitores não associados, tinham um ou mais
membros sindicalizados, revelando-se esta diferença significativa ao nível de 5%.
Concluindo, podemos dizer que parece confirmada
também a hipótese de que o rendimento do líder associado teria sido maior do que o do líder não associado.
As declarações das pessoas entrevistadas nas CT, indicando como principais agentes de mudança os líderes de
comunidade e os grupos de pequeno porte, reforçam as
conclusões a que chegáramos em nossa observação direta em dezenas de comunidades do interior. Os dados da
pesquisa realizada entre 248 líderes (monitores), se não
considerarmos a categoria profissional dos chefes das respectivas famílias, confirmam, sem excessão, a hipótese.
Se mantido constante o fator econômico (distribuição
dos monitores ou das respectivas famílias segundo a ca-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
415
tegoria profissional dos chefes), a hipótese encontra também confirmação em todos os casos, com excessão de
três (patrões — tabela 11.5; não agricultores (outros) —
tabela 11.6; trabalhadores rurais — tabela 11.7-A), onde a
situação é levemente inversa.
CONCLUSÃO À II PARTE
1. Nos Capítulos VI - X ficou evidenciado que, segundo
a grande maioria dos critérios aplicados, são significativamente mais frequentes ou significativamente diversos
nas CT, em relação com as CNT, concepções, atitudes,
padrões de comportamento e, inclusive, condições de
vida identificáveis como funcionais ao desenvolvimento
e mesmo, como no caso de um índice mais elevado de
alfabetização, com os próprios objetivos do desenvolvimento. Mesmo no que concerne a mudanças na situação
técnico-econômica, a respeito da qual, no Capítulo VI,
não encontramos, sob diversos aspectos, nenhuma diferença significativa entre os dois grupos de comunidades,
a aplicação de outros ou mais acurados critérios talvez
nos levasse a conclusões diversas. De fato, dos chefes de
família que se declararam sobre o sentido e o tipo de mudança verificada nas respectivas comunidades nos últimos 7 anos, 28,5% nas CT, contra apenas 18,9% nas CNT,
acusaram mudanças (melhoras) na situação econômica
(Capítulo XI.2.2).
2. Isolados ou mantidos constantes outros fatores
(Capítulo V), o SAR apresenta-se como o único fator ca-
416
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
417
paz de explicar as diferenças quase sempre significativas encontradas entre os dois grupos de comunidades,
ou sejam, as mudanças, em termos de desenvolvimento,
significativamente mais intensas nas CT do que nas CNT.
Ademais, esta conclusão é confirmada pelas próprias
declarações dos entrevistados: a) a maioria dos entrevistados das CT (63.7%) têm consciência de tais mudanças (melhoras), enquanto que nas CNT a maioria (60,8%)
acusa uma estagnação nas condições de vida nas respectivas comunidades (ficou no mesmo); b) os diversos tipos
de mudanças (melhoras) apontadas pelos entrevistados
das CT (com duas ressalvas: com maior intensidade no
que concerne à situação econômica e com menor intensidade no que tange à saúde) confirmam as conclusões
a que nos conduziu a verificação empírica; c) os agentes
apontados pelos entrevistados das CT permitem identificar o SAR como principal agente de mudança. Dentro,
por conseguinte, dos objetivos estabelecidos e salvas
imitações de ordem econômica (parcos e descontínuos
recursos financeiros) e humana (inabilidade ou desinteresse da parte de alguns 6 corpo técnico composto quase
que exclusivamente de assistentes sociais), podemos dizer que, no tocante às atividades temporais empreendidas pelo Movimento (SAR) no meio rural, a hipótese da
funcionalidade ao desenvolvimento encontrou, segundo a
quase totalidade dos critérios aplicados, eco favorável nos
dados da pesquisa.
Segue-se, portanto, que, mesmo numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica (catolicismo de tradição), a Igreja ou determinado grupo religioso pode, em
determinadas condições, demonstrar-se funcional ao de-
418
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
senvolvimento ou exercer uma função de desenvolvimento.
Em que condições o possa fazer, é o que tentaremos verificar na III Parte.
3. Parece também confirmada pelos dados da verificação empírica a hipótese de um maior rendimento
do líder que atua na comunidade através de grupos ou
formas associativas, do que o rendimento do líder que
não conta tais suportes associativos ou que atua isoladamente.
Isto nos leva a duas conclusões práticas de suma importância:
— a primeira, sobre a ineficácia ou pelo menos sobre a
menor produtividade de investimentos em treinamentos
de líderes de comunidade sem que ao mesmo tempo se
os oriente e estimule para a criação de formas associativas
que lhes sirvam de suporte em seu trabalho de desenvolvimento de comunidade,
— e a segunda, sobre a validade prática da estratégia
típica do SAR na I FASE RURAL, montada no tripé: líder
treinado — grupo — comunidade.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
419
III PARTE
RELAÇÃO ENTRE
FUNCIONALIDADE E ATITUDE
E ENTRE TEMPORAL
E RELIGIOSO
CAPÍTULO XII
RELAÇÃO ENTRE
FUNCIONALIDADE E ATITUDE
E ENTRE TEMPORAL
E RELIGIOSO
Ao levantarmos, na introdução a este trabalho, a hipótese da funcionalidade, do ponto de vista de desenvolvimento, das atividades temporais empreendidas pelo
Movimento de Natal, perguntamo-nos também se o resultado da verificação empírica a que submeteríamos tais
atividades não estaria vinculado a determinada atitude
da Igreja em face da mudança em ambos os campos —
temporal e religioso. Levantamos, assim, a hipótese (2ª
na introdução e 3a aqui, uma vez que no Capítulo anterior intercalamos outra), segundo a qual, a uma eventual
funcionalidade corresponderia, da parte do Movimento
e especialmente de seus líderes, uma atitude inovadora.
A hipótese da funcionalidade saiu confirmada na quase
totalidade dos testes a que a submetemos. Trata-se, agora, de verificar a hipótese da relação 1) entre funcionalidade e atitude e 2) entre atitude-ação no setor temporal e
atitude-ação no setor religioso. Podemos manter-lhe inalterada a formulação, suprimindo apenas a forma condicional, uma vez que os dados confirmaram a hipótese da
funcionalidade. Temos assim:
ALCEU RAVANELLO FERRARO
423
III HIPÓTESE: Por parte do Movimento e especialmente de seus líderes, de cujas atividades temporais
empreendidas no meio rural ficou demonstrada a
funcionalidade ao desenvolvimento, correspondeu
— dados colhidos durante mais de dois anos de observação in loco e dados coletados através de algumas perguntas incluídas no questionário A, aplicado nas 8 comunidades pesquisadas.
uma atitude inovadora, motivada por valores e não
por interesses particulares do grupo religioso, de
orientação profética e não ética, atitude esta resultante de um processo de desinculturação dos valores
A. VISÃO RETROSPECTIVA
cristãos e resultante num descomprometimento do
grupo religioso com o “status quo” social e religioso e numa posição em favor da mudança tanto no
setor temporal como no religioso.
Na verificação desta hipótese teremos presentes os
principais critérios distintivos das quatro atitudes-tipo
que mencionamos na introdução a este trabalho. Com
o objetivo não só de definir a atitude atual do Movimento (de seus líderes), mas de determinar-lhe também a evolução, insistiremos, semelhantemente ao que
fizemos na I Parte, na perspectiva histórica. Como fontes
principais utilizaremos:
— o que vimos até aqui, especialmente na I Parte;
— o Diário A ORDEM, particularmente no que se refere
aos anos de 1940 a 1951;
— os numerosos documentos dos arquivos privados
de D. Eugênio (dircursos, conferências, alocuções radiofônicas, homilias, artigos), de 1944 a 1964, aos quais nos
foi permitido livre acesso;
— a documentação do Secretariado Arquidiocesano de
Pastoral e do Secretariado Regional dos Bispos do Nordeste;
424
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
1. 1940 A MEADOS DE 1945
Utilizando como fonte principal o Diário A ORDEM,
tentaremos reconstituir sinteticamente a imagem da
Igreja no período imediatamente anterior ao início do
Movimento, ou seja, na primeira metade dos anos 1940.
Antes de tudo tem-se a impressão de uma Igreja ameaçada, que se defende de uma série de “inimigos”. São
frequentes os ataques contra o protestantismo, o espiritismo, a maçonaria, o laicismo, numa palavra, contra os
“inimigos da fé”. Observa-se paralelamente o tom moralizante, seja do jornal, seja das atividades e pronunciamentos de líderes católicos, relatados no jornal: são as
repetidas investidas contra o baile, o carnaval, o neopaganismo, a má imprensa, “certa” literatura infantil,
a coeducação, o divórcio, a jogatina, a imoralidade nas
praias e nas ruas, etc., enfim, contra os “inimigos da ordem moral”. Sintomática e característica desta época foi
a criação do Departamento de Defesa da Fé e da Moral, de
âmbito nacional, instalado, pouco mais tarde (outubro
de 1946), em Natal e confiado a aquele que seria o principal líder do Movimento, o então jovem Pe. Eugênio.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
425
Outra característica desta época é a forma triunfalista
sob a qual o jornal apresentava a Igreja. Vejamos apenas
um exemplo: A ORDEM de 10, 12 e 14 de julho de 1943
relata que a Obra das Vocações Sacerdotais e a Congregação Mariana (está, aliás, nunca ausente em tais ocasiões!)
“mobilizaram” as “forças católicas” para “homenagear” o
clero da Diocese por ocasião do encerramento de seu retiro anual e observa com satisfação que a celebração, realizada na sede da Confederação Católica, cuja fachada
estava “feericamente iluminada”, revestiu-se de “excepcional brilhantismo”.
Em lugar da unanimidade católica da região, começava a surgir o pluralismo religioso. O começo do fim do
isolamento da região abria caminho à penetração de
novas ideias, de novos costumes, para o que muito contribuiu a presença de milhares de soldados americanos
em Natal, naqueles anos. O aparecimento dos “inimigos”
acima enumerados não era, em grande parte, senão o
reflexo de mudanças mais profundas que, no decênio
seguinte, levariam a região a tomar consciência de seu
estado de subdesenvolvimento. Tal relação, porém não
era feita então, nem aquelas mudanças mais profundas
tinham sido identificadas, a não ser talvez mudanças nos
costumes, atribuídas a presença norte-americana. Assim,
por conseguinte, antes de se colocar em termos — pelo
menos em termos conscientes — de desenvolvimento,
já o problema da mudança se apresentara à Igreja em termos religiosos, isto é, em setores (fé e moral) que diziam
diretamente respeito à sua função específica. A resposta
pastoral ensaiada pela Igreja de Natal parece ter sido
prevalentemente de tipo ético - mobilização das “forças
426
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
católicas” no sentido de conservar e preservar os valores
cristãos ameaçados pelo aparecimento de outras “forças”.
A imagem que A ORDEM nos deu parece espelhar não
só a posição dos marianos, em cujas mãos estava o jornal,
mas também, pelo caráter semi-oficial daquele órgão e
pelo prestígio de que gozavam os marianos, a própria
posição oficial das autoridades diocesanas. Tudo indica,
porém, que a pastoral paroquial tradicional não sofreu
alterações substanciais neste período.
Nesta fase, no que tange aos novos problemas da “Cidade - Trampolim da Vitória”, nem a Congregação Mariana se demonstrou criativa (pode-se dizer que esta já
vivia dos louros do passado), nem a jovem Ação Católica
esteve à altura para enfrentá-los. Limitaram-se ambas a
cooperar com a L.B.A. e o SERÁS, em atividades marcadamente assistenciais, embora já com certa preocupação
de superar o mero assistencialismo.
Aqui poderíamos perguntar-nos: não se deveriam precisamente àquela atitude conservadora, de orientação
ética, a falta de criatividade dos Marianos neste período
e o progressivo eclipse do marianismo em Natal a partir
de 1945? Em todo caso, o Movimento não nasceu da cúpula diocesana, nem das fileiras dos “legionários da fita
azul”, mas da jovem Ação Católica. Não só houve uma
descontinuidade entre Movimento e marianismo, mas,
também, o início daquele marcou o começo do eclipse
deste.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
427
2. INÍCIO DO MOVIMENTO: 1945 A 1950
Como vimos na I Parte, foi nos anos de 1945 a 1950 que
teve início e se definiu a FASE URBANA do Movimento, e
amadureceu a ideia de um “serviço rural”, concretizada
em 1949, com a fundação do Serviço de Assistência Rural. Este período inicial do Movimento merece especial
atenção, embora baste, aqui, sob diversos aspectos, sintetizar o que já vimos nos Capítulos I a III.
1) A Cidade - Trampolim da Vitória conhecera, nos anos
de 1942 até o fim da guerra, um surto populacional, por
imigração, nunca visto em sua história, decorrente das
novas oportunidades de emprego e biscate fácil que o
funcionamento das Bases Aérea e Naval e, mais que tudo,
a presença das tropas americanas, sediadas ou em trânsito, ofereciam à população. Com o fim da guerra, a Cidade
caiu verticalmente, em termos de emprego, de biscate e
de circulação de dinheiro, enquanto permaneciam elevados o custo de vida e o fluxo imigratório. Os problemas
sociais, como os jornais da época o demonstram, apresentavam tal gravidade, que se pode muito bem falar em
situação de emergência. Esta situação, aliada ao fato da
retirada da Legião Brasileira de Assistência da assistência
direta individual, constituiu, sem dúvida, uma ocasião
para a arrancada da Ação Católica para o campo social.
Explica, também, em parte, o tipo de obras e atividades
empreendidas na Cidade de Natal.
Dissemos, no Capítulo II, que a FASE URBANA do Movimento se caracterizou pelo trabalho social desenvolvido
pela Ação Católica nos novos bairros que iam surgindo
na periferia da Cidade. Isto, a partir de 1945. Acontece,
428
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
porém, que os rapazes e moças da Ação Católica já lá
estavam presentes antes de 1945. O que os movera?
A constatação da ausência da Igreja nas áreas suburbanas
de imigração. Através de seus “comandos missionários”,
desenvolviam, de acordo com a finalidade específica da
Ação Católica, um trabalho religioso, já então chamado
missionário, o que não deixa de ser sugestivo. O mesmo se
diga da maneira como foi assinalada a presença da Ação
Católica naquelas áreas: não pela edificação de templos,
mas pelo trabalho missionário e, a partir de 1945, também
pelo trabalho social. No plano religioso, parece-nos ser
este o primeiro fato a deixar entrever uma mudança de
perspectiva ou orientação pastoral. “Mais valem igrejas
vivas do que igrejas de pedra!” E a própria “Nova Catedral , inacabada e adaptada para abrigar alguns setôres
do SAR e o Secretariado de Pastoral, transformou-se em
símbolo de um Movimento que passou a ser admirado,
não pelos templos que construiu, mas pelo que realizou
em vez da edificação de templos.
Perguntado, em entrevista, sobre o que motivara este
trabalho nos bairros da Capital, D. Eugênio assim se
definiu: “O que pesou no início do trabalho na Cidade foi
a necessidade de educação do povo pobre e, depois, prever para o futuro. Sabendo que a cidade só podia crescer
numa direção — entre o morro e o rio — então nos preocupamos em instalar núcleos de evangelização, dado que
a pastoral cia Cidade era a pastoral mais atrasada da Diocese... E como não podíamos agir na estrutura pastoral
— não tínhamos as paróquias, nem eu era bispo — então
procuramos agir de outra maneira, criando núcleos sociais que fossem também núcleos de irradiação religiosa”.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
429
Esta preocupação pelo pobre, pelo marginal, é uma constante no Movimento. E este sentido de previsão, este
sentido do futuro (religioso) encontramo-lo desde os primeiros anos de sacerdócio de D. Eugênio. Que a ação social na periferia da Cidade tenha, em parte, constituído
uma espécie de válvula de escape de um desejo de renovação pastoral que não encontrava eco na cúpula diocesana
de então, parece não deixar dúvida.
Ao lado, porém, desta função um tanto instrumental
da ação temporal com respeito à ação especificamente
religiosa, observamos, neste período, da parte da Ação
Católica, de acordo, aliás, com a orientação nacional, um
esforço de reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Não
que antes ninguém lhe tenha prestado atenção. Observase, porém, por volta de 1945, especialmente a partir da
I Semana Diocesana de Ação Católica (outubro de 1945),
uma relação íntima entre o trabalho de reflexão sobre a
doutrina social e o esforço de aplicação desta na solução
dos problemas da Cidade. Através da pena do jovem advogado Dr. Otto de Brito Guerra, esta preocupação se reflete claramente no próprio Diário A Ordem. O contraste
entre a realidade social e os valores sociais cristãos é, com
frequência, posto em relevo. Este fato é fundamental
para a compreensão do Movimento no que se relaciona
com suas motivações específicas e sua atitude em face da
mudança.
E A Ordem nos dá, neste período, uma imagem da
Igreja bastante diversa da dos anos de 1940 a 1945. Aos
“inimigos” da fé e dos costumes, da primeira metade dos
anos 40, substituem-se outros: a miséria, a ignorância,
o desemprego, a falta de escola e assistência médica, o
430
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
menor delinquente ou abandonado, e o abandono religioso. Tratar- se-ia de uma mera substituição de “inimigos”, dentro de uma orientação ética, voltada mais para
os efeitos do que para as causas dos males sociais? Em
grande parte, sim. Mas, já se observa que, de uma atitude de defesa, a Igreja começa a ser mais agressiva, mais
empreendedora. Por outro lado, pelo fim dos anos 40, já
havia desaparecido quase por completo aquele tom trunfalista: do ressalto da “imponência” e “brilhantismo” das
recepções, comemorações, concentrações, procissões...,
promovidas pelas “forças católicas”, o jornal passa a
dar atenção ao trabalho, muitas vezes desapercebido,
de pequenos grupos de Ação Católica, na periferia da
cidade. As atenções voltam-se para a população social e
religiosamente marginalizada. Vemos, nisto, mais uma
influência da Ação Católica em A Ordem, do que uma
mudança de perspectiva dos marianos. Estes, provavelmente devido à atitude de que falamos anteriormente
e à falta de renovação de liderança, não conseguiram
acompanhar o novo compasso marcado pelos jovens da
Ação Católica.
Como nos bairros da cidade, assim também no que se
relacio na com o meio rural o primeiro passo concreto
situou-se no plano estritamente religioso: foram os encontros de um grupo de “angustiados” ou, como diz D.
Eugênio, “de alguns sacerdotes preocupados com a necessidade de se unirem para melhor exercerem sua ação
apostólica”1
Sobre as razões que levaram este grupo de “angustiados” a voltar-se para os problemas sociais do homem do
campo e a fundar o SAR, D. Eugênio assim se exprimiu
ALCEU RAVANELLO FERRARO
431
em sua entrevista: “Foram razões de preocupação pela
situação do homem do meio rural. No início elas não
eram tão especificadas. Havia uma angústia pelo problema do homem. Não se sabia bem o caminho a percorrer.
Tinha-se claro o objetivo, mas não todos os meios para
atingi-lo.”
De fato, observamos que o surgimento desta preocupação pelos problemas do meio rural teve suas raízes: 1)
na relação de causa-efeito que os pioneiros do Movimento
faziam entre os problemas do campo e certos problemas
da Cidade (agindo como causa centrífuga, as precárias
condições de vida no interior expeliam o homem, e a
Cidade, recebendo sempre novas levas de migrantes, via
agravados seus problemas); 2) naqueles encontros dos “angustiados”; 3) na confrontação que se começava a fazer
entre valores sociais cristãos e realidade temporal. Foi assim que a ideia de um “serviço rural” se concretizou com
a fundação do SAR em 1949.
2) Considerando globalmente as obras sociais empreendidas na Capital, neste período, como, aliás, em
toda a fase urbana, não podemos dizer que tais obras
representem uma ação inovadora, isto e, orientada para
a transformação social. Constituem antes um esforço de
remediar uma situação. Neste sentido, corresponderiam
melhor a uma orientação ética ou conservadora.
Contudo, uma observação mais acurada de certos
fatos e tendências nos aconselha a não precipitar tal
conclusão. Com efeito a nítida descontinuidade entre
o Movimento e o marianismo, o carácter de emergência de muitas obras, a pouca experiência dos pioneiros
no campo de ação social, a ausência de uma atitude de
432
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
resistência as musas efetivamente em curso, o aspecto
de novidade se não de inovação, de certas iniciativas (a
fundação da Escola de Serviço Social com o objetivo de
superar o assistencialismo e o empirismo na ação sociala experiência dos Centros Sociais e do Serviço Social de
Comunidade última palavra, então, em Serviço Social; o
ensino primário gratuito nas áreas ainda não integradas
no processo urbano): tudo isto, enfim, especialmente se
considerado a luz de toda a história do Movimento, parece representar os primeiros sintomas de uma mudança
de orientação (atitude e ação) no campo social.
Semelhante, os primeiros planos para o meio rural
mostram tão claramente que a equipe fundadora do SAR
não tinha noção do meios, isto é, de como realizar a recuperação, o soerguimento a redenção do homem do campo,
que, se houvesse conseguido concretizar sua primeira
ideia (a da “volante da saúde”), ideia alias, importa da comovo de novo, o Serviço de Assistência Rural talvez não
tivesse ido além do que seu próprio nome diz: assistência. Contudo, estes primeiro projetos marcadamente assistenciais se olhados a luz da história do Movimento,
parecem resultar mais de como fazer (foi a época de busca
das primeiras luzes), do que de uma tomada de posição
em face da mudança.
Foi o período em que os pioneiros do Movimento tomaram consciência de certas mudanças em curso. E o que
nos sugere a analise da documentação de D. Eugênio.
Efetivamente a consciência de viver numa época de mudanças de rápidas e profundas transformações, numa
fase de transição, numa encruzilhada da história, é uma
constante no pensamento de D. Eugênio. Esta consciên-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
433
cia encontramo-la já em seu primeiro ano de sacerdócio,
no documento mais antigo que tivemos em mão (1944).
“Toda época de transição é sempre cheia de apreensões,
de cuidados, de ansiedades. E nossa Cidade em vertiginosa carreira muda de aspecto costumes novas atividades,
novos interesses. Maiores responsabilidades para vós”2.
E, dois anos mais tarde, observava. “Com meridiana clareza sentimos a honra de viver uma época de transição,
prenhe de responsabilidade, e percebemos em nossas
mãos uma parcela do peso deste destino. E maior é nossa
glória, pois somos homens do espírito, cujo ofício paira
acima das contingências do mundo. Não nos move o brilho do ouro nos objetivos comerciais ou a embriagues do
mando nas metas políticas. Nosso campo paira acima,
nas regiões do espírito. Somos homens do amanhã. Por
isso creio ser natural a incompreensão diante do sacerdote... (Referência a reação, na Cidade motivada por um
sermão em que falara sobre a reforma agrária? ) A Igreja,
no Brasil, tem, de maneira especial, tremenda responsabilidade3. E, num sermão de 1948, encontramos, com
a mesma clareza! a consciência de viver numa “época de
transição”, “numa encruzilhada da história”4.
Esta consciência de viver numa época de transição
e, consequentemente, de responsabilidades, já encontrada no alvorecer no movimento e, com maior clareza e frequência, nos anos seguintes, parece constituir
o fato mais importante na origem do Movimento e na
sua evolução no plano das atitudes, isto é, no desenvolvimento de uma atitude favorável à mudança, à transformação social.
434
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
3) Da análise feita, podemos tirar algumas conclusões
com relação ao período inicial do Movimento.
a — O Movimento foi primeiramente religioso. Tanto na
cidade como no interior, seus primeiros passos situaramse no campo religioso e foram motivados por um desejo
de renovação pastoral.
b — O surgimento do Movimento social esteve intimamente relacionado: a) com a própria realização do
objetivo específico (religioso) do grupo, o que deixa
transparecer uma certa visão instrumental do temporal
com relação ao religioso, própria de uma atitude éticoconservadora, e 2) com a “descoberta” dos valores sociais cristãos (Doutrina Social da Igreja) e a verificação de
contradições existentes entre estes valores e a realidade
social, no que já parece esboçar-se uma atitude proféticoinovadora.
c — Após esta breve defasagem inicial, o Movimento aparece como um todo: religioso e social, ao mesmo
tempo.
d — Os pioneiros do Movimento agiram, tanto no
setor religioso como no temporal, impelidos por uma
mesma motivação fundamental, isto é, motivados pelos
valores do grupo religioso: pelo desejo de difundir os valores religiosos e de concretizar no temporal os valores
sociais do grupo. Esta preponderância de valores sobre
interesses aparece claramente da parte dos iniciadores
do movimento.
e — No plano religioso, especialmente se consideramos o tipo de trabalho missionário desenvolvido nos novos bairros da Capital, aparecem claros indícios de uma
atitude e ação de carácter profético (inovador).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
435
f — No plano temporal, as obras e atividades empreendidas ou apenas programadas neste período parecem
corresponder melhor a uma ação de tipo ético (conservador). Contudo, especialmente se visto a luz de toda a
história do Movimento, uma série de fatos e tendências
apontados em nossa análise, entre os quais, a consciência clara, da partede D. Eugênio, de viver numa época
de transição e das responsabilidades dai decorrentes, a
ausência de uma atitude contrária a mudança, a confrontação entre valores sociais e realidade temporal, deixam
entrever um esboçar-se de uma atitude de aceitação da
mudança (atitude profética ou inovadora, porque motivada por valores). Esta tendência inicial aparecera mais
claramente a luz dos fatos posteriores.
B. AS DUAS FASES RURAIS: 1951 - 1965
Na parte A, fixamos nossa atenção sobre o quinquênio
imediatamente anterior (1940 a meados de 1945) e sobre
a fase inicial do Movimento (meados de 1945 a 1950), antes, portanto, do início propriamente dito das atividades
do SAR, cuja funcionalidade ao desenvolvimento foi confirmada pelos dados da verificação empírica a que as submetemos na II Parte. Este é, portanto, o período crucial
também para a verificção da III hipótese. Ênfase especial
daremos à análise da documentação de D. Eugênio, especialmente da dos anos 60 (II FASE RURAL), onde os documentos são mais abundantes.
436
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
1. MUDANÇA — NORMA DE AÇÃO
Observamos que, já em 1944, D. Eugênio manifestava
uma consciência clara de estar vivendo numa fase de
transição, de mudanças. Em muitos casos, porém, mais
do que de constatação de transformações de fato em curso na região, “mudança”, “transição”, “encruzilhada da
história” representam identificação de tendências de âmbito muito mais vasto — mundial. Trata-se de sinais dos
tempos. Assim, por exemplo, quando adverte: “Constitui
erro dos mais graves não entender os tempos”5. “Muita
gente não compreendeu a mudança por que está passando o mundo”6. Ou então, quando afirma: “Vivemos um
período de transição. A mudança em si não encerra malícia ou bondade. O rumo por onde ela nos leva contém o
segrêdo da construção de uma nova ordem ou o germe da
destruição. Para ser possível liderar para o bem uma encruzilhada da História, necessário se faz compreendê-la
com a inteligência de homens que tenham a sensibilidade
da hora presente. Não se podem aguilhoar fatos sociais.
Eles são irreversíveis e, em si, essa constatação não nos
deve intimidar. Temor nos pode causar, e muito, quando
os homens não são capazes de distinguir a necessidade de
mudanças que os tempos exigem7.
Estas últimas palavras — “necessidade de mudanças
que os tempos exigem” — nos chamam a atenção para
outro aspecto de extrema importância: para D. Eugênio,
“época de mudanças” representa também e, de modo
especial a partir do fim dos anos 50, principalmente uma
norma de ação. “Podereis transformá-lo (o ambiente)’,
dizia ele já em 1944 às militantes da J.F.C.8. E, em 1961:
ALCEU RAVANELLO FERRARO
437
“Não se esqueça (ouvinte) que esses fatos sociais que estamos presenciando são irreversíveis. Por exemplo, ninguém deterá a marcha da sindicalização rural. Ninguém.
