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© 2019 Alceu Ravanello Ferraro Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida sem a permissão expressa do(s) detentor(es) dos direitos autorais. Projeto gráfico Revisão Danilo Medeiros Bethânia Lima Bons Costumes é um selo da Editora Jovens Escribas Márcio Rodrigues Farias – Bibliotecário/Documentalista CRB15/RN 0335 F368i Ferraro, Alceu Ravanello. Igreja e desenvolvimento – o movimento de Natal / Alceu Ravanello Ferraro; Renato Amado Peixoto (org.) – Natal(RN) : Jovens Escribas, 2019. 636 p. (Coleção A Invenção da Terra Potiguar) ISBN 978-85-66505-96-2 Religião – Rio Grande do Norte. 2. Movimento religioso – Natal – Ensaio. I. Título. II. Coleção. III. Peixoto, Renato Amado (org.) 2019/07 CDD 261.8 CDU 94813.2 “CHEGAR ANTES DO RIO”: ALCEU FERRARO, O LIVRO ‘IGREJA E DESENVOLVIMENTO – O MOVIMENTO DE NATAL’. Renato Amado Peixoto1 Certa vez, Alceu Ferraro relatou a um de seus entrevistadores aquilo que considerava ser, mesmo depois de quarenta anos, uma de suas recordações mais vívidas, a sua viagem de pesquisa ao agreste do Rio Grande do Norte, em 1966. Ele se lembrava de ter atravessado de jeep o Rio Potengi, completamente seco no comecinho do dia e, no final daquela mesma manhã, espantado, ouvia Monsenhor Expedito, seu acompanhante, dizer: – Chove forte no Sertão! Vamos partir o mais tardar às três horas, para podermos chegar antes do rio! Quando o carro alcançou novamente as margens do Potengi, Ferraro compreendeu a pressa do seu companheiro e o sentido de suas palavras, pois o rio já havia chegado: caudaloso, rápido, lamacento e rumoroso. Tiveram, então, de fazer um enorme desvio até a ponte que lhe possibilitaria atravessar o Potengi, porque esta 1. Professor do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da UFRN, Doutor em História pela UFRJ, é um dos líderes da RHC, Rede de Pesquisa História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo e do Grupo de Pesquisa História, Catolicismo e Política no Mundo Contemporâneo. E-mail: renatoamadopeixoto@gmail.com. ALCEU RAVANELLO FERRARO 5 ficava já na cidade de Natal, na foz do Potengi, para daí poderem voltar pelo outro lado do rio, até o seu ponto de partida, acrescentando com isto mais cento e vinte quilômetros à sua jornada. Segundo Ferraro, daí para a frente, a expressão “chegar antes do rio” passou a lhe soar misteriosa e dramática, para ser rememorada a cada seca ou ameaça de estio no Nordeste, conectando as lembranças de seu próprio passado com as agruras presentes daqueles com quem convivera e, lhe avivando as memórias das desgraças “de um povo ainda à mercê dos industriais da seca” (FERRARO & ARAUJO, 2006, p. 209-211). Esta recordação me permite fazer uma inferência em relação à vida de Ferraro. “Chegar antes do rio” é uma expressão que bem pode ser utilizada para coroar a sua existência e, ao contrário de mistério e drama, poderia soar aos nossos ouvidos enquanto esperança e expressar a conjetura de que a repetição poderia servir para iluminar os traços do Divino. Afinal, Ferraro chegou ao Brasil a poucos dias de acontecer o Golpe Militar de 1964; alcançou o Recife e rumou para a cidade de Natal, antes que a Repressão pudesse suprimir o seu objeto de pesquisa. Na manhã mesmo do anúncio do Ato Institucional nº 5, conseguiu retirar duzentos exemplares de Igreja e Desenvolvimento da gráfica onde seguia a sua impressão; auxiliado por simpatizantes de sua causa nos Correios, logrou enviar para Roma boa parte dos livros que lhe restaram, onde estavam sendo aguardados para cumprimento da exigência de seu doutorado. 6 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal A maior parte dos exemplares retirados da gráfica ficou escondida num porão em Natal, para ser resgatada pelo autor apenas vinte anos depois. Apesar disto tudo, Igreja e Desenvolvimento foi passado de mão em mão e, dos militantes do Movimento de Natal até os pesquisadores, acabando por se tornar um livro bastante citado nas áreas da História do Catolicismo, da Pedagogia, das Ciências Sociais e da História do Rio Grande do Norte. No auge da Ditadura, em 1969, Alceu Ferraro foi solto da prisão por uma enxurrada de fiéis, endossados, inclusive, por aqueles que defendiam o Regime Militar; depois conseguiu alcançar o cargo de professor universitário na UFRGS, apesar de estar fichado no DOPS/RS e de Igreja e Desenvolvimento ter sido apontado como “altamente subversivo”. E, passados mais de cinquenta anos da sua publicação, poucas pessoas leram ou mesmo pousaram suas mãos sobre um exemplar de Igreja e Desenvolvimento – O Movimento de Natal, mas, ainda assim, este livro permanece sendo lembrado e citado. Por que isto? Por um lado, apontei ao leitor os acontecimentos curiosíssimos que uniram o autor e seu texto e, apenas por isso, já se poderia justificar a sua publicação, instigando, se vivo fosse, Jorge Luis Borges a tecer, com seus dedos, um daqueles contos onde o leitor descuidaria de conhecer o limite entre o sonho e a realidade. Por outro lado, cabe revelar a importância e a originalidade de Igreja e Desenvolvimento. Este era, originalmente, parte do esforço de doutoramento desenvolvido por Alceu Ferraro, na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (PUG), instituição ligada à Companhia de Jesus. ALCEU RAVANELLO FERRARO 7 Por conta disto, seu trabalho contava com um cuidadoso e rigoroso aporte metodológico e teórico, gozando de acesso facilitado às fontes. Ferraro recebeu auxílio direto da Arquidiocese de Natal e da Fundação José Augusto, na forma de equipamento, de pessoal técnico e de auxiliares de pesquisa, um esforço relativamente raro para o Brasil de sua época e que resultou num alcance investigativo muito abrangente e profundo do seu objeto, o Movimento de Natal. Este Movimento era então a principal frente de aplicação do método Paulo Freire e vinha se constituindo numa experiência inédita no catolicismo brasileiro, o da ‘Pastoral de Conjunto’, incentivada pela CNBB, apoiada diretamente por D. Hélder Câmara e administrada por D. Eugênio Sales, e que tinham interesse direto na pesquisa de Alceu Ferraro. É interessante observar que D. Hélder e D. Eugênio seriam grandes protagonistas no embate religioso e político do país, nas décadas seguintes, inclusive, liderando correntes divergentes da Igreja Católica do Brasil. A narrativa das origens destes protagonismos e dos problemas que explicariam os seus afastamentos, já garantiria a Igreja e Desenvolvimento o status de texto obrigatório para aqueles que desejassem aprofundar o entendimento de questões fundamentais acerca da relação entre a História Política e a História da Religião na América Latina, da segunda metade do século XX. Além disso, devemos observar que Natal era também um palco da atuação direta do Estado brasileiro, resultado do interesse pessoal demonstrado pelos presidentes Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros (ver a ‘Introdução’ desta obra) e que acabaria se consubstanciando no Movi- 8 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mento de Educação de Base (MEB). Este foi então articulado como uma atividade de alfabetização e de inscrição da cidadania, destinada a desarticular a dominação tradicional das oligarquias nordestinas, contando com a arregimentação de novos eleitores desligados das práticas tradicionais. A Igreja era, naquele período, um aliado necessário do Estado brasileiro, por conta de ser a única instituição capaz de projetar esse esforço tanto nas periferias das grandes cidades da região quanto nos seus grotões profundos. Esta circunstância derivava daquilo que Alceu Ferraro descreveu enquanto uma atividade continuada da Diocese de Natal, a qual fora urdida numa trama inédita, onde a seca e o subdesenvolvimento se reuniam à saída dos efetivos estadunidenses e ao fechamento das Bases aliadas no Rio Grande do Norte, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Na visão de Alceu Ferraro, a atividade continuada da Arquidiocese de Natal visaria, por conseguinte, colocar a Igreja à frente tanto da ultrapassagem da dominação oligárquica quanto do desenvolvimento da região. Estas circunstâncias excepcionais permitiam a transformação da Igreja Católica Brasileira e o experimento, no ‘Movimento de Natal’, de uma nova organização lastreada no trabalho dos leigos e baseada no trabalho com os mais humildes. O experimento inédito da ‘Pastoral de Conjunto’ era colocado então, pela própria CNBB e pelos organizadores do ‘Movimento de Natal’, enquanto inspiração para as ideias que visavam a transformação da Igreja universal, entrevistas no Concílio Vaticano II e, para a Igreja latino- ALCEU RAVANELLO FERRARO 9 americana, na Conferência de Medellín, em 1968 (ver Anexos I e III desta obra), o que explica o interesse direto de D. Hélder Câmara e D. Eugênio Sales no projeto de pesquisa liderado por Alceu Ferraro. Fato é que Igreja e Desenvolvimento apenas aponta, mas não explica (caso do livro homônimo de Cândido Camargo, de 1971), que essas novas ideias sinalizavam a ascensão da esquerda católica brasileira, então motivada pelas ideias do padre Henrique Lima Vaz (FÁVERO, 2006, p. 64-65), e que estas juntavam o catolicismo ao marxismo, gestando algumas das correntes e atuações progressistas que influenciariam o catolicismo nas décadas seguintes, como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Ação Popular (AP), as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e a Teologia da Libertação. Que essas ideias não tenham conseguido empolgar a constituição de um partido ou movimento católico de esquerda, talvez deva ser explicado tanto pelo contexto da Ditadura Militar quanto pelo projeto de organização política da Igreja do Brasil, que desde o V Congresso Episcopal de Nova Friburgo, em 1915, preferiu o modelo da ‘Liga Católica’ e permitiu o fracionamento e cooptação de suas lideranças pelos partidos laicos (LUSTOSA, 1983). Como sacerdote, Alceu Ferraro se envolveu profundamente com essas ideias, teve contato direto com seus participantes e acesso a documentos hoje destruídos. Na realidade, ‘Igreja e Desenvolvimento’ é hoje a fonte principal para aqueles que se aventuram a compreender não apenas a História do Rio Grande do Norte, mas, também a guinada para a esquerda, da Igreja Católica do Brasil, e o papel da CNBB, durante a Ditadura Militar. Exemplos da repercussão dessas ideias no Movimento de Natal estão distribuídos pelos textos de Alceu Ferraro e Cândido Camargo, e nos ajudam a compreender a atuação dos militantes católicos, bem como a repercussão dessas ideias nos conteúdos ministrados nos cursos do MEB: “Chegou aqui um político oferecendo-me um dinheiro. Eram 20.000 cruzeiros. Eu disse que não. Não quero ser escravo, nem levar o povo para a escravidão. Ganhando esse dinheiro, a minha carne fica saciada. Mas, meu espírito? Este fica escravizado” – José M., Guaramiranga, ?-?-62 (FERRARO, 1968: 192). “Fiz 8 eleitores, e todos votaram consciente. Não venderam voto a ninguém, que não deixei. Aqui quase todos vendem seu voto para ficarem escravizados. Trocam seu voto por vestido ou sapato ordinário, mas os meus eleitores não receberam nada. Votaram livre para melhorar o país” – Monitora Maria Nazinha, Salgado, 10-11-62 (FERRARO, 1968: 193). “Numa localidade vivem 270 pessoas. Só existe escola para 70 pessoas. Quantas pessoas desta localidade não têm direito à escola?”; “A família do Sr. Joaquim não se alimenta bem porque seu salário é injusto. Ele ganha diariamente Cr$ 0,35. Qual o seu salário mensal?”; “Num município vivem 5.200 trabalhadores. 4.150 desses trabalhadores, desejando lutar por uma sociedade diferente, se uniram através do sindicato. Quantos trabalhadores desse 10 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 11 município ainda não se uniram?” (CAMARGO, 1971: 108). “Uma localidade tem 550 habitantes. 415 votaram conscientes e os outros venderam seu voto. Quantos habitantes venderam sua liberdade?” (CAMARGO, 1971: 109). Essas citações nos ajudam a compreender o impacto do pensamento de Paulo Freire na carreira de Alceu Ferraro e na escrita de Igreja e Desenvolvimento e, a partir disto, apontar a importância fundamental desta obra para aqueles que investigam a História da Educação no Brasil. A produção de Alceu Ferraro concentrou-se principalmente, em periódicos da área de Educação, estando focada nas temáticas do rendimento escolar, do analfabetismo, da alfabetização e da escolarização, mas, a História inacabada do Analfabetismo, um dos seus textos mais reconhecidos, nos serve de exemplo para colocar que não apenas o ‘Método Paulo Freire’, mas também a atuação de Paulo Freire é o centro do interesse de Alceu Ferraro. No caso, não apenas a influência de Paulo Freire nas atividades do Movimento de Natal é inegável, mas também se deve lembrar que este Movimento serviu como inspiração e depois como laboratório para o MEB e para outras aplicações do seu Método. Atividades mais lembradas hoje, como o experimento de Angicos, ou a campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’, só foram possíveis porque utilizaram a mão de obra já formada e experimentada no Movimento de Natal. Por conta disso, podemos colocar parte do interesse de pesquisa de Alceu Ferraro, pois Igreja e Desenvolvimento 12 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal explica as origens do Movimento de Natal e as transformações decorridas no seu transcurso, tanto em relação à atuação local da Igreja Católica quanto às dinâmicas de seus participantes. Isto correspondia a entender se a aplicação do Método Paulo Freire transformara Igreja e monitores no Rio Grande do Norte e, por extensão, também no Nordeste, na medida em que essa experiência foi levada a cabo nessa região pelo MEB, com o apoio da CNBB. Ainda, se deve ressaltar que algumas das inovações produzidas pelo Movimento de Natal, especificamente as ‘Escolas Radiofônicas’, criadas ainda em 1958 para a difusão do Ensino Supletivo, a partir da Emissora de Educação Rural, são as antecessoras do atual modelo de Ensino à Distância, levado à cabo na última década pelas Universidades Federais, com apoio do Ministério da Educação. Nossa organização da segunda edição revista, aumentada e corrigida de Igreja e Desenvolvimento – O Movimento de Natal, visou apontar as circunstâncias de sua escrita, produção e disseminação, e ressaltar que cada uma destas fases tem relevo para a recepção atualizada da obra. Procuramos também juntar o texto de 1968 ao que seria o seu primeiro capítulo, do qual ficou separado, e que durante várias décadas este capítulo se conservou inédito por conta de se ter apressado a publicação da primeira edição e, sobretudo, por receio da Repressão. Esta parte do texto fica incluída nesta segunda edição como a sua “Introdução”, e cabe aqui notar que na “Introdução” ficam apenas apontadas as intenções do que seria o primeiro capítulo em 1968, pois este foi reconstruído por ALCEU RAVANELLO FERRARO 13 Alceu Ferraro muito anos depois da pesquisa, já sem ter as fontes originais à mão. Buscamos também preservar as impressões de Otto Guerra, principal líder católico do Rio Grande do Norte em sua época e um dos fundadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), então alinhavadas na “orelha” da primeira edição e incluídas nesta obra como o seu “Anexo V”. As impressões de Otto Guerra são importantíssimas para que se revelem as questões relativas ao alcance do Movimento e do projeto de pesquisa de Alceu Ferraro, uma vez que Otto Guerra era muito próximo de D. Eugênio Salles. Além disto, estas impressões têm grande importância para a História Institucional da UFRN, permitindo mapear as suas relações com a Arquidiocese de Natal. Procuramos, ainda, contextualizar a recepção e a censura de Igreja e Desenvolvimento em sua época para os estudantes e interessados na História do Brasil, trazendo a ficha de Alceu Ferraro no DOPS do Rio Grande do Sul como o “Anexo VI” desta obra, observando que este livro (e seu autor) ficou marcado enquanto “altamente subversivo” pelos agentes da Repressão. Por fim, destacamos que esta obra é fechada com uma entrevista – o “Anexo VII” – onde o octogenário discute as questões mais emblemáticas e controversas de seu texto como se reencontrasse, cinquenta anos depois, o mesmo rio, afinal este chegara antes, para lhe iluminar os olhos. BIBLIOGRAFIA: CAMARGO, C. Igreja e Desenvolvimento. São Paulo: CEBRAP, 1971. FÁVERO, O. Uma pedagogia da participação popular: análise da prática educativa do MEB – Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas, SP: Editora Autores Associados, 2006. FERRARO, A. Igreja e Desenvolvimento – O Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto, 1968. FERRARO, A.; ARAÚJO, M. M. O Movimento de Natal e a Indústria das Secas (1958). Revista Educação em Questão, Natal, v. 26, p. 198-211, 2006. LUSTOSA, O. Igreja e Política no Brasil: do Partido Católico à LEC (1874-1945). São Paulo. Edições Loyola/ CEPEHIB, 1983. Capim Macio, Junho de 2017. 