A predominância do social e a integração no comunitário são características de nossa época...”9. Ora, no que
tange ao Estado e mesmo a outras áreas do país, pelas
mudanças apontadas — a sindicalização rural e a organização de comunidades rurais — eram precisamente
o SAR e ele, D. Eugênio, os principais responsáveis! Importa “aceitá-las de ânimo alegre”, dizia ele poucos dias
antes da I Convenção Nacional dos Sindicatos Rurais10.
E, por ocasião do I Congresso dos Trabalhadores Rurais
do Rio Grande do Norte: “A mudança virá, de qualquer
maneira. Devemos trabalhar para que essa mudança venha
cedo”11. Por conseguinte, mais do que de simples aceitação da mudança, trata-se de iniciá-la, promovê-la, apressá-la. “Época de mudança” é, para D. Eugênio, um conceito antes de tudo normativo, um programa de ação.
2. CRÍTICA DA ORDEM EXISTENTE E AUTENTICIDADE
EVANGÉLICA
Intimamente relacionada com a consciência de viver
numa época de mudanças, de transição, como foi acima
definida, está sua visão crítica da sociedade ou da ordem
existente, crítica esta que atinge também a própria ordem religiosa.
438
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Repudia inúmeras e tantas vezes o capitalismo liberal,
quantas comunismo. Sempre que fala de um, reserva uma
“dose” para o outro. O capitalismo liberal “contém em si
o germe vivo do comunismo” — afirma êle. E prossegue:
“As injustiças sociais de patrões, de industriais, de proprietários, clamam aos céus”12. Noutra ocasião, falando da
posição dos cristãos diante da realidade social, afirmava
que esta devia ser de “repúdio firme e corajoso ao comunismo ateu, sem, entretanto, compactuar com as injustiças
ou silenciar diante dos poderosos”, e, reconhecendo não
ser sempre fácil entender certos aspectos da Doutrina Social da Igreja, assegurava que a atuação desta constituía
um esforço “autenticamente cristão”13. Ou ainda: “Nem
(ser) inocente útil que serve à causa do marxismo, nem
refratário às necessárias reformas, mas ser cristão autêntico”14. Referindo-se ao I Congresso de Trabalhadores Rurais do Estado, observava: “O Congresso enseja, também,
tornar claro que, se o comunismo é contra o Evangelho, o
capitalismo liberal também o é. Não é justo que alguns
possuam tudo, e a grande maioria viva na miséria. O que
se deve por justiça, não se cumpre por caridade. Desse
modo, as relações entre proprietários e assalariados devem estar dentro da Lei e não dependerem da bondade
pessoal”15.
Insurgindo-se contra o comércio do voto e o sistema
de voto no “cabresto”, afirma categoricamente que isto
“constitui nefando comércio e punhalada mortal ao regime democrático”. Os eleitores são “inteiramente livres
e independentes, pessoas humanas e filhos de Deus; nunca,
escravos de patrões ou chefes políticos. Essa sujeição e
um aviltamento e uma vergonha”16.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
439
A propósito do texto bíblico: “Porque não és quente
nem frio, estou a vomitar-te de minha boca”, insiste na
autenticidade dos que se dizem cristãos e exemplifica:
“Obrigar o pobre a vender o algodão na folha, negandolhe propositadamente o credito, e uma falta de caridade.
Obrigá-lo a vender seu produto por um preço inferior
ao preço corrente é como se alguém retirasse dinheiro
da bolsa alheia. Diminuir na balança é tão criminoso
como ir roubar a noite”. (Trata-se de sistemas não raro
utilizados por empregadores rurais). E pergunta: “Como
é possível haver cristãos que se opõem a sindicalização
rural de seus operários? Pode comungar um homem que
diminui o peso quando compra algodão de seus moradores, sem que antes se decida a restituir”17? E, noutra
palestra: Dizer-se católico pode ser diverso do que ser
católico”18.
“Somos lima imensa massa de pobres — dizia D.
Eugênio em 1963, referindo-se ao seu Estado — e se observa um rápido processo que se poderia denominar de
conscientização. O homem toma consciência de sua dignidade, de seus direitos, não se contenta em ser objeto de
práticas caritativas quando se trata de justiça a ser exercida. As Escolas Radiofônicas e os Sindicatos Rurais são
responsáveis por uma parte desse processo de transformação. Há, também, em nossa Diocese profundas mudanças no campo social, político, cultural, econômico e
religioso. Há cristãos que se conservam ligados a estruturas de uma sociedade em desintegração, e não entendem
muitas posições assumidas pela Arquidiocese em favor
de um cristianismo autentico. Há cristãos só de título,
e cristãos autênticos que procuram viver o evangelho e
440
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
fazê-lo presente à nossa realidade. Uma presença viva e
dinâmica dando preferência à Verdade sobre a conveniência e amizades humanas e terrenas... Devemos ser uma
Igreja dos pobres e uma Igreja que participe de nossa realidade... Vivemos uma época de rápidas transformações.
Necessitamos estar presentes e atuar no dia que passa
com os olhos voltados para o futuro. O Evangelho é o
mesmo para todos os séculos, mas nós, a Igreja, somos
responsáveis para que os homens de hoje entendam a
mensagem do Evangelho eterno. Devemos estar unidos
a Cristo e somente com ele ter compromissos”19.
“Igreja dos pobres” é, sem dúvida, um conceito conciliar. Lembre-se, contudo, que o Movimento nasceu como
um “movimento dos pobres”, dos marginalizados.
Por outro lado, este “dar preferência à Verdade” e este
“somente com Ele (Cristo, o Evangelho) ter compromisso” levam D. Eugênio a perguntas e afirmações extremamente graves. “É crista a liberdade de morrer de fome?”
— perguntava ele em 1961, por ocasião do I Congresso
Norte-rio-grandense do Trabalhadores Rurais20. E na véspara do Natal do mesmo ano, falando sobre “Natal e Pobreza” dizia “Se a mensagem (do Natal) nos fala de resignação e de conformidade, ela nos estimula (também) a
um esforço pela humanização, ao combate à injustiça...
Infelizmente o que encontramos com tanta frequência
é o enriquecimento progressivo de uns e a pobreza de
tantos que avançam no caminho da torne e da morte.
Pode chamar-se cristã esta sociedade? Vive nas lições do
presépio quem gasta fortunas em futilidades, quando,
próximo nasce na miséria um irmão do que veio ao mundo no estábulo de Belém”21?
ALCEU RAVANELLO FERRARO
441
Trata-se por conseguinte, de uma rejeição clara do
status quo resultante do sistema capitalista liberal (referindo-se ao meio rural, talvez dissesse melhor “sistema
semi-feudal”) em nome de uma preocupação de justiça e
de autenticidade evangelica, e de igual rejeição do comunismo como possível solução. Aparecem, também, evidentes de um esforço de desinculturação, de reencontro
com os valores cristãos em sua forma original: “Somente
com Ele (Cristo, o Evangelho) ter compromissos”. “Dizerse” e “ser” católico podem não significar a mesma coisa.
É o próprio conceito de católico, de cristão, que está em
jogo.
JUSTIÇA E MUDANÇA
Além das implicações de ordem estritamente religiosa
de que nos ocuparemos mais adiante, a crítica da ordem
social existente e o desejo de autenticidade evangélica
no plano temporal estão, como vimos acima, intimamente vinculados a uma preocupação pela justiça social.
Dissemos que, no começo, havia “angústia”. Houve, é
verdade, desde o início do Movimento, certa preocupação por questões de justiça. Lembre-se, por exemplo, o
sermão de D. Eugênio em 1947 sobre reforma agrária e,
por ocasião da I Semana Rural (1951), o desejo de fazer
aplicar no meio rural a legislação trabalhista. O contato
permanente com o meio rural e especialmente com os
“flagelados” e os “industriais” das secas de 1953 e 1958
fizeram com que esta consciência das injustiças se tor-
442
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nasse mais clara, e se avolumasse aquilo que, em entrevista, D. Eugênio nos definiu como “revolta contra a injustiça”. Foi assim que aquela “angústia” inicial pela
situação do homem do meio rural, que motivou toda
a série de atividades da I FASE RURAL, se transformou
paulatinamente em “revolta” e “luta” contra a injustiça,
originando II FASE RURAL. Há nisto, sem dúvida, uma
evolução no plano das motivações: uma progressiva tomada de consciência do valor-justiça e de suas implicações
práticas para o cristão.
Este fato foi decisivo na evolução do Movimento.
Uma preocupação pela justiça social — estamos sempre
no plano dos valores — poderia perfeitamente corresponder a uma atitude fundamentalmente conservadora:
insistência na conformidade do comportamento com
os padrões tradicionais de justiça, dentro, portanto, da
ordem tradicional, vendo, não na ordem existente, mas
na deviação desta, a origem dos males sociais. No plano
prático dificilmente se iria além de uma ação no sentido
de remediar os efeitos de tais deviações. Não parece ter
sido este o caso do Movimento de Natal, pelo menos no
que diz respeito à atuação no meio rural. Embora concebido inicialmente como uma obra tipicamente assistencial, o SAR, já nos seus primeiros anos de atividades
foi muito além da mera assistência e, com o avolumar-se
daquela “revolta contra a injustiça”, foi relegando para
um plano cada vez mais secundário sua preocupação
pelos “males-efeitos” e concentrando progressivamente
seus esforços no sentido de promover a erradicação dos
próprios “males-causas”, causas essas identificadas com a
própria ordem estabelecida, com a própria estrutura so-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
443
cial, especialmente a estrutura agrária, que D. Eugênio,
em seus pronunciamentos sobre o assunto, adjetiva de
obsoleta, arcaica, defeituosa, injusta, desumana, etc.
Como descrevemos amplamente no Capítulo III e
verificamos empiricamente na II Parte, o SAR, no plano
educativo, especialmente no que tange ao trabalho de
comunidade, não visava tanto a mera transmissão da cultura, quanto a inovação cultural, isto e, a transformação
do éthos social: concepções, valores, atitudes, padrões de
comportamento. É verdade: tudo isto se restringia, em
grande parte, ao âmbito da comunidade. Com o crescer
desta preocupação pela justiça social observamos dois fatos interessantes: 1) um intensificar-se é ampliar-se desta
dimensão inovadora da ação educativa, agora 110 sentido
da “luta pela mudança de estruturas” (tal foi o sentido do
trabalho de “conscientização” e “politização” empreendido pelo SAR), e 2) um redimensionamento do próprio
trabalho de desenvolvimento de comunidade, o que aparece claramente destas palavras de D. Eugênio: “A comunidade é força de pressão para mudança de estrutura. Não
se entende um trabalho de desenvolvimento de comunidade que fique a atender efeitos sem atingir suas causas.
Estaria fora da realidade sociológica do Nordeste quem
se contentasse em organizar clubes, grupos artesanais,
maternidades, etc., sem integrar todo esse trabalho em
metas comuns que visem às causas que determinam a
promoção dessas comunidades. A destruição de uma estrutura obsoleta, injusta e, portanto, desumana é objetivo indispensável em um trabalho de desenvolvimento
comunal”22.
444
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Observa-se, também, um redimensionamento das
próprias virtudes de caridade e justiça. “Não há verdadeira
caridade sem justiça”, afirmava D. Eugênio, por ocasião
da Semana Nacionalista, no Recife23. E, referindo-se ao
processo de conscientização no estado e acrescentando
que as Escolas Radiofônicas e os Sindicatos Rurais eram
responsáveis por uma parte desse processo de transformação, observava: “O homem toma consciência de sua
dignidade, de seus direitos, e não se contenta em ser objeto de práticas caritativas, quando se trata de justiça a
ser exercida”24. Não compreender que “hoje não é mais
suficiente uma esmola ou uma atitude paternalista” seria incorrer em erro dos mais graves: o de “não entender
os tempos”25. E, noutra ocasião: “Deve, então, agir a Igreja e o procura fazer de duas maneiras: uma, paleativa,
apagando o incêndio — é a função do bombeiro (referese à assistência aos flagelados das secas), e outra, a longo
prazo — plano de mudanças de estruturas... Os paleativos
atendem à caridade imediata. Veem mais o efeito do que
as causas. Sem menosprezar o que sofre no momento,
vem lutando a Igreja para uma melhor estrutura social,
cujas falhas atuais são a maior causa de nossos males”26.
Como vimos, de onde quer que se parta, chegamos
sempre ao mesmo ponto: ao avolumar-se de uma preocupação pelas causas dos males sociais, ao emergir de uma
atitude profética ou inovadora com relação à ordem social tradicional. Trata-se de lutar pela construção de uma
nova ordem social, que melhor espelhe os valores sociais
cristãos. Isto é típico de uma atitude inovadora: aceitação (e promoção) da mudança, em nome dos valores do
grupo.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
445
4. MUDANÇA E DESENVOLVIMENTO
Vimos, de um lado, que “a luta pela mudança de estruturas” nasceu da tomada de consciência dos contrastes
existentes entre a realidade socioeconômica da região
e certos valores sociais cristãos, como liberdade, independência e especialmente justiça social. Por outro lado,
como veremos neste parágrafo, o problema da mudança de estruturas foi enfocado em íntima conexão com
o almejado desenvolvimento: como condição de desenvolvimento. É o que aparece, por exemplo, das palavras
de D. Eugênio em sua palestra sobre o Nacionalismo:
“Indispensável, na luta contra o subdesenvolvimento, a
mudança de estruturas... Eis o que pensa a Igreja. Eis o
que faz a Igreja... em favor de um dos postulados básicos
do sadio nacionalismo: a luta contra o subdesenvolvimento”27.
Seja nos objetivos e atividades do SAR, seja nos documentos de D. Eugênio, muitas são as mudanças visadas
e outros tantos os seus nomes: organização de comunidade, educação de base, conscientização, politização, reforma agrária, cooperativismo, sindicalismo, etc. Todas,
porém, particularmente nos anos 60, são enfocadas dentro de uma perspectiva de desenvolvimento. O desenvolvimento passa a ser encarado como a mudança por excelência, para a qual as demais devem conduzir. Assim, em
seu já citado discurso de agradecimento pela Medalha
do Mérito Agrícola (setembro de 1962), D. Eugênio reivindicava para a região e o país a “revolução agrícola por
que passaram os países desenvolvidos” e apontava como
meios: “o fim da rotina” — vitória esta simbolizada pelo
446
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
trator, e rotinas que vão desde a enxada até às práticas
políticas nas comunas do interior — e “o fim do isolamento”, “a luta contra o isolamento”, através de cooperativas e associações de classe, autônomas e livres da
tradicional “praga” do paternalismo. Tudo isto, como
condição de desenvolvimento28.
Em Fundamentos da Política Social para o Desenvolvimento Nacional (1961), D. Eugênio chama de simplista a
teoria segundo a qual a industrialização por si mesma
acarretaria uma reformulação da estrutura agrária e
afirma: “Para o progresso do Brasil é, hoje, tão importante multiplicar fábricas, como realizar uma corajosa
e viril reforma agrária”. Enquanto alguns encaravam a
mudança da estrutura agrária como uma mera decorrência do desenvolvimento industrial, D. Eugênio encaravaa como uma pré-condição de desenvolvimento. “Não é
possível um autêntico desenvolvimento — prossegue D.
Eugênio — sem uma classe operária consciente e livre...
Sonhamos com uma floresta de chaminés, mas detestamos a proletarização de nossos irmãos. Queremos que
surjam fábricas, mas que se eleve concomitantemente o
nível cultural, social e espiritual da região”29.
Nestes e outros pronunciamentos, são apontadas diversas mudanças — industrialização e reforma agrária;
planejamento e honestidade administrativa; floresta de
chaminés, sem proletarização; fábricas e elevação do nível cultural, social e espiritual — todas, enfim, em função do desenvolvimento, mas de um desenvolvimento
que não seja uma “escrescência” ou “geração de monstro”, nem um mero “per capita” ou “quociente de riqueza”, mas que represente “bem-estar comum”, que tenha
ALCEU RAVANELLO FERRARO
447
o homem como ponto de convergência, levando-o a
“um crescimento harmônico de todas as suas potencialidades”30.
Trata-se, por conseguinte, de um conceito valorativo de
desenvolvimento: aceitação da luta em prol da mudança
e do desenvolvimento, motivada pelo desejo de concretizar certos valores sociais do grupo religioso.
5. DESINCULTURAÇÃO
Na introdução definimos como inculturação o processo
pelo qual um grupo ou sistema cultural se torna de tal
maneira parte integrante de outro grupo ou sistema
cultural, a ponto de perder, total ou parcialmente, sua
originalidade própria, e por desinculturação c processo
inverso, pelo qual um grupo ou sistema inculturado redescobre seus valores próprios, libertando-os das amarras da tradição local e readquirindo assim sua originalidade própria.
De nossa análise sobre a Região e a forma de religiosidade aí existente por volta de 1945, resultou tratar-se
de uma “Região tradicional e tradicionalmente católica”,
ou seja, de uma predominância de um catolicismo de
tradição, de uma Igreja pelo menos semi-inculturada,
como forma típica de religiosidade na região, como,
aliás, em todo o país.
Nos Capítulos I e II e no presente Capítulo, observamos que, em meados dos anos 40, em meio a um catolicismo de tradição, tomava em plano nacional, uma nova
448
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tendência, de tipo ético-conservador como resposta a
uma série de transformações, ou melhor a certos problemas sociais e pastorais de alguma forma vinculados
as transformações sociais em curso no país tendência
esta, incarnada no então criado Departamento de Defesa
da Fé e da Moral.
Vimos, também, através de A Ordem, como, em Natal esta nova tendência foi seguida pelos marianos, com
manifesto apoio da cúpula diocesana 1946, criou idêntico Departamento de Defesa da Pé e da Moral, confiando-o à direção do então Pe. Eugênio.
Os fatos, porém, mostraram claramente como o Movimento, embora surgido numa região fortemente marcada por um catolicismo de tradição e sofrendo, na fase
inicial de sua atuação no campo social, influencia desta
nova tendência ético-conservadora, deixa entrever, já em
sua origem e primeiros passos, um esboçar-se de uma
atitude diferente em face do temporal e do religioso.
Ao lado de outros indícios a descontinuidade entre Marianismo e Movimento e o começo da decadência do
primeiro e da projeção do segundo parecem indicar que
ambos os grupos eram animados por atitudes fundamentalmente diferentes.
Que com relação ao meio rural, o movimento represente um esforço de transformação social – atitude a ação
em favor da mudança da ordem tradicional – o estudo
histórico, a verificação empírica e os pronunciamentos
de D. Eugênio o demonstram claramente. O problema
é saber se isto constitui uma forma de acomodação, de
oportunismo, ou se é fruto de um processo de desinculturação de valores do grupo.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
449
Sem lembrar a influencia que tiveram valores especificamente religiosos sobre a ação temporal, vimos como
o Movimento Social de Natal nasceu da descoberta, da
tomada de consciência de certos valores com a realidade
temporal, surgiu uma atitude em favor da transformação
da ordem social tradicional, com vistas ao desenvolvimento e a concretização daqueles mesmos valores, especialmente o de justiça social. E isto corresponde exatamente ao fenômeno que chamamos de desinculturação
e a atitude definida como inovadora ou profética.
Os depoimentos e fatos que passamos a relatar ajudam
a compreender o fenômeno de desinculturação.
Em depoimento já citado no Capítulo 1.1, Mons. Expedito, referindo-se ao seu “Antigo Testamento”, assim se
exprime: “Nesse tempo o vigário era o capelão de dois ou
três por cento do seu rebanho. O tempo que lhe sobrava
das “obrigações”, dedicava-o ao intercâmbio de visitas de
cortesia com as “autoridades” do lugar. Estávamos dentro da estrutura... Apesar de miseráveis, o povo pobre
nos Considerava ricos, porque andávamos de braços com
estes”. E, depois de recordar a “marcação” de que fora
alvo, por volta de 1930, o então sacristão da Catedral,
conhecido por “Seu Graça”, por se ter fiuado ao sindicato, continua: “Estávamos comprometidos, instalados
na estrutura. O padre era envolvido pela estrutura. Estávamos do lado dos ricos. Hoje, receber coisas gratuitamente e graciosamente tem “água no bico”! Agradeço a
Deus ter mudado. As atividades dos que toparam a parada
é de independência... Padre X não teve medo de enfrentar
uma das estruturas mais terríveis, como a de seu município. Passamos a perguntar-nos: “Com que cara você
450
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
recebe o chefe político e com que cara você recebe o pobre matuto?”.
Este e outros depoimentos nos levaram a formular
uma série de perguntas a D. Eugênio.
— Acha justo dizer que a Igreja, no passado, estava
comprometida com os ricos?
— Não creio que poderíamos dizer assim. O que havia
era menos consciência da situação, da responsabilidade
diante da classe dos pobres Na hora em que se tomou
consciência da responsabilidade diante da classe dos
pobres, tomou-se também consciência de que se podia
fazer alguma coisa. Isto veio imediatamente. Eu tenho a
impressão que é mais certo dizer que não estava do lado
dos ricos, porque os pobres também estavam do lado dos ricos: nunca ouvi um nobre que reclamasse. Havia um bloco
informe, sem consciência. Os pobres não ficaram mais do
lado dos ricos, quando tomaram consciência de seus direitos. Esta consciência quando tomou consciência que podia e
que devia fazer isto. Dois pontos: que podiam e que deveria. O “que podia” se deve em grande parte ao trabalho
do SAR.
— Houve alguma mudança nas relações entre clero bispo e sacerdotes - e poder político-econômico no meio
rural?
— Continuando o respeito mútuo, acentuou-se muito
o sentido de independência Quanto ao poder político, não
chegou a haver atrito aberto, mas houve áreas de atrito,
em virtude dos ataques que eram feitos aos métodos dos
políticos. Estas forças não se manifestavam em público,
a não ser uma vez, na Assembleia, e creio que foi mais
uma explosão de desespero, mas veladamente. Por exem-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
451
plo, diziam que não se via mais o bispo em procissões,
que a Igreja não cuidava mais de Igreja, mas do que não
era Igreja.
— Segundo seu modo de ver, a ordem tradicional era
ou não conforme com os princípios cristãos?
— Não houve ainda uma ordem que fosse cristã.
A ordem antiga, se tinha aspectos cristãos, tinha muitos
pontos que não tinham absolutamente nada de cristão.
O que havia muitas vezes era um abuso do nome de cristão, para acobertar coisas que não eram cristãs, sob pretexto de vantagens cristãs. Não havia nenhuma autenticidade cristã concreta.
— Se a promoção das mudanças de estrutura implicasse na perda, para a Igreja, de parte da classe patronal,
a Igreja continuaria nesta linha?
— Aí não depende de ganhar ou perder. Aí depende só
de uma questão de Verdade. Não teria nenhuma dúvida.
Isto aconteceu, por exemplo, em Santo Antônio: quando o vigário dizia que os ricos se estavam afastando da
Igreja e deixando de contribuir para a manutenção da
paróquia, ninguém discutiu um segundo. Era certo o
caminho? Era! Então a questão de perder ou não perder
a classe patronal era secundária. A Igreja não é a classe
patronal. Os mesmos direitos tem a outra classe...
Quanto ao fato do comprometimento da Igreja no passado, os dois depoimentos parecem, à primeira vista, contrastantes. De fato, coincidem. Mons. Expedito salienta o
fato do comprometimento anteriormente existente e do
posterior descomprometimento ou independência dos
que “toparam a parada”. D. Eugênio, por sua vez, não
nega propriamente o fato, mas a consciência do comprometimento anterior, e reconhece que, paralelamente à
452
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tomada de consciência desta situação, acentuou-se muito o sentido de independência da parte da Igreja. Ora, o
estado de inculturação consiste precisamente num comprometimento inconsciente, e o processo de desinculturação, num rompimento consciente com a redefinição
dada pela cultura local aos valores do grupo, numa afirmação destes valores em seu conteúdo original e, consequentemente, na independência do grupo com relação a
cultura local.
Evidentemente, não afirmamos que tenha havido uma
desinculturação geral e total, muito menos violenta.
Mas, a própria reação dos grupos que viam a Igreja como
guardiã e esteio da ordem tradicional demonstra claramente que o processo de desinculturação e independência foi relativamente intenso.
Diversas vezes D. Eugênio, em seus pronunciamentos, ao mesmo tempo em que afirma a posição de independência da Igreja, faz alusões claras às críticas e acusações movidas contra sua posição e o trabalho da Igreja.
Assim, per exemplo, em sua Palestra Dominical 22 de janeiro de 1961, dizia: “Certamente há quem deseje uma
Igreja e um clero presos aos limites de uma sacristia,
pois assim podem ficar livres na perpetuação das atuais
iníquas condições em que vivemos Para certos chefes é
preferível um clero que apenas ensine a rezar”, sem se
preocupar cm ajudar “seu irmão a aprender a ler e ser independente dentro de sua condição de filho de Deus. Devem ter muitas mágoas... os industriais das secas de um
clero que cumprindo fielmente seus deveres espirituais,
soube, também. defender seu rebanho contra inimigos
terrenos” (os aproveitadores das secas).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
453
E, em sua Palestra Dominical por ocasião da Páscoa de
1964: “Na vitória do Cristo ressuscitado surge uma Igreja livre. Seus compromissos são os aceitos por Cristo: a
Verdade e o Amor”. Nada poderá deter “a marcha livre
dessa Igreja que se identifica com o Cristo vitorioso” e
que, “quando sente ser sua missão despertar o pobre e
transformá-lo em forte, não se intimida diante do rico...
ou da incompreensão dos amigos”.
Por coincidência, estas últimas palavras precederam
de apenas dois dias o 31 de março de 1964. Embora não
nos seja possível medir todo o alcance do impacto do
novo Regime conservador-repressivo sobre a evolução
posterior do Movimento, nada impede de reconhecermos o alcance prático do processo de desinculturação
com referência ao período por nós estudado.
Concluindo este parágrafo, analisaremos um caso típico e documentado, ocorrido em 1962. Embora seja do
conhecimento público o fato, a pedido do vigário que
nos forneceu os documentos originais omitimos qualquer referência nominal de pessoas e lugar.
Trata-se do seguinte: O SAR pedira uma ambulância para a Maternidade N..., numa cidade do interior.
O vigário, informado de que a ambulância não seria entregue ao SAR, mas a ele pessoalmente, num domingo
após a missa de 11 horas (a mais frequentada!), poucas
semanas antes das eleições de outubro de 1962 (em plena Campanha de Politização), por um amigo pessoal seu
e candidato em campanha eleitoral, escreve ao dito amigo justificando sua “formal recusa” a prestar-se ao gesto
eleitoreiro, e pergunta: “Depois de tudo isso, meu caro
N, o Sr. me acha com cara de receber um favor de reper-
454
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
cussão política na sua campanha o eleitoral, do momento
em que nós divulgamos que “Consciência não se vende”
e “Voto não se compra”? Mais do que de ambulância,
nós precisamos - e os Bispos pediram — das reformas de
base, que o Parlamento conservador não quis votar este
ano, para fazer o jogo macabro das eleições por dinheiro,
e se manter mais 4 anos na omissão suicida. Continuo
seu amigo, mas antes, sou Pastor e Educador do rebanho
que Deus me confiou... (Veja a íntegra da carta no Apêndice III, Documento B.1).
Num domingo, dia de feira na cidade, no momento
preciso em que terminava a última missa da manha, a
mais frequentada, chegava junto à escadaria da igreja
uma comitiva de políticos em campanha eleitoral, para
fazer a entrega solene da ambulância. O vigário, que ainda estava na igreja, informado do fato, retirou-se imediatamente para a casa paroquial, para onde, então, se
dirigiu a comotiva enquanto o povo se comprimia junto
à porta e janelas, a oferta da chave da ambulância, respondeu secamente: “Não! Eu lhe escrevi _que não viesse!”
E, ao Prefeito local que lhe pedia um aparte: Pode, contanto que no me fale deste assunto!” Saindo por último,
o amigo candidato desabafou: “Você me matou de vergonha. Sei que você tem razão. Mas, se não for assim,
ninguém se elege!