14 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 15 INTRODUÇÃO MOVIMENTO DE NATAL E A INDÚSTRIA DAS SECAS -1958 Alceu R. Ferraro NOTA DE ESCLARECIMENTO1 O texto principal aqui publicado – O movimento de Natal e a indústria das secas, foi escrito para constituir um capítulo da minha tese de doutorado. Esta foi dada a público pela Fundação José Augusto, em Natal, sob o título Igreja e desenvolvimento – O Movimento de Natal, no início da manhã do dia 13 de dezembro de 1968, cerca de uma hora antes do Ato Institucional n° 5, o que permitiu ao autor salvar cerca de 200 exemplares. Desses, 50 seguiram por terra, de Natal até Salvador e depois até Rio de Janeiro, de onde, graças à ajuda de amigos e à compreensão de 1. Escrito em dezembro de 1998 e publicado no livro Movimentos Sociais - Ferraro, Alceu; Ribeiro, Marlene. Movimento de Natal e A Indústria da Seca (1958). In: Movimentos Sociais - Revolução e Reação. Pelotas: EDUCAT, 1999, p. 175189. ALCEU RAVANELLO FERRARO 17 funcionário dos Correios e Telégrafos, puderam ser remetidos para a Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Os restantes 150 foram escondidos em algum lugar em Natal. Destes, talvez uns cinquenta foram distribuídos discretamente por lideranças do Movimento a pessoas interessadas, sendo que 50, aproximadamente, foram recuperados 10 anos mais tarde, através de pessoa amiga. Do restante da edição, que permaneceu na gráfica naquela manhã, nunca mais se teve notícia. Na realidade, como a tese estava ficando muito extensa, o capítulo agora publicado foi cortado de última hora, para posterior publicação como artigo. De fato, inicialmente não foi publicado por razões políticas. Depois, por ter andado extraviado, em meio a outros papéis, por mais de três décadas. Recuperado recentemente, achei que valia a pena publicá-lo, até porque a seca de 1998, justamente nos quarenta anos daquela de 1958, parece estar mostrando que nem a seca deixou de ser um bom negócio, nem os governos estão melhor preparados para enfrentá-la. Provavelmente porque a improvisação seja a alma do negócio. Ressalvadas correções de linguagem, optei por preservar o título e o texto em sua forma original de 1966, com a leitura dos fatos então feita. É, como tal, que o texto deve ser lido. Não foi intenção minha – nem caberia – avaliar ou discutir aqui as trajetórias que se seguiram aos fatos narrados, seja dos atores envolvidos, seja do autor. É uma lástima que não tenha guardado comigo as centenas de telegramas examinados, encontrados num balaio, no subsolo de uma construção provisória, no local reservado à construção da futura Catedral de Natal. 18 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Excetuada a nota 21, acrescentada por ocasião da revisão do texto em 1998, todas as demais notas são do texto original, escrito em 1966. A tese de doutorado Igreja e desenvolvimento – O Movimento de Natal (1968), da qual o texto aqui apresentado deveria ter sido um capítulo, abordou o problema da relação entre religião e desenvolvimento, na perspectiva do impacto que as diferentes religiões podem exercer sobre o processo de desenvolvimento. Em termos teóricos, questionava-se a generalização de Karl Marx, que via na religião em si, qualquer que ela fosse, um obstáculo ao desenvolvimento. Por mais que o autor pudesse ter razão em suas críticas ao caráter conservador do catolicismo e protestantismo na Europa de seu tempo, objetava-se-lhe principalmente o não ter feito distinção entre diferentes formas históricas de religiosidade. Concretamente, a pesquisa orientou-se para a avaliação, sob o aspecto da contribuição para o desenvolvimento, de uma experiência de trabalho social empreendida pela Arquidiocese de Natal nos anos 1950 e 1960, dentro do que se considerava ser a região menos desenvolvida do país – o Nordeste. Essa experiência se tornara conhecida como O Movimento de Natal. Como se disse acima, a pesquisa se desenvolveu e foi publicada num momento extremamente conturbado: entre abril de 1964 e dezembro de 1968. Compreendeu a reconstituição histórica do Movimento nos seus diferentes períodos; a observação sistemática e centenas de entrevistas não estruturadas, preparando a pesquisa por amostragem; análise de conteúdo de uma amostra de milhares de cartas de monitores de escolas radiofônicas; aplicação de questionário estruturado a uma amostra de 376 chefes de família, ALCEU RAVANELLO FERRARO 19 num estudo comparativo de quatro pares de pequenas comunidades rurais do Litoral-Agreste do Rio Grande do Norte. Cada um dos pares era constituído por uma comunidade trabalhada (submetida à ação social sistemática da Igreja) e uma comunidade não-trabalhada (não submetida a tal ação). A pesquisa envolveu concepções e práticas relacionadas com saúde, educação, agropecuária, cooperativismo, sindicalização rural e politização... A pesquisa histórica revelou que o Movimento, partindo de atividades marcadamente assistenciais e paternalistas, em face de uma situação de emergência no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, evoluiu primeiro para um programa de desenvolvimento de comunidades rurais e, a seguir, para a luta pela mudança de estruturas e desenvolvimento, extrapolando assim os limites da pequena comunidade interiorana. A verificação empírica permitiu constatar que, segundo a maioria dos indicadores de desenvolvimento utilizados, as comunidades trabalhadas apresentaram, em relação às comunidades não-trabalhadas, diferenças significativas no que tange a concepções, atitudes, comportamentos e até condições de vida, mudanças estas comumente tidas como indicadores de desenvolvimento. Confirmou também o papel decisivo, em tais transformações, dos inúmeros líderes formados pelo Movimento, particularmente quando seu trabalho se desenvolveu de forma associativa, através de grupos. A ação Igreja contra a indústria das secas, em 1958, constituiu momento fundamental, tanto no crescimento e consolidação do Movimento, quanto particularmente em sua re-orientação para o que se denominou “luta pela mudança de estruturas”. 20 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Finalmente, optei por incluir um pequeno texto, intitulado A chegada do rio, escrito em francês, no final dos anos 1970, como trabalho para o curso da Alliance Française, agora traduzido, com pequenas alterações de forma. Ele retrata a experiência do pesquisador, vivida no estado do Rio Grande do Norte, no período da pesquisa, a qual ficou indelevelmente registrada na memória e tem relação estreita com o primeiro texto. Tem a ver com a forma inesperada e surpreendente da chegada da água numa região periodicamente castigada pela seca. Segue o texto inédito, redigido em 1966 (Natal/RN), sobre a ação contra a indústria das secas no estado do Rio Grande do Norte, durante a seca de 1958. O MOVIMENTO DE NATAL E A INDÚSTRIA DAS SECAS - 19582 Se não chove até 19 de março, dia de São José, é declarada seca. É como o estouro da boiada. 2. Para a elaboração deste texto utilizei principalmente as seguintes fontes: 1) a documentação do Serviço de Assistência Rural - SAR, particularmente os telegramas expedidos e recebidos por Dom Eugênio Sales, Bispo Auxiliar de Natal, e pelo SAR, por ocasião da seca de 1958; 2) uma entrevista gravada com Dom Eugênio; 3) entrevistas com vigários e lideranças leigas do Movimento, que haviam atuado na seca de 1958, e com outras testemunhas qualificadas; 4) os jornais da época (março a junho de 1958). O grande número de telegramas expedidos e recebidos por Dom Eugênio, entre meados de março e meados de junho de 1958, é indicador da intensa atividade desenvolvida no período. Dom Eugênio expediu 136 telegramas: 26 a autoridades federais; 9 a prefeitos; 92 a vigários do interior; 9 a bispos. Recebeu: 145 telegramas: 22 de autoridades federais ou estaduais; 5 de autoridades municipais; 65 de vigários do interior; e 6 de bispos. É provável que outros mais tenham sido expedidos ou recebidos, sem o devido arquivamento (num balaio). ALCEU RAVANELLO FERRARO 21 Sem chuva não tem trabalho. Sem trabalho, não tem planta, não tem colheita, não tem feira. É a fome generalizada. Assim, alguns dias após a declaração da seca, as cidades enchem-se de pedintes. A máquina governamental é lenta. Os interessados são muitos: políticos, cabos eleitorais, correligionários, coronéis, ..., tornando-se difícil distribuir “equitativamente”, entre tantos, as oportunidades de enriquecimento. Isto retarda sempre o início dos serviços de emergência: construção de estradas, de pontes, de açudes, etc. Verbas são desviadas. Operários fictícios são arrolados nas folhas de pagamento. O trabalhador é enganado na quantidade de serviço feito; na folha de pagamento que vai do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) para o dono do barracão; no preço dos gêneros fornecidos no barracão, sempre mais elevados do que no comércio local; no peso ou medida dos gêneros. O sistema de sublocação das obras de emergência produz uma longa escala de intermediários, todos a pressionar para baixo. Como ninguém quer perder (de ganhar), quem paga é sempre o flagelado contratado para tais serviços de emergência. Tudo isto faz com que o Polígono das Secas3 seja uma área mais política do que fisiográfica.4 Por ocasião da seca de 1953, a Igreja Católica já atuara em dois sentidos. Primeiramente, colaborara no ser3. 52% da área total do Nordeste está dentro do Polígono das secas. Se excluirmos o Estado do Maranhão, que não é atingido pelo fenômeno da seca, os outros 8 estados do Nordeste (do Piauí à Bahia) têm 72% de sua área total incluída no Polígono. O Estado do Rio Grande do Norte ocupa o terceiro lugar (90,6%), precedido apenas pela Paraíba (97,8%) e Ceará (92,2%). (IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, Rio de Janeiro, 1963). 4. Veja, por exemplo, o capítulo “O combate às secas”, era obra de Stefan H. Robock, Desenvolvimento econômico regional – O Nordeste do Brasil, São Paulo, Globo, 1964, p.83ss. 22 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal viço denominado Assistência às Vítimas das Secas (AVS), promovido pela Legião Brasileira de Assistência. Padre Eugênio Sales viajara para o interior, organizando, por conta da AVS, comitês municipais, com o intuito de diminuir a interferência política na aplicação do dinheiro e distribuição dos alimentos. Quando não conseguia impedir a interferência dos políticos, dificultava a criação do Comitê da AVS, como aconteceu em Augusto Severo. Foram os primeiros choques, esporádicos ainda, com os coronéis do interior. Paralelamente ao trabalho da AVS, uma comissão constituída por Padre Eugênio, Padre Expedito e uma assistente social, percorreu várias áreas do interior, com o intuito de tomar consciência do problema e animar a quantos estavam sofrendo com a seca. Esse primeiro contato com a seca resumiu-se a uma tomada de consciência do problema e a uma tentativa de enfrentar a estrutura da indústria das secas, na verdade um subproduto da estrutura social da Região. No intervalo entre as secas de 1953 e 1958, o trabalho do Serviço de Assistência Rural da Arquidiocese de Natal crescera muito. Isto permitiu que, em 1958, aos primeiros prenúncios de seca, a Igreja se lançasse numa luta que, em poucas semanas, haveria de abalar duramente essa velha estrutura conhecida como Indústria das Secas. Duas circunstâncias extrínsecas fizeram com que o grito levantado em Natal encontrasse ressonância no estado. A primeira reside no fato de que, desde o início dos anos 50, um número cada vez maior de vozes vinha fazendo-se ouvir, quer criticando a morosidade, desorganização e ineficiência dos órgãos federais que atuavam no Nordeste, quer pondo em questão a própria política federal caracterizada pelo conhecido programa Obras ALCEU RAVANELLO FERRARO 23 Contra as Secas. Aos poucos fora-se delineando uma alternativa - uma política de desenvolvimento econômico para a Região. O Banco do Nordeste do Brasil - BNB, cujas atividades tiveram início em 1954, é fruto dessas novas ideias. O estado do Rio Grande do Norte ocupa o terceiro lugar (90,6%), precedido apenas pela Paraíba (97,8%) e Ceará (92,2%). (IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, Rio de Janeiro, 1963). Principalmente através de seus estudos sobre o Nordeste,5 o BNB tornou-se o difusor e sustentador do enfoque econômico no tratamento dos problemas da Região. O I Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Campina Grande, nos dias 21 a 26 de maio de 1956, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, conseguiu reunir, além de bispos, grande número de técnicos e homens de governo para uma revisão da política federal no Nordeste.6 No Encontro, constatou-se a falta de entrosamento dos órgãos federais no Nordeste. Partindo dessa constatação, uma ideia tomou vulto: a da necessidade de um maior entrosamento entre tais órgãos. Os frutos concretos do Encontro foram dois. Primeiro, a aprovação, pelo Presidente Juscelino Kubitschek, que estivera presente, dos 19 projetos emanados do Encontro, visando a uma experiência piloto de colaboração e integração dos diver5. Cada um dos relatórios do BNB, correspondentes aos exercícios de 1955 a 1965, apresenta um estudo, geralmente extenso, sobre algum aspecto da economia regional nordestina. O Relatório do exercício de 1955 focaliza, em sua introdução, o conjunto da economia nordestina. 6. BRASIL. Presidência da República. I Encontro dos Bispos do Nordeste, 1956. 273p. 24 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal sos órgãos governamentais que atuavam no Nordeste. Segundo, o lançamento, pelo Presidente da República, da Operação Nordeste, a qual, em fevereiro de 1959, cederia lugar à CODENO (Comissão de Desenvolvimento do Nordeste). Esta, por sua vez, em dezembro do mesmo ano, após o II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, maio de 1959)7, seria substituída pela SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).8 Isto demonstra que foi no período entre as secas de 1953 e 1958 que se formou e, pelo menos em parte, se concretizou uma nova maneira de encarar os problemas da Região, representada pela passagem da política tradicional, caracterizada pelas “Obras Contra as Secas”,9 para uma política de desenvolvimento regional. Como segunda circunstância temos que, enquanto o Governo Federal estava nas mãos do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o estado do Rio Grande do Norte era governado pela União Democrática Nacional (UDN), partido de oposição no plano nacional. Como tal, o Governo Estadual não só 7. BRASIL. Presidência da República. II Encontro dos Bispos do Nordeste, 1959. 8. Stephan H. Robock assim comenta a ação dos bispos do Nordeste: “Uma iniciativa não-governamental liderada pelos bispos nordestinos da Igreja Católica também foi significativa no movimento pro-coordenação.” E falando dos 30 decretos presidenciais resultantes do II Encontro dos Bispos do Nordeste, o mesmo autor diz textualmente: “O êxito desta iniciativa dos bispos ainda não foi determinado,›mas o efeito educativo da participação de um grupo de grande poder de liderança resultou em decisivo apoio a várias atividades, tais como a SUDENE.” (Robock, op. cit., p. l15). 