“Os brasileiros — esclareceu o vigário, à noite, através
da amplificadora local - não foram educados para governar e continuam governando como nossos avós, que
foram donos de escravos. Até hoje só mudou nisso: não
compram mais escravos da África... Cometem toda sorte
de injustiças, fiados no dinheiro, porque o dinheiro pode
ALCEU RAVANELLO FERRARO
455
tudo. E no ano das eleições nós assistimos o triste espetáculo da procura de eleitores e votos a troco de extração de dentes, de consultas, de favores, de dinheiro e de
ameaças... Os padres não podem ficar com esse processo de
democracia tirana, porque é um pecado que brada aos
céus. Por isso, minha atitude é muito clara e desgosta a
muitos. Nada inventei da minha cabeça... Faço questão
de todo mundo saber que o vigário de N... é Pastor e educador do rebanho que Deus lhe deu e não se humilha a
nenhum grande da terra, por dinheiro ou favor. Enquanto
vida tiver, gritarei contra as injustiças e as misérias. Só
tenho compromissos com Nosso Senhor... Um dia, o povo
terá dinheiro e direitos, sem precisar tomar a bênção aos
grandes e sem vender sua consciência nas eleições...”
(Veja a íntegra, no Apêndice III, Documento B.2).
C — ATITUDE E MUDANÇA NO SETOR RELIGIOSO
1. FATOS E ATITUDES
A atitude de descomprometimento com o status quo e
de aceitação e promoção da mudança não se restringiu
ao setor temporal. Ao contrário, ela diz primariamente
respeito ao setor especificamente religioso. É o desejo de
autenticidade evangélica, de fidelidade ao Evangelho.
É a não-aceitação de outros compromissos que não os
com o Cristo, com a Verdade, com o Evangelho. É a dis-
456
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
cussão a respeito do próprio conteúdo dos termos “cristão” e “católico”. “É um outro mundo que surge — dizia
D. Eugênio aos Irmãos Maristas (esquema de palestra,
sem data) — e a Igreja não está presa a fórmulas humanas”. E, numa alocução de 1963: “O amor à tradição dos
homens não pode prejudicar o Evangelho e sua pregação”.
De outro lado, a ação temporal empreendida pelo
Movimento foi motivada não só pelo desejo de concretizar certos valores sociais, mas, também, e ultimamente,
pela vontade de difundir os próprios valores religiosos
do grupo. A ordem social tradicional, porque de injustiça
e subdesenvolvimento, constituía, na opinião dos líderes
do movimento, “uma barreira ao entendimento do Evangelho”. “O dinamismo social — afirma D. Eugênio na
já citada conferência: Uma Experiência Pastoral em uma
Região Subdesenvolvida — será sinal da Igreja para os homens do mundo em desenvolvimento, como a solicitude
de Cristo para com os pobres e enfermos foi sinal de sua
missão para os homens de seu tempo”.
Se, de fato, o dinamismo social da Igreja se demonstrou sinal inteligível e eficaz no meio rural, veremos
mais adiante. Por ora, antes de entrarmos na verificação
empírica de eventuais mudanças ocorridas no campo
religioso, passaremos a sintetizar alguns aspectos já vistos e a desenvolver outros, sempre com relação ao setor
religioso.
Já observamos como, tanto na Capital como no interior, o Movimento foi antes religioso do que social.
Com referência ao meio rural, desde o início das atividades do SAR (1951), a equipe que atuava junto ao “binô-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
457
mio escola-paróquia”, equipe esta composta de elementos da Ação Católica, procurou estimular e auxiliar os
vigários e seus auxiliares (“bonzinhos”, “pessoal que não
dava trabalho, mas que, também, não trabalhava”, no
dizer de uma Assistente Social) a elaborar planos tanto
de ação social como de ação pastoral.
O plano pastoral compreendia a fundação da Ação
Católica Rural (JAC — Juventude Agrária Católica). Embora independentes e com objetivos especificamente
diferentes, SAR e JAC desenvolveram sempre suas atividades em estreita colaboração. O SAR possibilitou o surgimento e a expansão de uma JAC aberta para o social,
e a JAC, por sua vez, como atestam os vigários e líderes
rurais, deu “espírito”, deu “alma” ao trabalho social nas
comunidades do interior. As comunidades de melhor
movimento social — nós mesmos o pudemos verificar —
são quase sempre as que contam com uma JAC atuante.
E estas são também as que apresentam melhor movimento religioso, as que contam com leigos de fato engajados no trabalho de evangelização.
Por outro lado, para muitos participantes, os treinamentos foram ocasião de verdadeira conversão religiosa.
A própria equipe encarregada dos treinamentos (toda
ela de elementos de Ação Católica visou não só treinar
pessoal para o trabalho social, mas, também, formar
apóstolos para o desempenho de uma missão ao mesmo
tempo religiosa e temporal. Destes treinamentos surgiram os primeiros líderes do movimento social nas comunidades do interior. deles saíram também os primeiros
missionários leigos que foram aos poucos substituindo
os “bonzinhos”. Este fato é fundamental na história do
458
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Movimento. Sem ele não se entende o Movimento. Aí
está um dos principais, senão o principal indicador dos
limites que dividem o Movimento e o Não-Movimento de
Natal. Vejamos mais detalhadamente este aspecto.
Como dissemos no Capítulo III.5.d, “líder” era, para
o SAR, um conceito bem preciso e restrito a um tipo —
um novo tipo — de liderança: líder natural, voluntário,
inovador, democrático, comunitário, solidário, missionário. Às duas formas tradicionais de liderança — o líder
autoritário e o líder paternalista, simbolizados respectivamente pelas figuras do “coronel” e do “patriarca” — o
SAR opôs simplesmente “O LÍDER”. De uma ou de outra
forma, tanto o coronelismo como o paternalismo representam — respectivamente para os que a exercem e para
os que são objeto de liderança — dominação e dependência. Vários sacerdotes que, segundo a expressão de um
vigário, viveram seu “antigo” e “novo testamento”, atestam que estas eram também as formas tradicionais mais
comuns de o vigário exercer sua autoridade. Talvez pudéssemos assim definir estas formas de liderança: “coronelismo clerical” ou “clericalismo autoritário” e “paternalismo clerical” ou “clericalismo paternalista”.
“Era um clericalismo de cabo a rabo” — confiou-nos
um sacerdote, referindo-se ao seu “Antigo” e começo do
“Novo Testamento”. “O leigo era tratado como um eterno menor”, observava outro. Nada de admirar que, sendo
orientado para comportar-se e sendo de fato reconhecido
como uma das “autoridades” locais, o sacerdote exercesse sua liderança à maneira daquelas “autoridades”.
O ponto a que queríamos chegar é o seguinte: o Movimento, da mesma forma que criou, no meio rural, um
ALCEU RAVANELLO FERRARO
459
novo tipo de liderança leiga (isto foi verificado na 2a
Parte), assim também impôs um novo conceito de autoridade e uma nova forma de liderança sacerdotal: a do
sacerdote-educador ou do sacerdote-líder (no caso: líder
- educador de líderes), por oposição às maneiras autoritária e paternalista ao exercer a liderança. É justamente
o grau de presença ou ausência desta nova modalidade
de liderança que permite distinguir entre Movimento e
Não-Movimento ou indicar o grau de integração no Movimento. A origem e a evolução deste estão intimimente
relacionadas com o surgimento desta nova forma de
liderança sacerdotal e leiga.
“Andávamos soltos na buraqueira da promoção humana!” comentou-nos um sacerdote, referindo-se aos
primeiros anos de atividades do SAR no meio rural.
E observou que, desde o início, pesara, sobre o clero
mais consciente, grande angústia: Será este realmente
o caminho certo?” Nas paróquias em que os vigários se
interessaram em encaminhar leigos para os treinamentos, deram continuidade a formação dos mesmos e lhes
foram efetivamente confiando responsabilidades, estes
líderes foram paulatinamente assumindo responsabilidades não só no setor temporal, mas também no setor
apostólico. Em tais casos, a própria atuação destes líderes
leigos contribuiu muito para reconduzir os vigários, depois de uma fase de intensa atividade social, cada vez
mais à sua função especificamente religiosa. Esta função,
porém, já não consistia na simples administração dos
sacramentos e na pregação dominical: a continuidade da
formação dos líderes já em ação e a formação de novos
líderes passaram a exigir sempre mais tempo.
460
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Por outro lado, os vigários que persistiram e na medida em que persistiram em exercer sua liderança de uma
forma autoritária ou paternalista: 1) ou continuaram —
eles e suas paróquias — na tradicional rotina, tanto no
plano temporal como no religioso, ou 2), quando se lançaram à ação temporal, foram, em grande parte absorvidos por obras marcadamente assistenciais, totalmente
centralizadas em suas mãos. No campo social, raramente
surgiram grupos e praticamente nenhum trabalho de
comunidade. No plano religioso, não floresceram nem
a JAC, nem outros grupos de carácter apostólico ou missionário: quando muito, algumas das tradicionais associações religiosas É verdade que alguns destes sacerdotes
consideram seu trabalho como “Movimento de Natal”.
Não parecem ser da mesma opinião os maiores responsáveis pelo Movimento. Ainda recentemente comentávamos com D. Nivaldo Monte o fato de duas paróquias
social e religiosamente estagnadas. “Os vigários são chefes
e vão líderes!” observou-nos o bispo.
É significativo este diálogo de um grupo de sacerdotes,
reunidos em círculo de estudos, por ocasião do Curso
de Extensão Universitária do Clero, realizado em Ponta
Negra, em janeiro de 1965:
— O padre, antigamente, era o manda-chuva do lugar.
Era padre, delegado de polícia, etc. Hoje, o sacerdote desenvolve grande atividade, mas não mais como coronel.
Houve uma mudança profunda de mentalidade. Muita
coisa mudou. Mudamos muito.
— O trabalho social aumentou a função sacerdotal: há
mais contacto, mais colaboradores no apostolado, e tudo
isto aumenta nosso trabalho sacerdotal. Hoje me sinto
ALCEU RAVANELLO FERRARO
461
mais sacerdote do que a dez anos atrás. Hoje, já vou entregando tarefas. Antigamente, não. Tinha tudo na mão.
— No colégio, deixei todas as matérias prediletas.
Fiquei só com as aulas de formação.
— Aos poucos estou passando as coisas para os leigos.
Em vez de aumentar minhas funções, vou passando para
os leigos. Tenho poucos leigos preparados. Mas vou me
preocupar com isto.
— É preciso sair da função para entrar na missão.
— Tudo isto é demorado. Toda formação é demorada.
Mas devemos andar nesta linha.
— Em ..., não me preocupo com a Maternidade. Em ...,
não tenho a quem confiá-la. Tem que haver esforço para
sair disto. Se entrar mais e mais, no fim fico absorvido.
Vamos aos poucos confiando as funções e ficando com a
missão. Ofereceram-me uma cadeira no Ginásio. Foi uma
tentação. Bom dinheiro. Emprego federal. Bom dinheiro
e aposentadoria. Custou-me muito não aceitar. Fiquei só
com as aulas de religião.
— Dom Eugênio mandou: “Fundem escolas!” Fundamos. Hoje ele diz: “Entreguem aos leigos!”. Estou procurando fazer.
Esta mudança não ocorreu da noite para o dia: foi e
continua sendo o resultado de um diálogo permanente
entre sacerdotes e leigos. Vejamos um caso. Percorridos todos os relatórios do Centro Social de São Paulo do
Potengi, surpreendeu-nos um fato, e perguntamos ao
vigário: “Porque é que, após 1954, os relatórios do Centro
não mencionam mais o Departamento de Defesa da Fé e
da Moral?”. “Naquele tempo — explicou Mons. Expedito
— ainda éramos muito clericalistas e moralistas. Pode ver
462
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
os Estatutos do Centro e da Maternidade: “O Diretor será
sempre o vigário da paróquia”. Muitas vezes os leigos
me arrastaram. Eu dizia: “Vocês devem assumir as coisas”. Mas depois, na prática, às vezes queria impor certas
coisas. Quantas vezes falava sobre (contra) o baile. Um
dia pediram-me para dançar no Centro Social. Achei que
não. A turma achou que sim, que não havia nada demais.
Então fui ver na Moral que o baile bom ou mau dependia
do comportamento. Disse que podiam fazer, contanto
que tudo fosse em ordem. A última palavra era sempre
do padre: Diretor! Há vários anos que venho insistindo
na necessidade de ir largando as coisas nas mãos dos
leigos de responsabilidade. E, agora, só faço assinar os
papéis. (Os últimos documentos que tivemos em mão —
relatórios do Centro, da Maternidade, do Clube Esportivo
— traziam apenas a assinatura do presidente, não mais
a do vigário). Antigamente procurávamos utilizar estas
instituições, como o Centro Social, para a preservação da
fé e dos costumes. Aos poucos fomos vendo que estas instituições tinham uma finalidade em si legítima. Fomos
vendo que o trabalho de formação religiosa e de apostolado devia ser feito através da JAC e do MFC (Movimento
Familiar Cristão), que haveriam de preparar elementos
para levar Cristo (não mais para defender a fé e os costumes!) às outras instituições: ao Centro Social, aos Sindicatos aos Clubes, que tinham uma finalidade em si não
religiosa. Assim uma das atividades do Centro Social era
organizar cursos catequéticos. Organizou vários. Depois,
isto passou para o Secretariado Paroquial de Pastoral.”
Estivemos diversas vezes em São Paulo do Potengi.
Nunca vimos Mons Expedito ocupado com atividades
ALCEU RAVANELLO FERRARO
463
sociais. Vimo-lo, sim, com frequência, em reuniões de líderes e de grupos: geralmente de líderes, porque já não
pode mais manter contacto direto com todos os grupos
de sua paróquia. Nas capelas, ocupa-se de 8 às 12 ou de
8 às 14 horas com a administração dos sacramentos e,
numa linguagem simples e bíblica, como tivemos oportunidade de ouvir, ao anúncio da palavra. A tarde é reservada para encontros com líderes e grupos: encontros de
formação.
Foi assim que, por ocasião do Curso para Bispos do
Nordeste, realizado em Ponta Negra, em 1965, quando
solicitado a reunir um punhado de seus leigos engajados
em atividades missionárias, para um contacto com um
grupo de bispos que queriam conhecer São Paulo do Potengi, Mons. Expedito, com sua gaiatice de sempre, perguntou:
— Uma, duas ou três carradas?
— Basta uma!
O diálogo continuou em São Paulo do Potengi:
— Só os líderes, Monsenhor. (Os bispos já haviam tido,
na sede do Centro, um contacto com o povo).
— Os que não são, já saíram.
— Não precisava reunir tantos! (Eram cerca de 50).
Bastava um punhado. Não há bispo para tanta gente!
— Eu só trouxe uma carrada, como ficou combinado.
É que Mons. Expedito contava, em sua paróquia, com
aproximadamente 150 líderes engajados em atividades
apostólicas.
Observa-se, atualmente, na Arquidiocese de Natal,
especialmente no meio rural, um florescer de líderes e
grupos de carácter religioso, voltados especialmente
464
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
para a evangelização de adultos. Não são mais os antigos
“bonzinhos”, que lavavam a igreja, arrumavam as alfaias
ou carregavam estandartes nas procissões. Sua atividade
é desenvolvida no meio em que vivem: no bairro, no povoado, no sítio, na fazenda. São os grupos de JAC. São
as Equipes de Casais do MFC. São os cada vez mais- numerosos Círculos Bíblicos, que se reúnem em casas de
família para ouvir e aprofundar a Palavra de Deus. São os
Pregadores Leigos que. a. noitinha em frente a uma casa
ou num canto de rua, cantam, com o povo, o Lucenário,
leem e interpretam a Palavra de Deus. Mais de uma vez
tivemos oportunidade de presenciar tais fatos. Todo este
trabalho visa atingir especialmente os adultos, embora
participem, no caso do Lucernário, também crianças.
No último Curso de Catequese promovido pelo Secretariado de Pastoral (julho de 1966) os participantes foram
orientados para atingir principalmente os adultos. Em
novembro de 1966 foi realizado um curso para formação
de Pregadores Leigos.
O Movimento, especialmente nos últimos anos, abriu
novas perspectivas também para o apostolado das religiosas. Em Natal, uma equipe de Irmãs Missionárias de Jesus
Crucificado está totalmente ã disposição dos Secretariados Arquidiocesano e Provincial de Pastoral. Três equipes
de religiosas já assumiram três paróquias vagas: Nísia
Floresta (Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado — a primeira experiência), Taipu (Irmãs do Imaculado Coração
de Maria) e São Gonçalo (Irmãs do Amor Divino).
Em Macau, quatro “Dammes de Marie”, vindas, há
dois anos, da Bélgica, dedicam-se totalmente, junto com
o vigário e leigos, ao trabalho pastoral na paróquia.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
465
Outras religiosas, destas e outras Congregações, em Natal e no interior, estão, de várias formas, integradas em
atividades apostólicas, em plano diocesano ou paroquial. Com suas experiências neste campo, algumas delas
conhecidas internacionalmente, o Movimento abriu novas perspectivas para uma revalorização da religiosa no
apostolado da Igreja.
A nova Pastoral do Batismo, lançada em agosto de
1965, está engajando um número crescente de leigos,
mais no interior do que na Capital. Em diversos lugares
a preparação dos pais e padrinhos é feita por equipes de
leigos, instruídos para isto pelos vigários. Esta preparação visa antes de tudo tornar, pais e padrinhos conscientes do sentido do Batismo e da responsabilidade daí decorrente. Não só o clero colaborou na elaboração das linhas
desta nova Pastoral do Batismo, mas, também, o povo foi
longamente preparado para recebê-la.
Quanto à ênfase dada a evangelização, ao anúncio da
Palavra, quando, por exemplo, o Plano de Pastoral de Conjunto da Arquidiocese de Natal para 1965, sob o título:
“Pastoral Catequética e Movimento Bíblico” pede uma
Catequese “kerigmática, CRISTOCÊNTRICA, vivencial,
realista, missionária e comunitária”, ou uma Catequese
que seja “educação da Fé”; quando planeja uma “Catequese Popular Missionária, dirigida às comunidades dos
fiéis adultos da Paróquia” e a “formação de Catequistas
Populares”, que anunciem “o Evangelho da Salvação de
Jesus Cristo a grupos de adultos reunidos” nos bairros,
subúrbios, quarteirões, ruas, casas, capelas, povoados,
lugarejos, fazendas e sítios; quando planeja incentivar o
surgimento de Círculos Bíblicos, realizar o VII Curso de
466
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Bíblia, a XIX Semana da Bíblia e promover a campanha
de “Uma Bíblia em Cada Lar”: segue, sim, as orientações
do Vaticano II, mas confirma, também, e dá seguimento
àquela linha de trabalho dos primeiros “comandos missionários” de meados dos anos 40 e ao Movimento Bíblico inaugurado com a realização da I Semana da Bíblia,
já no alvorecer do Movimento de Natal (1946).
No início da fase conciliar, em resposta a um questionário do Pe. F. Houtart, D. Eugênio sugeria as seguintes
“grandes linhas de Pastoral” para o mundo latino-americano em transformação: uma “Partoral de rumos e não
de tarefas”, uma “Pastoral criadora e não apenas de execução e de adaptação”; (nem recurso a “fórmulas milagrosas”, importadas, nem “fidelidade mecânica” às fórmulas do passado, mas uma “atitude criadora, adequada
à realidade e fiel ao Evangelho”); uma “Pastoral missionária e não conservadora”; uma “Pastoral evangelizadora
dos pobres”; uma “Pastoral de juventude”; uma “Pastoral
de líderes”. Estas linhas pastorais, se traduzem algo do
clima conciliar, são fruto, também, de diversas experiências de renovação pastoral, que, de longa data, o Movimento de Natal vinha ensaiando.
Foram o trabalho social e estes ensaios de uma nova
pastoral que, nos anos 1960, ao mesmo tempo em que
os bispos do mundo inteiro se reuniam em Roma para
rever os rumos da ação pastoral da Igreja, atraíram para
Natal centenas de pessoas, do Nordeste e mesmo de outras regiões do país e do estrangeiro, em busca de “luzes”, da mesma forma como, cerca de 20 anos antes, os
iniciadores do Movimento haviam partido para outros
estados e países, à procura, também de “luzes” para o
trabalho que se propunham empreender.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
467
2. VERIFICAÇÃO EMPÍRICA
1) Consciência da Mudança. De um lado, observamos,
na II Parte, uma série de mudanças ocorridas no plano
temporal e vimos que as comunidades trabalhadas pelo
SAR têm, em proporção muito mais elevada do que as
não trabalhadas, consciência de tais mudanças (melhoras) e as atribuem ao SAR ou a pessoas, grupos ou serviços ligados ao SAR.
De outro lado, em diversas partes deste Trabalho,
acenamos para a íntima relação entre temporal e religioso, no plano das atitudes, ação e mudança efetiva.
Com relação à mudança do ponto de vista religioso,
nossa observação em dezenas de comunidades acusava
uma correlação muito íntima com a mudança no plano
temporal. Muitos sacerdotes e líderes leigos, da cúpula e
da base, afirmavam claramente, em seus depoimentos,
a mesma correlação entre mudança no plano temporal
e religioso. A análise da correspondência dos alunos e
monitores de Escolas Radiofônicas confirmava o mesmo
ponto de vista. Com efeito, depois dos relacionados com
as próprias Escolas Radiofônicas (em 94,1% das cartas),
os temas mais frequentes diziam respeito à vida religiosa
ou a atividades apostólicas nas respectivas comunidades
(em 26% das cartas).
Estes e outros fatos deixavam pouca dúvida quanto
à ocorrência de mudanças, do ponto de vista religioso,
nas comunidades trabalhadas pelo SAR. Assim, em nossa
pesquisa nas oito comunidades, limitamo-nos a algumas perguntas que nos permitissem verificar empiricamente se de fato as comunidades trabalhadas diferiam
468
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
das não trabalhadas, quanto à consciência de eventuais
mudanças ocorridas na vida religiosa nestas mesmas comunidades. A tabela 11.1 e o gráfico 11.1, referentes à
consciência da mudança (melhora) de um ponto de vista
global, servirão de controle.
A primeira pergunta (A.27) relacionada com o presente parágrafo foi dirigida a todas as pessoas que compunham a amostra e que apresentassem as seguintes características: fossem católicos (quase 100%), tivessem 18
ou mais anos e fossem membros de famílias residentes,
havia pelo menos sete anos, na comunidade. A pergunta
foi a seguinte:
“O senhor acha que melhorou como católico nos
últimos 7 anos (se instruiu mais sobre a sua religião, frequenta mais os sacramentos (missa, confissão, comunhão), reza melhor, se preocupa mais
com a vida religiosa de sua família e de sua comunidade), continua como a 7 anos atrás, ou piorou
como católico nos últimos 7 anos?”
Lembramos que se trata somente de adultos: pessoas
de 18 anos ou mais. Os dados da tabela 12.1, representados no gráfico 12.1, nos permitem várias observações.
a — Respectivamente nas CT e nas CNT, 65,7% e 35,0%
acham que melhoraram (muito — 43,4% e 21,1%; bastante — 13,1% e 8,5%; um pouco — 9,2% e 5,4%); 29,9%
e 59,2%, que continuam como antes (como há 7 anos) e,
sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 4,4% e 5,8%,
que pioraram (um pouco, bastante ou muito).
b — Cada uma das 4 CT, comparada com qualquer uma
das 4 CNT, apresenta sempre um número relativo mais
ALCEU RAVANELLO FERRARO
469
elevado de pessoas que acusaram uma melhora (diga-se
o mesmo da categoria “melhorou muito”), verificandose exatamente o inverso quanto ao número dos que não
acusaram nenhuma mudança. É interessante observar
como Jundiá de Cima, onde o trabalho de comunidade
é o mais fraco entre as 4 CT, embora acuse, em proporção maior do que qualquer uma das CNT, uma melhora,
situa-se, deste ponto de vista, em último lugar, entre as
CT.
c — Segundo ambos os sexos, é mais elevado nas CT
do que nas CNT o número relativo dos que declararam
haver melhorado (diga-se o mesmo da categoria “melhorou muito”), dando-se o inverso quanto aos que não
acusaram nenhuma mudança. Tanto nas CT como nas
CNT, as mulheres, em proporção maior do que os homens do respectivo grupo de comunidades, acusam uma
melhora. Com relação, porém, às três principais categorias de respostas — melhorou (total), melhorou muito e
continua como antes — as diferenças encontradas entre
os homens das CT e os das CNT são praticamente idênticas às verificadas entre as mulheres dos dois grupos de
comunidades.
A pergunta A.28, de teor semelhante ao da A.27, foi
dirigida aos chefes de família, católicos e residentes havia pelo menos sete anos na localidade, e dizia respeito à
consciência da mudança, do Ponto de vista religioso, nas
respectivas comunidades, nos últimos sete anos. Segundo os dados da tabela 12.2, representados no gráfico 12.2,
temos que, respectivamente nas CT e nas CNT, 70,2% e
32,8% acusam uma melhora (melhorou muito — 48,5% e
18,4%; melhorou bastante — 14,2% e 4%; melhorou um
470
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
pouco — 7,5% e 10,4%); 28,4% e 64% declaram não ter
havido nenhuma mudança, e, sempre respectivamente
nas CT e nas CNT, 1,4% e 3,2%, que a situação religiosa
Piorou, nos últimos 7 anos, nas respectivas comunidades.
Confrontados com os da anterior, (mudança, do ponto de
vista religioso, nos próprios entrevistados), os dados da
presente tabela acusam uma diferença ainda maior entre
os dois grupos de comunidades: as opiniões dos chefes
de família das CT concentram-se ainda mais em “melhorou muito”, enquanto que as opiniões dos chefes de
família das CNT concentram-se, também em proporção
maior do que na tabela anterior, em “ficou no mesmo”.
A diferença entre os dois grupos de comunidades é, como
no caso anterior, significativa a um nível muito elevado
(superior a 1/1.000).
2) Opinião a respeito da ação da Igreja. Com o objetivo de verificar se os entrevistados tinham consciência e
opiniões diversas quanto à atuação da Igreja nas respectivas comunidades, foi proposta a seguinte pergunta
(A.51) a todas as pessoas, de 14 anos e mais, que compunham a amostra.
“O senhor acha que a Igreja fez alguma coisa para
melhorar a situação de sua localidade? fez muito,
bastante, um pouco, nada?”
a — Segundo a parte A da tabela 12.3 (veja também
o gráfico 12.3), temos que, respectivamente nas CT e
nas CNT, 49,7% e 13,4% declaram que a Igreja fez muito;
21,6% e 11,8%, que fez bastante; 6,5% e 12,8, que fez um
pouco (alguma coisa); e 22,2% e 62,0% que a Igreja não
fez nada em favor das respectivas comunidades. Seme-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
471
lhantemente ao que encontramos nas tabelas anteriores,
também nesta as opiniões dos entrevistados das CT se
concentram em “fez muito” (49,7%), enquanto que as dos
entrevistados das CNT se concentram em “não fez nada”
(62%).
b — Se confrontarmos, do ponto de vista da concentração das respostas nos dois extremos, todas as 8 comunidades tomadas individualmente (parte B da tabela), observamos, sem excessão, o mesmo fato: quanto aos que
declararam que a Igreja fez muito, o mínimo verificado
nas CT (novamente Jundiá de Cima — 32,4%) vai muito
além do máximo encontrado nas CNT (Barra do Geraldo
— 19,5%), enquanto que, com relação aos que disseram
que a Igreja não fez nada, o máximo verificado nas CT
(Redenção — 27,6%) fica muito aquém do mínimo encontrado nas CNT (Barra do Geraldo — 52,4%).
c — Agrupadas novamente as respostas por grupo de
comunidades e distribuídas segundo os cinco grupos de
idade especificados na parte C da tabela, observamos
idêntica concentração de opiniões: quanto aos que declaram que a Igreja fez muito, o mínimo encontrado nas
CT (população de 21-30 anos — 44%) vai muito além do
máximo verificado nas CNT (população de 14-20 anos
— 23,5%); quanto ao extremo oposto (não fez nada), o
máximo acusado pelas CT, e precisamente pelo grupo
de idade mais idoso (51 e mais anos — 32%), fica muito
aquém do mínimo verificado nas CNT, e exatamente no
grupo de idade mais jovem (14-20 anos — 50%).