9. Data do tempo do Império (1877) a tendência a encarar a seca do Nordeste como um problema nacional. A política nacional de “combate contra as secas” pode ser considerada como a primeira fase da ação do Governo Federal em relação ao Nordeste, política esta posta em jogo a partir da seca de 1953 e principalmente na seca de 1958 e superada definitivamente com a criação da SUDENE em dezembro de 1959. (Cfr. Fernando de Oliveira Mota, “A SUDENE e o planejamento regional”, Síntese política, econômica e social, n. 17, jan./mar. 1963, p.33-48). ALCEU RAVANELLO FERRARO 25 tinha dificuldade de acesso à Presidência da República e aos ministérios, como também se considerava, por isso mesmo, excluído de qualquer participação no gerenciamento dos recursos federais destinados às obras contra a seca no estado. Foi assim que a Igreja acabou servindo de ponte entre o Governo Estadual e o Governo Federal e entre aquele e os prefeitos de oposição dentro do estado. Ao primeiro prenúncio de seca, no início de março de 1958, Dom Eugênio Sales foi ao Rio de Janeiro e pediu audiência com o Presidente da República. Convidou outros três bispos nordestinos que se encontravam no Rio de Janeiro. Cerca de 60 parlamentares compareceram à audiência. O Senador potiguar Apolônio Sales fez-se intérprete dos sentimentos e preocupações do Nordeste, ante a iminência de uma nova seca. Foi uma “advertência ao Governo federal para que não fosse apanhado desprevenido”, confessa Dom Eugênio, que, por outro lado, ficou surpreso com a estranha euforia de alguns parlamentares, euforia esta motivada certamente pela perspectiva das grandes fortunas que a seca poderia propiciar. Intuindo a oportunidade, Dom Eugênio, de volta a Natal, reuniu o clero do interior: “Se toparem a parada, acabaremos com a indústria das secas”.10 Os padres toparam, e a luta começou. Acompanhado de uma equipe de sacerdotes e leigos, percorreu mais de mil quilômetros, observando a situação em quinze municípios. “A ideia” - diz Dom Eugênio – “era esta: se a seca vier mesmo, o que é que vamos fazer? Que posição vamos tomar? Por que parte vamos atacar?”11 10. De entrevista gravada. 11. De entrevista gravada. 26 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Foi um alerta à população e às autoridades.12 “Não havia ainda seca” – diz Dom Eugênio – “mas a fome era geral. De um momento para outro levantou-se uma grita geral que se propagou como um incêndio. Cidades foram ameaçadas de invasão. O Governo estava despreparado. Então resolvemos abrir frentes de serviço. Em nome da diocese requisitamos gêneros nas mercearias e atacados de Natal. A Marinha pôs à disposição uma frota de caminhões para transportar as mercadorias para o interior”.13 Por determinação do bispo, os vigários organizaram comissões em suas paróquias.14 Deu-se início ao alistamento onde o DNOCS não tinha entrado ou onde o serviço era muito lento. Abriram-se frentes de trabalho.15 12. Foi incisivo o telegrama de Dom Eugênio ao Governador Dinarte Mariz, que se encontrava no Rio de Janeiro: “Acabo regressar viagem quinze municípios várias regiões sem início serviços alguns desorganizados. Iniciado crime barracões. Necessário exigir pagamento em dinheiro...” (Com data ilegível, mas certamente de fins de março de 1958). 13. De entrevista gravada. 14. Telegrama expedido por Dom Eugênio para os vigários de Nova Cruz, São José do Campestre, Santa Cruz, São Paulo do Potengi, São Tomé, Angicos, Lages e Pedro Avelino: “Dentro poucos dias seguirão gêneros. Convide juiz, prefeito, e representante partido situação e oposição organizando comissão sua presidência que fiscalizará funcionamento posto gêneros, Centro Social assumirá postos pagamento somente operários DNOCS em gêneros até segunda orientação. Fica autorizado entenderse responsável DNOCS pedindo pessoas confiança vigário fim encarregarse pagamento gêneros. Preços gêneros valor custo acrescido quebra normal. Receba vales que serão entregues mediante comprovantes Direção DNOCS. Seguirão novas instruções”. (Natal, 10/04/1958) 15. Textos de alguns telegramas dé vigários do interior a Dom Eugênio: “Iniciado serviço aceitamos cooperação” (São Paulo do Potengi, 01/04/1959); “Falta absoluta gêneros próxima semana alistamento crescendo difícil contornar situação” (São Paulo do Potengi (06-04-1958); “Até meio dia nenhum funcionário (do DNOCS) presente efetuar alistamento marcado hoje. Alistaremos quatrocentos fornecendo dois dias posto. Precisamos carne e muita farinha” (São Paulo do Potengi, 14/04/1958); “Remeto leva 600 homens Campo Redondo...” (Santa Cruz, 09/04/1958); “Serviços caráter urgência iniciados segunda-feira sem presença DNOCS... Urge fornecer pequeno comércio” (Angicos, 09/04/1958). ALCEU RAVANELLO FERRARO 27 Foi assim que começou a construção da Barragem do açude Pataxó, em Angicos. Em São Paulo do Potengi deuse início à construção da estrada para São Tomé. Estas e outras frentes de trabalho foram abertas por conta da Arquidiocese de Natal. Simultaneamente as comissões organizavam o fornecimento de gêneros aos trabalhadores. Se o alistamento e as frentes de trabalho abertas pela Arquidiocese provocaram reações, estas foram mais violentas ao se colocar em questão o monopólio dos donos de barracão. Um exemplo ilustra o que ocorreu. Um comerciante de Macaíba conseguira autorização para abrir um barracão em São Paulo do Potengi. Mas a Comissão já havia abarrotado o Centro Social com as mercadorias trazidas por uma frota de nove caminhões da Marinha. Veio o dia do pagamento. O DNOCS costumava entregar as folhas de pagamento ao dono do barracão. A Comissão, da qual fazia parte o juiz de São Paulo do Potengi, exigiu que as folhas fossem entregues aos operários, para que pudessem fazer suas compras onde quisessem: no barracão, no Centro Social ou no comércio local. Pressionado, o DNOCS entregou aos trabalhadores metade das folhas de pagamento, indo uns abastecer-se no Centro Social e outros no barracão. Uma grita geral levantou-se quando os flagelados constataram a diferença: por trabalho idêntico, recebiam no barracão muito menos do que no posto do Centro Social. Percebendo que o Centro Social não tinha gêneros para atender a todos os trabalhadores, o dono do barracão ausentou-se deliberadamente, para desacreditar a Comissão perante os mesmos. Esgotados todos os gêneros estocados no Centro, a Comissão 28 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal não teve dúvida. Foi ao barracão, encontrando-o fechado à chave e selado. Onde estaria a chave? Uma mulher declarou que o proprietário deixara a chave numa casa vizinha. Os trabalhadores foram atendidos. Tudo foi anotado e o barracão fechado, deixando-se lá dentro as folhas de pagamento. Já em Santa Cruz, a Comissão foi menos delicada. O vigário ajudou a arrombar o barracão. Houve protestos e ameaças de processo. A arquidiocese, que já contava com 10 mil trabalhadores alistados por sua conta e não tendo como pagar aos fornecedores de Natal, não poderia aguentar a situação por muito tempo. Mas, a esta altura, a sorte da indústria e dos industriais da seca já estava lançada. Enquanto as comissões locais atuavam no interior e frotas de caminhões abasteciam os postos de distribuição instalados pela Igreja, Dom Eugênio mantinha permanente contato telegráfico com o interior e com a Presidência da República. Em resposta a um telegrama ao Presidente, o Sr. Cleanto Paiva, Chefe do Gabinete do Ministro da Viação, telegrafava a Dom Eugênio comunicando uma série de medidas tomadas pelo Ministro para reforçar o abastecimento na região. Ao anunciar a vinda a Natal de navios com grande carregamento de gêneros, pedia colaboração da Igreja no sentido de impedir qualquer exploração e desestimular a especulação.16 Em telegrama de 14 de abril, os bispos das três dioceses do Rio Grande do Norte chamaram a atenção do 16. “Também muito ajudaria Governo ação representante Igreja e vigários impedindo tentativas exploração divulgando próxima chagada gêneros alimentícios fim desestimular especuladores e tranquilizar flagelados...” (Rio de Janeiro, 09/04/1958, do Sr. Cleanto Paiva, Chefe de Gabinete do Ministro da Viação.) ALCEU RAVANELLO FERRARO 29 Presidente da República para o entrave constatado nos serviços: a interferência de mesquinhos interesses políticos e econômicos, a inoperância dos órgãos federais, a demora no recebimento das verbas de emergência e a falta de abastecimento.17 No dia seguinte o Presidente Juscelino anunciava sua próxima vinda ao Nordeste.18 Mas nem com a vinda do Presidente a situação melhorou. Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça; O que aconteceu a seguir foi narrado por Dom Banco do Brasil virou-se para mim e perguntou-me Eugênio: “Fui imediatamente ao Rio, na qualidade se não tinha medo ao assumir a responsabilidade de emissário dos três poderes estaduais: o Executi- por tantos milhares de pessoas: se o Governo não vo, o Legislativo e o Judiciário. Embora Dom Helder me pagasse, como é que eu resolveria o problema? estivesse doente, fui ter imediatamente com ele. A resposta foi que numa situação dessas ninguém Ele ligou para o Sr. Cleanto Paiva, Chefe de Gabi- pode raciocinar...”19 que o Governo estadual era inimigo do Governo Federal; que portanto o Governo Federal não iria mandar dinheiro ao Governo estadual e que a nomeação de um general do Exército seria também a única maneira de excluir os políticos que teriam medo do Exército. A certa altura o Presidente do nete do Ministro da Viação. Foi então que eu disse: o Gabinete. O Presidente presidia. Eu fiz o históri- Ao final da reunião, Dom Helder observou ao Presidente que Dom Eugênio não estava satisfeito com o resultado. “Que posso fazer?” - teria respondido o Presidente “Estes homens não me deixam”. Mandou que entrassem ambos numa sala contígua e fechassem a porta. Saindo por último do recinto da reunião, o Presidente entrou por outra porta e fechou imediatamente. co. Disse que havia assumido a responsabilidade “Ficamos a sós” - prossegue Dom Eugênio. “Então de muitos milhares de homens e que eu trazia falamos também dos políticos que se aproveitavam um pedido ao Governo Federal: que entregasse a da situação. Não me lembro de todo o diálogo. Mas coordenação das obras ao General Comandante do o Presidente disse que tomaria todas as medidas Exército daqui (Natal). Então o Presidente alegou necessárias, que nomearia um General. Eu voltei que isto seria intervenção federal. Observei-lhe imediatamente para Natal. Foi designado o Gene- que eu vinha em nome do Governo do Estado, da ral Manoel Guedes. Este convocou todos os órgãos ‘É uma vergonha para nós, que somos do Nordeste – ele é nordestino - que isto se repita ainda. A falta de organização é um dos males principais.’ Imediamente ele se prontificou a me ajudar. Pedi uma audiência com o Presidente da República. Fui com Dom Helder. O Presidente estava reunido com federais. Convocou-os como se fossem oficiais. 17. Natal, 14/04/1958: dos bispos do Estado para o Presidente da República. 18. Rio de Janeiro, 15/04/1958: Do presidente da República para três bispos do estado. 30 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 19. De entrevista gravada. ALCEU RAVANELLO FERRARO 31 Ao Diretor de uma dessas autarquias que criou dificuldades, ameaçou prendê-lo. Foi uma verdadeira operação de guerra. Mapas na mesa: os pontos atingidos, levantamento de estoques, uma verdadeira operação militar. A Igreja, então, à medida que o Exército ia assumindo, foi retirando-se de sua posição de enfrentar pessoalmente o problema, ficando mais com a parte assistencial: assistência ao velhos, inválidos, viúvas, doentes”.20 O próprio Dom Eugênio afirma ter sido alvo de grosserias, quando, de certa feita, averiguou irregularidades no barracão do “chefe dos industriais da seca”, um poderoso líder político potiguar. Mas, a esta altura, o referido “chefe”, embora mantivesse seu pessoal nos postos, não controlava mais a situação. O Governo Federal não lhe dava mais apoio e, no estado, o General Guedes assumira a coordenação dos trabalhos. Não podendo atingir a pessoa do bispo, o “chefe” tentou atingi-lo na pessoa do Dr. Antônio C. Malta, Diretor do INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização) e um dos mais estreitos colaboradores de Dom Eugênio, querendo substituí-lo por um correligionário, mas sem sucesso. Ao grupo que se julgou prejudicado e que ainda conservava mágoa pela ação desenvolvida pela Igreja no estado do Rio Grande do Norte, durante a seca de 1958, o Bispo Auxiliar de Natal respondia: “Diante da miséria tremenda não restava outra atitude a ser tomada... É missão do pastor velar pelo seu rebanho. Reconheço 20. De entrevista gravada. 32 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal que contraria interesses, mas acima deve estar o cumprimento do múnus episcopal.”21 Essa luta contra a indústria das secas marcou o início de nova fase no Movimento de Natal – a luta pela mudança de estruturas na região. Dela, o Movimento de Natal saiu fortificado. Apesar de a ação em favor dos flagelados ter sido concebida, encetada e assumida pelo bispo e pelo clero, principalmente do interior, numa iniciativa partida do alto e, à primeira vista, inteiramente paternalista, as comissões locais mobilizaram grande número de pessoas do interior, já engajadas ou não nas atividades do Serviço de Assistência Rural da Arquidiocese, para serviços de alistamento, supervisão das frentes de trabalho, e distribuição de gêneros alimentícios aos trabalhadores. Essa participação no enfrentamento do principal problema da seca – a desorganização e a desonestidade administrativa – levou muitos a tomarem consciência e a interessarem-se pelos problemas cotidianos do homem do campo, particularmente do trabalhador rural. As associações de jovens (clubes de jovens, os grupos de Juventude Agrária Católica) e os centros sociais se solidificaram no período e cresceram com a integração de novos elementos. Enfim, o Movimento cresceu. A luta pela reforma de estruturas estava aberta. Continuaria e se alargaria com a criação do Setor de Politização e, particularmente, com a fundação dos sindicatos rurais no início dos anos 1960.22 21. Cfr. O diário A República, Natal/RN, 11/05/1958. 22. Em 10 de agosto de 1958 foi inaugurada a Emissora da Arquidiocese de Natal e com ela foram organizadas as primeiras escolas radiofônicas, que deram início à primeira experiência de educação de base pelo rádio no Brasil. As diferentes fases do Movimento de Natal foram analisadas em: FERRARI, Al- ALCEU RAVANELLO FERRARO 33 A CHEGADA DO RIO23 Chove forte no Sertão! – exclamou Monsenhor Expedito, com um sorriso que dispensava o habitual bom dia ao amanhecer. Seu semblante traduzia uma alegria que contrastava com a tristeza e angústia das últimas semanas. A Rádio acaba de anunciar que chove nas nascentes do Potengi – prosseguiu ele, a caminho da pequena capela. Começavam a chegar as primeiras famílias de camponeses. A boa nova circulava rapidamente. Os semblantes se transformavam como que por encanto. Olhos curiosos perscrutavam o céu à procura de algum sinal de chuva. Mas, até aquele momento, nada de nuvens. Monsenhor Expedito era o vigário da paróquia de São Paulo do Potengi, cuja sede estava situada à margem direita do Rio Potengi. Eu realizava uma pesquisa no Agreste do estado do Rio Grande do Norte, região intermediária entre o Litoral e o Sertão potiguar, com vistas à minha tese de doutorado. Tinha aceito de bom grado o convite de Monsenhor Expedito e acompanhava-o em sua peregrinação de capela em capela dentro de sua paróquia. O fato de estar em sua companhia me ajudava muito nos contatos com os camponeses. Devido à violenta repressão das atividades sindicais, depois do Golpe Militar de 1964, eles evitavam qualquer contato com estranhos ao meio. ceu. Igreja e desenvolvimento. O Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto, 1968. A fase denominada “luta pela mudança de estruturas” foi amplamente analisada na referida obra, seja do ponto de vista histórico (Capítulo IV - II Fase Rural), seja sob o aspecto das transformações verificadas (Capítulo X - Politização e Sindicalização). (Nota de 1998) 23. Texto escrito em Porto Alegre, em 1979. 