O teste de qui-quadrado aplicado à parte A da tabela
revela ser esta a diferença mais altamente significativa
encontrada na pesquisa (qui-quadrado, calculado com 3
graus de liberdade = 144,504).
472
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Basta uma confrontação superficial dos gráficos 12.1
a 3 com o gráfico 11.1, todos referentes às tabelas de
mesmos números, para concluir pela existência, nas comunidades trabalhadas, de uma correlação íntima entre o
campo religioso e o temporal, não só quanto ao fato, mas
também quanto à consciência das mudanças ocorridas e
da ação da Igreja em favor daquelas comunidades. Nas
comunidades não trabalhadas, por sua vez, observa-se
correlação semelhante, com relação não só ao fato, mas
também à consciência da não-mudança (ou da quase nãomudança) e da omissão da Igreja no que diz respeito à
situação destas mesmas comunidades.
D. RELAÇÃO ENTRE TEMPORAL E ESPIRITUAL
1) De acordo com a tipologia elaborada na introdução,
às atitudes reacionária e oportunista ou conservadora
corresponderia uma instrumentalização do espiritual
com relação ao temporal, isto é, a interesses particulares
do grupo religioso. A própria história do Movimento parece excluir definitivamente uma tal subordinação. Com
efeito, o Movimento foi antes religioso do que social, e, à
base da própria ação temporal, estiveram tanto o desejo
de concretizar certos valores sociais cristãos, quanto a
vontade de difundir os valores especificamente religiosos do grupo.
Assim, a questão é de saber se o Movimento representa
um esforço de valorização do temporal, o que seria típico
de uma atitude inovadora ou profética, ou uma simples
ALCEU RAVANELLO FERRARO
473
instrumentalização do temporal com relação a este desejo
de renovação pastoral, o que corresponderia a uma atitude ético-conservadora.
O problema, porém, diz despeito mais ao clero do
que aos leigos. Estes encaravam o engajamento social e
religioso como um todo inseparável, como aspectos da
missão total do cristão no mundo.
Da parte do clero, nem sempre sem conflito com os
leigos engajados, as coisas não pareciam tão claras, pelo
menos no início. De um lado, os padres andavam angustiados, sem saber como justificar o intenso trabalho social em que se estavam envolvendo, e parece que o fato
de dar a certas atividades sociais uma finalidade também
ético-religiosa lhes tranquilizava um pouco a consciência. De outro, como já dissemos, a orientação pastoral
tipicamente ético-conservadora, que tomava vulto no
seio da hierarquia brasileira em meados dos anos 40.
não deixou de exercer influência, especialmente nos primeiros anos do Movimento. O caso do Centro Social de
São Paulo do Potengi, acima examinado, é típico. Mostra
tanto o fato desta influência, quanto o da ‘evolução havida. Inicialmente, o Centro Social desenvolvia atividades de ordem religiosa, como a promoção de cursos de
catequese, e entre seus Departamentos não faltava o da
Defesa da Fé e da Moral. Deste último, a partir de 1954,
não se encontra mais referência nos relatórios do Centro.
Os cursos de catequese, por sua vez, passaram logo para
o Secretariado Paroquial de Pastoral. Em seu depoimento, Mons. Expedito reconhece claramente a tendência,
nos primeiros anos, a “utilizar” as obras sociais para fins
ético-religiosos. Afirma também que, na medida em que
474
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
a Paróquia organizou seu Setor de Pastoral, as obras e
atividades sociais passaram a gozar de maior autonomia
com relação aos objetivos especificamente religiosos.
Na cúpula, na medida em que os líderes do Movimento foram assumindo também a liderança da pastoral diocesana e organizaram o Secretariado de Pastoral,
o movimento social e o movimento religioso aparecem
sempre mais distintos e autônomos, com planejamento,
recursos financeiros e pessoal próprio a cada campo de
atividade.
2) Analisando o pensamento de D. Eugênio nos últimos anos, observamos a simultaneidade de uma dupla
concepção da relação temporal-espiritual.
Em pronunciamentos preponderantemente “apologéticos”, isto é, onde prevalece a preocupação de justificar
perante os Poderes Públicos o novo tipo de engajamento
social da Igreja na Aquidiocese de Natal e de defender a
orientação do Movimento contra acusações de invasão
do temporal, de retorno a uma forma de cristandade medieval, de absorção pelo temporal em detrimento do espiritual..., junto com aspectos de valorização do temporal, predomina uma concepção instrumental do temporal
com relação aos objetivos de ordem religiosa.
Assim, por exemplo, referindo-se ao II Encontro dos
Bispos do Nordeste que se iam reunir proximamente em
Natal, para, juntamente com técnicos e homens do Governo, tratar do desenvolvimento da região, D. Eugênio
afirmava que a Igreja, sem olhar para crenças ou partidos políticos, vinha desenvolvendo “largo esforço em
favor da melhoria material”, por sentir que a miséria dos
nordestinos constituía “uma barreira ao desenvolvimento espiritual”31.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
475
Em 1960, tratando da visão moderna do sacerdote e
da pastoral, dizia: “A moderna pastoral está a exigir do
pastor de almas uma posição definida pela recuperação
do homem para levá-lo a Deus... E vai o sacerdote trabalhar e lutar por condições mínimas de bem-estar físico
e social que permitam o desenvolvimento dos fatores espirituais. O padre se torna um propulsor de progresso
material como meio de progresso espiritual”32. Em outra
oportunidade, reconhecendo que a posição do clero já estava causando “indisposição aos políticos, mais preocupados com seus interesses particulares, que com o bem
do povo”, justificava: “O sacerdote procura melhorar materialmente o rebanho, em sua luta contra o subdesenvolvimento, como instrumento de evangelização”33. E, em
1962, a propósito de um Curso de Extensão Universitária
para o Clero de Natal sobre problemas sociais, afirmava
que o estudo e a ação do clero no campo social tinham
como objetivo levar a uma “modificação da estrutura
socioeconômica”, para torná-la “favorável a uma penetração maior da mensagem do Evangelho”34.
Em que consista esta barreira ao entendimento do
Evangelho, criada pelo estado de miséria, injustiça social e subdesenvolvimento, D. Eugênio o explicita em
uma alocução de 1963, após outro Curso de Extensão
Universitária para o Clero: “Antigamente, embora a verdade seja inalterada, certas situações não feriam tanto e
não obstavam à evangelização”. O erro sempre foi erro,
mas condições de tempo e espaço trazem sua forte contribuição na aplicação da mensagem eterna Nos nossos
dias, tudo o que significa privilégio injustificado, o que
faz perdurar uma injusta discriminação entre as pessoas,
476
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tudo o que faz esforços para conservar a atual ordem
injusta, se transforma em barreira ao entendimento do
Evangelho. “E conclui salientando a importância da Sociologia Religiosa para quem tem a missão de transmitir,
em sua pureza, uma doutrina eterna a homens que passam”35.
Em outros documentos, ao lado desta visão instrumental, aparece uma valorização do temporal. Assim,
por exemplo, quando justifica a nova experiência de educação de base através do rádio: “A Igreja vê no homem
alfabetizado a obra de Deus aperfeiçoada e um instrumento
mais apto a glorificá-lo e servi-lo melhor. Este é o sentido
apostólico e cristão do trabalho iniciado”36.
Em outra série de documentos, quando livre da preocupação de justificar ou defender o Movimento, D.
Eugênio deixa transparecer claramente uma concepção
não instrumental, ou seja, uma valorização do temporal. Assim, em sua resposta a um questionário de Pe. F.
Houtart sobre a posição da Igreja’ em face da transformação social do mundo latino-americano, estabelece as
seguintes metas: Redescoberta do valor da criação e das
tarefas temporais dentro do plano de Deus. Redescoberta
do papel do leigo na Igreja. Aperfeiçoamento da pessoa
humana... Valorização do trabalho... Promoção feminina... Valor do tempo livre... E conclui, reconhecendo no
cristianismo, além de um “valor escatológico”, também
“valor cósmico”.
Esta visão expressa no documento que acabamos de
citar representa, evidentemente, uma valorização, ou
melhor, um apelo a uma revalorização do temporal.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
477
Esta última citação de D. Eugênio parece corresponder
melhor à visão do temporal transmitida pelo Movimento ao homem do campo. Citamos, a título de exemplo,
o seguinte texto sobre o trabalho: “O trabalho de cada
um completa o trabalho de Deus... Deus criou o trigo.
O homem com ele faz o pão. Deus criou o ferro. O homem com o ferro faz a enxada, o arado, o trator, o
martelo e tantos outros instrumentos Deus criou tudo.
O homem, com seu trabalho, transforma para seu uso
todas as coisas criadas por Deus. É por isso que dizemos
que o homem, com o seu trabalho, colabora com Deus
na obra da criação. O trabalho dignifica o homem...”37.
Foi graças a esta visão do trabalho e das tarefas temporais que bom número de comunidades do interior passou a comemorar o Dia do Trabalho.
3) Vejamos mais um aspecto da relação entre temporal
e espiritual — a relação entre Igreja e Estado.
Em um documento de 1963, sobre a Igreja no temporal,
D. Eugênio começa por reivindicar que as atividades de
uma Igreja sejam compreendidas e julgadas dentro do contexto social em que ela exerce sua missão. E, referindo-se
às atividades da Igreja em alguns lugares do Nordeste,
observa: “Suas atividades e suas relações com o temporal poderão causar admiração aos teóricos que apenas levantam hipóteses ou soluções diante de uma máquina de
escrever, em uma confortável sala de trabalho”.
Esta reivindicação parece ter sido motivada pelas suspeitas de retorno à forma de cristandade medieval, levantadas por conhecido sociólogo europeu, após breve
visita a Natal.
478
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
A seguir, no mesmo documento, D. Eugênio estabelece
o princípio de que a Igreja deve dedicar-se integralmente
à sua missão evangelizadora, cabendo-lhe, no campo
temporal, apenas uma função supletiva. “Na prática —
prossegue ele, referindo-se à região — consideremos os
seguintes pontos:
— Em uma área subdesenvolvida, ordinariamente o
Governo participa dessas limitações, sendo necessária
uma ação mais atuante de outras forças.
— Os cristãos... participam das duas comunidades,
a eclesiástica e a civil, com os direitos e os deveres daí
decorrentes.
— A metodologia e a pedagogia de evangelizar os que
gozam de uma condição humana desenvolvida são fundamentalmente diversos, quando se trata de evangelizar
as pessoas que vivem no submundo dos países em desenvolvimento. Aqui, os meios sociais e materiais podem
gozar de importância na transmissão da mensagem38.
“O perigo do enfeudamento ao Poder Civil ou a tendência à dominação terrena existem na medida da falta de
equilíbrio apostólico”.
Passa, então, a lembrar as atividades temporais desenvolvidas por várias dioceses do Nordeste, e observa que
a Igreja, “presente às necessidades, nem é angélica, preocupada apenas com a prece, nem envolvida precipiamente
com o social e o temporal: a ela Deus confiou homens (o
termo é usado por oposição a ‘almas’) e com esse complexo ela se preocupa e por ele luta”. E conclui: “A função
supletiva não deve ser levada ao exagero de suplantar as
funções do Estado nem ao de alheiar-se a qualquer problema de seus filhos. Era vez de apenas escrever pastorais
ALCEU RAVANELLO FERRARO
479
e, na tranquilidade dos púlpitos, falar, em determinadas
circunstâncias, deve descer à arena, indo a frente de seus
filhos, ensinando-os a andar e a lutar. Nesse intervalo de
tempo preparará com afinco seus leigos, formando-os na
ação, para que assumam realmente a autêntica liderança
que é extraordinária missão confiada por Deus ao laicato, e só a ele...”39.
A propósito do trabalho desenvolvido em favor da humanização das migrações internas, D. Eugênio, depois
de reconhecer que ela “não recebeu missão específica
de ocupar-se das estruturas materiais , justifica a ação
da Igreja neste campo como uma posição supletiva onde
a autoridade civil não está preparada para levar a bom
termo essa tarefa” (os Poderes Públicos têm, na prática,
desconhecido o problema) e “mais ainda como um transbordamento de sua caridade pelos filhos que sofrem”40.
Sobre o trabalho de organização e desenvolvimento
de comunidade observa que, em áreas subdesenvolvidas, “o Governo não é o veículo mais indicado para a demarragem do processo comunal”. Porque “desestimula
o voluntariado, encarece o programa de obsta flexibilidade necessária às exigências mutáveis das populações.
Mas acrescenta imediatamente: “É inestimável o papel
do Governo, pois somente ele poderá criar condições legais a um integral e harmonioso desenvolvimento das
comunidades. Sem reformas de base, estéril será grande
parte dos esforços. A comunidade, entretanto, ainda em
organização, possui admirável força de pressão sobre o
Governo... A sindicalização rural obrigará a vinda de uma
corajosa e viril reforma agrária... A comunidade é força
de pressão para a mudança de estruturas...”41.
480
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Segundo outro documento, a Igreja desenvolve sua
luta pela mudança de estruturas: através da sindicalização rural, visando “unir o fraco para torná-lo uma força
em órgãos de classe”; através da educação de base, “dando ao homem do campo uma visão crítica da realidade,
levando-o a assumi-la; através da politização, “dando o
sentido crítico ao homem do povo, para que possa julgar
com acerto e engajar-se no processo de desenvolvimento”42.
E a propósito da reforma agrária, depois de reconhecer que a solução ‘do problema é da alçada do Governo,
lembra a existência de 210 (!) projetos no Parlamento,
direta ou indiretamente relacionados com a questão, e
acrescenta: “Mais do que nas experiências-piloto realizadas em várias Dioceses, no esforço da Igreja pela arregimentação dos camponeses em sindicatos rurais e no
trabalho imenso de educação de base estão os alicerces
e o começo de qualquer modificação da atual estrutura
agrária”43.
E em 1960 tecendo considerações sobre o Dia do Trabalho, concede não ser da alçada da Igreja a solução de
problemas de ordem econômica e material, mas reivindica-lhe o direito de “ensinar o caminho e organizar seus filhos,
para que, dentro da Verdade e da Caridade, possam cumprir deveres e fazer valer direitos44.
Em outros textos, a ação da Igreja é vista mais em termos de cooperação. Assim, por exemplo, quando afirma
que a Igreja, sem dependências ou compromissos, procura
cooperar com o Poder constituído, alertando-o, solicitando medidas, dando apoio a determinadas iniciativas”45.
À parte a cooperação da Igreja na reformulação da
política federal com relação ao Nordeste na segunda
ALCEU RAVANELLO FERRARO
481
metade dos anos 1950, a própria história do Movimento
mostra uma multiplicidade de formas de cooperação entre Igreja e Estado. Em alguns casos foi a própria Igreja
que procurou e estimulou esta cooperação. Em outros
foram órgãos de Governo que solicitaram a cooperação
do Movimento, como ainda recentemente, quando o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário ofereceu
Convênio ao SAR, para que este executasse os treinamentos de líderes dentro do programa a ser desenvolvido por
aquele órgão.
Em outros casos, a Igreja tem agido mais como força
de pressão, como no trabalho de politização e organização dos trabalhadores rurais em órgãos de classe.
Sem querer entrar em previsões para o futuro, parece
não se poder propriamente falar em dominação da Igreja
sobre o Estado quando aquela concebe sua função - e este
foi de fato o sentido do trabalho do SAR- 1) como educação: ensinar a andar e lutar, organizar o homem para
a luta e a pressão sobre o Governo e 2) como estímulo
alerta pressão, cooperação, visando levar o PODER PÚBLICO
A ASSUMIR EFETIVAMENTE O SEU PAPEL na promoção
da justiça social, das reformas de estruturas e do desenvolvimento.
4) A respeito do que vimos nesta última parte do Capítulo, podemos tecer, a título de conclusão, algumas considerações.
A própria história do Movimento, se, por um lado, acusa a existência, nos primeiros anos, e alguns resquícios,
em documentos apologéticos de D. Eugênio mesmo nos
últimos anos, de uma concepção bastante instrumental
do temporal com relação aos objetivos de ordem religio-
482
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
sa, por outro, deixa ver claramente a evolução havida no
sentido de uma valorização do temporal e de uma sempre maior autonomia deste com relação ao espiritual.
Nas bases, esta autonomia é menos evidente. Ali, embora distintas, as atividades temporais e religiosas muitas vezes se interpenetram. Isto se deve ao fato de ambas as formas de ação partirem da Igreja, atingirem as
mesmas pessoas e terem, com frequência, à frente, nas
bases, os mesmos líderes.
Verificamos também, na parte C, que grande número
dos entrevistados das comunidades trabalhadas pelo SAR
têm consciência de que as mudanças ocorridas em suas
comunidades se devem principalmente à ação da Igreja.
Nada de admirar, por conseguinte, que o atendimento às
necessidades materiais dos fiéis se tenha demonstrado
de fato, de acordo, aliás, com as já citadas palavras de
D. Eugênio, “sinal (eficaz) da Igreja para os homens do
mundo em desenvolvimento, como a solicitude de Cristo
para com os pobres e enfermos foi sinal de sua missão
para os homens de seu tempo”, ou, em outras palavras,
que às mudanças ocorridas no plano temporal tenham
correspondido de fato mudanças também na vida religiosa das comunidades trabalhadas.
Que todo sinal desempenhe uma função instrumental, é evidente. Contudo, a história do Movimento mostra
que este não reduziu a ação temporal à mera condição de
instrumento com relação a objetivos de ordem religiosa.
Ao contrário, do próprio sistema de valores religiosos
tirou razões de valorização do temporal. E os resultados
de nossa pesquisa levantam, com relação à ação da Igreja
em áreas subdesenvolvidas, sérias dúvidas: 1) quanto à
ALCEU RAVANELLO FERRARO
483
eficácia de uma ação evangelizadora que não seja acompanhada de um esforço concreto no sentido de libertar
os evangelizandos de sua condição de miséria, injustiça
social e subdesenvolvimento, e 2) quanto à possibilidade
de uma ação temporal que se demonstre funcional ao desenvolvimento, sem que a esta acompanhe uma pastoral
profética, voltada para a evangelização.
No que diz respeito à relação entre Igreja e Estado embora não se possa dizer que o tenha representado até o
momento não é de se excluir que, no futuro, continuando a Igreja a entrar sempre mais no plano da ação temporal e vindo possivelmente a alterar-se sua motivação
fundamental, chegue o Movimento de Natal ou outro
semelhante a constituir perigo de dominação da Igreja
sobre o Estado. Que isto, porém, venha a acontecer, não
depende só da Igreja, mas também, e em última análise,
do próprio Estado. O perigo de uma eventual dominação da Igreja sobre o Estado de fato existe na medida
em que este se demonstra desinteressado ou incapaz de
equacionar os problemas sociais (da miséria, injustiça social e subdesenvolvimento) de seus súbditos. Ou então,
repetindo as palavras do Dr. Otto de Brito Guerra depois
que advogara, em A Ordem, há precisamente vinte anos
(17/8/1948), “um plano de redenção econômica do Rio
Grande do Norte”, diríamos que o perigo existe na medida em que “a política não dá tempo”!
484
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
NOTAS DO CAPÍTULO XII
1. Uma Experiência Pastoral em uma Região Subdesenvolvida — Conferência pronunciada por D. Eugênio no Congresso Internacional Pro Mundi Vita, realizado em
Essen (Alemanha), de 3 a 5 de setembro de 1963.
2. Palestra à J.F.C... 6-9-19U.
3. Homilia: sem data, mas encontrada em meio a documentos de 1946.
4. Sermão na lesta de São José (em Angicos), 19-3-1948.
5. Palestra Dominical, ?-?-1962.
6. “Dom Eugênio fala sobre o Congresso” (I Congresso de Trabalhadores Rurais
do Estado do Rio Grande do Norte), Vida Rural forgão Oficial do SAR), 25-51961.
7. Discurso de Agradecimento, setembro de 1962: Discurso pronunciado por D.
Eugênio na ocasião em que foi condecorado com a Medalha’ do Mérito Agrícola.
8. Veja nota 2.
9. Palestra Dominical, 7-5-1963 (Nas vésperas da I Convenção Nacional dos Sindicatos Rurais, realizada em Natal, de 15 a 20 cie maio de 1963).
11. Veja nota 6.
12. Palestra Dominical, sem data (1959-1961).
13. Palestra Dominical, 30-12-1962.
14. Palestra Dominical, sem data (início de maio de 1963, pelo contexto).
15. Veja nota 6.
16. Palestra Dominical, sem data (provavelmente de 1958).
17. Palestra Dominical, 22-7-1962.
18. Palestra Dominical, sem data (parece ser do início de 1963).
20. Palestra Dominical, (por ocasião da Concentração dos Jovens Agricultores no
encerramento do I Congresso Norte-Rio-grandense de Trabalhadores Rurais),
25-5-1961.
21. Natal e Pobreza (homilia), 24-12-1961.
22. “Exposição sobre o Desenvolvimento de Comunidades Rurais e Urbanas no
Nordeste Brasileiro” (Trabalho apresentado por D. Eugênio em sessão plenária
durante a XI Conferência Internacional de Serviço Social, realizado em Quitandinha, em agosto de 1962), Boletim da Legião Brasileira de Assistência, 111
(1963 ) 28-31 e 71.
23. Nacionalismo — Palestra pronunciada por D. Eugênio, a convite dos universitários do Recife, por ocasião da Semana Nacionalista realizada naquela
Cidade em 1959.
24. Palestra Dominical, sem data; provavelmente de início de 1963.
25. Palestra Dominical, ?-?-1962.
26. A Igreja e o Bem-Estar Rural — Aula proferida no lo. Curso para Técnicos do
SSR (Serviço Social Rural) no CETI (Centro de Ensaio e Treinamento da Fazenda Ipanema), em janeiro de 1959.
27. Veja nota 23.
28. Veja nota 7.
29. Fundamentos da Política Social para o Desenvolvimento Nacional — Trabalho apresentado por D. Eugênio no II Congresso Nacional de Serviço Social, no Rio do
Janeiro, em maio de 1961.
30. Ib.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
485
31. Alocução, sem data (imediatamente antes do II Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Natal, em maio de 1959).
32. Palestra, 19/3/1960.
33. Palestra, 23/10/1960.
34. Palestra Dominical, 28/1/1962.
35. Alocução, após o Curso de Extensão Universitária para o Clero, realizado em
janeiro/1963.
36. Palestra Dominical, ?/?/1959.
37. Setor de Escolas Radiofônicas, Educar Para Construir, Tipogr. do SAR, 1964,
p. 8-9 e S6a-36b. No mesmo opúsculo aparece claramente a valorização, por
exemplo, da cultura, do folclore, dos bens materiais, do desenvolvimento, da
saúde, da educação...
38. Temos outro documento apologético e encontramos novamente a mesma
concepção instrumental da ação temporal com relação à evangelização. É interessante que nos últimos anos, esta maneira de ver só apareça em tais documentos. Isto talvez se deva, em parte, ao fato de D. Eugênio, ao responder às
acusações contra o Movimento, fazer uso do uma linguagem ou concepção
bastante em voga entre pastores de almas e teólogos.
39. A Igreja no Temporal, 19S3.
40. Migrações (conferência), 1959(7).
41. Desenvolvimento de Comunidade, op. cit.
42. A Igreja e o Bem-Estar Rural, op. cit.
43. Reforma Agrária (texto de uma entrevista, sem data, mas certamente entre
novembro de 1961 e janeiro de 1962).
44. Palestra Dominical (comentários ao Dia do Trabalho), 7/5/1960.
45. Palestra Dominical, 24/2/1962, uma semana antes da Reunião de Estudos realizada em Natal de 1 a 6 de março de 1962, para avaliar os resultados dos 46.
Decretos presidenciais decorrentes dos dois Encontros dos Bispos do Nordeste,
realizados em Campina Grande e Natal.
486
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
CONCLUSÃO GERAL
1. Neste estudo circunscrevemo-nos a um contexto
bem definido, isto é, a uma sociedade tradicional e tradicionalmente católica, e perguntamo-nos sobre a possibilidade de um grupo católico, situado dentro de um
tal contexto sociocultural, evoluir de seu estado de pelo
menos parcial inculturação para uma atitude favorável
à mudança e para atividades que se demonstrem funcionais ao desenvolvimento.
Na I Parte observamos que o Movimento, de caráter
religioso nas suas origens, evoluiu, no setor temporal,
de atividades marcadamente assistenciais e “paternalistas”
em face de uma situação de emergência (FASE URBANA),
para um programa de organização ou desenvolvimento de
comunidades rurais (I FASE RURAL) e, finalmente, para a luta
pela mudança de estruturas e em favor do desenvolvimento,
extrapolando assim os limites da pequena comunidade
interiorana e ampliando seu raio de ação para o âmbito
do município e do Estado, com incidência, inclusive, em
plano regional e mesmo nacional (II FASE RURAL). Observamos, também, a forte reação da parte da classe políticopatronal rural e o impacto da Revolução de 31 de março
ALCEU RAVANELLO FERRARO
487
sobretudo o que estava mais de perto relacionado com a
luta pela mudança de estruturas, bem como o esboçarse de uma nova fase, marcadamente econômica, com um
vasto programa de incentivo ao cooperativismo rural.
Quanto às outras atividades, especialmente as relacionadas com a luta pela mudança de estruturas, fizemos
maior uso de dados administrativos ou coletados em
nossa observação livre e em entrevistas.
A verificação empírica nos levou às seguintes constatações:
— as comunidades trabalhadas pelo SAR acusam, com
relação às não trabalhadas, segundo a grande maioria
dos critérios aplicados e relacionados com os aspectos
mais diversos (Capítulos VI-X), diferenças significativas —
em diversos casos, altamente significativas — no que
tange a concepções, atitudes, comportamento e mesmo
condições de vida (como elevação do índice de alfabetização), mudanças estas comumente consideradas como
funcionais ao desenvolvimento e, inclusive como atingimento,
embora parcial, de objetivos do desenvolvimento;
— os entrevistados das CT não só têm, com muito
maior frequência do que os das CNT, consciência de tais
mudanças (Capítulo XI. l), como também, na maior parte
dos casos, atribuem tais mudanças a agentes de alguma
forma vinculados ao trabalho do SAR, confirmando, assim, as conclusões a que nos haviam levado os critérios
objetivos anteriormente aplicados.
Desta forma — dentro das grandes limitações de ordem financeira e humana (técnica) e daquelas inerentes
a um Movimento pioneiro que, surgido modestamente
das bases em meados dos anos 1940 e contando, pelo
488
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
menos até 1962, mais com a tolerância ou a permissão
do que com o apoio efetivo da Autoridade máxima na
Diocese, atuou e se expandiu na medida em que foi livremente aceito pelo clero e pelos leigos — a hipótese da
funcionalidade ao desenvolvimento encontrou confirmação nos
dados da verificação empírica.
2. Vimos também que os entrevistados das comunidades trabalhadas apontam, como principal fator de mudança, os líderes de comunidade motivados e geralmente
treinados pelo SAR. Surgida após um ano de observação
in loco, a II hipótese — a de um maior rendimento do líder
quando atua na comunidade não isoladamente, mas através
de grupos — encontrou igualmente confirmação nos dados da verificação empírica.
As consequências práticas daí resultantes são manifestas: a) o papel importante que podem desempenhar
líderes voluntários num trabalho de desenvolvimento de
comunidades (pelo menos rurais); b) a força de motivação que podem exercer grupos religiosos no sentido de
suscitar uma tal liderança; c) o valor prático da estratégia
típica do SAR em seu trabalho de desenvolvimento de
comunidade, estribada no tripé: líder (voluntário e treinado) — grupo — comunidade e d) a ineficácia ou pelo
menos o menor rendimento de investimentos em formação de líderes de comunidade, se, ao mesmo tempo, não
se os orienta para, no exercício de sua liderança na comunidade, agirem através de grupos e não isoladamente.
3. Quanto à III hipótese (II hipótese na Introdução),
podemos sintetizar aqui os aspectos mais importantes
da análise feita no Capítulo XII.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
489
No que diz respeito ao setor temporal, observamos, já no
alvorecer do Movimento, um nítido esboçar-se de uma
atitude inovadora Quanto ao trabalho desenvolvido no
meio rural (1951-1965), é manifesta a correspondência
entre a evolução da ação temporal, cuja funcionalidade
ao desenvolvimento foi verificada empiricamente na II
Parte e o desenvolvimento de uma atitude de descomprometimento com o status quo social — de injustiça e subdesenvolvimento — e de aceitação e incentivo à mudança:
atitude esta motivada não por interesses criados, mas
(pelo menos preponderantemente) por valores do grupo
religioso e orientada para a transformação do éthos e da
ordem social existentes, em outro éthos e outra ordem
que melhor espelhem os valores sociais cristãos originais, isto é, descomprometidos, desinculturados. Observamos, também, que o Movimento voltou-se progressivamente para as causas dos males sociais e para a inovação
cultural. No desejo e no esforço de transformação do éthos
e da ordem social tradicional aparece claramente a orientação profética do Movimento. Tudo isto, como vimos na
introdução, são características de uma ATITUDE INOVADORA no setor temporal.
No, plano religioso encontramos, já na fase inicial
do Movimento (1945-1950), a) uma nítida descontinuidade entre o grupo pioneiro e os marianos possuídos,
no período imediatamente anterior (1940-1945) por uma
atitude pastoral tipicamente conservadora e de claros indícios de um esboçar-se de uma atitude pastoral inovadora da parte dos pioneiros do Movimento. Surgindo de
uma preocupação primariamente de ordem religiosa
e precisamente missionária (comandos missionários),
490
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
o Movimento, com o andar dos anos, se apresentou sempre mais como um movimento de transformação religiosa , em nome dos próprios valores religiosos do grupo.
A atitude crítica em face da sociedade, de descomprometimento com o status quo e de aceitação da mudança não
se restringiu ao setor temporal, mas partiu de uma motivação fundamentalmente religiosa e atingiu de cheio o
próprio cerne da ordem religiosa — o próprio conceito
de cristão: oposição do “ser” ao “dezer-se” cristão ou
católico.
Por outro lado, acenamos, na Introdução, a uma série
de 11 critérios que nos permitem melhor distinguir uma
atitude pastoral inovadora (de orientação profética) de
uma atitude pastoral conservadora (de orientação ética).
Embora não os tenhamos aplicado todos sistematicamente (os critérios 1-5 podem resumir-se num só: a evangelização), da análise feita resulta uma ênfase crescente
do Movimento: a) na evangelização; b) na evangelização
dos adultos; c) na transformação religiosa, mais do que na
conservação ou preservação dos fiéis; d) na participação
dos leigos na obra de evangelização e transformação religiosa; e) na formação de associações ou grupos de caráter
missionário (evangelizador.); f) no aspecto comunitário
da religião: oposição dos que “são” aos que “se dizem”
católicos, aos católicos por tradição; g) em novas experiências pastorais; h) no papel do sacerdote como profeta e
educador: mudança na própria forma de o sacerdote exercer sua liderança. Tudo isto é característico de uma ATITUDE predominantemente INOVADORA, de orientação
PROFÉTICA.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
491
c) Sob vários aspectos aparece também uma relação
íntima entre temporal e religioso: a) encontramos em
ambos os setores a mesma orientação profética — atitude e
ação inovadoras, voltadas para a transformação social e
religiosa; b) tanto na origem como na evolução do Movimento os valores religiosos constituíram a motivação
última da própria ação temporal, de sorte que o Movimento pretendeu ser missionário em sua própria ação
temporal, enquanto via nesta a criação de condições
para um “maior desenvolvimento espiritual; c) quase
na mesma proporção em que acusam uma melhora do
ponto de vista temporal, os entrevistados das comunidades trabalhadas pelo SAR têm consciência de mudança
(melhora) em si mesmos e nas respectivas comunidades,
do ponto de vista religioso.
Assim, a III hipótese também encontrou confirmação.
Com isto, porém, não queremos dizer que o Movimento
de Natal tenha sido sempre e em tudo inovador e muito
menos que represente um movimento revolucionário
violento: nem todo movimento inovador se impõe necessariamente pelo uso da violência, e nem todo movimento revolucionário violento é de si inovador. Afirmamos apenas que, dentro do contexto regional em que
desenvolveu suas atividades, o Movimento de Natal se
caracteriza por um esforço cada vez mais consciente e decidido
de transformação social e religiosa, esforço este motivado pelos
próprios valores religiosos e sociais do grupo religioso, de cuja
iniciativa se originou e sob cuja liderança se expandiu e
atuou o Movimento.
4. Da verificação da I e da III hipótese seguem-se duas
conclusões de grande alcance teórico e prático: a) não
492
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
se exclui que grupos religiosos possam eventualmente
desempenhar uma função de desenvolvimento e b) não se
exclui que valores possam constituir motivação para a mudança social (para o desenvolvimento). Com efeito, verificamos que, em condições das mais adversas — numa
região tradicional e tradicionalmente católica — um
grupo católico, motivado pelos próprios valores religiosos do grupo, evoluiu para atividades temporais que se
demonstraram funcionais ao desenvolvimento.
Por outro lado, o presente estudo sugere que, pelo menos numa região tradicional e tradicionalmente católica,
somente um grupo católico motivado por valores (não
por interesses) e de orientação profética na ordem religiosa (atitude e ação inovadoras) teria condições de manifestar igual orientação (atitude e ação) na ordem temporal, isto é, de empenhar-se em atividades temporais que
visem à transformação do éthos e da ordem existentes
(tradicionais) e, consequentemente, possam demonstrarse funcionais ao desenvolvimento.
Se somente em tais condições pode, numa sociedade
ou região tradicional e tradicionalmente católica, um
grupo católico demonstrar-se funcional ao desenvolvimento, só ulteriores pesquisas comparativas poderão
dar uma resposta adequada. Neste sentido, o presente
estudo não pretende ser mais do que uma tentativa de
interpretação sociológica e uma abertura de perspectivas
para ulteriores verificações empíricas num campo ainda
pouco explorado pelos sociólogos em sede da sociologia
empírica.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
493
APÊNDICES
E
ANEXOS
APÊNDICE I
A REGIÃO NORDESTE
Que o Brasil, no seu conjunto, não goze de foros de
cidadania entre os países considerados desenvolvidos,
é questão pacífica. Mais pacífica ainda é a inclusão do
Nordeste entre as maiores áreas subdesenvolvidas do
mundo. Há quem lhe chame de “a maior área subdesenvolvida do Hemisfério Ocidental”.
Nossa intenção, neste estudo sobre a Região em que
surgiu, se desenvolveu e atuou o Movimento de Natal,
não é tanto provar, quanto descrever em que consiste o
subdesenvolvimento do Nordeste. Concretamente, procuraremos situar o Nordeste dentro do conjunto regional brasileiro, comparando-o ora com a média nacional,
ora com todas as demais Regiões do país, ora — e principalmente — com as duas Regiões mais desenvolvidas do
Brasil: o Leste e o Sul ou, juntas, o Centro-Sul.
Duas razões principais nos levam a não circunscrever
o estudo de área à Arquidiocese de Natal ou ao estado do
Rio Grande do Norte, mas a estendê-lo a toda a Região
Nordeste.
Em primeiro lugar, o Nordeste forma um conjunto fisiográfica e culturalmente bastante homogêneo. Há, sem
ALCEU RAVANELLO FERRARO
497
dúvida, como veremos mais adiante, zonas fisiográficas
e sub-áreas culturais distintas, mas todas tipicamente
nordestinas. E encontramo-las todas no estado do Rio
Grande do Norte e mesmo na Arquidiocese de Natal. Certas iniciativas ou atividades empreendidas pela Igreja na
Arquidiocese de Natal, como a atuação durante a seca de
1958, tornam-se mais facilmente compreensíveis dentro
de uma visão regional, do que simplesmente local, dos
problemas.
Em segundo lugar, o Movimento surgido na Arquidiocese de Natal exerceu, sob alguns aspectos, influência, senão em toda, pelo menos em várias áreas da Região
nordestina.
Não há uniformidade na delimitação da Região Nordeste. Alguns incluem na Região apenas 5 estados: Ceará,
Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
Ou-tros estendem a Região para o Sul, incluindo os estados de Sergipe e parte da Bahia. Para o Conselho Nacional
de Geografia, o Nordeste compreende os estados do Maranhão até Alagoas, excluindo, portanto, Sergipe e Bahia.
O BNB (Banco do Nordeste do Brasil), tendo como área de
operação o Polígono das Secas, exclui o Maranhão e parte
da Bahia. A SUDENE Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste) abrange nove estados, desde o Maranhão
até a Bahia, e mais uma pequena parte do estado de Minas
Gerais, incluída no Polígono das Secas. Seguiremos, neste
trabalho, o critério da SUDENE, excluindo apenas, por
razões práticas referentes à utilização dos dados estatísticos, a parte do estado de Minas Gerais que integra o
Polígono das Secas e que é abrangida pelo planejamento
da SUDENE1.
498
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Sempre que citamos como fonte o Instituto Nacional
de Geografia e Estatística (IBGE), tivemos o cuidado de
incluir os estados de Sergipe e Bahia no Nordeste, subtraindo-os, portanto, à Região Leste. Assim os totais das
Regiões Nordeste e Leste não correspondem aos totais
encontrados nos Anuários Estatísticos do Brasil.
1. ASPECTOS GEOGRÁFICOS,
FISIOGRÁFICOS E CULTURAIS DO NORDESTE
1) Área. O Nordeste, compreendendo os nove estados que vão da Bahia ao Maranhão, tem uma área de
1.548.672km2, igual a 18,2% do território nacional. Sua
área é quase três vezes maior do que a França, maior
do que o Peru e cerca de 4/5 do México. A área dos nove
estados nordestinos varia muito. Temos como extremos
a Bahia, com 561.026 Km2, e Sergipe, com apenas 21.994
Km2, que constituem, respectivamente, 6,59% e 0,26% do
território nacional e 36,22% e 1,42% da área compreendida pela Região Nordeste. O estado do Rio Grande do
Norte, com 53.015km2, é o terceiro menor estado do Nordeste, constituindo 0,62% do território nacional e 3,42%
da Região2.
2) O Polígono das Secas. O Polígono das Secas atinge
oito dos nove estados do Nordeste (excluído o Maranhão, totalmente fora do Polígono) e pequena porção do
estado de Minas Gerais, da Região Leste, e cobre 52% da
área total destes nove Estados. Se, porém, considerarmos
somente os oito estados nordestinos (do Piauí à Bahia,
ALCEU RAVANELLO FERRARO
499
inclusive), 72,1% da área destes estados está incluída no
Polígono. Este cobre 90,6% da área do Rio Grande do
Norte, o terceiro estado mais atingido pelo fenômeno
das secas3.
3) Sub-regiões ou zonas típicas4. O Nordeste pode ser
dividido em três zonas distintas: a Zona da Mata e do
Litoral Oriental, o Agreste e o Sertão.
Zona da Mata e do Litoral Oriental. Esta Zona é constituída por uma faixa que, ao longo da costa oriental,
vai do estado do Rio Grande do Norte até a Bahia. As elevadas taxas pluviométricas que caracterizam esta área
possibilitaram o desenvolvimento de uma autêntica floresta tropical atlântica. Atualmente, porém, esta floresta
se encontra quase completamente devastada.
A Zona da Mata é a área dos grandes canaviais, dos
engenhos e usinas de açúcar. Foi ali que se formou a sociedade do açúcar. Esta, desde os primórdios da colonização, avançou implacavelmente, devastando as matas
e impelindo para o interior a pecuária e a policultura.
E nesta faixa que se concentra a maior porção da indústria nordestina — a indústria açucareira. É também
a área mais densamente povoada do Nordeste. Assim,
nos 14 mil quilômetros quadrados da zona canavieira de
Pernambuco, encontramos uma densidade demográfica
quase duas vezes superior à da França.
O sociólogo Gilberto Freyre caracterizou a Zona da
Mata como a zona da monocultura latifundiária e (até
1888) escravocrata da cana de açúcar5.
Foi o domínio imperial do açúcar na Zona da Mata que
determinou o latifúndio, a monocultura e a escravidão.
Foi ele que deu origem à sociedade patriarcal e pater-
500
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nalista da monocultura canavieira. O engenho de açúcar transformou-se no centro de vida, de atividade, de
formação da sociedade agrária do Nordeste6. Contradistinguem-se a casa-grande do senhor-de-engenho, do todopoderoso, do rei-nosso- senhor, e a senzala dos escravos
ou, após a abolição da escravatura (1888), o mocambo
dos trabalhadores7.
“A cultura da cana, no Nordeste, aristocratizou o
branco em senhor e degradou o índio e principalmente
o negro, primeiro em escravo, depois em pária. Aristocratizou a casa de pedra-e-cal em casa-grande e degradou
a choça de palha em mocambo. Valorizou o canavial e
tornou desprezível a mata”8. Falando do senhor-de-engenho, Gilberto Freyre assim o caracterizou: “Impossível
imaginá-lo — a esse centauro fora da rede patriarcal,
sem ser o homem a cavalo, chapéu grande, botas pretas,
esporas de pratas, rebenque na mão, a quem a gente dos
mocambos tomavam a bênção como a um rei. Do alto do
cavalo é que esse verdadeiro rei-nosso-senhor via os canaviais que não enxergava do alto da casa-grande; do alto
do cavalo é que ele falava gritando, como do alto da casagrande, aos escravos, aos trabalhadores, aos moleques do
eito”9.
Ao engenho de açúcar substituiu-se a usina. Intensificou-se a concentração de áreas cada vez maiores em
mãos de um só dono ou de grupos empresariais. Na usina
o trabalhador é pago, geralmente, não em dinheiro, mas
em “vales” que circulam apenas no “barracão”, onde os
preços ficam ao arbítrio do patrão.
Falando da condição da massa assalariada empregada
atualmente na indústria açucareira, Gilberto Freyre com-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
501
para-a à de párias10. “O sistema de latifúndio moderno
— escreve o mesmo autor - é o de usinas; sua ânsia, a
de “emendar” os campos de plantação de cana, uns com
os outros, formando um só campo, formando cada usina um império; seu espírito, aquele militar... O espírito
do senhor latifundiário que procura dominar imperialmente zonas maciças, espaços continuados, terras que
nunca faltem para o sacrifício da terra, das águas, dos
animais e das pessoas do açúcar11.
A situação do trabalhador caracteriza-se pela insegurança, pela dependência. Pode ser demitido a qualquer
momento, por qualquer razão ou sem razão, sem que
lhe caiba o direito de apelar para a Justiça. O latifúndio
monocultor expulsa o homem, de vez que lhe faltam elementos de fixação ao solo.
Se é correto definir o Nordeste como “Região explosiva”, nenhuma outra área nordestina o é mais do que a
zona açucareira. Compreende-se isto de vez que o advento da usina transformou o antigo patrão — o senhor-deengenho — num ausente, ou quase-ausente. “Feita uma
excessão ou outra — diz ainda Gilberto Freyre — não há
sentimento de solidariedade nenhum entre dominador
e dominados O usineiro é, em geral, como se fosse um
conquistador em relação com os conquistados de outra
terra”12.
Concluindo este parágrafo sobre a Zona da Mata e Litoral Oriental, poderíamos ainda mencionar o praieiro,
que, residindo ao longo da costa nordestina, apresenta
traços culturais bem distintos do homem do açúcar e dos
habitantes das outras áreas típicas que veremos. Predominam aí os valores da pesca: a rede, o dono-da-rede e
502
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
o armador a jangada e o jangadeiro; o mar traiçoeiro e
a incerteza do pesca do; o pescador e o marchante. Seu
folklore é típico. Suas técnicas piscatórias são geralmente
as mais primitivas.
O Sertão e Litoral Setentrional. A Zona do Sertão
e Litoral Setentrional constitui a área mais extensa do
Nordeste Caracteriza-se pelo seu estado de semi-aridês.
Está praticamente toda dentro ao assim chamado Polígono das Secas, embora este não se limite ao Sertão e Litoral Setentrional.
Enquanto, a Leste, o Sertão é separado da costa pela
Zona da Mata e pelo Agreste, ao Norte, o Sertão chega
até quase a praia, separado apenas por estreita faixa
litorânea, razão pela qual juntamos Sertão e Litoral
Setentrional
A densidade demográfica no Sertão é muito inferior
à da Mata e do Agreste. A taxa pluviométrica no Sertão
está compreendida entre 400 a 650 mm anuais.
“É o clima, o aspecto mais caracterizador do sertão
nordestino e pela força do seu impacto é a nota mais característica de todo o conjunto regional. Entretanto, somente um dos seus fatores concentra o conceito climático do Nordeste. Este fator é a deficiência da umidade.
Notadamente em termos de precipitação pluvial”13.
A falta de regularidade e uniformidade das chuvas ao
longo do ano vem agravar ainda mais a situação.
A vegetação típica do Sertão apresenta caráter xerófilo. Aí domina a caatinga.
A grande sociedade sertaneja caracteriza-se pela preponderância dos valores da pecuária. Não há um sertão,
mas vários sertões com características peculiares re-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
503
sultantes de suas atividades econômicas. A marca do
criatório, contudo, generalizou o conceito de sertão.
E ambiente de deserto, particularmente de deserto social. Caracteriza-se pela dispersão da população.
“O sertanejo — comenta Manoel Diegues Júnior — é a
figura dominante do mediterrâneo nordestino. O sertão
é o vaqueiro e o tangerino, é o comboeiro e o curtidor, é
o cantador de desafio e o aguadeiro do São Francisco, é o
extrator de babaçu e o baleeiro e ainda o tirador de carnaúba e o agregado dos latifúndios pastoris; é também o
místico dos fanáticos, cheio de supertições e crenças, e o
cangaceiro, figura característica dos desertos, em que se
transformou o antigo capanga ou guarda-costas”14.
O fazendeiro, o grande latifundiário, é ao mesmo tempo o chefe de família, o chefe político, o chefe territorial
de imensos latifúndios Numa palavra, é o “coronel”, o
“rei-nosso-senhor” do sertão. “O mesmo sentido patriarcal da área açucareira — diz ainda Manoel Diegues Júnior
— impera aí, embora apresentando outras modalidades.
Uma delas é o pequeno número de pessoas que viviam
em cada fazenda”15. Compreende-se isto, uma vez que a
criação não necessita de tanta mão de obra como o engenho de açúcar. Criaram-se novas normas de relações
entre senhor e trabalhador, entre fazendeiro e vaqueiro
O sentimento aristocrático é menos saliente do que na
zona canavieira. A distância entre a casa de têlha do “coronel” e a de palha do agregado, do vaqueiro, do morador, é menor do que entre a casa-grande e a senzala ou,
hoje, o mocambo da zona açucareira. Isto não impede,
porém, que da casa de telha o “coronel” exerça seus poderes de árbitro absoluto de todo o seu latifúndio16.
504
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Todo o folklore do sertão está impregnado de temas
ligados ao criatório e à seca que, periodicamente, flagela
a região. A grande insegurança do sertão é constituída
pelas secas periódicas.
Agreste. Temos finalmente o Agreste. Trata-se de uma
zona de transição entre a Mata e o Sertão. Em certos
lugares o Agreste é perfeitamente distinto das outras
duas regiões, confundindo-se, em outros ora com a Mata
nos seus trechos mais úmidos, ora com o Sertão nos seus
trechos mais secos. Suas taxas pluviométricas são menores do que na Mata e mais elevadas do que no Sertão.
Caracteriza-se por um tipo de vegetação subxerófilo, intermediário entre a floresta da Zona da Mata e a caatinga
do Sertão.
Nas áreas mais favoráveis domina a agricultura, sendo
então a densidade demográfica bastante elevada. Nas
outras áreas domina a pecuária com baixa densidade demográfica. Hoje o Agreste é mais agrícola do que pecuarista. O Agreste é mais policultor, enquanto a Zona da
Mata se caracteriza pela monocultura da cana de açúcar,
e o Sertão pela pecuária. Está menos sujeito ao fenômeno das secas do que o Sertão Contudo, fora dos brejos
-- zonas de maior concentração de umidade e cobertas
de mata — a taxa pluviométrica é quase sempre inferior a 1000 mm por ano, e as chuvas são mal distribuídas durante o ano. Recorrem, por isto, os fazendeiros à
construção de açudes barreiros, tanques, cacimbas. Não
raro, porém, esgotados os recursos de água e alimentação, não resta ao pecuarista senão a emigração levando
seu gado para a Zona da Mata ou para as serras e brejos
próximos. A falta d’água sempre constituiu grave problema no Agreste, embora não tão agudo como no Sertão.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
505
O vaqueiro, que, no Sertão, ainda tem reais possibilidades de tornar-se fazendeiro, foi, nas fazendas de gado
do Agreste, totalmente proletarizado. Manoel Correia de
Andrade, em seu livro A terra e o homem do nordeste, assim
comenta este fato: “Aquele costume de pagar ao vaqueiro
com um quarto dos bezerros nascidos, a “quarta”, foi
inteiramente abolido no Agreste, desde que o gado da
região raceado com o zebu, o holandês e o schuwytz, está
muito valorizado, elevando consideravelmente o salário
do vaqueiro se o pagamento continuasse a ser feiro em
espécie. Assim, o pagamento em moeda, substituindo
a “quarta”, de uso ainda generalizado no Sertão, onde
domina o gado criolo ou “pé duro”, não representa uma
melhoria para o vaqueiro, mas uma inferiorização sobre
a remuneração anterior, pois o proletariza e impede que,
como ocorria no passado, ele tenha a oportunidade de
tornar-se fazendeiro”17.
Há, nas fazendas, além do vaqueiro, certo número de
moradores. Estes recebem uma casa de “taipa” e certo
número de “mil covas” (1/2 a 2 ha) para cultivar de meia
(o sistema de meia no Agreste é menos favorável ao trabalhador do que no Sertão), com obrigação de dar dois,
três, e até quatro dias de “sujeição”, isto é, de trabalho
na fazenda, por salários baixíssimos. Falando de sua
condição, o próprio trabalhador se considera um “sujeito”, alguém que vive na “sujeição”.
Mas o aspecto mais típico do Agreste é a pequena propriedade, caracterizada por uma policultura de subsistência. Mais de 85% dos estabelecimentos agropecuários do
Agreste têm menos de 20 hectares e cobrem apenas 14%
da área. Ali se formou uma espécie de classe média rural,
506
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
econômica e politicamente menos dependente do “coronel”, do que o trabalhador assalariado ou o morador.
As parcelas maiores são chamadas “sítios”, dando-se o
nome de “chão-de-casa” às propriedades de menos de 1
hectare. Quando a propriedade é pequena demais para
ocupar, todo o tempo, a mão-de-obra familiar, o pequeno
agricultor recorre ao trabalho “alugado”, ao arrendamento, à parceria.
No Sertão aliam-se a criação de gado e a cultura do
algodão de fibra longa (mocó ou de raiz). No Agreste, ao
lado da criação de gado encontramos a policultura de
subsistência e o algodão de fibra curta ou herbáceo.
2. ASPECTOS DEMOGRÁFICOS
1) População. O Censo de 1960 dá para o Nordeste
22.428.873 habitantes, igual a 31,6% da população do
país, que, na mesma data, contava com 70.967.185 habitantes. A população do Nordeste em 1960 equivalia a
4,84 vezes a sua população em 1872 (4.638.560 habitantes), o que representa um elevado índice de crescimento
demográfico. Podemos, contudo, constatar uma tendência secular a uma diminuição da contribuição percentual
do Nordeste na formação da população total do país. De
fato, o Nordeste representava, em 1872, 47,7% da população do país, baixando sucessivamente para 41,9% em
1890; 38,7% em 1900; 35,0% em 1940; 34,6% em 1950 e
31,6% em 196018.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
507
2) Densidade demográfica. Em termos de habitantes por quilômetro quadrado, o Nordeste apresenta uma
densidade demográfica (14,56) superior às das Regiões
Norte (0,73) e Centro-Oeste (1,60) e inferior às das Regiões
Leste (26,70) e Sul (30,47), sendo a média nacional 8,38
habitantes por quilômetro quadrado. Se, porém, considerarmos somente os estados do Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, que constituem
o assim chamado Nordeste Oriental, encontramos a densidade demográfica regional mais elevada do país (30,9
habitantes por quilômetro quadrado), superada apenas
por ailguns estados, isoladamente, da Região Leste e Sul.
São eles os estados da Guanabara, Rio de Janeiro e São
Paulo com, respectivamente, 2.824,22; 80,76 e 52,34 habitantes por quilômetro quadrado19.
3) População rural e urbana. O Nordeste é uma Região ainda tipicamente rural. Segundo os dados do Censo
de 60 o Nordeste assenta um índice de população rural
da ordem de 65,8% sendo a média nacional 54,9%. Com
excessão do estado de Pernambuco (55,1%), todos os outros estados do Nordeste apresentam contingentes de
população rural superiores a 60% das respectivas populações totais20.
Já por volta de 1950, tínhamos os seguintes índices de
população urbana para alguns países europeus e latinoamericanos: 82,9%, na Escócia (1951), 80,8% na Inglaterra
e Galles (1951); 71,1% na Republica Federal Alemã (1950);
62,7% na Bélgica (1947); 59,9 no Chile (1952) e 53,8% na
Venezuela (1950)21.
4) População ativa empregada na agricultura. Típico dos países ou áreas subdesenvolvidas é a alta per-
508
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
centagem de população ativa empregada toa agricultura.
Enquanto alguns países mais desenvolvidos têm hoje,
empregada na agricultura, menos de 20% de sua população ativa, o Nordeste tem ainda 64,4%, contra 42,6% para
o resto do Brasil (1960). Em 1960 o Nordeste apresentava
um índice de população ativa empregada na agricultura
(64,4%) ainda levemente superior ao do resto do país em
1940 (63,8%). Além disto, importa notar que a passagem
da população ativa nordestina da agricultura para outros
ramos de atividades é mais lenta do que no resto do país.
Assim, o contingente de população ativa empregada na
agricultura baixava de 74,9% em 1940 para 64,4% em 1960
no Nordeste e de 63,8% em 1940 para 42,6% em 1960 no
resto do país22. Isto equivale a dizer que, enquanto o Nordeste, no período de 1940 a 1960 transferia para outros
ramos de atividades 1/7, o resto do Brasil transferia, no
mesmo período, cerca de 1/3 das pessoas ativas ocupadas
na agricultura em 1940.
5) Estrutura etária da população. Se é verdade que
o Brasil é um “país de jovens”, esta afirmativa é mais
válida ainda para o Nordeste E esta é outra característica
de países ou áreas subdesenvolvidas Segundo estimativas dos peritos das Nações Unidas para o ano de 1947 a
população com menos de 15 anos era de 36% no mundo
todo, 40% na África, 40% na América Latina, 28% na Oceania, 25% na América do Norte e 24% na Europa do Norte,
Centro e Oeste23.
A população com menos de 15 anos no Nordeste era
da ordem de 43% em 1940 44% em 1950 e 1960, e prevêse que tenderá a subir para 45% em 1970, enquanto que,
no resto do Brasil, tenderá a baixar de 42% em 1940, 41%
ALCEU RAVANELLO FERRARO
509
em 1950 e 40% em.1960 para 39% em 1970 A população
compreendida nas faixas de idade entre 15 a 64 anos
tende a cair, no Nordeste, passando de 54% em 1940 para
52% em 1970, e a aumentar de 56% em 1940 para 59% em
1970 no resto do país24.
6) Vida média ou esperança de vida. Segundo estudo do Laboratório de Estatística do IBGE, no período
1940/1950 a vida média nas Regiões Leste e Sul atingia e
mesmo ultrapassava os 50 anos. Neste mesmo período a
vida média era de apenas 45 anos no Ceará; 42,7 no Piauí,
Rio Grande do Norte e Pernambuco; 42,4 na Paraíba; 41,2
no Maranhão e 38,8 em Alagoas.
A vida média no Nordeste, no período de 1945/1950,
equivalia à vida média verificada nos Estados Unidos em
1860 (41 M e 43 F: M = população masculina; F = população feminina); na Suíça em 1875 (41 Me 43 F) - na Alemanha em 1895 (41 M e 44 F). Aproximadamente no
mesmo período referente aos dados sobre o Nordeste, a
esperança de vida ao nascer era da ordem de 63 M e 66
F nos Estados Unidos (1945); 63 M e 67 F na Suíça (1945);
60 M e 63 F na Alemanha (1935); 66 M é 71 F na Áustria
(1945)25.