34 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Tínhamos atravessado o Rio Potengi a seco, no jeep de Monsenhor Expedito, fazia três dias. Mais uma vez a seca se abatera sobre quase todo o estado do Rio Grande do Norte, como, aliás, sobre quase todo o Nordeste. O 19 de março, festa de São José, sinalizara, havia já mais de uma semana, o último dia de espera. Milhares de trabalhadores agrícolas e de pequenos proprietários já tinham sido mobilizados em obras de emergência. A terrível seca de 1958 e suas consequências dramáticas ainda estavam bem vivas na memória do povo. A chuva anunciada se revestia, por isso, de uma caráter de salvação, mesmo que tardia. Durante toda a manhã a Rádio anunciava, em transmissões sucessivas: – Do Planalto Central, a chuva se estende para todas as regiões. – A chuva vem na direção do Agreste e do Litoral. Mas o Potengi, cheio e furioso, precede a chuva. – O rio deve chegar a São Paulo do Potengi por volta de quatro horas da tarde. Por volta de onze horas, Monsenhor Expedito me alerta: – Vamos partir o mais tardar às três horas, para podermos chegar antes do rio. Às três da tarde estávamos a caminho. Nenhuma nuvem ainda; nenhum sinal de chuva no céu. A estrada era péssima. O jeep avançava lentamente, aos solavancos. E eu a pensar sobre aquelas palavras: “... para podermos chegar antes do rio”. Elas não faziam parte do meu vocabulário. ALCEU RAVANELLO FERRARO 35 Às quatro horas estávamos ainda a quatro ou cinco quilômetros da Cidade de São Paulo do Potengi. Alguns minutos mais tarde, a algumas centenas de metros do rio, Monsenhor exclamou, apontando para a margem oposta: – Veja! O rio já chegou! Eu ainda não divisava o rio. Mas podia distinguir muito bem, junto à margem oposta, grupos em festa, enquanto outros já subiam a leve encosta, na direção da pequena cidade. Mais alguns segundos, e ei-lo diante de mim. Ou melhor, eis-me diante dele, porque ele, o rio, havia chegado primeiro. Inteiramente seco, três dias atrás, e agora cheio até às bordas. A torrente d’água, da cor da terra, rolava rápida e rumorosa. Compreendi então as palavras de Monsenhor Expedito: “... chegar antes do rio”. Não tínhamos conseguido. Isto prolongava nossa viagem até a ponte situada em Natal, próxima à foz, para então retornar pelo outro lado - mais uns 120 quilômetros. Treze anos mais tarde, ao tentar colocar no papel esse momento marcante de minha vivência como pesquisador no Rio Grande do Norte, nos anos de 1964 a 1968, as palavras de Monsenhor Expedito, “chegar antes do rio”, ainda me soam misteriosas e dramáticas. Elas trazem à lembrança, a cada nova seca ou ameaça de seca no Nordeste, a desgraça de um povo ainda à mercê dos industriais das secas. 36 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal PREFÁCIO DO AUTOR 1) Muito se tem dito e escrito, nos últimos anos, sobre RELIGIÃO e DESENVOLVIMENTO. O estudo que ora apresentamos ao público, concluído em dezembro de 1966, é fruto de pesquisas realizadas a partir de abril de 1964. Ao empreender este trabalho, objetivamos projetar mais alguma luz sobre um dos aspectos da interrelação destes dois fenômenos, ou seja, sobre o possível impacto exercido pelos grupos religiosos sobre os atuais processos de desenvolvimento. Como, porém, as sérias limitações de bom número de estudos sobre o assunto resultam, muitas vezes, exatamente da carência de uma sistemática verificação empírica de suas hipóteses e teorias, decidimos dar, em nossa pesquisa, prioridade a este método. Esta mesma opção metodológica preliminar aconselhou-nos o estudo de uma experiência em que um determinado grupo religioso (católico, no caso), dentro de uma região ainda tradicional ou pré-técnica, se tenha empenhado em atividades temporais, com vistas ao desenvolvimento. Projetada, a partir de 1945, por seu intenso trabalho social conhecido últimamente como Movimento de Natal e situada na Região ALCEU RAVANELLO FERRARO 37 Nordeste do Brasil, cuja condição de pré-desenvolvimento nos anos 1940 e 1950 não deixa dúvidas, a Arquidiocese de Natal pareceu-nos campo apto para a verificação empírica de nossas hipóteses de pesquisa. Na introdução, após havermos enfocado, em termos genéricos, o problema e o método a seguir, apresentamos breve análise da Região e da forma de religiosidade ali existente, chegando à seguinte definição do contexto social e religioso em que se originou e expandiu o Movimento de Natal: uma região tradicional (pré-desenvolvida ou pré-técnica) e tradicionalmente católica (de um catolicismo de tradição). Situando-nos dentro deste contexto, enunciamos duas hipóteses (acrescidas, depois, de outra, surgida no decorrer da pesquisa), que precisaríamos melhor e, se necessário, reformularíamos, com base nos dados do estudo histórico-descritivo do Movimento. Levantamos, primeiramente, a hipótese da funcionalidade, do ponto de vista do desenvolvimento, das atividades temporais empreendidas pelo Movimento de Natal no meio rural da Arquidiocese. Em segundo lugar, fundados numa tipologia de atitudes que a Igreja poderia eventualmente assumir em face de um processo de mudança, levantamos a hipótese de uma vinculação: 1) entre funcionalidade e existência de uma atitude inovadora ou profética, da parte da Igreja, com relação ao temporal, e 2) entre atitude-ação no setor temporal e atitude-ação no setor religioso. 2) A I PARTE dedicamo-la a uma visão de conjunto do Movimento, dentro de uma perspectiva histórica. O estudo dos condicionamentos (Capítulo I) nos permitiu identificar, já antes do Movimento, a partir de 1919, 38 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal uma fase criativa no setor temporal, sob a atuação da Congregação Mariana de Moços, seguindo-se, depois, do ponto de vista criativo, longo hiato até 1945, ano que marca o início da crescente projeção da jovem Ação Católica natalense e o começo do eclipse do marianismo. Foi deste dinamismo social da Ação Católica que se originou o Movimento de Natal. Isto ocorreu precisamente no momento em que, após uma fase de verdadeira inchação demográfica durante a II Guerra Mundial, a Cidade, em decorrência principalmente da retirada das linhas aéreas internacionais e das tropas americanas e, mais que tudo, do desaparecimento do dólar fácil, sofria uma queda vertical em todo o sentido, ficando com um saldo de graves problemas sociais, especialmente nos novos bairros, surgidos da noite para o dia, no primeiro quinquênio dos anos 40. Os Capítulos II a IV mostram como o Movimento, de caráter especificamente religioso em suas origens, evoluiu, no setor temporal, de atividades marcadamente assistenciais em face de uma situação de emergência (FASE URBANA), para um programa de desenvolvimento de comunidade, estribado no tripé: líder — grupo — comunidade (I FASE RURAL), e, por último, após 1958 e especialmente nos anos 60, juntamente com o forte impulso dado ao ensino primário e médio e ao cooperativismo, para a assim chamada “luta pela mudança de estruturas” (II FASE RURAL), extrapolando, assim, os limites da pequena comunidade interiorana, com crescente influência no plano municipal e estadual e com repercussão, inclusive, em plano regional e nacional. ALCEU RAVANELLO FERRARO 39 Observamos, ainda, no Capítulo IV, como a forte reação da classe “político-patronal” rural, favorecida pelo Regime implantado pela Revolução de 31 de março de 1964 e contando, daí por diante, com apoio mais eficiente e mesmo ostensivo da Polícia nas comunas do interior, acarretou para o Movimento uma freada violenta em tudo o que dizia mais de perto respeito à “luta pela mudança de estruturas” (o sindicalismo rural e o trabalho de politização). 3) A II PARTE, a principal neste estudo, trata da verificação empírica da hipótese da funcionalidade. O Capítulo V (Metodologia) é uma introdução metodológica a esta parte. Nosso interesse voltava-se principalmente para o trabalho empreendido pelo SAR (SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA RURAL) no meio rural da Arquidiocese de Natal. Como, porém, dado o clima de retraimento e desconfiança após a Revolução, não víamos condições para levar a bom termo uma verificação do impacto produzido pela “luta pela mudança de estruturas”, voltamos nossa atenção especialmente para o trabalho de desenvolvimento de comunidades rurais, típico da I FASE RURAL, e para alguns aspectos da II FASE. Limitando o campo de pesquisa ao Agreste norte-riograndense, escolhemos 4 pares de comunidades, procurando manter, quanto possível, constantes, nas comunidades de cada par, todos os fatores ou agências de mudança, excessão feita do SAR. Este modelo nos permitiu confrontar, “ex post facto”, com referência aos diversos indicadores de desenvolvimento empregados na pesquisa, os dois grupos de comunidades: as 4 CT (Comunidades Trabalhadas) com as 4 CNT (Comunidades Não 40 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Trabalhados pelo SAR), e, em alguns casos, estabelecer uma comparação entre as duas comunidades — trabalhada e não trabalhada — de cada um dos 4 pares. A amostragem obedeceu aos seguintes limites de precisão pré-estabelecidos: probabilidade ou margem de erro tolerada = 5%; intervalo de confiança = 95%; erro padrão = 2%; 2 erros padrão = + - 4%. Extraída de acordo com estes limites de precisão, a amostra constou de 365 chefes de família e 368 (50%) outros membros de 14 anos e mais: ao todo, 733 pessoas entrevistadas. A hipótese da funcionalidade foi assim reformulada e explicitada: I HIPÓTESE: As atividades temporais empreendidas pela Igreja, através do SAR, no meio rural da Arquidiocese de Natal, demonstraram-se funcionais ao desenvolvimento, seja 1) conformando concepções e atitudes com padrões mais funcionais ou mais compatíveis com os objetivos e o processo de desenvolvimento, seja 2) conformando com idênticos padrões o comportamento dos indivíduos atingidos e, em consequência e na medida disto, desencadeando, no mesmo sentido, um processo de mudança nos sistemas tradicionais de relações do homem com os meios físico, social e cultural, seja 3) criando condições de vida já identificáveis com os próprios objetivos do desenvolvimento. Nos capítulos VI a X (VI — Saúde, VII — Situação TécnicoEconômica, VIII — Instrução (alfabetização e escolaridade), IX — Formas Associativas e Cooperativas, Ação Comunitária e Participação Social, X, — Politização e Sindicálização), segundo ALCEU RAVANELLO FERRARO 41 a grande maioria dos critérios ou indicadores de desenvolvimento empregados na verificação empírica, emergiram diferenças altamente significativas e constantes em favor das CT, isto é, das comunidades trabalhadas pelo SAR. Por outro lado, no Capítulo XI (Consciência e Agentes de Mudança) aparece claramente que os entrevistados das comunidades trabalhadas têm, em proporção muito mais elevada dos que os das não trabalhadas, consciência de tais mudanças (melhoras); que as mudanças por eles apontadas coincidem praticamente com as emergidas da aplicação de critérios objetivos na verificação empírica; que, enfim, os agentes de mudança mencionados pelos entrevistados das comunidades trabalhadas permitem identificar o SAR (o Movimento de Natal em sua atuação no meio rural) como principal responsável pelas mudanças ocorridas. A hipótese da funcionalidade, por conseguinte, encontrou confirmação nos dados da verificação empírica. 4) A II hipótese (Capítulo XI.2) diz respeito ao rendimento dos líderes de comunidade, conforme sejam ou não associados, ou então, conforme tenham ou não atuado, nas respectivas comunidades, através de grupos de pequeno porte (associações voluntárias, de âmbito restrito à pequena comunidade interiorana: fazenda, sítio, povoado, pequena cidade). Foi assim formulada: II HIPÓTESE — O rendimento do líder associado foi maior do que o rendimento do líder isolado ou não associado. Esta hipótese não fora prevista de início. Surgiu em estado já avançado da pesquisa. Foi-nos sugerida pela observação em dezenas de comunidades e por alguns dados 42 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal colhidos, a pedido da equipe de treinamento do MEB, por ocasião de um treinamento de Monitores de Escolas Radiofônicas. Preparamos, então, às pressas, o Questionário B, que contém, além das de interesse do MEB, algumas perguntas — poucas e simples, pois os questionários deviam ser preenchidos pelos próprios Monitores — referentes à nova hipótese. Através dos treinamentos e dos supervisores residentes no interior, foi-nos possível atingir novamente os já entrevistados e estender a pesquisa a outros, num total de 248 líderes (Monitores). Pelas razões acima, a II hipótese ressente-se, em sua verificação empírica, da falta de técnicas mais elaboradas. Contudo, sugerida, como dissemos, pela própria observação em grande número de comunidades e por depoimentos de líderes, a hipótese é reforçada pelos depoimentos dos entrevistados das 4 comunidades trabalhadas pelo SAR, que apontam como principais agentes de mudança os líderes locais e os grupos de pequeno porte (a maioria dos líderes apontados pertenciam a tais grupos), encontrando, enfim, dentro das limitações do Questionário B, confirmação nos dados da pesquisa realizada entre os 248 líderes (Monitores), segundo todos os critérios aplicados. 5) A III PARTE (Relação entre funcionalidade e atitude e entre temporal e religioso) relaciona-se com a verificação da III hipótese (II., na Introdução). A hipótese tem por base a tipologia de atitudes que, numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica, a Igreja ou um grupo católico poderia assumir ao se lhe apresentar o problema da mudança (Introdução, § 4.2): — atitude reacionária: resistência à mudança, motivada por interesses; ALCEU RAVANELLO FERRARO 43 — atitude integradora: aceitação da mudança, motivada por interesses; — atitude conservadora: resistência à mudança, motivada por valores; — atitude inovadora: acecitação da mudança, motivada por valores. Admitíamos, por hipótese, 1) uma vinculação entre funcionalidade das atividades temporais e tipo de atitude, da parte da Igreja, em face do temporal, ou seja, que a uma eventual funcionalidade corresponderia, da parte da Igreja, uma atitude inovadora, e 2) uma vinculação entre atitude-ação, da parte da Igreja, nos dois campos: o religioso e o temporal. Verificada empiricamente a da funcionalidade, nossa III hipótese foi assim enuncicada no Capítulo XII): HIPÓTESE — Por parte do Movimento e especialmente de seus líderes, de cujas atividades temporais empreendidas no meio rural ficou demonstrada a funcionalidade ao desenvolvimento, correspondeu uma atitude inovadora, motivada por valores e não por interesses particulares do grupo religioso, de orientação profética e não ética, atitude esta resultante de um processo de desinculturação dos valores cristãos e resultante num descomprometimento do grupo religioso com o status quo social e religioso e numa posição em favor da mudança tanto no setor temporal como no religioso. Tínhamos, por um lado, plena consciência das sérias dificuldades de ordem teórica e metodológica relacionadas com a verificação desta hipótese, especialmente da 44 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal velha e intricada discussão a respeito do poder de motivação exercido por interesses e valores em processos de mudança social. Por outro lado, a verificação da I hipótese (objetivo primário de nosso estudo) absorveu-nos quase totalmente o tempo e os escassos recursos financeiros de que dispúnhamos, o que nos obrigou a restringir bastante o campo da pesquisa com relaçao à III hipótese. Apesar disto, foi-nos possível chegar a algumas conclusões, que emergem do estudo feito na III Parte. a — Primeiramente, não resta dúvida quanto à existência de uma correlação íntima entre mudança efetiva (melhora) nos dois planos semelhantemente ao verificado na II Parte com relação ao setor temporal, as comunidades trabalhadas pelo SAR acusam, com intensidade ainda mais acentuada, mudanças (melhoras) do ponto de vista religioso. b — Aparece, em segundo lugar, em ambos os planos (temporal e religioso), uma correlação íntima entre o suceder-se de metas e atividades relacionadas sempre mais de perto com mudanças, e o surgimento da parte dos principais líderes do Movimento, de uma atitude cada vez mais consciente e decidida em favor da mudança. c — Observa-se, em terceiro lugar, uma íntima correlação entre o surgimento de uma atitude e ação contra o status quo social e religioso e em favor da transformação da ordem tradicional, e a progressiva tomada de consciência e reflexão, da parte do grupo pensante do Movimento, sobre certos valores cristãos, quer especificamente religiosos, quer sociais, mas, estes, intimamente relacionados com os primeiros. A