7) Natalidade e Mortalidade. A taxa de natalidade
no Brasil é das mais elevadas do mundo. A dos estados
nordestinos é mais elevada do que a do Brasil e, particularmente, do que as taxas de natalidade verificadas
nos estados das Regiões Leste e Sul. Em 1947 as taxas
anuais de natalidade por 1 mil habitantes para as regiões
do mundo eram as seguintes: 40-45 na África e na Ásia
(excetuado o Japão: 31 por 1 000)- 40 na América Latina;
25 nos Estados Unidos e Canadá; 28 na Europa Oriental;
510
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
23 na Europa Meridional; 19 na Europa Setentrional, Ocidental e Central; 18 na Oceania26.
Em 1950 a taxa de natalidade no Brasil foi estimada
em 43,05 por 1 mil habitantes: das mais elevadas do
mundo, por conseguinte. Ora, nesta mesma data, as estimativas do Laboratório de Estatística do IBGE davam
taxas da ordem de 48 por 1 mil para o Piauí e Ceará; 47
por 1 mil para o Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas
e Sergipe; 46 por 1 mil para o Maranhão e Bahia e 45 por
1 mil para Pernambuco. Para os estados do Sul e do Leste
as taxas de natalidade eram, na mesma data, bem menos elevadas. Assim tínhamos, por exemplo, 38 em São
Paulo; 43,5 no Paraná; 44 no estado do Rio de Janeiro;
38,5 no Rio Grande do Sul e 25 por 1 mil na Guanabara27.
Segundo estudo do demógrafo Giorgio Mortara, baseado no Censo de 1950 (28), 8 dos 9 estados do Nordeste
apresentam os índices mais elevados de natalidade entre
as Unidades de Federação. Temos assim em ordem decrescente, na data do Censo de 1950, os seguintes índices
de filhos tidos nascidos vivos por 1.000 mulheres prolíficas de 15 a 49 anos: 589,0 no Rio Grande do Norte; 588,8
na Paraíba - 556,9 no Ceará; 551,7 em Sergipe; 545,5 em
Alagoas; 539,9 em Pernambuco; 502,4 na Bahia e 491,7
no Piauí. Seguem-se as Unidades Federadas das outras
Regiões e o único estado do Nordeste — o Maranhão —
que apresenta índice de natalidade inferior a Estados não
nordestinos. O índice menos elevado se verifica na Guanabara (312 5) sendo de 465,5 a média nacional de filhos
tidos nascidos vivos por l mil mulheres prolíficas de 15
a 49 anos.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
511
Segundo o mesmo estudo, entre os 11 estados brasileiros que apresentam os índices mais elevados de filhos falecidos na data do Censo de 1950 por 1 mil filhos
tidos nascidos vivos, figuram todos os 9 estados nordestinos, ocupando os 1º a 7°, 10º e 11.° lugares, cabendo,
respectivamente, o 8º e 9o lugares, ao Pará e Amazonas,
ambos estados da Região Norte. Seguem-se, com índices
menos elevados, os outros Estados da Federação. Os índices extremos de filhos falecidos na data do Censo de
1950 por 1 mil filhos tidos nascidos vivos, se verificam
nos Estados do Rio Grande do Norte (363,9 por 1 mil) e
Rio Grande do Sul (116,7 por 1 mil), sendo de 219,7 por
1 mil a média nacional. Entre os Estados Nordestinos, somente o Piauí (209,9 por 1 mil) apresenta índice inferior
à média nacional.
8) Incremento da população. A tabela A-l.l nos permite tirar as seguintes conclusões sobre o incremento da
população do Nordeste confrontado com o incremento
da população nacional:
a) No período de 1940/50, apesar da emigração, a taxa
média geométrica anual de incremento da população
por 1 mil habitantes oscilava, nos estados do Nordeste,
em tôrno da média Nacional (24 por 1 mil). Enquanto,
do período de 1940/50 para o período 1950/60, esta taxa
se elevava, no Brasil todo, de 24 para 30 por 1 mil, todos
os estados do Nordeste — excessão feita do Maranhão,
que, devido à imigração, apresentava um alimento de 26
para 44 por 1 mil, e de Alagoas, que conservou a taxa
anterior (14 por 1 mil), a mais baixa do Nordeste — sofreram fortes quedas nas taxas de incremento das respectivas populações, ficando, no período de 1950/60, muito
aquém da média nacional neste período (30 por 1 mil).
512
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Esta queda na taxa de incremento da população no
Nordeste não se deve a uma diminuição da taxa de incremento vegetativo da população o aumento no plano
nacional nos faz supor, com maior razão, um aumento
no Nordeste — mas à intensificação da emigração.
b) Todos os estados do Nordeste acusam, no período
1950/60, taxas anuais de incremento das respectivas populações urbanas bem mais elevadas do que no período
1940/50. Contudo, o índice de crescimento da população
urbana no Nordeste não aumentou na mesma proporção
do verificado no país todo entre os períodos 1940/50 e
1950/60.
c) De outro lado, no período de 1940/50, a taxa média geométrica anual de incremento da população rural
por 1 mil habitantes no Nordeste — excessão feita de
Alagoas e Paraíba (11 e 13 por 1.000, respectivamente)
— era igual à média nacional, em Pernambuco (16 por
1.000), e superior, no Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará,
Maranhão e Piauí (17; 19; 23; 23 e 24 por 1.000, respectivamente). De 1940/50 para 1950/60 — exceção feita do
Maranhão, estado de forte imigração em suas áreas rurais — a taxa média geométrica anual de incremento da
população rural por 1 mil habitantes nos estados nordestinos sofreu as seguintes quedas: de 24 para 10 no Piauí;
de 23 para 9 no Ceará; de 19 para 9 na Bahia; de 17 para
1 no Rio Grande do Norte; de 16 para 5 em Sergipe; de
16 para 2 em Pernambuco; de 13 para 6 na Paraíba; de 11
para 4 em Alagoas. Nos Estados de Pernambuco (2 por 1
mil) e Rio Grande do Norte (1 por 1 mil) o incremento da
população rural, no período 1950/60, foi quase nulo. Essa
queda brusca na taxa de incremento da população rural
ALCEU RAVANELLO FERRARO
513
nordestina é devida ao aceleramento do processo de urbanização dentro do próprio Nordeste e à intensificação
da emigração das áreas rurais nordestinas para outras
Unidas da Federação, à procura de melhores condições
de vida.
3. ASPECTOS ECONÔMICOS
1) Distribuição regional da renda nacional. Comparando a distribuição regional da renda nacional com
a distribuição regional da população do país, temos os
dados seguintes29:
Estes dados evidenciam o desequilíbrio interno no
Brasil quanto à distribuição regional da renda nacional.
Com exceção do Centro-Sul, cuja contribuição na formação da renda nacional (79,4%) supera de muito sua contribuição na formação da população do país (60,49% ), em
todas as outras Regiões as respectivas contribuições na
formação da renda nacional ficam muito aquém de suas
contribuições na formação da população do país. Assim o
Nordeste, com 31,60% da população, representa apenas
metade (15,9%) — a contribuiçâo regional proporcionalmente mais baixa — do que lhe caberia, caso a renda
514
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
nacional se distribuísse entre as Regiões exatamente na
mesma proporção da população.
2) Renda per capita. Quanto à renda per capita aparecem os mesmos desníveis regionais. Considerando como
100% a renda per capita nacional em 1960, temos, em
ordem decrescente, como por cento da média nacional,
as seguintes rendas per capita regionais: 133,5% no Centro-sul; 60,7% no Norte; 59,3% no Centro Oeste e 50,6%
no Nordeste É no Nordeste, por conseguinte, que se encontra a renda per capita regional mais baixa — 50,6%
da renda per capita nacional. Importa ainda acrescentar
que, nos anos de 1955 a 1959, a renda per capita no Nordeste, como por cento da média nacional, oscilou entre
42 9% e 48,4%, inferior, por conseguinte, a verificada em
196030.
Os quatro estados da União, cuja renda per capita se
situa acima da média nacional — Guanabara (Leste), São
Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná (Sul), com, respectivamente, uma renda per capita equivalente a 291,0; 177,7;
120,0 e 110,7 por cento da renda per capita nacional representam 36,6% da população e 61,5% do produto nacional31.
Em 1958 a renda per capita no Nordeste era estimada
em USS 95 (na base de Cr$ 74,00 =U$ 1.-). Os 5 estados
nordestinos situados mais ao Norte apresentavam, no
mesmo ano, uma renda per capita inferior a US$ 100:
Maranhão (US$ 77), Piauí (US$ 53), Ceara (US$ 62) Rio
Grande do Norte (US$ 82), Paraíba (US$ 81), enquanto
que os quatro estados situados mais ao Sul superavam
levemente os US$ 100 per capita: Pernambuco (US$ 127),
Alagoas (US$ 109), Sergipe (US$ 118) e Bahia (US$ 107)32.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
515
3) Causas do desequilíbrio regional. No próprio Plano Trienal, já citado, são apontadas três causas deste desequilíbrio regional em desfavor do Nordeste: 1) o baixo
nível técnico, 2) as oscilações do mercado internacional
e 3) a política cambial brasileira ate 1955.
a) O baixo nível técnico. Tentemos ilustrar. Para cada
10.000 pessoas ocupadas em atividades agropecuárias
correspondiam, em 1960 4,4 tratores e 31,7 arados no
Nordeste; 4,9 tratores e 5,7 arados no Norte - 33,8 tratores
e 173,5 arados no Centro-Oeste; 25,5 tratores e 387,9 arados no Leste e 104,6 tratores e 1.833,6 arados no Sul, sendo a média nacional de 40,9 tratores e 664,8 arados por
cada 10 mil pessoas ocupadas em agropecuária33. Com
64,4% de sua população ativa empregada em atividades
agropecuárias (1960) e um tal nível técnico, explica-se a
baixa renda per capita no Nordeste e sua baixa participação da formação da renda nacional.
b) As oscilações do mercado internacional. “A renda
de importantes sub-áreas nordestinas está sujeita às oscilações do mercado internacional da xilita, do cacau, da
cêra de carnaúba, da mamona, do sisal e de inúmeros
outros produtos menores com respeito aos quais tem o
Brasil uma posição caudatária nos mercados internacionais”34.
c) A política cambial. O Plano Trienal vê, na política
cambial seguida pelo Governo em todo o após guerra até
1955, outra razão do desequilíbrio regional em desfavor
do Nordeste e atribui a recuperação do Nordeste a partir
de 1955, dentre outros fatores, a modificação da política
cambial que carreava para o Centro-Sul industrial mais
de 50% das divisas obtidas com as exportações nordes-
516
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
tinas. Mas os seguintes dados fornecidos pela SUDENE
referentes ao período posterior a 1955 nos levam a duvidar que o Nordeste, pelo menos ate 1961, se tenha beneficiado da nova política cambial. De fato, enquanto de
1956 a 1961 a participação do Nordeste na exportação
ascendia de 11,1% para 18,7% do valor total das exportações do Brasil, sua participação nas importações baixava
de 8,9% em 1957, para 7,0% em 1958, 5,8% em 1959, e
apenas 5,6% em 196135.
4) Indústria. Com 31,60% da população nacional,
o Nordeste contava em 1960, com 19,14% (21.120) dos
estabelecimentos industriais do país (110.339), e, em
1959, com apenas 12,3% (185 660) da média mensal de
operários ocupados em atividades industriais no Brasil
(1.509.713).
De outro lado, enquanto em 1959 a Região Sul, com
35,10% da população nacional, contribuía com 66,7%
para formação do valor total da transformação industrial
no Brasil, o Nordeste, com 31 60% da população nacional,
contribuía, no mesmo ano, com apenas 7,7%36.
5) Situação orçamentária. No ano de 1961 os municípios do Brasil gastaram, conjuntamente, em todos os
seus serviços, 63.573,6 milhões de cruzeiros. Desse total os municípios nordestinos (31,60% da população do
país) gastaram apenas 15,48%. Os municípios do estado
de São Paulo, com 18,28% da população brasileira, gastaram quase metade do total (48,12%). Assim os municípios
nordestinos, cerca de 5/3 da população dos municípios
paulistas, tiveram menos de 1/3 do orçamento dos mesmos municípios paulistas.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
517
A situação orçamentária dos estados nordestinos é relativamente ainda mais precária. Em 1962 os estados da
Federação gastaram, conjuntamente, 526.814 milhões
de cruzeiros. Desse total, apenas 8,1% foi gasto pelos 9
estados nordestinos, ou sejam, 42,703 milhões de cruzeiros. Couberam 45,25 % do total ao estado da Guanabara (4,66% da população nacional). De outro lado, o
Nordeste contribuiu com apenas 5,09% em 1960 e 4,85%
em 1962 para formação da receita total arrecadada pela
União.37.
6) Emissões de capital. O Nordeste, com 31,60% da
população do país, contou, respectivamente para cada
ano do período 1956-61, com apenas 4,7; 1,8; 1,9; 2; 5,9;
e 5,2 por cento do valor total das emissões de capital realizado pelas sociedades anônimas no Brasil38.
As emissões de capital no setor industrial no Nordeste
constituíram 4,5% em 1960 e 5,0% em 1961 do total das
emissões realizadas no setor industrial do país40.
7) Investimentos. Os investimentos de capitais estrangeiros no Brasil foram da ordem de US$ 104.175.700
em 1958; US$ 86.815.900 em 1959 e US$ 85.086.100 em
1960. A parte desses montantes investida no Nordeste foi
a ordem de 0,45% em 1958, 0,57% em 1959 e 3,46% em
196041.
Do total dos financiamentos autorizados pelo BNDE
(Banco do Nacional de Desenvolvimento) no Brasil, no
período 1952-1956,couberam ao Nordeste 9,4% (42). Posteriormente, com a atuação do BNB (Banco do Nordeste
do Brasil) e, principalmente, com a política de incentivos inaugurada pela SUDENE no decênio dos anos 1960,
acentuou-se a tendência nacional e estrangeira a investir
no Nordeste.
518
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
8) Consumo de energia elétrica. Em 1962, o consumo
de energia elétrica por habitante no Nordeste (56,49 kwh
por habitante) – embora levemente superior ao consumo
nas regiões Norte (48,25 kwh) e Centro-Oeste (52,93 kwh)
– não alcançava ainda o 1/5 do consumo médio por habitante no Brasil inteiro (305,00 kwh) e constituía menos
de 1/8 do consumo no Sul do país (470,00 kwh por habitante)43.
De 1962 para esta data, além de várias capitais, mais
de uma centena de cidades do interior nordestino foram
atingidas pela energia elétrica de Paulo Afonso, o que
significa não somente maior bem-estar, mas também e
principalmente, novas possibilidades industriais para a
região.
9) Estrutura agrária. A própria estrutura agrária do
Nordeste constitui, a nosso ver, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da região.
Em 1960 o estado do Rio Grande do Norte tinha um
total de 50,271 estabelecimentos agropecuários. Os 15
maiores estabelecimentos com 10.000 ou mais hectares, constituíam 0,03% dos estabelecimentos e ocupavam 18,20% da área total, ou sejam, 790.930 hectares.
De outro lado, os 21.115 estabelecimentos de menos de
10 hectares constituíam 42,00% dos estabelecimentos e
ocupavam 84.064 hectares, ou seja, 1,93% da área total.
Em outras palavras poderíamos dizer que, no Rio Grande
do Norte, os 15 maiores estabelecimentos agropecuários
ocupavam, em 1960, uma área quase 10 vezes maior do
que a área ocupada pelos 21.115 estabelecimentos de
menos de 10 hectares, sendo que a média destes era de
cerca de 4 hectares por estabelecimento44.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
519
No Nordeste, segundo o Censo de 1960 (tabela A-1.2),
os 213 (0,02%) estabelecimentos com 10.000 ou mais
hectares ocupavam uma área quase duas vezes maior do
que a área ocupada pelos 871.889 estabelecimentos com
menos de 10 hectares. De fato, enquanto aqueles ocupavam 7,73% da área total, estes ocupavam apenas 4,17.
Os 8.009 (0,57%) estabelecimentos com 1.000 ou mais
hectares ocupavam quase 1/3 (32,52%) da área total dos
1.407.441 estabelecimentos agropecuários do Nordeste.
No Nordeste, segundo indicações dos técnicos, a área
mínima para uma propriedade agrícola familiar, em
áreas completamente cultiváveis é de 10 hectares, devendo ser mais elevada, se somente parte da área for cultivável ou se o solo estiver muito cansado ou erosionado.
Os dados anteriores nos dão, assim, uma ideia do grave
problema do minifúndio, ao lado dos imensos latifúndios no Nordeste. “Na minha propriedade posso plantar
uma fileira de bananeiras, de meia légua de comprimento”, nos confiou um agricultor. Sua propriedade tinha
12 braças por meia légua. E um agrônomo nos afirmou
haver encontrado propriedades de alguns palmos de largura por quilômetros de comprimento. Em outros casos
— frequentes — são agricultores que cultivam nesgas de
terra, distantes uma da outra.
O problema do minifúndio apresenta maior gravidade no Nordeste do que no conjunto do país. Assim,
em 1960, os estabelecimentos agropecuários com menos
de 10 hectares constituíam 61,95% do total de estabelecimentos no Nordeste, contra 44,77%, no Brasil inteiro.
Se completarmos esta visão estática com uma visão
mais dinâmica do problema, veremos que este se apre-
520
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
senta ainda mais grave. De 1950 a 1960 os estabelecimentos com menos de 10 hectares passavam de 443%
para 44,77% no Brasil e de 53,24% para 61,69% no Nordeste45. Pode-se, por conseguinte, prever que a situação
se agravará atada mais nos próximos anos, se não houver
uma intervenção através de reforma agrária. É impossível desenvolver a agricultura nordestina com a estrutura
agrária atual, uma vez que pelo menos 61,95% dos estabelecimentos não proporcionam condições de manutenção de uma família e, muito menos, incentivos para investimentos em benfeitorias ou para investimentos em
benfeitorias ou para emprego de melhores técnicas de
produção.
Dos dados da tabela A-l.3 conclui-se que o aumento
relativo, de 1950 para 1960 dos estabelecimentos com
menos de 10 hectares se concentra nos estabelecimentos
de menos de 5 hectares e, principalmente, nos de menos
de 1 hectare (de 38.438 (4,55%) em 1950 para 115.709 (8
18%) em 1960) e nos de 1 a menos de 2 hectares (95.274
(ll’,28%) em 1950 para 228.817 (16,18%) em 1960).
É evidente, portanto, ao lado do processo de concentração verificado principalmente na zona açucareira na
zona açucareira, o rápido processo de pulverização por
que estão passando as pequenas e médias propriedades
rurais no Nordeste.
Importa ainda salientar que a maior parte das pessoas
ocupadas em agropecuária no Nordeste são assalariadas.
De fato, há 1 estabelecimento agropecuário para cada
cinco pessoas ocupadas em agropecuária: 1.407.441 estabelecimentos para 6.666.035 pessoas ocupadas em agropecuária em 1960. Ora esse número de estabelecimentos
ALCEU RAVANELLO FERRARO
521
talvez não corresponda a mais 1.000.000 de proprietários, de vez que, frequentemente, um mesmo proprietário tem duas e até várias propriedades.
Sintetizando, podemos dizer que, de cada 100 famílias
que vivem de agropecuária:
— 10-13 têm propriedades de 10 a mais hectares.
— 20-23 têm propriedades de menos de 10 hectares,
devendo, na sua maioria, recorrer a uma complementação através do arrendamento, da meação ou do trabalho
“alugado”.
— Cerca de 70 constituem a classe dos “sem-terra”, sejam eles a) os “moradores” das fazendas, que cultivam de
meia algumas mil covas i/2 a 2 hectares de terra), obrigando-se geralmente, a dar 2 3 e a e 4 dias de “sujeição”
na fazenda (trabalhando como assalariados), sejam b) os
“sem-terra” que residem nas cidades e povoados do interior e recorrem aos sistemas do arrendamento, da meação ou do trabalho “alugado”.
Quanto à utilização das terras ocupadas pelos estabelecimentos agropecuários recenseados em 1960, temos
os seguintes dados para o Nordeste- 9,04% de lavouras
(1,35% permanentes e 7,69% temporárias) - 29,1% de pastagens; 26,0% de matas; 26,3% de terras não exploradas e
9,58% de terras improdutivas (46). Ao lado das porções da
área total cobertas de mata ou pastagens ou consideradas improdutivas temos menos de 1/10 (9,04%) de áreas
cultivadas e mais de 1/4 (26 3%) de áreas não exploradas,
sendo que estas se encontram, na sua quase totalidade,
nas grandes propriedades.
522
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
4. ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR47.
O Nordeste, com uma população estimada em 31,32%
da população do país no fim de 1961, tinha, em 31-XII1961, 16,84% dos estabelecimentos hospitalares, 15,62%
dos leitos e 13,97% dos médicos em atividade nesses estabelecimentos, em todo o pais.
O Nordeste, com apenas 1,59 leitos por 1.000 habitantes
é a Região pior servida de leitos hospitalares, seguindo-se
o Centro-Oeste com 2,15; o Norte com 2,52; o Leste com
3,71 e o Sul com 4,43, sendo a média nacional de 3,19
leitos por 1.000 habitantes.
O mesmo se dá do ponto de vista médico. A 31-XII1961, o Nordeste era a Região pior servida de médicos,
contando com apenas 1,23 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares para cada 10 000 habitantes, seguindo-se as Regiões Norte com 1,43; Centro-Oeste
com 2,43; Leste com 3,17 e Sul com 4,00, sendo a média
nacional de 2,76 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares por 10.000 habitantes.
As diferenças entre os próprios estados nordestinos
são palpáveis. Enquanto Pernambuco apresentava 2,14
médicos (em atividade em estabelecimentos hospitalares) por 10.000 habitantes, os estados do Maranhão e
Piauí tinham, respectivamente, 0,59 e 0,61 por 10.000.
As capitais nordestinas são muito melhor servidas de
médicos do que o interior, tendo as primeiras um índice
médio de 6,96 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares por 10.000 habitantes (quase 3 vezes a
média nacional: 2,76), contra 0,41 por 10.000, no interior. O índice mínimo se verifica no interior do Mara-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
523
nhão (0,026 por 10.000). Neste estado, de 148 médicos
em atividade em estabelecimentos hospitalares em 31XII-1961, 142 médicos atendiam os 159.628 habitantes
da capital e os 6 restantes atendiam os 2.332.511 habitantes do interior.
As capitais nordestinas, com 12,82% da população regional, dispunham de 71,14% dos médicos em atividades
em estabelecimentos hospitalares em 31-XII-1961, enquanto que as capitais do Sul, com 19,83% da população
regional, contavam com 46,26% dos médicos, e as capitais do país todo, com 18,15% da população nacional,
contavam com 55,26% dos médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares no Brasil.
Podemos, por conseguinte, concluir que o Nordeste,
além de ser a Região pior servida de médicos (em atividades em estabelecimentos hospitalares) é a que apresenta maior concentração dos mesmos nas capitais.
5. ALFABETIZAÇÃO
Entre as Unidades da Federação, os 9 estados do Nordeste, segundo o Censo de 1950, apresentam os 1° a 8°
e 10° índices menos elevados de alfabetização entre a
população de 10 anos e mais, compreendidos todos entre 23,65% (Alagoas) e 33,63% (Sergipe) de alfabetizados.
O único estado nordestino que, em 1950, contava com
1/3 de alfabetizados entre sua população de 10 anos e
mais, era Sergipe (33,63%).
524
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
No outro extremo está a Região Sul com quase 2/3 de
alfabetizados entre a população de 10 anos e mais.
O estado da Guanabara (84,48%) apresentava o índice
de alfabetização mais elevado entre as Unidades da Federação, mas, no seu conjunto, a Região Leste fica abaixo
da Região Sul (48).
6. PARTICIPAÇÃO NA VIDA POLÍTICA
A tabela A-l. 4 mostra o grau de participação do Nordeste na vida política nacional, comparada com a participação do Sul e do Brasil todo.
Em 1960, 21,90% dos brasileiros, 25,30% dos sulistas
e 17,18% dos nordestinos eram eleitores. Arredondando,
podemos dizer que temos 1 eleitor para cada 4 habitantes no Sul, 1 para cada 5 no Brasil todo e 1 para cada 6
no Nordeste.
A percentagem de votantes sobre a respectiva população total foi a seguinte: 22,34% no Sul, 17,74% no Brasil,
11,79% no Nordeste. O Nordeste, com 31,60% da população do país, tinha apenas 24,79% dos eleitores inscritos e 21,00% do total de votantes no Brasil todo. O Sul,
com 35,01% da população da Federação, tinha 40,46% dos
eleitores e 44,00% dos votantes no Brasil inteiro.
Conclui-se, portanto, que, à baixa percentagem de
eleitores inscritos no Nordeste (17,18% da população regional), soma-se um menor comparecimento às urnas
por parte dos eleitores inscritos. De fato, nas eleições de
1960, apenas 68,61% dos eleitores inscritos no Nordeste
ALCEU RAVANELLO FERRARO
525
compareceram às urnas, ao passo que, no Sul, 88,28% dos
eleitores votaram.
Acrescente-se ainda que, embora com tendência a enfraquecer-se, o poder de controle do voto por parte do
“coronel” é um fato na política regional como o são também o “cabo eleitoral”, o “curral eleitoral’, o “cabresto” a
compra de votos e a fraude eleitoral. Embora estes fatos
não se verifiquem somente no Nordeste, o próprio sistema agrário, com o usineiro e o “coronel” todo-poderosos,
favorece e mantém esta situação.
Concluindo, podemos dizer que a maioria dos nordestinos estão à margem da vida política nacional, ou 1)
porque, sendo analfabetos, não têm direito ao voto, ou
2) porque muitos dos que votam não têm assegurada a
liberdade do voto.
7. POLÍTICA FEDERAL NO NORDESTE
1) A política nacional de “combate contra as secas”
pode ser considerada como a primeira fase da ação do
Governo com relação ao Nordeste. Já a partir de 1877
havia tendência a encarar as Secas do Nordeste como um
problema nacional.
Em 1909 era constituída a Inspetoria de Obras Contra
as Secas, atual Departamento Nacional de Obras Contra
as Secas (DNOCS). Teve como metas principais a construção de açudes e rodovias no Nordeste.
A Constituição de 1936 reservava um mínimo de 4%
da renda tributária da Federação para fazer frente aos
526
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
efeitos da seca. A Constituição de 1937 omitiu este parágrafo. A de 1946 voltou a admitir o princípio, estabelecendo uma quantia mínima de 3% da renda tributária.
A Lei n° 1.004, de dezembro de 1949, regulamentou o
princípio constitucional,’ estabelecendo o “fundo especial contra as secas”, reservando-lhe, porém, somente 1%
da renda tributária arrecadada no exercício anterior (49).
2) A CHESF. A 3 de outubro de 1945 o presidente
Getúlio Vargas assinava os decretos n.° 8.031 e n.° 19.706,
que determinavam a construção de uma usina elétrica,
utilizando a cachoeira de Paulo Afonso no Rio São Francisco, em território bahiano. Em 1948 Eurico Gaspar
Dutra decidiu efetivar a obra planejada por Vargas. Hoje
a energia de Paulo Afonso alimenta 7 capitais nordestinas (Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal e Fortaleza). Várias cidades do interior já recebem
energia de Paulo Afonso. Assim a CHESF (Companhia
Hidro-Elétrica de São Francisco) veio abrir novas possibilidades industriais no Nordeste. Técnicos afirmam que as
águas do Rio São Francisco poderão produzir 7.700.000
quilowatts, quando todas as suas potencialidades tiverem sido aproveitadas(os).
3) O BNB. A 19 de julho de 1952 foi criado o Banco do
Nordeste do Brasil (BNB), que iniciou suas atividades em
1954. Foi o início de uma nova orientação em face dos
problemas do Nordeste: não mais um programa defensivo contra as secas, mas um programa orientado para o
desenvolvimento da Região.