confrontação entre valores do grupo ALCEU RAVANELLO FERRARO 45 religioso e realidade social e religiosa conduziu o Movimento a uma posição crítica e de relativo descomprometimento com relaçao ao status quo e a luta pela transformação da ordem tradicional. Neste fato identificamos o que definimos como processo de desinculturação. d — Concluindo, porém, que à funcionalidade das atividades temporais ao desenvolvimento correspondeu uma atitude inovadora ou profética, de maneira nenhuma pretendemos afirmar que tudo no Movimento tenha representado descomprometimento com o status quo e atitude e ação em favor da mudança, nem que tudo e sempre tenha sido motivado por valores, sem nenhuma interferencia de interesses. As conclusões acima apontam tendências e predominancias que emergiram na pesquisa. É neste sentido que consideramos verificada a hipótese no que se refere ao Movimento de Natal. e — Contudo, embora verificada a hipótese no caso estudado, e, por isso mesmo, as conclusões acima o sugiram, não pretendemos deduzir do presente estudo que, em condições semelhantes (numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica), somente grupos religiosos motivados preponderantemente por valores possam evoluir para uma ação temporal que se demonstre funcional do desenvolvimento. Nossa pesquisa e, consequentemente, nossas conclusões limitam-se ao Movimento de Natal, no qual, de fato, a hipótese se verificou. Segundo nosso modo de ver, uma generalização neste campo só poderia fundar-se numa série de estudos comparativos de casos semelhantes. Neste sentido, o presente trabalho não constituiu mais que uma tentativa de interpretação sociológica de um caso e de abertura para ulteriores veri- 46 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ficações em um campo ainda pouco explorado empiricamente em sede da Sociologia do Desenvolvimento. f — A situação nacional pós-revolucionária nos sugere uma última observação. Embora não tenhamos dados suficientes para julgar, não podemos excluir que, em consequência do Regime de repressão instalado no país com a Revolução de 31 de março de 1964, o Movimento, assim como renunciou, pelo menos em parte e momentaneamente, a certas metas e atividades, venha também a sofrer mudanças profundas no que se relaciona com sua atitude fundamental (motivação e posição) em face da, antes, tão propugnada transformação da ordem existente. Não há dúvida que, entre outros no Brasil, o Movimento de Natal foi um dos que contribuiu para que a ordem social tradicional já não se possa manter apoiada simplesmente na força da tradição. O fato de se haver recorrido a um regime de repressão de tais grupos e movimentos para sustentá-la, é demonstração evidente de que as velhas estruturas sociais foram minadas em sua base, pelo trabalho de conscientização e de organização de classes. A tradição já não “cimenta” com o mesmo vigor as diferentes camadas da estrutura social. O atual contexto nacional sugere uma série de interrogações, às quais seria prematuro pretender responder: Até que ponto terão liberdade e estarão os grupos ou movimentos católicos dispostos a correr o risco de prosseguir no trabalho de conscientização das populações marginais e na luta pela transformação das estruturas sociais vigentes? ALCEU RAVANELLO FERRARO 47 Até onde o atual Regime lhes permitirá chegar? Terá ele força para barrá-los? 6. Concluindo este nosso prefácio à guisa de síntese, não nos resta senão AGRADECER a quantos, de uma maneira ou de outra, nos ajudaram a levar a termo este Trabalho, especialmente: A FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO, pelo patrocínio, através do INSTITUTO JUVENAL LAMARTINE DE PESQUISAS SOCIAIS, da pesquisa de campo, incluídos local, material e todo o trabalho de datilografia, e pela publicação deste Trabalho; A todas as pessoas do Movimento, que, de muitas maneiras, colaboraram na realização desta pesquisa; Ao nosso ex-professor de Sociologia, P. Br. Émile Pin, cuja experiência e orientação muito nos valeram; À MISEREOR, por uma ajuda financeira na fase inicial da pesquisa; Às alunas (hoje, formadas) da ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL — Amarylis Carvalho de Oliveira, Denise Câmara de Carvalho, Maria Auxiliadora Mourão, Maria do Rosário Silva, Marlene de Morais Falcão, Nairy Leal Paiva, Rosa Maria Coelho Pereira e Zélia F. Cabral de Macedo — pela colaboração que deram, a título de estágio, num montante de 2 mil horas de trabalho, na aplicação e tabulação dos questionários da pesquisa feita em oito comunidades do interior; Aos alunos (hoje, formados) da FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS de Natal — Artur Amorim, Carlos Menezes Diniz, Francisco Sebastião Diógenes, Joani Alves de Brito, João Neto Pessoa, Joir Vale dos Santos, Marlene Dantas Santana, Marlene Pinheiro da Silva, Margarida 48 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Maria de Medeiros, Núbia Fernandes Martins, Newton de Araújo Barros e Pedro Martins de Lima — pela tabulação da pesquisa feita entre os monitores e pelos cálculos estatísticos, tudo, também, a título de estágio e colaboração; Ao Sociólogo holandês, Dr. Henk P. A. van Roosmálen, pelas sugestões dadas e pela permissão para utilizar alguns dados de sua pesquisa sobre as Escolas Radiofônicas; À Assistente Social Maria do Nascimento Bezerra, pela preciosa ajuda na análise da correspondência dos monitores e alunos das Escolas Radiofônicas. ALCEU RAVANELLO FERRARO 49 ÍNDICE INTRODUÇÃO Religião e desenvolvimento .............................................. 61 A região ................................................................................. 65 Dados Gerais ......................................................................... 66 Aplicação de alguns critérios de desenvolvimento ...... 67 Alguns conceitos .................................................................. 71 A forma de religiosidade .................................................... 73 Hipótese de pesquisa .......................................................... 78 I hipótese ............................................................................... 78 II hipótese ............................................................................. 81 Atitude reacionária ............................................................. 84 Atitude integradora ou oportunista ................................ 85 Atitude conservadora ......................................................... 87 Atitude inovadora ............................................................... 89 Notas à Introdução .............................................................. 95 I PARTE ORIGEM E EVOLUÇÃO DO MOVIMENTO DE NATAL Introdução à I Parte ............................................................ 101 Notas à Introdução à I Parte ............................................. 104 ALCEU RAVANELLO FERRARO 51 CAPÍTULO I – CONDICIONAMENTOS A Igreja .................................................................................. 105 Da Diocese ............................................................................ 105 Os Bispos ............................................................................... 105 O Marianismo ...................................................................... 108 A Ação Católica .................................................................... 112 O Clero ................................................................................... 113 Natal e a II Guerra Mundial .............................................. 116 A L.B.A. e o SERÁS ................................................................ 119 Notas ao Capítulo I ............................................................. 123 CAPÍTULO II – FASE URBANA Eram dois .............................................................................. 125 Dois e a Ação Católica ........................................................ 127 A Escola de Seviço Social ................................................... 129 A Ação Católica e os problemas da Cidade .................... 130 Pe. Eugênio e a J.M.C. ........................................................... 130 Pe. Nivaldo e a J.F.C. ............................................................. 135 A H.A.C. e a S. A. C. ................................................................. 136 Evolução posterior .............................................................. 136 Influência do SAR ................................................................ 136 A Escola de Seviço Social ................................................... 139 Situação Atual ...................................................................... 140 Conclusão ............................................................................ 143 Notas ao Capítulo II ............................................................. 146 CAPÍTULO III – I FASE RURAL Início .................................................................................... 149 Origem do Encontro Mensal do clero ............................ 149 Dr. Otto e A Ordem .............................................................. 151 Início do SAR ...................................................................... 152 I Semana Rural .................................................................... 155 52 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal O SAR após a I Semana Rural ........................................... 157 Conhecimento dos problemas ......................................... 157 Uma tomada de posição .................................................... 158 Atualização do clero .......................................................... 159 A Missão Rural ..................................................................... 162 Desenvolvimento de Comunidade .................................. 165 O Binômio Escola-Paróquia ............................................... 165 Estratégia .............................................................................. 168 Os treinamentos de líderes rurais ................................... 169 O líder ................................................................................... 171 Conclusão ............................................................................. 172 Notas ao Capítulo III ........................................................ 174 CAPÍTULO IV – II FASE RURAL Educação ............................................................................. 179 Desenvolvimento econômico ..........................................184 Luta pela mudança de estruturas .................................. 190 Síntese ................................................................................ 201 Estrutura do Movimento ................................................. 208 Perspectivas atuais ............................................................ 211 Notas do Capítulo IV .......................................................... 215 II PARTE SAR E DESENVOLVIMENTO – VERIFICAÇÃO EMPÍRICA CAPÍTULO V – METODOLOGIA Opções ................................................................................. 225 Escolha da área .................................................................. 227 Escolha das comunidades ................................................ 230 A amostragem .................................................................... 235 Hipóteses ............................................................................ 239 Critérios de verificação .................................................... 241 ALCEU RAVANELLO FERRARO 53 CAPÍTULO VI – SAÚDE Dados administrativos ...................................................... 243 Fossa .................................................................................... 246 Uso de calçado ................................................................... 248 Chupeta .............................................................................. 250 Água e verminose ............................................................. 251 Doenças em geral .............................................................. 258 Mortalidade infantil ......................................................... 259 Maternidades ..................................................................... 263 Serrote ................................................................................. 267 Notas ao Capítulo VI ......................................................... 272 CAPÍTULO VII – SITUAÇÃO TÉCNICO-ECONÔMICA Técnicas agropecuárias .................................................... 273 Crédito ................................................................................ 276 Cooperativismo ................................................................. 280 Setor de cooperativismo .................................................. 282 Setor de artesanato ............................................................288 A colonização de Punaú ................................................... 294 CAPÍTULO VIII – INSTRUÇÃO Ensino Médio ..................................................................... 299 As Escolas Radiofônicas ................................................... 302 Números de escolas e de alunos ..................................... 302 Os alunos ............................................................................. 305 Os monitores ...................................................................... 310 Outros aspectos ................................................................. 314 Alfabetização ...................................................................... 320 Escolaridade ....................................................................... 327 Conclusão ............................................................................ 334 54 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal CAPÍTULO IX – FORMAS ASSOCIADAS E COOPERATIVAS, AÇÃO COMUNITÁRIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL Formas associativas permantentes, de pequeno porte ..... ............................................................................................... 336 Centro Social ...................................................................... 336 Associações de mulheres ................................................. 337 Grupos de rapazes e de moças ....................................... 337 Cooperação comunitária ................................................. 339 O caso de Carnaúba .......................................................... 339 O caso de Bela Vista .......................................................... 343 O caso de Pitombeira ....................................................... 346 Atitudes segundo o sexo ................................................... 348 Participação social da mulher ........................................ 351 Alguns depoimentos ......................................................... 353 A radiofônica de seu Severino ........................................ 354 A radiofônica de Francisca .............................................. 362 A radiofônica de Eunice ................................................... 365 A radiofônica de Maria Nazinha .................................... 367 A radiofônica de Damiana ............................................... 367 CAPÍTULO X – POLITIZAÇÃO E SINDICALIZAÇÃO Voto ...................................................................................... 369 Curso de Politização ......................................................... 373 Análise da correspondência ............................................ 373 Alguns depoimentos ......................................................... 376 O sindicalismo rural ......................................................... 381 Associações de classe ........................................................ 381 Opinião dos agricultores .................................................. 382 Melhora ............................................................................... 385 Piora ..................................................................................... 386 Atitudes ............................................................................... 