O BNB desde a sua instalação, vem promovendo estudos sobre os problemas nordestinos. Isto lhe foi possível
graças ao ETENE (Escritório Técnico de Estudos Econômi-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
527
cos do Nordeste), que, em virtude da própria lei que criou o Banco, integra o BNB, e à assistência das Nações
Unidas. Das sugestões do BNB e do técnico das Nações
Unidas, Stefan H. Robock, surgiu, em dezembro de 1959,
o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (51).
Em discurso pronunciado no Itamaraty em 1955 (52),
o Dr. Olavo João Galvão, então Diretor do BNB, observava
a falta de um estudo global do Nordeste, capaz de servir
de base para uma política de desenvolvimento da Região.
O mesmo BNB tem procurado cobrir esta lacuna através
de uma série de estudos de alto valor científico e prático,
publicados em seus Relatórios Anuais (53). O orador salientava ainda outro problema: a falta de coordenação
dos órgãos Federais atuantes no Nordeste.
4) A SUDENE. Após o I Encontro dos Bispos do Nordeste em Campina Grande, de 21 a 26 de maio de 1956,
o Presidente Juscelino Kubitschek lançou a Operação
Nordeste com o objetivo de promover o planejamento
regional e a articulação e entrosamento dos diversos
órgãos federais e particulares atuantes no Nordeste.
A 20 de fevereiro de 1959 foi criado o CODENO (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste), com a finalidade de coordenar e executar alguns projetos de ação
imediata.
A Lei no 3.692 de dezembro de 1959, extinguiu o CODENO e instituiu a Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste (SUDENE) A SUDENE foi o fruto de um longo
processo, do Império aos nossos dias. Contribuíram para
isso homens de Governo técnicos, a opinião pública e, de
maneira significante, o Episcopado Nordestino, através
dos I e II Encontros dos Bispos do Nordeste (1956 e 1959).
528
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
A SUDENE é o órgão de planificação e controle dos investimentos no Nordeste.
Em 1960 apareceu o primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento do Nordeste, o qual somente em dezembro de
1961 conseguiu a aprovação do Congresso. Em 1962 apareceu o Segundo Plano Diretor de Desenvolvimento do Nordeste, não mais para um ano, mas para um período de 3
anos (1963/65).
Nos últimos anos surgiram no Nordeste vários órgãos
de âmbito estadual, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos respectivos estados.
Concluindo, podemos dizer que o “aproach” do Nordeste em termos de desenvolvimento data do decênio
dos anos 50 e se concretizou numa política de desenvolvimento regional a partir de 1960, com a atuação da
SUDENE.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
529
NOTAS AO APÊNDICE 1
1. Veja Mapa nº 1.
2. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963
3. Id.,op cit
4. Para este parágrafo servimo-nos particularmente de: Manoel Correia de Andrade,
A terra e o Homem no Nordeste, Ed. Brasiliense, IBGE, geografia do Brasil – Grandes
Regiões Meio-Norte e Nordeste, Rio, 1962; Gilberto Freyre, Nordeste, José Olimpio, Rio,
1961 (3a ed.); Manoel Diégues Junior, “ Aspectos da sociedade nordestina” síntese
Política, Econômica e Social, 17(1963)87-91.
5. Gilberto Freyre, op. cit., p. 115.
6. Manoel Diégues Júnior, op. cit., p. 85.
7. Gilberto Freyre, op. cit., p.66.
8. Id., p. 64.
9. Id., p. 66.
10. Id., p. 65.
11. Id., p. 55.
12. Id., p. 160.
13. IBGE, Grandes Regiões..., op. cit., p. 113.
14. Manoel Diégues Júnior, op. cit., pp. 86-87.
15. Id., p. 87.
16. Id., p.88.
17. Manoel Correia de Andrade, op. cit., p. 160.
18. IBGE. Anuário Estatístico do Brasil, 1962 e 1963.
19. IBGE. Anuário Estatístico do Brasil, 1963.
20. Id., ib.
21. ONU, Demographic wearbook, 1955.
22. USAID, statistical Tables Relating to Northeast Brazil. Rio-Recife, 1963, Tabela
17.
23. NATIONS INIES, causes et conseguences de l’évolution démographique, Nations Unies. New York, 1953.
24. USAID, op. Cit., Tabela 6.
25. NATIONS UNIES, op. cit., p. 61.
26. Id., ib.
27. IBGE, Contribuições para o estudo da Demografia do Brasil, p. 65.
28. Giorgio Mortara, “A fecundidade da mulher no Brasil segundo as Unidades
da Federação”, revista brasileira de Estatística, janeiro/junho de 1963, tabela
à p. 39.
29. Presidência da República, Plano Trienal de desenvolvimento Economico e
social, 1963-1965 – (síntese), Dezembro de 1962, p.84.
30. Id., p. 86.
31. Id., p. 86.
32. SUDENE, The Brazilian Northeast – SUDENE and its First Guiding plan,
Recife, 1962, p. 2.
33. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963.
34. Presidência da República, op. cit.
35. SUDENE .Estatísticas Nordestinas, Recife p. 30.
36. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963.
37. Id., p. 18.
38. Id., p. 25.
530
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
39. SUDENE, Estatísticas Nordestinas, Recife, p. 18.
40. Id., p. 18.
41. Id., p. 25.
42. Id., p. 27.
43. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963
44. Id., ib.
45. Id., ib.
46. SUDENE, Boletim Estatístico, Vol. I, nº 11 (1963) 381.
47. Percentagem e indices calculados, tendo como base os dados fornecidos
pelo IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963.
48. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil,1956.
49. Fernando de Oliveira Mota, “A SUDENE e o planejamento regional”, Sintese política, Econômica e social, 17 (1963) 33-48.
50. Apolonio Sales, A Cachoeira de Paulo Afonso e o Nordeste, Sintese Política,
Economica e Social, 17(1963) 49-54.
51. Em 1949 o Grupo de trabalho para o desenvolvimento do Nordeste publicava uma Política de desenvolvimento Economico para o Nordeste, imprensa
Nacional, Rio.
52. Olavo João Galvão. O desenvolvimento Economico do Nordeste- Ausencia
de coordenação Regional, Rio, Julho de 1955.
53. Desde 1955 o BNB vem consagrado boa parte de seus relatórios de Exercício (anuais) e estudos sobre a economia nordestina. Estes figuram entre os
melhores estudos sobre a região.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
531
APÊNDICE II
ERRO PADRÃO E VIÉS
Sobre as fórmulas e, de modo geral, sobre o método
de amostragem (replicated subsampling) veja: 1) W.
Edwards Deming, Sample Design in Business Research,
John Wiley and Sons, New York, 1960, 517 p e 2) W. J.
Mehok, “An Introduction to Replicated Subsampling”,
Social Compass, X/6 (1963) 525-535).
1. DETERMINAÇÃO DO TAMANHO DA AMOSTRA
N = 929: unidades elementares (famílias), cuja lista serviu de base para a formação da amostra.
n = número de unidades elementares incluídas na
amostra.
op = 0,02: percentual de erro padrão por unidade, que,
multiplicado por 2, dará os limites de erro que não deverão ser ultrapassados na pesquisa.
o2 (0,50) (0,50): variança da distribuição binomial.
Temos assim, segundo a fórmula acima:
ALCEU RAVANELLO FERRARO
533
N/n = 939 (0,02/0,50)2 + 1 = 2,502 e, arredondando =
2,5.
Por conseguinte, n (número de unidades elementares
a serem incluídas na amostra) = 939/2,5 = 375,6 e, arredondando, = 376.
2. ESTIMATIVAS DE VIÉS E ERRO PADRÃO
Nomenclatura:
F = frequência de determinada característica (tipo de
resposta) na amostra, isto é, nas 10 subamostras conjuntamente.
f = frequência de determinada característica em cada
uma das 10 subamostras.
Mf = média das frequências nas 10 subamostras.
F max = frequência máxima nas subamostras.
Fmin = frequência mínima nas subamostras.
of = erro padrão.
2 of = 2 vezes o erro padrão.
M. F. = multiplicador finito.
K = número de subamostras (k = 10, no caso).
534
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
O multiplicador finito a ser empregado a seguir nos
calculus de erro padrão apresenta três valores distintos.
a) Em perguntas respondidas somente pelos chefes,
b) Em perguntas respondidas pelos chefes e por 50%
dos outros membros de 14 e mais anos,
c) Em perguntas respondidas pelos chefes e por 50%
dos outros membros de 18 e mais anos,
O erro padrão foi calculado para 13 perguntas do questionário A, tomadas ao acaso, num total de 41 tipos de
respostas (características). A distribuição de frequência
dos 41 valores correspondentes, assim obtidos, evidencia que a margem de erro efetiva na pesquisa tende a
concentrar-se em tômo de + - 2,500 a 2,999%, a um nível,
portanto, bem mais baixo do que os limites estabelecidos na formação da amostra (+ - 4%). Quanto ao viés (erro
imputável não a oscilações da amostragem, mas a outras
eventuais causas), os valores calculados geralmente não
superam os dois décimos de 1%.
Seguem, nas páginas seguintes: 1) os 41 valores do erro
padrão e do viés, obtidos com base nos dados da pesquisa
e 2) a distribuição de frequência dos 41 valores de 2 vezes
o erro padrão.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
535
536
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
537
APÊNDICE III
DOCUMENTOS
Transcrevemos neste Apêndice alguns documentos
aos quais já nos referimos no texto.
A. DOCUMENTOS RELACIONADOS COM A CAMPANHA
DE POLITIZAÇÃO
A.1 — Amigo, juntos nós pensamos...: extraído da
4 página do 1o Caderno de Politização, do qual foram
distribuídos milhares, em 1962, para serem lidos, estudados e discutidos. O estilo direto, incisivo, claro, e os
caracteres grandes tornam o texto legível e inteligível
também ao “matuto” semi-alfabetizado, mesmo quando
curto de vistas!
A.2 — Avante, homem do campo: mensagem de
politização. traduzida em versos, pela monitora Maria
Bezerra (Boa Vista — Cêrro Corá), para a sua comunidade.
A.3 — Circular da Província Eclesiástica do Rio Grande
do Norte: orientação aos católicos em face das eleições
o
538
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
539
de 1962, que se avizinhavam. Traz a assinatura dos três
bispos do estado.
A.4 – 10 Conselhos práticos para os cristãos se orientarem nas eleições: “suelto”, baseado na Circular e distribuído aos milhares pelo interior.
A.5 — Voto não se vende, consciência não se compra:
“suelto”, também fundado na Circular, mais direto, mais
incisivo, legível à distância, distribuído e afixado pelo interior.
A.6 — Migrante Nacional: “suelto” lançado no Dia do
Migrante.
DOCUMENTO A1
AMIGO,
JUNTOS NÓS PENSAMOS:
nos salários que assassinam crianças
nos barrações que furtam o suor
nas fábricas que pedem matérias primas
na nossa economia que precisa se equilibrar
nas propriedades imensas sem aproveitamento
nas pequenas demais, que não dão para a gente viver
nas áreas enormes sem dono
nos preços injustos
nos trustes que engolem tudo.
Na terra de quem muito pedimos e nada damos...
Pensamos, enfim, na NOSSA AGRICULTURA
Agricultura de um país RICO e IMENSO
Agricultura do MEU e SEU Brasil
Agricultura que exige reforma
540
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
REFORMA que exige HOMEM
Homens sérios e honestos escolhidos por VOCÊ
POR SEU VOTO
REFORMA que, sobretudo:
necessita de um POVO que a queira
POVO que a exija
Povo que é feito por cada um de NÓS
POVO que é VOCÊ!
DOCUMENTO A.2
Avante, homem do campo
Para a luta! Alerta! Alerta!
Queremos Reforma Agrária
E Escola, porque desperta!
Trabalhadores rurais,
Precisamos de Sindicatos,
De Escola Radiofônica,
Lutar, ser unidos e libertos.
Com Sindicato rural
Camponês tem liberdade:
Fica livre da escravidão,
Marcha para a libertação.
O Sindicato é arma de luta,
A Escola é luz que avulta
Por justiça, paz e amor.
Alerta, gente, alerta!
ALCEU RAVANELLO FERRARO
541
Camponês, o Sindicato
É esperança do País.
A Escola Radiofônica Traz luz,
bom senso diz.
Nesta minha poesia
Digo ao povo em geral:
Viva a Escola Radiofônica!
Viva o Sindicato Rural!
DOCUMENTO A.3
CIRCULAR DA PROVÍNCIA ECLESIÁSTICA
DO RIO GRANDE DO NORTE
Fora e acima da política partidária, a Igreja cumpre o
dever de alertar seus filhos eleitores, sobre a responsabilidade que tem diante de Deus, na escola de dirigentes
capazes e dignos.
Constatamos que cresce o desejo de mudança das
atuais estruturas sociais, dentro do exposto nas Encíclicas Pontíficias. Por outro lado sistema de escolha de candidatos e os meios de procurarem votos continuam infelizmente, sem a necessária modificação. Nem sempre
o bem comum fica acima dos interesses de grupos e, o
que é mais grave, aproveitando-se da ignorância, boa fé e
generosidade dos eleitores, usa-se de meios condenáveis
para explorá-los e orientá-los indevidamente. No meio
das falhas da atual lei eleitoral procurem os eleitores
cumprir da melhor maneira, seu dever nas eleições que
se aproximam. Para isso damos algumas normas:
542
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
1 — Condenamos veementemente a influência dos
grupos econômicos e do próprio dinheiro na escolha de
candidatos e na aquisição de votos Os que assim fazem
respondem, diante de Deus, pelo mal social que provocam. Lembramos que não se pode vender voto Amizade
se paga com amizade; dinheiro com dinheiro; favor com
favor. Mas nada disso se retribui com voto. Este deve ser
dado com consciência e por ele responderemos diante
de Deus.
2 — Insistimos que votem nos melhores entre os bons.
Assim não podemos sufragar, às urnas:
a) — Os candidatos comunistas ou outros sobre os
quais pesam prudentes suspeitas de serem comunistas
ou de tendências marxistas;
b) — Os que defendem princípios errados de capitalismo liberal, e, por atos, tenham-se rebelado contra a
adoção dos princípios da dou. trina social da Igreja.
3 — Lembramos que católico não é aquele que faz favores à Igreja que vai apenas à Missa ou fala em Deus.
Merece confiança do eleitorado o que demonstra seu
cristianismo por sua vida e não somente pela participação de atos isolados.
4 — Devemos tomar em consideração também a
eficiência do candidato. Se ele possui capacidade de fazer
algum bem à coletividade.
5 — Salva a exceção concedida pela Diocese de Caicó, continuamos frontalmente contrários à inclusão de
membros do clero como candidatos às eleições ou sua
participação em campanhas políticas.
Queremos lembrar aos católicos que dirigem partidos
ou que têm influência nos mesmos sua grave responsabi-
ALCEU RAVANELLO FERRARO
543
lidade na escolha de candidatos a serem apresentados
aos eleitores. A política está sujeita à moral: não é uma
atividade estranha às relações com a Igreja. Condenamos
a inclusão de elementos comunistas, como também os
que dificultam a justiça social e a aplicação da Doutrina
Social da Igreja.
Ê necessário que fique bem claro não ser o marxismo
o único mal O capitalismo liberal com uma mentalidade
burguesa e egoísta é tão prejudicial à Igreja e à sociedade como o comunismo. Queremos também alertar os
dirigentes e dirigidos, políticos de todos os partiria para
que não conturbem ainda mais a vida da família norterio-grandense através de ataques pessoais fazendo, de
uma demonstração democrática, um triste espetáculo
de ataques, o que mesmo em um país pagão seria deprimente. Precisamos de paz para o Rio Grande do Norte.
É esta a nossa missão de Pastores. Ensinamos com a
consciência tranquila por termos falado com energia,
clareza e em momento oportuno.
A todos os sacerdotes e leigos desta Província Eclesiástica concedemos bênção paternal.
a) — DOM EUGÊNIO DE ARAÚJO SALES, Administrador Apostólico de Natal, — DOM MANUEL TAVARES DE
ARAÚJO, Bispo de Caicó, — DOM GENTIL DINIZ BARRETO, Bispo de Mossoró.
544
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
DOCUMENTO A.4
10 Conselhos Práticos para os Cristãos
se Orientarem nas Eleições
1º — É preciso mudar o estado de injustiça social e de
falta de segurança em que vivem milhões de Brasileiros,
nas cidades e nos campos.
2º — Só se pode conseguir isso pelo voto em pessoas de confiança, e que não enganem mais o povo com
promessas, e que demonstrem seu cristianismo pela vida
ho-nesta que têm.
3º — Está condenado pela carta circular dos srs. Bispos, o velho costume de se conseguir o voto dos pobres
a troco de favores, de dinheiro ou por ameaças. Isso é
um crime contra a Lei do nosso País e um pecado contra
Deus. Chama-se suborno da consciência alheia e opressão
aos humildes.
4º — A administração pública não é propriedade particular de ninguém, nem é herança de nenhuma família,
e nenhum chefe é dono de município. Qualquer cidadão
honesto pode concorrer às eleições. Isso se chama democracia, isto é, o poder do povo.
5º — O cristão só tem compromisso com a verdade e
o bem. Não vota por partido nem por simpatia. Vota nos
melhores, que garantem o futuro cristão do nosso Brasil.
Você está obrigado a isso. Se você votar mal, vai fazer
mal ao Brasil e à nossa religião.
6º — Não há grande nem pequeno perante a Lei. Seu
voto vale tanto como o voto do Bispo ou do Governador.
Seu voto é soberano.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
545
7º — O voto é secreto. Se você não disser a ninguém,
ninguém saberá com quem você votou. A Lei do País garante o segredo do seu voto, e o sindicato defende também.
8º — Se você quiser ajudar a melhorar, vote nos melhores. Chegou a hora. Não marche mais na conversa
daqueles que só vão à sua casa em tempo de eleição.
9º — Se você deve dinheiro ou favor aos homens da
política pague-lhes na mesma moeda: dinheiro se paga
com dinheiro, e favor se paga com favor. Não pague nada
com seu voto, porque o voto é a arma do cidadão. O cidadão que vende sua arma é um traidor, vendendo sua
consciência.
10º — Está sofrendo porque quer, votando só para
meia dúzia se engrandecer. Mude agora. Seja um homem
livre, votando nos melhores, garantindo o progresso da
nossa Religião. Use da consciência.
O SEU VOTO é a sua LIBERDADE; dele depende um
BRASIL LIVRE ou um BRASIL ESCRAVO.
O BRASIL precisa de seu VOTO CONSCIENTE para
CRESCER e não ser explorado.
Compromissos com candidatos? O CRISTÃO SÓ TEM
UM COMPROMISSO: COMPROMISSO COM A VERDADE.
Pense antes de votar. VOTO É COISA SAGRADA.
Portanto lembre-se: assim como do inverno dependem boas colheitas, do seu VOTO depende o BRASIL DE
AMANHÃ.
CAMPONÊS precisamos de uma LEI FORTE e poderosa.
LEI que MODIFIQUE a nossa SITUAÇÃO. PRECISAMOS DE
REFORMA AGRÁRIA CAMPONÊS QUE VENDE SEU VOTO,
VENDE A REFORMA AGRÁRIA.
O CAMPONÊS CONSCIENTE SABE QUE SEU VOTO É
LIBERDADE. SABE QUE VOTO NÃO SE VENDE E CONSCIÊNCIA NÃO SE COMPRA.
VOCÊ É RESPONSÁVEL PELO QUE HOUVER D’AGORA
POR DIANTE
DOCUMENTO A.6
DOCUMENTO A.5
VOTO NÃO SE VENDE,
CONSCIÊNCIA NÃO SE COMPRA
Companheiro Trabalhador Rural!
De seu voto, depende o seu futuro e o futuro do Brasil.
Vote em políticos que pensem, realmente, nos problemas do campo.
546
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
HERÓICO PEREGRINO CONSTRUTOR
DO PROGRESSO BRADO HUMANO E JUSTO
CONTRA A FOME E A MISÉRIA SANGUE VIVO
QUE IRMANA NORTE E SUL,
MIGRANTE NACIONAL
2 DE DEZEMBRO — É O SEU DIA
E é este pioneiro de um Brasil que surge
É este semeador de Desenvolvimento
Pioneiro e semeador que nada colhe
Que GRITA por você que é Autoridade
ALCEU RAVANELLO FERRARO
547
por você que é Estudante
por você que é Operário
por você que compreendeu a mensagem do Cristo.
Compreendeu e vê nestes retirantes de nossas estradas.
para a entrega solene da ambulância num domingo após
a missa de 11 horas, poucas semanas antes das eleições
de outubro de 1962. A pedido do vigário, omitimos seu
nome, bem como o do candidato, do município e da Maternidade.
CRISTOS vivos a CLAMAR
DOCUMENTO B.1
Por viagens que lhes ofereçam bem-estar digno de homens
Por serviços que os orientem na saída e localização
N. N., 6 de agosto de 1962.
de trabalho
Serviços que os integrem, de fato, no lugar onde viver
Serviços que deles afastem o fantasma do desemprego,
da desvalorização pessoal
Serviços que os façam sentir-se elementos VIVOS, ÚTEIS,
AMADOS:
SERVIÇOS ENFIM, que lhes tragam JUSTIÇA.
SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA RURAL
Setor de Migração do Sar Pça.
Pio X, 335 — Natal — RN
B. O CASO DA AMBULÂNCIA
O caso já foi comentado no Capítulo XII. O Documento B.1 é a carta dirigida pelo vigário, Diretor da Maternidade, ao candidato, prevenindo-o de que de modo algum aceitaria a ambulância que, segundo soubera, lhe
seria entregue num gesto eminentemente eleitoreiro.
No Documento B. 2 o vigário se justifica, perante o povo,
pela recusa, quando do comparecimento do dito candidato, acompanhado de uma comitiva de políticos locais,
548
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Prezado amigo N.N.
Cordiais saudações.
Estou seguramente informado de que o sr. virá, qualquer dia, oferecer uma ambulância à Maternidade N.N,
da qual sou Diretor. Dada a inoportunidade do oferecimento, em vista de um ano eminente eleitoreiro, quero
justificar minha formal recusa, esclarecendo-lhe o que
se segue.
Há vários anos, esta Arquidiocese, numa espetacular
campanha de educação e promoção do homem do campo, decidiu enfrentar a realidade dos 70% de analfabetos,
doentes e sem proteção legal, como único meio de escaparmos às soluções violentas da esquerda ou da direita. Esta campanha, já conhecida no estrangeiro como
“Movimento de Natal”, visa principalmente a promoção
humana e espiritual do homem do campo, tornando-o
capaz de mudar as atuais estruturas socioeconômicas injustas, decorrentes do liberalismo capitalista dominante.
Todo esse Movimento é vazado na mais pura doutrina
social da Igreja, que abençoa o associativismo — cooperativas e sindicatos — como meios poderosos de defesa
contra a opressão política ou econômica, como também
ALCEU RAVANELLO FERRARO
549
contra o favoritismo paternalista, deseducador e humilhante, que infelicita nossa Pátria, há tanto tempo, e que
é largamente exercido às vésperas dos pleitos. Claro que
essa educação vai prejudicar muita gente que não quer
largar o cabresto, que não quer sindicato rural nem nada
que esteja fora do alcance dos interesses particulares ou
de grupos e, certamente, muitos se constituirão inimigos
da Igreja.
Pouco importa. Os 70% dos habitantes do campo, quase
marginais, serão educados pela Mãe e Mestra que tem garantia divina de assistência perene, e que só se prejudica
quando seus ministros põem mais confiança no dinheiro
do que em Deus.
Depois de tudo isso, meu caro N., o Sr. me acha com
cara de receber um favor de repercussão política na sua
campanha eleitoral, no momento em que nós divulgamos, por todos os recantos do Rio Grande do Norte, que
“Consciência não se vende” e “Voto não se compra”?
Mais do que de ambulância, nós precisamos — e os
Bispos pediram — das reformas de base, que o Parlamento conservador não quis votar, este ano, para fazer o jogo
macabro das eleições por dinheiro e se manter mais 4
anos na omissão suicida.
Continuo seu amigo, mas, antes, sou Pastor e Educador
do rebanho que Deus me confiou. Não serei mercenário.
Não sou político nem faço campanha, mas vou votar declaradamente em Dr. N., porque é necessário mudar e
me parece o melhor. Todo homem livre faz assim.
Amo. Obr.
(Assinatura do vigário).
550
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
DOCUMENTO B .2
I PARTE
A posição da Igreja no Brasil, na hora presente, é de
vanguarda. O nosso País chegou à beira do abismo, da
convulsão social, mas os responsáveis pela nação não
acreditam no perigo iminente e continuam a agravar a
situação. Só os ensinamentos da doutrina social e a força
moral da Igreja talvez nos possam salvar.
Os Bispos do Brasil mandaram que os vigários organizassem o povo católico para uma renovação verdadeira
em todos os sentidos.
II PARTE
Qual é a causa de toda essa angústia nacional? Será
a inflação, o aumento de salário, a industrialização, as
secas?
Nada disso.
A grande causa, a grande chaga, é o sistema capitalista
egoista que domina o país e se agravou horrivelmente
nesses últimos 50 anos. Não temos leis para o campo.
70% estão desassistidos. As leis do Banco não permitem
maior circulação das riquezas que se concentram nas
mãos dos cada vez mais ricos, que, por sua vez, fazem
pressão e ameaças aos mais pobres, pelo poder do dinheiro. Os brasileiros não foram educados para governar
e continuam governando como nossos avós, que foram
donos de escravos. Até hoje só mudou nisso: não compram mais escravos na África. Mas a maneira de domínio
sobre as pessoas continua do mesmo jeito nas mãos dos
que têm dinheiro ou mandam, na política e se livram de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
551
todos os crimes que cometem. Criou-se, assim, a classe
dos privilegiados que não chegam a 30% dos brasileiros.
Eis aqui, meus amigos, a grande chaga, o grande sofrimento do País, a causa do desassossêgo da Nação: o resto
dos brasileiros, mais da metade da população (70%), vivem em condições de desespero, em regime de fome,
doentes, analfabetos. 9 milhões de crianças do Brasil não
têm escola para entrar, e grande parte dos professores é
de afilhados dos chefes, que não sabe ensinar. Neste País,
a desgraça cia opressão chegou ao ponto de se anular os
direitos individuais e intransferíveis da pessoa humana,
feita à imagem e semelhança de Deus. De modo que o
brasileiro humilde que não for adulador ou escravo, terá
de andar com os cacarecos na cabeça, sem pouso certo.
No campo, muitos patrões se consideram não só donos
da terra, mas também donos dos próprios moradores, e
até da honra das suas filhas, e os que foram às vezes processados nunca ficaram na cadeia. Compram o algodão
na folha ou o feijão na época barata a 180,00 e vendem
aos mesmos em serviço a 400,00. Para frisar mais o crime
que está praticando o capitalismo egoista, tomaram conta de todas as cooperativas que eram uma tentativa para
melhorar a circulação do dinheiro até aos mais pobres.
No Nordeste existem 602 cooperativas, mas só funcionam 84. As outras fecharam ou venderam farinha aos
sócios, ou ficaram para reemprestar dinheiro do Banco
no ano das eleições.
Cometem toda a sorte de injustiças, fiados no dinheiro, porque o dinheiro pode tudo. E no ano das eleições
nós assistimos o triste espetáculo da procura de eleitores
e votos a troco de extração de dentes, de consultas, de fa-
552
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
vores, de dinheiro, e de ameaças, num verdadeiro desassossêgo das famílias humildes, só para eles se manterem
nas mesmas posições de senhores todo-poderosos.
É contra tudo isso que a Igreja se levantou de Norte a
Sul, conclamando seus filhos para se unirem e promoverem o bem estar da Nação, espremendo esse tumor que
é o capitalismo egoista ou opressão da pessoa humana.