388 A reação ............................................................................... 390 ALCEU RAVANELLO FERRARO 55 CAPÍTULO XI – CONSCIÊNCIA E AGENTES DE MUDANÇA Consciência da mudança ................................................... 403 Agentes de mudanças ...................................................... 407 Opinião dos entrevistados ............................................... 407 Pesquisa entre os monitores ........................................... 411 Responsabilidade dos monitores ................................... 412 Cultivo de verduras ........................................................... 412 Tratamento da água potável ........................................... 413 Fossa ..................................................................................... 414 Cooperativismo e sindicalismo ...................................... 414 Conclusão à II parte .......................................................... 417 III PARTE – RELAÇÃO ENTRE FUNCIONALIDADE E ATITUDE E ENTRE TEMPORAL E RELIGIOSO CAPÍTULO XII – RELAÇÃO ENTRE FUNCIONALIDADE E ATITUDE E ENTRE TEMPORAL E RELIGIOSO Visão retrospectiva ........................................................... 425 1940 a meados de 1945 .................................................... 425 Início do movimento: 1945-1950 ................................... 428 As duas fases rurais: 1951-1965 ...................................... 436 Mudança – norma de ação ............................................... 437 Crítica da ordem existente e autenticidade evangélica ... ............................................................................................... 438 Justiça e mudança .............................................................. 442 Mudança e desenvolvimento .......................................... 446 Desinculturação ................................................................. 448 Atitude e mudança no setor religioso ........................... 456 Fatos e atitudes ................................................................. 456 Verificação empírica ......................................................... 468 Consciência da mudança ................................................... 468 56 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Opinião a respeito da ação da Igreja ............................. 471 Relação entre temporal e espiritual .............................. 473 Notas ao Capítulo XII ....................................................... 485 Conclusão geral ................................................................. 487 APÊNDICES E ANEXOS APÊNDICE I – A REGIÃO NORDESTE Aspectos geográficos, fisiográficos e culturais do Nordeste ..................................................................................... 499 Área ...................................................................................... 499 O Polígono das Secas ........................................................ 499 Sub-regiões ou zonas típicas ............................................. 500 Aspectos demográficos .................................................... 507 População ........................................................................... 507 Densidade demográfica ................................................... 508 População rural e urbana ................................................ 508 População ativa empregada na agricultura ................. 508 Estrutura etária da população .......................................... 509 Vida média ou esperança de vida ................................... 510 Natalidade e mortalidade ................................................ 510 Incremento da população ............................................... 512 Aspectos econômicos ....................................................... 514 Distribuição regional da renda nacional ..................... 514 Renda per capita ............................................................... 515 Causas do desiquilíbrio regional .................................... 516 O baixo nível técnico ......................................................... 516 As oscilações do mercado internacional ...................... 516 A política cambial ............................................................ 516 Indústria .............................................................................. 517 Situação orçamentária ..................................................... 517 ALCEU RAVANELLO FERRARO 57 Emissões de capital ........................................................... 518 Investimentos ....................................................................518 Consumo de energia elétrica .......................................... 519 Estrutura agrária ............................................................... 519 Assistência médico-hospitalar ........................................ 523 Alfabetização ...................................................................... 524 Participação da vida política ............................................. 525 Política federal no Nordeste ............................................ 526 Notas ao Apêndice I .......................................................... 530 APÊNDICE II - ERRO PADRÃO E VIÉS Determinação do tamanho da amostra ........................ 533 Estimativas do viés e erro padrão .................................. 534 APÊNDICE III - DOCUMENTOS Documentos relacionados com a campanha de Politização ........................................................................................ 539 ANEXO I - QUESTIONÁRIOS A Igreja e o Desenvolvimento de Comunidades Rurais . 555 Grupos e Mudança Social ................................................. 566 ANEXO II - TABELAS Tabela 5.1 ............................................................................ 569 Tabela 5.2 ............................................................................ 570 Tabela 6.1 ............................................................................ 570 Tabela 6.2 ............................................................................ 571 Tabela 6.3 ............................................................................ 571 Tabela 6.4 ............................................................................ 572 Tabela 6.5 ............................................................................ 572 Tabela 6.6 ............................................................................ 573 58 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Tabela 6.7 ............................................................................ 573 Tabela 6.8 ............................................................................ 574 Tabela 6.9 ............................................................................ 574 Tabela 6.10 ........................................................................... 575 Tabela 6.11 .......................................................................... 575 Tabela 7.1 ............................................................................ 576 Tabela 7.2 ............................................................................ 576 Tabela 7.3 ............................................................................ 577 Tabela 7.4 ............................................................................ 578 Tabela 7.5 ............................................................................ 578 Tabela 7.6 ............................................................................ 579 Tabela 7.7 ............................................................................ 580 Tabela 8.1 ............................................................................ 581 Tabela 8.2 ............................................................................ 581 Tabela 8.3 ............................................................................ 582 Tabela 8.4 ............................................................................ 582 Tabela 8.5 ............................................................................ 583 Tabela 8.6 ............................................................................ 584 Tabela 8.7 ............................................................................ 585 Tabela 9.1 ............................................................................ 585 Tabela 9.2 ............................................................................ 586 Tabela 9.3 ............................................................................ 587 Tabela 9.4 ............................................................................ 588 Tabela 10.1 .......................................................................... 589 Tabela 10.2 .......................................................................... 590 Tabela 10.3 .......................................................................... 591 Tabela 10.4 ............................................................................. 592 Tabela 11.1 .......................................................................... 593 Tabela 11.2 .......................................................................... 594 Tabela 11.3 .......................................................................... 595 Tabela 11.4 .......................................................................... 595 ALCEU RAVANELLO FERRARO 59 Tabela 11.5 .......................................................................... 596 Tabela 11.6 .......................................................................... 597 Tabela 11.7 .......................................................................... 598 Tabela 12.1 .......................................................................... 599 Tabela 12.2 .......................................................................... 600 Tabela 12.3 .......................................................................... 601 Tabela A-1.1 ........................................................................ 602 Tabela A-1.2 ........................................................................ 602 Tabela A-1.3 ........................................................................ 603 Tabela A-1.4 ........................................................................ 603 ANEXO III – GRÁFICOS E MAPAS Gráfico 5.1 ........................................................................... 605 Gráfico 8.1 .......................................................................... 606 Gráfico 8.2 ........................................................................... 607 Gráfico 8.3 .......................................................................... 608 Gráfico 10.1 ......................................................................... 609 Gráfico 11.1 ........................................................................ 610 Gráfico 12.1 ........................................................................ 611 Gráfico 12.2 ........................................................................ 612 Mapa 1 ................................................................................. 613 Mapa 2 ................................................................................. 614 ANEXO IV BIBLIOGRAFIA .................................................................... 615 ANEXO V - Orelhas, edição 1968 ........................................ 619 Anexo VI - Ficha do DOPS ............................................... 623 Anexo VII - Entrevista com autorização de direitos autorais ........................................................................................ 625 60 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal INTRODUÇÃO 1. RELIGIÃO E DESENVOLVIMENTO A relação entre RELIGIÃO E DESENVOLVIMENTO — eis um problema que nos despertou interesse desde o tempo de nossos estudos de Sociologia no Instituto de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma (1960-1964). O estudo da inter-relação destes dois fenômenos — religião e desenvolvimento — poderia ser enfocado de dois pontos de vista opostos, embora complementares. Poderíamos, por um lado, perguntar-nos sobre a relação DESENVOLVIMENTO - RELIGIÃO, ou seja, sobre o impacto produzido na vida religiosa por aquelas trasformações sociais (a industrializarão, a urbanização, a redistribuição profissional, a restrição voluntária da natalidade, a crescente autonomia da mulher, o surgimento de novas ideologias e outras) que, ou são constitutivas do próprio processo de desenvolvimento, ou, acompanhando-o onde quer que este se verifique, com ele estão estreitamente vinculadas. Devido, em boa parte, à preocupação dos próprios grupos religiosos de “rever”, “reno- ALCEU RAVANELLO FERRARO 61 var” ou “atualizar” suas linhas de ação pastoral (religiosa), esta maneira de enfocar o problema tem merecido bastante atenção em sede da Sociografia e da Sociologia Religiosa, notadamente nos países desenvolvidos ou em processo mais ou menos avançado de desenvolvimento. Por outro lado poderíamos — é o que faremos neste Trabalho — perguntar-nos sobre a relação RELIGIÃO - DESENVOLVIMENTO, ou seja, sobre o impacto da religião sobre o fenômeno do desenvolvimento. Trata-se, em termos ainda bem gerais, de saber se a religião constitui um estímulo, um fator neutro ou um obstáculo ao desenvolvimento. Poucos estudos têm assim enfocado o problema. Além disto, a maioria deles, exatamente por carecerem de fundamento empírico, ressentem-se de sérias limitações decorrentes da própria metodologia — geralmente a marxista ou a weberiana — empregada por tais autores. Segundo Karl Marx haveria uma radical oposição entre religião e desenvolvimento. Sua teoria, porém, ressente-se de graves limitações metodológicas. A primeira reside no método meta-histórico seguido pelo autor. A segunda, consequência deste mesmo método, está na falta de distinção entre formas de religiosidade diversas. Talvez a história fizesse eco a certas afirmações de Marx, tivesse-as ele circunscrito à forma concreta de religiosidade cristã encontrada na Prússia de seu tempo.1 O autor, porém, conduzido precisamente por seu método meta-histórico, estendeu a toda e qualquer forma de religiosidade (à religião em si) suas afirmações, sem que tais generalizações se fundassem numa sistemática verificação histórica e muito menos empírica.2 62 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Nem parecem distanciar-se muito do de Marx certos métodos apologéticos que levam autores a conclusões exatamente opostas às de Marx a respeito da (ou da própria) religião, sem que também estes distmgam entre formas diversas de religiosidade. Sem dúvida alguma, a obra de Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo3, representa grande avanço metodológico Em primeiro lugar, o autor distingue entre formas diversas de religiosidade, relacionando uma delas — a ética protestante (especialmente a ética puritana do calvinismo) — com o fenômeno do capitalismo moderno, que esteve à base dos primeiros processos históricos de desenvolvimento. Em primeiro lugar o autor aplica na verificaçao de sua hipótese o método histórico. Contudo, embora não se lhe possa negar validade científica, o método histórico apresenta também serias limitações. Basta lembrar as intermináveis discussões a propósito da tese weberiana, sem que os autores cheguem a um acordo. Não tem faltado, inclusive, quem, conduzido pelo mesmo método histórico, visse no espírito do capitalismo, então nascente, uma das origens do protestantismo, invertendo, assim, a posição das duas variáveis weberianas.4 Lembre-se ainda que a maioria dos estudos sobre a relação religião-desenvolvimento dizem respeito exatamente aos países que por primeiro passaram pelo processo de desenvolvimento. Ora, estes primeiros processos foram espontâneos e não, induzidos. Os próprios grupos religiosos foram geralmente colhidos de surpresa pela mudança. Acontece, porém, que neste segundo pósguerra verificou-se em praticamente todos os países ou regiões subdesenvolvidas uma tomada de consciência ALCEU RAVANELLO FERRARO 63 do próprio subdesenvolvimento. Este acordar do Terceiro Mundo teve, entre outras, as duas consequências seguintes: 1) os processos atuais de desenvolvimento são cada vez menos espontâneos e mais induzidos, e 2) no campo das Ciências Sociais a ênfase transferiu-se da problemática do desenvolvimento para a do subdesenvolvimento. Assim a Sociologia viu nascer, no último decênio, uma nova disciplina — a Sociologia do Desenvolvimento — que vem dando ênfase à problemática do subdesenvolvimento. No que concerne à relação religião-desenvolvimento, abriu-se, quer em sede da Sociologia da Religião, quer em em sede da Sociologia do Desenvolvimento, novo campo de pesquisa: trata-se concretamente de saber como se comportam ou se comportarão os diversos grupos religiosos em face do desenvolvimento do Terceiro Mundo. Constituem ou constituirão eles um estímulo ou um obstáculo ao desenvolvimento? Voltando-se nosso interesse para a problemática do atual mundo subdesenvolvido, e considerando que as mais sérias limitações de bom número de estudos na matéria resultam precisamente da falta de distinção entre formas de religiosidade diversas e da falta de fundamento empírico, fizemos as seguintes opções metodológicas: Circunscrever nosso estudo a um determinado grupo religioso (no caso, a Igreja Católica), que, num determinado momento e numa determinada região subdesenvolvida, se tenha lançado no campo socioeconômico; Definir a forma de religiosidade encontrada na região antes de a Igreja se ter lançado no campo socioeconômico; Situar, com relação ao desenvolvimento, a região suposta subdesenvolvida; 64 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Partir com hipóteses de pesquisa e, servindo-nos do método histórico, reformulá-las e precisá-las, se necessário; Verificar sistemática e emplricamente estas hipóteses, deixando ao método histórico apenas uma função subsidiária; Não extrapolar, nas conclusões, o caso ou pelo menos o tipo de caso estudado. Mas, onde encontrar um caso em que, numa região subdesenvolvida, a Igreja Católica — optáramos por esta — se tivesse lançado no campo socioeconômico? Foi a esta altura que, ainda em Roma, no início de 1963, tivemos oportunidade de ouvir do próprio D. Eugênio de Araújo Sales uma exposição sobre as atividades temporais que vinham sendo desenvolvidas pela Arquidiocese de Natal desde a segunda metade dos anos 40 e que, nos anos 60, já se estavam tornando internacionalmente conhecidas como “Movimento de Natal”. Uma conversa com um de nossos professores de Sociologia, o Revmo. Pe. Émile Pin, que tivera oportunidade de inteirar-se pessoalmente do trabalho social desenvolvido naquela Arquidiocese, confirmou-nos na escolha do dito “Movimento” para o nosso estudo de caso. E foi a isto que nos dedicamos durante quase três anos: de março de 1964 até fins de 1966. 2. A REGIÃO Antes de passarmos à apresentação de nossas hipóteses de pesquisa e a maiores esclarecimentos sobre o método e as técnicas empregadas para a verificação das ALCEU RAVANELLO FERRARO 65 mesmas, procuraremos, neste e no próximo parágrafo, definir a região e a forma de religiosidade em causa. O estado do Rio Grande do Norte, teatro do Movimento de Natal, integra a assim chamada “maior área subdesenvolvida do Hemisfério Ocidental”, o Nordeste brasileiro, que constitui uma região bastante homogênea do ponto de vista sociocultural. Daí estendermos o estudo à Região. Dada a ampla bibliografia existente sobre o Nordeste, julgamos desnecessário proceder, nesta introdução, a uma descrição pormenorizada da Região. O leitor interessado poderá consultar o Apêndice I deste trabalho. 1) Dados gerais. Abrangendo nove estados da Federação — do Maranhão à Bahia, inclusive — o Nordeste compreende uma área de 1.548.672 km2, igual a 18,20% do território nacional, e apresentava em 1960 uma população de 22.428.873 habitantes, igual 31,60% da população do país, devendo ter superado em 1966 os 25 mi-lhões de habitantes. Justifica-se, por conseguinte, que D. Eugênio lhe chame humoristicamente de “o maior país da América Latina, em população, depois do México e do Brasil”. O estado do Rio Grande do Norte, com seus 53.015 km2 (0,62% e 3,42%, respectivamente, da área do Brasil e do Nordeste), é o quarto menor estado da Federação. Em 1960 sua população era de 1.157.258, o que representa 1,63% e 5,16% da população do Brasil e do Nordeste, respectivamente. Em termos de habitantes por quilômetro quadrado, o Nordeste apresenta uma densidade demográfica (14,56) superior às das Regiões Norte (0,73) e Centro-Oeste (1,60) e inferior às das Regiões Leste (26,70) e Sul (30,47), sen- 66 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal do a média nacional de 8,38 habitantes por quilômetro quadrado. Se, porém, considerarmos somente os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, que constituem o assim chamado Nordeste Oriental, encontramos a densidade demográfica regional mais elevada do país (30,9 habitantes por quilômetro quadrado), superada apenas por alguns estados, isoladamente, das Regiões Leste e Sul. São eles os estados da Guanabara, Rio de Janeiro e São Paulo, com, respectivamente, 2.824,22; 80,76 e 52,34 habitantes por quilômetro quadrado. O assim chamado Polígono das Secas compreende mais de 2/3 ‘72,1%) da área total do Nordeste. Precedido pela Paraíba (97,8%) e Ceará (92,2%), o Rio Grande do Norte é o terceiro estado do Nordeste com maior porção de sua área (90,6%) incluída no Polígono.5 2) Aplicação de alguns critérios de desenvolvimento. Na primeira parte do quadro abaixo mencionamos quatro índices de Walinsky, considerados característicos de países altamente desenvolvidos e de países tipicamente subdesenvolvdos. São eles: 1) o número de médicos por 100.000 habitantes; 2) a percentagem de pessoas alfabetizadas (de 10 anos e mais, para o Brasil); 3) a renda per capita estimada em US$ e 4) o consumo de energia elétrica (Kwh) por habitante. Não dispondo de estimativas em US$ da renda per capita para as demais Regiões, incluímos estimativas da renda regional per capita como percentagem da média nacional, o que nos permitirá situar, deste ponto de vista, o Nordeste em relação com as demais Regiões. ALCEU RAVANELLO FERRARO 67 Dito isto, os índices do quadro abaixo nos permitem tirar as seguintes conclusões: a) Segundo todos os quatro critérios o Nordeste apresenta índices inferiores aos estimados por Walinsky como característicos de países tipicamente subdesenvolvidos. b) Segundo todos os quatro critérios (veja a segunda parte do Quadro) o Nordeste, ocupando sempre o 5o lugar, aparece como a Região mais subdesenvolvida do país. 68 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal c) Entre os nove estados do Nordeste o Rio Grande do Norte ocupa o 2° lugar em número relativo de médicos e de pessoas alfabetizadas, o 5o lugar em renda per capita e o 7o lugar em consumo de energia elétrica per capita. Apliquemos mais alguns critérios que nos permitam melhor definir especialmente a posição do Rio Grande do Norte com relaçao aos outros estados nordestinos. Segundo um estudo do demógrafo Giorgio Mortara, fundado nos dados do Censo de 19506, entre todos os estados da União, o Rio Grande do Norte/ seguido por sete dos outros oito estados do Nordeste, apresenta o índice mais elevado de filhos tidos nascidos vivos (589,0) por 1.000 mulheres prolíficas de 15 a 49 anos. O mesmo estudo revela, ainda, que, entre todos os estados da Federação, o Rio Grande do Norte, seguido em 2° a 7o, 10° e 11° lugares pelos outros estados do Nordeste, apresenta o índice mais elevado (363,9) de filhos falecidos, até a data do Censo, por 1.000 filhos tidos nascidos vivos.7 Em termos de municípios com abastecimento de água, o Nordeste apresentava-se, em 1960, como a segunda Região menos servida (24,15% dos municípios, contra 48,72 no Brasil inteiro), e o Rio Grande do Norte (10,84%) era o segundo estado menos servido do Nordeste. Na mesma data o Nordeste, com apenas 13,72% de seus municípios com serviço de esgoto, contra 32,74 no Brasil todo, era a Região menos servida, e o Rio Grande do Norte, com apenas um município (1,20%) contando com tal serviço, ocupava o último lugar entre os estados da Região.8 ALCEU RAVANELLO FERRARO 69 Aliada à mais elevada proporção regional de população rural (65,8% em 1960) e de população ativa ocupada em atividades agrícolas (64,4% em 1960), encontra-se no Nordeste a agricultura menos mecanizada do país. Aqui, outra vez, basta confrontar os 4,4 tratores por 10.000 pessoas ocupadas, em 1960, em ativades agropecuárias no Nordeste e os 4,9 no Norte, com os 25,5 no Leste, os 33,3 no Centro-Oeste, os 104,6 no Sul ou com os 40,9 no Brasil todo.9 Se lembrarmos, ainda, que, em 1960, para cada 10.000 pessoas ocupadas em agropecuária correspondiam 31,7 arados no Nordeste, 664,8 no Brasil inteiro e 1.833,6 no Sul, não resta concluir senão que o Nordeste, naquela data, não havia superado a era da enxada.10 Por sua vez, o Rio Grande do Norte apresentava, no mesmo ano, índices da ordem de 8,3 tratores e 10,3 arados por 10.000 pessoas ocupadas em agropecuária, o que lhe confere, considerando os dois índices, uma posição intermediária entre os nove estados do Nordeste.11 Os critérios até aqui aplicados confirmam, por conseguinte, a definição do Nordeste como região tipicamente subdesenvolvida e, pelo menos até o início dos anos 1960, como a mais subdesenvolvida entre as cinco regiões da Federação. Por outro lado, se, partindo do menos ao mais subdesenvolvido, hierarquizássemos os nove estados do Nordeste de acordo com os diversos critérios considerados, certamente não poderia o Rio Grande do Norte ser incluído entre os quatro estados menos subdesenvolvidos, cabendo-lhe, talvez, o 5o ou, mais provavelmente, o 6o ou 7o lugar, nesta hierarquia. 70 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 3) Alguns conceitos. Até aqui vimos apenas alguns elementos distintivos (critérios) de desenvolvimento e de subdesenvolvimento. Vejamos agora os elementos constitutivos, os conceitos. P. Pedro Calderan Beltrão, em seu livro recente, intitulado Sociologia do Desenvolvimento, propõe a seguinte definição operacional: “Desenvolvimento é um processo inédito e irreversível de mundança social, através do qual se instaura numa região um mecanismo endógeno de crescimento econômico cumulativo e diferenciado”.12 “Por referência ao desenvolvimento — prossegue o autor — significa o subdesenvolvimento qualquer situação em que o processo de desenvolvimento ainda não tenha acontecido ou pelo menos não em grau suficiente”.13 Foi neste sentido que definimos o Nordeste como sendo uma Região subdesenvolvida. A seguir o autor citado introduz uma distinção que nos parece de suma importância para uma melhor caracterização da região: “A rigor — prossegue ele — chamar-se-á de não-desenvolvida a região ou sistema social em que nem sequer os primeiros prérequisitos de desenvolvimento se possam constatar, e subdesenvolvida, a que já acusasse alguma espiral de prédesenvolvimento”.14 Com efeito, subdesenvolvimento é um conceito dinâmico, que implica pelo menos a consciência de uma situação de inferioridade com relação a regiões ou países considerados desenvolvidos e a busca de um caminho para o desenvolvimento. O não-desenvolvimento, ao contrário, é um conceito estático, que se deveria aplicar a um país ALCEU RAVANELLO FERRARO 71 ou região em que nem sequer tal consciência e tal busca se verificassem. Apenas, como o que caracteriza uma região não desenvolvida e o fato de ser governada pela tradição, preferimos denominá-la “tradicional em vez de “não-desenvolvida”. Feita esta distinção, procuraremos situar no tempo a posição do Nordeste com relação ao desenvolvimento. Ao Nordeste tradicional correspondeu a assim chamada política de combate contra as secas — uma política de socorro, de remédio, de assistência, de emergência — que visava minorar os efeitos das secas que periodicamente assolam a Região. Esta política, inaugurada ainda no tempo do Império (1877), dominou as preocupações do Governo federal e dos Governos estaduais nordestinos até o fim dos anos 1940 e mesmo até meados dos anos 1950. Os anos 1950, especialmente no segundo quinquênio, foram marcados por uma tomada de consciência do subdesenvolvimento e pela busca de um caminho para o desenvolvimento da Região.Vozes sempre mais numerosas, de dentro e de fora do Nordeste, ao mesmo tempo que levantavam dúvidas sobre a validade da velha política de “combate contra as secas”, ensaiavam uma nova aproximaçao dos problemas regionais, já em termos de desenvolvimento. Os anos 1960 caracterizam-se por uma política federal de desenvolvimento regional, centralizada na SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, criada em novembro de 1959) e consubstanciada nos Planos Diretores de Desenvolvimento da Região. Por sua vez, os próprios estados nordestinos integraram-se nesta nova política através da criação de órgãos estaduais de desen- 72 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal volvimento. Temos, assim, nos anos 1960, uma região tipicamente subdesenvolvida, mas já a caminho do desenvolvimento. Esta caracterização do Nordeste parece-nos fundamental sob o aspecto metodológico. Trata-se concretamente de avaliar, do ponto de vista do desenvolvimento, atividades temporais de um Movimento de Igreja surgido na segunda metade dos anos 1940, dentro de uma grande Região ainda tradicional, precisamente na véspera de o Nordeste acordar para o desenvolvimento.15 3. A FORMA DE RELIGIOSIDADE “O maior país católico do mundo”, “País de tradição católica”, “Nação tradicionalmente católica”: eis alguns lugares comuns — galanteios oficiais da Sociedade e lembretes não menos oficiais da Igreja — obrigatórios, pelo menos até muito recentemente, em toda solenidade, religiosa ou não, em que estivessem representadas (a ordem podia mudar de acordo com a ocasião e o orador) as assim chamadas “autoridades civis, militares e eclesiásticas”. É verdade que nos últimos anos os papéis foram um tanto quanto invertidos: ante o esquecimento de uns, o desencanto de outros, as ressalvas, enfim, e o inconformismo de um número crescente de líderes religiosos, cabe cada dia mais aos líderes da Sociedade, oficiais ou não, a árdua tarefa de lembrar à Igreja o “glorioso passado”! Que vai por trás dos chavões acima citados? Não conteriam eles, mais ou menos explicitamente, os elementos ALCEU RAVANELLO FERRARO 73 essenciais para uma caracterização da forma de religiosidade cristã encontrada na região onde nasceu e atuou o Movimento de Natal? Comecemos por definir dois conceitos: aculturação e inculturação. Por aculturação entendemos o processo pelo qual um grupo ou sistema cultural exerce influência (cultural) sobre outro grupo ou sistema cultural. Diz-se aculturado o grupo ou sistema cultural que sofreu tal influência. No caso de mútua influência cultural entre dois grupos ou sistemas culturais, podemos falar de aculturação recíproca. O processo de aculturação pode resultar na inculturação, total ou parcial, de um dos grupos ou sistemas culturais postos em contacto. Entendemos, assim, por inculturação o processo pelo qual um grupo ou sistema cultural se torna de tal maneira parte integrante de outro, a ponto de perder, total ou parcialmente, sua originalidade própria. Denominamos desinculturação o processo inverso, pelo qual um grupo ou sistema inculturado redescobre e readquire sua originalidade própria. O fato da recíproca aculturação entre Igreja e Sociedade é por demais evidente no caso do Brasil. Mas, não teria este processo de aculturação conduzido a uma pelo menos parcial inculturação da Igreja na Sociedade? Vejamos. Os colonizadores portugueses, que, em 1500, aportaram precisamente no Nordeste do Brasil, aqui chegaram trazendo “a Fé e o Império”. As mesmas caravelas conduziram conquistadores e missionários. Assim, sob o sinal e com o nome da Santa Cruz, o Brasil nasceu católico, como católico era o país colonizador. 