Os padres não podem mais ficar com esse processo de
democracia tirana porque é um pecado que brada aos
céus. Por isso minha atitude é muito clara e desgosta a
muitos. Nada inventei da minha cabeça, e todo aquele
que ouve a voz da Igreja deixa a paixão partidária e ouve
a voz do pastor. Faço questão de todo mundo saber que o
vigário de N. N. é pastor e educador do rebanho que Deus
lhe deu e não se humilha a nenhum grande da terra, por
dinheiro ou favor. Enquanto vida tiver, gritarei contra
as injustiças e as misérias. Só tenho compromissos com
Nosso Senhor. Farei tudo o que estiver
ao meu alcance para mudar essa situação, pela educação e pela orientação. Farei tudo pelo sindicato rural
e pela cooperativa do Centro. Um dia, o povo terá dinheiro, sem precisar tomar a bênção aos grandes e sem
vender sua consciência nas eleições.
Fui encarregado pelos Srs. Bispos para orientar os outros padres, desde o Maranhão até a Bahia. Logo que for
possível terei um padre para me ajudar aqui. Então, terei
mais tempo para ajudar a organizar os católicos numa
grande força de progresso, de paz, de justiça, de respeito
à pessoa do próximo, e de amor fraterno.
Só se conseguirá isso, através da educação, do associativismo, e elegendo os melhores, sem cor partidária.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
553
Por isso é que os Srs. Bispos mandaram os padres orientar agora. Vejam a circular dos 3 Bispos do Rio Grande
do Norte e os 10 conselhos práticos.
ANEXO I
QUESTIONÁRIOS
A IGREJA E O DESENVOLVIMENTO
DE COMUNIDADES RURAIS
Questionário aplicado a 365 chefes de família em 8 comunidades do interior.
554
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
555
NORMAS PARA PREENCHIMENTO
E INTERPRETAÇÃO DA FICHA FAMILIAR.
556
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
557
558
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
559
560
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
561
562
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
563
564
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
565
566
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
567
ANEXO II
TABELAS
568
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
569
570
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
571
572
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
573
574
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
575
576
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
577
578
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
579
580
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
581
582
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
583
584
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
585
586
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
587
588
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
589
590
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
591
592
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
593
594
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
595
596
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
597
598
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
599
600
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
601
602
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
603
ANEXO III
GRÁFICOS E MAPAS
ALCEU RAVANELLO FERRARO
605
606
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
607
608
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
609
610
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
611
612
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
613
ANEXO IV
BIBLIOGRAFIA
A
No que se relaciona com o MOVIMENTO DE NATAL,
seria demasiado longo citar todos os documentos utilizados neste trabalho. Além disto, trata-se, geralmente,
de documentos inéditos. De modo geralmente, fizemos
uso do diário A Ordem, especialmente com referência aos
anos de 1940 a 1951, e da documentação dos arquivos
da Juventude Masculina Católica (J.M.C.), da Juventude
Feminina Católica (J.F.C.), do Secretariado Arquidiocesano de Pastoral. No capítulo XII fizemos abundante uso da
documentação dos arquivos particulares de D. Eugênio
(sermões, palestras, alocuções, discursos, conferências),
referente aos anos de 1944 a 1964, material quase todo
inédito.
B
ANDRADE, Manoel Correia de - A Terra e o Homem no
Nordeste, Ed. Brasiliense, 1963.
BELTRÃO, Pedro Calderan – Sociologia do Desenvolvimento, Ed. Globo, Porto Alegre, 1965.
614
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
615
BEZERRA, Safira – Pela Valorização do Meio Rural, Natal, março de 1959 (Trabalho de Conclusão de Curso, datilografado, Biblioteca da Escola de Serviço Social).
CALAZANS, Maria Julieta Costa – Sindicato, SESI e Serviço Social, Natal, 1959 (Trabalho de Conclusão de Curso,
datilografado, Biblioteca da escola de Serviço Social).
CALVEZ, Jean Yves- La Pensée de Karl Marx, Èditions
du Seuil, Paris, 1956.
CLOIN, Tiago G. – “O Movimento de Natal”, Revista da
conferência dos religiosos do Brasil, julho de 1962.
COLLARD, Alberto – NEBRA – O Nordeste na Encruzilhada dos Caminhos, (tradução de “N.E.BRA – Au NordEst brésilien”), Edições “DIMANCHE”, Mons, 1964.
CÚRIA METROPOLITANA – Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de Natal, Natal, 1960.
DANTAS, D. Marcolino E. – “Juventude Feminina
católica”, SURSUM, 1946.
DEMING, W. Edwards – Sample design in Business Research, John Wiley and Sons, N. York, 1960.
DIÉGUES JUNIOR, Manoel – “Aspectos da sociedade
nordestina”, Síntese Política, Econômica e Social, 17
(1963) 87-91.
FREIRE, Gilberto – Nordeste, José Olímpio, Rio, 1961,
3ª Ed.
GALVÃO, Olavo João – O Desenvolvimento Econômico
do Nordeste – Ausência de Coordenação Regional, Rio,
julho de 1955.
GRUPO DE TRABALHO PARA O DESENVOLVIMENTO
DO NORDESTE – Uma Política de Desenvolvimento Econômico
para o Nordeste, Impresa Nacional, Rio.
616
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
IBGE – Anuário Estatístico do Brasil, 1956, 1962 e 1963.
– Contribuições para o Estudo da Demografia do Brasil, 1961.
– Geografia do Brasil – Grandes Regiões Meio-Norte e
Nordeste, Rio, 1962.
MEB – Educar Para Construir, Gráfica do SAR, Natal,
1964.
MEHOK, W.J. – “An Introduction to Replicated Subsampling”, Social Compass, X/6(1963)525-535.
MORTARA, Giorgio – “A fecundidade da mulher no Brasil, segundo as Unidades da Federação”, Revista Brasileira
de Estatística, Janeiro/Junho de 1963.
MOTA, Fernando de Oliveira – “A SUDENE e o Planejamento Regional”, Síntese Política, Econômica e Social,
nº 17, 1963.
NAÇÕES UNIDAS – causes et consequences de l´evolution démographique, Nações Unidas, N. York, 1953.
– Demographic Yearbook, 1955.
NEAL, Marie Augusta – Values and Intgerests in Social
Change.
PARSONS, Talcott – “Introdução” (pp. XIX – LXVII) em
The Sociology of Religion de max Weber, op. cit.
PASSOS, John dos – O Brasil Desperta (tradução do original inglês “Brazil On The Move”), Distribuidora Record,
Rio de Janeiro, 1964.
PIN, Émile – “Les motivations des conduites religieuses et le passage d´une civilization pré-technique à une
civilization technique”, Social Compass, XII/1(1966).
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – II Encontro dos Bispos do
Nordeste, Serviço de Documentação.
– Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, 19631965 (síntese), Dezembro de 1962.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
617
SALES, Apolônio – “A Cachoeira de Paulo Afonso e o
Nordeste”, Síntese Política, Econômica e Social, nº 17, 1963.
SUDENE – The Brazilian Northeast – SUDENE and its First
Guiding Plan, Recife, 1962.
– Estatísticas Nordestinas, Recife.
– Boletim Estatístico, Vol. I, nº 11, 1963.
TAWNEY, R. H. – Religion and the Rise of Capitalism,
Londres, 1926.
USAID – Statistical Tables Relating to Nordheast Brazil, RioRecife, 1963.
XAVIER, Célia Vale – O treinamento de Líderes Voluntários
nos Programas de Valorização do Meio Rural, Natal, novembro de 1958 (Trabalho de Conclusão de Curso, datilografado, Biblioteca da Escola de Serviço Social).
WEBER, Max – The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, G. Allen adn Unwin, Londres, 6a edução, 1962.
– The sociology of Religion, Beacon Press, Boston, 1963,
304 pp.
618
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ANEXO V - ORELHAS, EDIÇÃO 1968
IGREJA E DESENVOLVIMENTO
Está em plena voga a sociologia do desenvolvimento.
Nem é para menos, quando o mundo inteiro precisa enfrentar o desafio do subdesenvolvimento.
No Rio Grande do Norte, muito antes do Vaticano II e
da “Populorum Progressio”, a Igreja aceitou, dentro de
suas limitações, mas com boa dose daquela “imaginação
criadora”, que as recentes conclusões da Conferência do
Episcopado Latino Americano, em Medellin, recomendam vivamente, para uma ação verdadeiramente transformadora.
O padre Alceu Ferrari, hoje vigário da Catedral de
Frederico Westphalem, Rio Grande do Sul, cursava o
Instituto de Ciências Sociais — Seção de Sociologia, da
Universidade Gregoriana quando, em Roma, ouviu, em
1963, uma palestra do então Administrador Apostólico
de Natal, d. Eugênio de Araújo Sales, sobre as atividades
temporais que vinham sendo desenvolvidas na distante e pequena Arquidiocese brasileira, desde à segunda
metade da era de 40 e que se estavam tornando mundialmente conhecidas sob o nome de “Movimento de Natal”.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
619
Interessado justamente na problemática do mundo
subdesenvolvido, em suas relações com a posição dos
grupos religiosos, nasceu no padre Ferrari o desejo e
depois a firme decisão de tomar essa área do Nordeste
brasileiro, região tradicional e tradicionalmente católica, que o seu trabalho analisa tão bem, para campo de
suas pesquisas e elaboração da tese doutoral.
Tivemo-lo no Rio Grande do Norte cerca de três anos,
de abril de 1964 a dezembro de 1967, entregue a acurados e criteriosos estudos e observações, de que é resultado este livro — IGREJA E DESENVOLVIMENTO.
Foi sorte nossa que o sociólogo dos pampas viesse até
nós, aqui demorasse, percorresse grande parte do interior do Estado, em suas pesquisas de campo, entrevistasse pessoas de todas as condições sociais, recolhesse
farto material. Pois nos deu um trabalho magnífico, com
ótima discussão teórica prévia, formulou hipóteses bastante claras, emprestou grande seriedade à verificação
empírica e à utilização de provas estatísticas. Esta série
de qualificativos para o seu trabalho figurado no próprio
texto do julgamento realizado pelos eminentes professores da gregoriana. E um dos seus mestres, o renomado
sociólogo Émile Pin, considera-o bom trabalho de sociologia experimental, sólido em suas premissas teóricas,
exato em seu método experimental, preciso nas teorias
utilizadas e modesto, porém seguro, em suas conclusões.
Até para a história religiosa do Brasil e particularmente do Nordeste o estudo vai tornar-se indispensável,
pois retrata ao vivo, com farta documentação, toda uma
experiência pré-conciliar que viria, em suas linhas gerais,
encontrar plena retificação nos grandes documentos
620
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
do Vaticano II. E à qual não faltariam dificuldades e resistências, partidas de diferentes setores, principalmente
quanto ao trabalho de sindicalização rural.
Qual o impacto das transformações sociais sobre a
vida religiosa duma determinada área? Qual o impacto
da religião sobre o processo de desenvolvimento?
Na verdade, a religião poderá ser estímulo, fator neutro ou até mesmo obstáculo.
O autor formula três hipóteses, segundo as quais 1)
as comunidades trabalhadas pelos vários movimentos
acusam diferenças significativas, com relação àquelas
que não foram alcançadas pela ação social religiosa, no
que tange as concepções, atitudes, comportamentos
e mesmo condições de vida; 2) o líder de comunidade
rende muito mais quando trabalha com grupos do isoladamente; 3) por último, à funcionalidade ao desenvolvimento correspondeu, da parte do Movimento de Natal,
especialmente de seus líderes, uma atitude inovadora,
favorável à mudança, tanto no setor temporal, quanto
no religioso.
Estamos, pois, com um livro indispensável ao melhor
conhecimento do Nordeste brasileiro, suas vicissitudes,
principalmente em certos aspectos de natureza social e
religiosa, documentário vivo para o estudo do fenômeno
da mudança social.
Otto Guerra
ALCEU RAVANELLO FERRARO
621
ANEXO VI
FICHA DO DOPS
ALCEU RAVANELLO FERRARO
623
ANEXO VII
ENTREVISTA
COM AUTORIZAÇÃO DE
DIREITOS AUTORAIS
UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
FERRARO, Alceu. Entrevista concedida pelo prof. Alceu Ravanello Ferraro ao entrevistador Renato Amado
Peixoto em 3 de fevereiro de 2017 por meio de Correio
Eletrônico com vistas à sua inserção na segunda edição
do livro IGREJA E DESENVOLVIMENTO – O MOVIMENTO DE
NATAL a ser publicado na Biblioteca da Escola Potiguar
e distribuído para as bibliotecas da Rede Pública de Ensino do estado do Rio Grande do Norte, Natal, 2017, 12
p. CNPq/FAPERN, (Projeto ‘A Invenção da Terra Potiguar:
instituições, intelectuais e agentes políticos na produção
da espacialidade e da identidade norte-rio-grandense,
1889-1960).
ALCEU RAVANELLO FERRARO
625
2017
Entrevista – 03/02/2017
R.A.P. – A mudança de seu sobrenome Ferrari para
Ferraro se deveu à perseguição da Ditadura? Por que o Sr.
mudou o seu sobrenome?
A.F. – O que houve foi retificação, em 1992, do sobrenome nos registros civis do meu avô paterno, do meu
pai e meus, com retorno ao sobrenome correto do meu
avô, Giovanni Ferraro, nascido em Cittadella, Província
de Pádua, Itália, em 22 de fevereiro de 1875, que migrou
ainda criança para o Brasil junto com a família.
R.A.P. – Segundo o texto de Otto Guerra disponibilizado na orelha da primeira edição de ‘Igreja e Desenvolvimento’, as atividades de D. Eugênio Salles à frente
da Arquidiocese de Natal anteciparam as proposições do
Concílio Vaticano II e que a sua vinda a Natal deveu-se
a ter assistido a uma palestra de D. Eugênio Sales sobre
o tema na Pontifícia Universidade Gregoriana. Foi isto
mesmo que aconteceu? O que lhe chamou a atenção na
palestra de D. Eugênio?
A.F. – De um lado, por influência principalmente de
meu professor de sociologia, Dr. Émile Pin, do curso de
Ciências Sociais, na Pontifícia Universidade Gregoriana,
em Roma, eu estava interessado na temática relativa à
sociologia do desenvolvimento. De outro, o contato com
o Dr. François Houthart, da Bélgica, alimentava em mim
o interesse pela sociologia da religião. Foi então que,
durante o Concílio Vaticano II, tive a oportunidade de
assistir a uma conferência de D. Eugênio Sales sobre o
626
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Movimento de Natal. Foi esta conferência, proferida que eu me lembre - no Colégio Brasileiro, em Roma, que
despertou meu interesse pelo estudo do Movimento de
Natal, dentro da perspectiva da relação entre religião e
desenvolvimento, no que contei logo com a concordância do Dr. Émile Pin, meu orientador de doutorado, que,
inclusive, viajaria para Natal durante a pesquisa.
R.A.P. – Houve um convite de D. Eugênio para sua vinda a Natal, para observar e estudar o Movimento?
A.F. – Partiu de mim a iniciativa de manifestar a Dom
Eugênio o meu interesse em desenvolver pesquisa sobre
o Movimento de Natal sob a orientação do Dr. Émile Pin,
no que Dom Eugênio concordou. Na realidade, ele ofereceu, também, apoio nas mais diversas formas, como:
hospedagem no Centro de Treinamento em Ponta Negra;
acesso a todos os órgãos, setores, arquivos e lideranças
do Movimento; contato com a Escola de Serviço Social,
que disponibilizou, a título de estágio, um grupo de alunas para a realização das entrevistas nas oito comunidades rurais pesquisadas; contato com a Fundação José
Augusto, do Governo do Estado do Rio Grande do Norte,
que prestou substancial apoio em termos de espaço físico, equipamentos, tabulação, arquivo, datilografia e, finalmente, publicação da tese.
R.A.P. – O Sr. considera como Otto Guerra que o Movimento de Natal antecipou ou influenciou o Concílio Vaticano II?
A.F. – Não saberia dizer se o Movimento de Natal influenciou diretamente o Concílio Vaticano II. Mas, com
ALCEU RAVANELLO FERRARO
627
certeza, a experiência de Natal despertou o interesse de
muitos participantes no referido Concílio. Baste lembrar
o significativo apoio financeiro prestado ao Movimento,
durante e após o Concílio, pela Igreja Católica da Alemanha Ocidental através da Misereor.
R.A.P. – Segundo o mesmo Otto Guerra o Sr. esteve em
Natal até dezembro de 1967, mas o seu livro foi publicado apenas em dezembro de 1968. Onde o Sr. estava
nesse período?
A.F. – Retornando ao Brasil depois de oito anos de estudo em Roma, desembarquei no Porto de Santos no dia
19 de março de 1964. Ainda nesse dia, em São Paulo, da
janela do apartamento da família que me hospedou, assisti ao desfile conhecido como Marcha da Família com
Deus pela Liberdade. Demorei-me, depois, alguns dias
na cidade do Rio de Janeiro para pesquisa sobre o Nordeste, na biblioteca da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), no Morro Santa Teresa, do que resultou
o Apêndice I da tese, intitulado “A Região Nordeste”. Foi
só no final da tarde, junto ao Largo da Carioca, na cidade
do Rio de Janeiro, que, voltando de bonde da biblioteca
da CNBB no Morro Santa Teresa, tomei conhecimento
do Golpe civil-midiático-militar que se abatera sobre
o Brasil na madrugada daquele 1º. de abril de 1964.
No dia 3 desse mesmo mês viajei para a cidade de Recife,
sendo hóspede de Dom Helder Câmara, com quem mantive breve contato. Na Cúria Metropolitana, o clima era
de velório. Desembarquei em Natal no dia 7 de abril de
1964. Já no dia seguinte fui procurado pelo diretor de
pesquisa da Fundação José Augusto para tratar do apoio
à pesquisa a que me dediquei de abril de 1964 até o início
628
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
de fevereiro de 1967, quando me dirigi ao Rio Grande
do Sul, onde, em 15 de março do mesmo ano, assumi o
cargo de Cura da Catedral (Paróquia de Santo Antônio)
de Frederico Westphalen, aguardando que a Pontifícia
Universidade Gregoriana se pronunciasse sobre o meu
pedido para defesa da tese no Brasil, argumentando sobre os riscos que correria, tanto para sair, quanto, principalmente, para reingressar, depois, no país. Com autorização da Universidade Gregoriana, defendi a tese em
maio de 1968, na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUCRJ), perante banca constituída pela Pontifícia Universidade Gregoriana, presidida pelo Dr. Pedro
Calderán Beltrão, professor daquela Universidade, com
participação de dois outros examinadores da PUCRJ. Para
ter o título de doutor, precisava publicar um longo artigo ou a tese inteira. Para tal fim, dirigi-me novamente
a Natal visando efetuar a devida revisão final do texto e
acompanhar a edição na gráfica da Fundação José Augusto, do que resultou o livro Igreja e Desenvolvimento – O
Movimento da Natal, com 354 páginas. Felizmente, tive
tempo de retirar da gráfica 200 exemplares na primeira
hora da manhã do dia 13 de dezembro de 1968 - dia do
famigerado Ato Institucional n. 5.
R.A.P. – O Sr. chegou a trabalhar com Marcos Guerra
ou a trocar impressões com ele? Se houve este contato,
de que ordem foi?
A.F. – Não. Não cheguei a ter contato pessoal com Marcos Guerra durante a pesquisa. Quando comecei a investigação sobre Escolas Radiofônicas e Educação de Base,
ele já não se encontrava em Natal.
ALCEU RAVANELLO FERRARO
629
R.A.P. – O nome ‘Movimento de Natal’ foi divulgado
por Thiago Cloin na Revista da CRB em julho de 1962,
pouco antes de sua vinda para o Brasil, como exemplo
da aplicação da ‘Pastoral de Conjunto’, pleiteada por D.
Hélder Câmara. Este me parece ser o eixo que move o
seu livro ao início. No caso de Igreja e Desenvolvimento,
poderíamos entender, portanto, que o Sr. buscava examinar por meio do Movimento de Natal essa nova face da
atuação da Igreja do Brasil?
A.F. – Sem dúvida, mas particularmente a atuação
da Igreja no Nordeste. Foi o contato com Dom Eugênio
Sales e Dom Helder Câmara, em Roma, durante o Concílio Vaticano II, que despertou em mim o desejo de pesquisar empiricamente a ação social desenvolvida pela
Igreja Católica no Estado do Rio Grande do Norte, Estado
situado numa região tida, então, como subdesenvolvida
e explosiva – o Nordeste.
R.A.P. – A partir da leitura de Igreja e Desenvolvimento parece haver um grau de entrosamento muito grande
entre D. Eugênio Salles e D. Hélder Câmara no início da
década de 1960. A seu ver, qual era então a proximidade
entre D. Eugênio e D. Hélder Câmara?
A.F. – Temos aí as duas principais lideranças da Igreja
nordestina no início dos anos 1960. Tinham muito em
comum no que se referia à presença ativa da Igreja no
mundo, com destaque para a defesa dos movimentos sociais populares e do povo em geral contra as injustiças
sociais na Região, e para o combate contra as arbitrariedades da ditatura imposta pelo golpe de 1º. de abril de
1964. Penso que a escala que fiz na cidade do Recife, em
630
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Pernambuco, a caminho de Natal, a que me referi antes,
para contato com dom Helder, traduz bem a percepção
que tinha, então, do entrosamento entre ambos. Falei
acima em golpe de 1º. de abril de 1964. Por razões óbvias, na tese se lê “Revolução de 31 de março de 1964”!
Por fim, valeria investigar mais a fundo a influência do
trabalho desenvolvido por Dom José Delgado, na diocese
de Caicó, nos anos 1950, sobre aquilo que, no início dos
anos 1960, levaria o nome de Movimento de Natal. Fiz
breve referência a isto na nota nº. 10, no capítulo 1 de
Igreja e Desenvolvimento.
R.A.P. – Na página 91 de ‘Igreja e Desenvolvimento’
o Sr. avalia que as origens do Sindicalismo Rural não tiveram relação com as Ligas Camponesas, mas numa de
suas entrevistas o Sr. aponta que os Sindicatos teriam
sido estimulados por D. Eugenio contra as Ligas Camponesas. O Sr. reavaliou sua opinião na entrevista ou foi
o problema da repressão que o levou a colocar aquela
opinião no livro.
A.F. – Reafirmo, antes de tudo, o que escrevi, há meio
século, na página 91 de Igreja e Desenvolvimento, a saber, que a verdadeira origem do sindicalismo rural no
estado do Rio Grande do Norte deve ser buscada: “1) dentro do próprio Movimento – na pregação, desde 1947, da
reforma agrária; na malograda tentativa do Serviço de
Assistência Rural (SAR), em 1951, de fazer aplicar a legislação trabalhista no meio rural e de promover a organização do trabalhador rural em Círculos Operários Rurais;
no acentuar-se, a partir de 1957-1958, de uma tendência
reformista dentro do próprio SAR (luta pela mudança de
ALCEU RAVANELLO FERRARO
631
estruturas, principalmente a agrária, para a qual a colonização de Punaú, então em estudo, queria ser um exemplo) e 2) no aparecimento de um líder leigo, técnico em
sindicalismo [a assistente social Maria Julieta Calazans],
que se propôs a promover, em entrosamento com o SAR,
a sindicalização rural no Estado”. Mas isto não significa
negar que a força e prestígio das Ligas Camponesas em
Pernambuco possam ter contribuído, de alguma forma,
para o caráter de urgência dado à sindicalização rural no
Rio Grande do Norte a partir de 1960.
R.A.P. – Ainda considerando os Sindicatos Rurais, como
eles foram depois encampados pela CNBB e estimulados
no resto do Brasil, poderíamos dizer que estes fariam
parte de um repertório da Igreja Católica, na medida em
que D. Hélder foi, na década de 1930, um dos principais
divulgadores do sindicalismo católico no Ceará e que
esta era uma premissa ligada ao Centro D. Vital?
A.F. – Não tenho elementos para responder a esta
questão.
R.A.P. – Numa de suas entrevistas o Sr. faz questão de
recolocar que o problema apresentado pela Pedagogia do
Oprimido, de Paulo Freire, estava no cerne de sua apreciação; contudo, certas colocações como ‘conscientização’ e ‘politização’ me parecem anacrônicas ainda em
1962-1966, se pensadas apenas a partir dos contributos
de Paulo Freire, já que o seu principal livro data apenas
de 1968. No entanto, estas posições eram já apresentadas
pelo Padre Henrique Vaz desde o final da década de 1950,
na aproximação que fazia então com o pensamento de
632
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
Hegel e Marx. Não seria mais a influência de padre Vaz
que norteava a militância do Movimento de Natal e que
se fazia sentir em seu livro?
A.F. – Com certeza, Paulo Freire não foi nem a única
nem a primeira influência externa a marcar o Movimento de Natal. Não saberia dizer como ou através de quem
as ideias ou conceitos de conscientização e politização
chegaram a Natal. O fato é que, totalmente ausentes nas
cartas de 1959, em 1962, ano da Campanha de Politização promovida pelo Serviço de Assistência Rural, os termos “politizado” e “politização”, por exemplo, já marcavam surpreendente presença na correspondência de
monitores e alunos de escolas radiofônicas: 133 ocorrências identificadas em 2.665 cartas examinadas. Essa Campanha repercutiu também no trabalho de sindicalização
rural. Isto, no ano que antecedeu a experiência de alfabetização conduzida por Freire em Angicos (1963) e seis
anos antes da primeira edição de Pedagogia do Oprimido
(1968) (Capítulo IX e Tabela 10.1, p. 326).
R.A.P. – O Movimento de Natal poderia ser considerado um predecessor da Teologia da Libertação ou não? Por
quê?
A.F. – Não tenho elementos para afirmar essa relação.
Valeria a pena investigar.
R.A.P. – O Sr. pensa que as perspectivas que orientaram o seu livro Igreja e Desenvolvimento – as de que
a religião seria compatível com o desenvolvimento – se
referem apenas ao contexto recortado (década de 1960,
seca, Nordeste) ou ainda apresentariam validade para o
mundo católico da atualidade?
ALCEU RAVANELLO FERRARO
633
A.F. – Responder a essa questão meio século depois
da conclusão da pesquisa exige uma consideração preliminar, a saber, que seria necessário superar o conceito
bastante ingênuo de desenvolvimento dos primeiros 20
ou 30 anos do pós-Segunda Guerra Mundial: uma concepção de que, preenchidas certas condições e percorridas determinadas etapas, o desenvolvimento aconteceria
naturalmente. Em outras palavras, haveria que pensar
o desenvolvimento muito mais em termos de libertação
da opressão, de transformação social, de efetivação dos
direitos humanos, de distribuição justa da riqueza produzida, do que simplesmente em termos de aumento da
capacidade produtiva, como na concepção então e ainda
hoje dominante. Assim recolocada a questão, continuo
pensando que a Igreja pode, sim, contribuir para a transformação no sentido de realização da justiça social e de
criação de um mundo mais humano. O que não significa
que eu identifique, hoje, na ação temporal da Igreja no
Brasil, esse almejado caráter transformador.
[FINAL DA ENTREVISTA]
CARTA DE CESSÃO
Porto Alegre, 12 de Maio de 2017.
Eu, Alceu Ravanello Ferraro, Documento de Identidade
n. 7000533112, emitido pela SSP/RS em 08/09/2009, CPF
n. 053915040-15, declaro para os devidos fins que cedo
os direitos autorais de minha entrevista, concedida por
meio de Correio Eletrônico em 03 de fevereiro de 2017,
para Renato Amado Peixoto, para usá-la integralmente
ou em partes, sem restrições de prazos ou citações, para
uso em artigos e livros acadêmicos, desde a presente
data, abdicando de direitos meus e de meus descendentes quanto ao objeto dessa carta de cessão, subscrevendo,
por isso, a presente Carta.
Porto Alegre, 8 de junho de 2017.
Alceu Ravanello Ferraro
634
Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal
ALCEU RAVANELLO FERRARO
635
Esse livro foi composto em tipologia Swift Regular 11/16,
desenvolvida por Gerard Unger em 1987
e impresso em papel pólen soft 80g/m2 na Offset Gráfica,
Natal/RN, em setembro de 2019 para o selo editoral
Bons Costumes da Editora Jovens Escribas.