74 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Por outro lado, muito contribuiu para o estreitamento destes laços a interdependência entre Igreja e BrasilColônia na luta pela salvaguarda da unidade territorial e da unidade religiosa, ante a ameaça comum constituída pelo “invasor-herege”. Este interdepender de ambos na própria sobrevivência, mais a ação catequizadora da Igreja entre os indígenas e seu plurisecular quasemonopólio da educação fizeram com que o Brasil também crescesse católico. O Brasil-Império (1822 a 1889) manteve esta unidade. Não chamaríamos de inculturada esta Igreja do tempo colonial e imperial. O próprio caráter oficial desta união e o exercício do protetorado, o qual, se conferia à Igreja uma série de privilégios, impunha-lhe também outras tantas limitações em sua liberdade, estão a indicar que se tratava de um fato consciente. Podemos dizer que o engajamento religioso, especialmente por parte dos líderes — oficiais ou não — da Sociedade, correspondia a uma motivação mais de tipo sociocultural, consciente.16 É verdade que, especialmente nas camadas populares, a religião já se impunha pela força da tradição (motivação cultural espontânea).17 Contudo, lá estava o caráter oficial da religião para estimular aqueles (os escravos importados da África, por exemplo) que desconheciam tal tradição, ou para os quais esta não constituía motivação suficientemente forte. O advento da República (1889) trouxe uma série de mudanças neste estado de coisas. Influenciados pelos ideais da Revolução Francesa e pelas ideias positivistas, os revolucionários republicanos decretaram unilateralmente, na Constituição de 1891, o desquite entre Estado ALCEU RAVANELLO FERRARO 75 e Igreja. Declarando-se o Estado aconfessional, o catolicismo deixou de ser a religião oficial. Estava aberto o caminho ao pluralismo religioso. Via-se também a Igreja pela primeira vez livre das amarras da tutela do poder temporal. A separação entre Igreja e Estado, porém, não abalou muito a situação desta. O catolicismo, mesmo falto de seu caráter de religião oficial, continuou impondo-se pela própria força de uma longa tradição, de um costume profundamente radicado na cultura local. Esta tradição católica, porém, se, por um lado, pelo fato mesmo de ser católica, impunha o catolicismo como religião, por outro, precisamente pelo fato de ser tradição, definia o modo de ser católico, a forma concreta de religiosidade católica aceita e incorporada na cultura local. A imagem dominante de católico, a própria imagem de padre e de bispo, a hierarquia dos atos religiosos, das cerimônias, dos ritos, e a maneira de neles se participar correspondiam mais a uma redefinição feita pela cultura local do que às normas oficiais ou pelo menos originais da Igreja. Não importa que os líderes religiosos tenham, não raro, fulminado tais aberrações. O fato é que, mesmo hoje, em clima de renovação pós-conciliar, não constitui tarefa fácil para os líderes religiosos impor novo conceito de católico: “de vida” e não “de nome”, católico “por convicção” e não “por tradição”. O mesmo se diga de todas as tentativas recentes de reforma litúrgica, com ênfase na compreensão e participação ativa, contra a pura execução solene e “triunfalista” de ritos, imposta pela tradição. Os maiores obstáculos são encontrados precisamente quando se trata de introduzir inovações na realização dos atos religiosos mais altamente conceituados pela tradição, como sejam, os correspondentes aos assim 76 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal chamados ritos de passagem (batismo, primeira comunhão solene, casamento e funerais) e certas cerimônias, solenidades e devoções tradicionais (procissões, festas de padroeiro, devoções a certos santos “brasileiros”). No que concerne ao campo não especificamente religioso, pela força da mesma tradição cabia à Igreja desempenhar o papel de guardiã e difusora da cultura, de zelar pela conformação do comportamento individual com o éthos tradicional, de remediar os males resultantes de possíveis deviações, mas nunca, de colocar em discussão o patrimônio cultural que servia de suporte ao sistema tradicional de relações sociais. Em tudo o que dissemos, tratou-se de encontrar e caracterizar formas de religiosidade e motivações típicas, preponderantes. Referindo-nos à fase posterior à separação entre Igreja e Estado, não queremos dizer que todos os líderes religiosos se tenham sempre submetido ou submetido de bom grado a tais imposições da tradiçao, nem que todos os católicos refletissem a imagem perfeita do catolico “por tradição”. Queremos apenas, situando-nos por volta do ano de 1940, dizer que esse catolicismo de tradição constituía a forma típica, preponderante, de religiosidade cristã encontrada no Brasil e, com maior razão, no Nordeste, Região que não tinha ainda entrado na fase de pré-desenvolvimento, e cuja proporção de população católica — a quase totalidade — era mais elevada do que no Brasil, tomado no seu conjunto, e particularmente do que no Centro-Sul, mais pluralista.18 Evidentemente, ao testarmos nossas hipóteses de pesquisa, procuraremos averiguar se esta era de fato a forma típica de religiosidade existente na área, antes do Movimento de Natal. ALCEU RAVANELLO FERRARO 77 Podemos finalmente sintetizar da seguinte forma o que vimos neste parágrafo e no anterior: o Movimento de Natal surgiu numa REGIÃO TRADICIONAL E TRADICIONALMENTE CATÓLICA. 4. HIPÓTESES DE PESQUISA Acabamos de concluir que o Movimento de Natal surgiu dentro de uma REGIÃO TRADICIONAL E TRADICIONALMENTE CATÓLICA. É dentro deste quadro que nos colocamos, agora, duas perguntas: Ter-se-iam demonstrado funcionais, não-funcionais ou des-funcionais ao desenvolvimento as atividades temporais empreendidas pela Igreja, na Arquidiocese de Natal, a partir do segundo quinquênio dos anos 1940? A resposta que os fatos darão à primeira pergunta não estaria vinculada a determinado tipo de concepções, motivações, atitudes da própria Igreja com relação ao mundo temporal e espiritual? I hipótese. A hipótese de pesquisa correspondente à primeira pergunta poderia ser assim formulada: As atividades temporais empreendidas pelo Movimento de Natal demonstraram-se funcionais ao desenvolvimento. Trata-se de uma formulação genérica e, neste sentido, ainda provisória, porque, somente depois, de termos dado na I Parte deste Trabalho uma visão de conjunto do Movimento (origem, evolução, objetivos, atividades, 78 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal meios, estratégia), poderemos dar uma forma definitiva à hipótese que será verificada empiricamente na II Parte. Demos uma forma positiva (funcionalidade) à hipótese, mas poderíamos tê-la formulado negativamente (desfuncionalidade), de vez que, em ambos os casos, ela deveria ser confrontada com os fatos, que a iriam comprovar ou impugnar. Não dissemos “desenvolveram”, e sim, demonstraramse “funcionais ao desenvolvimento”, de vez que uma atividade ou empreendimento, mesmo sem propriamente ter desenvolvido (o que não excluímos, no caso), poderia ter-se demonstrado funcional, precisamente criando condições ou pré-condições para o desenvolvimento da região. Em tal caso, mesmo sem ser diretamente responsável pelo desenvolvimento, a Igreja teria tido tuna função de desenvolvimento. Já mencionamos acima uma definição do fenômeno do desenvolvimento como sendo “um processo inédito e irreversível de mudança social, através do qual se instaura numa região um mecanismo endógeno de crescimento econômico cumulativo e diferenciado . Explicando cada termo de sua definição, P. Calderan Beltrão faz, a propósito de “mudança social”, a seguinte observação, que nos parece de suma importância: “O desenvolvimento é fenômeno predominantemente tecnológico-econômico, mas não o é exclusivamente: seja como pré-requisitos, seja como concomitantes e consequências, observam-se no seu decorrer transformações inéditas e irreversíveis em todos os demais elementos do complexo social. A observação dos fatos históricos e atuais levou-nos a considerar com especial atençao nesse campo específico da Sociolo- ALCEU RAVANELLO FERRARO 79 gia do desenvolvimento, as mudanças sobrevindas aos padrões ecológico-profissionais, demográfico-familiais e ideológico-culturais”.19 Por conseguinte, não se reduzmdo o desenvolvimento ao seu aspecto tecnológico-econômico, da mesma forma não se podem reduzir a este aspecto os critérios para julgar da funcionalidade ou menos de uma atividade ao desenvolvimento. Por outro lado, se os primeiros processos históricos de desenvolvimento foram espontâneos e partiram precisamente de profundas mudanças (inovações) verificadas no campo tecnológico-econômico pelo advento da máquina, não se pode esquecer que os atuais processos são cada vez mais conscientes, induzidos e precedidos por um bom número daquelas mudanças que, nos primeiros processos, se apresentaram como concomitâncias e mesmo consequências do próprio desenvolvimento. Assim, por exemplo, o nacionalismo, a luta ideológica, novas aspirações (especialmente por parte da classe operária), organizações de classe, a queda secular da mortalidade e a consequente explosão demográfica, migrações do campo para a cidade, reformas políticoadministrativas e sociais, etc. Daí falar-se tanto hoje em pré-requesitos ou precondições para o desenvolvimento. A própria história do Movimento (I Parte), dizendo-nos o que e porque a Igreja se propôs ou não empreender, conseguiu ou nâo realizar, já indicará eventuais limitações. Ao que tenha de fato empreendido aplicaremos (II Parte) os critérios de desenvolvimento, seguindo o método da verificação empírica. 80 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal II Hipótese. Acabamos de formular a hipótese da funcionalidade, do ponto de vista do desenvolvimento, das atividades temporais empreendidas pela Igreja na Arquidiocese de Natal. Os dados poderão confirmá-la ou impugná-la. Mas, à parte possíveis limitações humanas e materiais, não estaria o próprio resultado (não imporia quali) da verificação empírica a que submeteremos tais atividades vinculado a algo de mais profundo, anterior à ação, isto é, situado no plano das concepções, crenças, valores, interesses e, mais imediatamente, no plano das atitudes? Dissemos que o desenvolvimento é essencialmente um processo de mudança, de inovação. Dissemos também que o Movimento de Natal surgiu numa região tradicional e tradicionalmente católica, entendendo, com isto, que nem a sociedade, enquanto distinta da Igreja, nem a Igreja, semi-inculturada, se haviam colocado o problema da mudança, pelo menos não em termos de desenvolvimento. Suponhamos agora que, num determinado momento, seja levantado o problema da mudança. Mais cedo ou mais tarde a Igreja seria necessariamente levada a tomar posição, a redefinir sua própria linha de ação temporal, em função do novo contexto (existente, em processo ou almejado). As alternativas seriam várias. A opção que a Igreja faria entre as diversas alternativas que se lhe apresentassem não estaria vinculada ao tipo de atitude da Igreja em face do temporal, e esta atitude, por sua vez, não estaria vinculada ao tipo de motivação que animasse a Igreja naquele momento? E, sendo a Igreja uma instituição religiosa, não seria ela levada da mesma forma a redefinir sua própria linha de ação pastoral? Não ALCEU RAVANELLO FERRARO 81 teria esta redefinição as mesmas vinculações que teria a redefinição de sua atuação no plano temporal? Noutras palavras: a redefinição da ação temporal e a redefinição da ação pastoral não seriam feitas num mesmo sentido e não corresponderiam ambas a uma mesma atitude e motivação fundamental? Primeiramente poderíamos dizer que a Igreja poderia assumir uma atitude favorável ou contrária à mudança. Em segundo lugar, que poderia fazê-lo motivada por valores ou por interesses. A propósito destes dois últimos termos cabem aqui algumas observações. a — Segundo Karl Marx a mudança social tem seu início no conflito de interesses. Os valores institucionalizados são sempre os valores da classe dirigente, a qual, precisamente em nome destes valores, resiste à mudança. Max Weber, por outro lado, sem negar que valores possam ser usados como legitimação de uma ação motivada por interesses, pretende demonstrar relação entre certos valores derivados da ética protestante e o surgimento do capitalismo.20 Não nos interessa aqui discutir estas posições, nem as de outros sociólogos; a respeito do assunto. Basta-nos saber que embora atribuindo-lhes fufirções contrastantes, de modo geral os sociólogos admitem a distinção entre valores e interesses. Que valores possam demonstrar-se funcionais à mudança, faz parte da nossa hipótese. — Marie Augusta Neal, em Valores e Interesses na Mudança Social, assim distingue os dois conceitos: “Valores dizem respeito a concepções do bem largamente difundidas; valores da sociedade dizem respeito a concepções da boa sociedade. interesses referem-se a desejos de van- 82 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tagens especiais para si ou para os grupos com os quais sé está identificado”. E cita Neil Smelser: “Interesses referem-se a desejos a curto prazo, de proteger ou maximalizar posições institucionalizadas ao indivíduo ou do grupo... Enquanto estamos dispostos a “barganhar com nossos interesses, não entraremos em compromisso prático com nossos valores”. “Presumivelmente — prossegue N. A. Neal — ninguém age em favor da mudança a menos que esteja interessado. Não é este o problema. O assunto é saber se interesses constituem, para o agente, o critério mais dinâmico para a escolha. Sua intenção principal é realizar um ideal ou servir a um grupo? A intenção do agente orientado por valores é principalmente efetivar no tempo aqueles programas, comportamentos e artefatos que ele acredita refletirem os valores aos quais está vinculado”. E acrescenta: “Embora valores e interesses operem nas escolhas de cada indivíduo, uma divisão verdadeiramente real de crença sobre a legitimidade de uma primazia de “interesse-sobre-valor” (interest-overvalue) ou de “valores-sobre-interesse” (value-over-interest) matiza evaluações e comportamento”. E conclui: “A pessoa orientada por valores está relacionada com a realização de um objetivo que está em conformidade com um padrão de excelência (a standard of excellence). Realização de valores é sua incumbência primária. A pessoa orientada por interesses está primariamente interessada em que o processo de consecussão de um objetivo proporcione vantagens a certa gente — com a exclusão, se necessário, de outros. O homem orientado por interesses move-se de grupo para grupo sempre procurando realizar os mesmos valores: o homem orientado por in- ALCEU RAVANELLO FERRARO 83 teresses move-se de valor para valor sempre procurando o mesmo grupo. 21 Feitas estas observações, voltemos ao nosso caso. Dissemos que, ao se apresentar o problema da mudança numa sociedade tradicional e tradiciocionalmente católica no sentido acima definido, a Igreja poderia, motivada por valores ou por interêsses, recusar (resistir a) ou aceitar a mudança. Entrecruzando estes quatro elementos, teríamos a seguinte tipologia de atitudes possíveis em face da mudança: — resistência à mudança, motivada por interesses — resistência à mudança, motivada por valores; — aceitação da mudança, motivada por interesses; — aceitação da mudança, motivada por valores. Tentemos caracterizar melhor estas atitudes e dar-lhes um nome. Por líderes religiosos (católicos, no caso) entendemos não somente o clero nas suas diversas esferas, mas também leigos que, em nome de sua pfertinência à Igreja, exerçam alguma função de liderança . a — Atitude reacionária. À parte as acepções diversas que se lhe possa dar, o termo “reacionário” tem geralmente um conteúdo ideológico. Na falta de outro que melhor defina esta atitude, empregamo-lo aqui, mas no sentido estrito que lhe damos. O mesmo se diga do termo “conservador”, que utilizaremos a seguir. Por reacionária entendemos a atitude de resistência, de oposição à mudança por parte dos católicos (do grupo religioso ou de seus líderes), motivada por interesses particulares. É o caso, por exemplo, dos que resistem à mudança por esta se lhes apresentar como uma ameaça a determinadas vantagens — posições, prestígio, privilégios, poder 84 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal — que detêm precisamente enquanto católicos ou enquanto líderes do grupo religioso. As preocupações se voltam preponderantemente para o setor donde surge a “ameaça”. As preocupações de ordem religiosa passam para um segundo plano, com excessão daquelas que possam unir e fortalecer o grupo ou representar uma demonstração de força. Há uma relativização da função específica do grupo — a função religiosa — e uma mobilização do mesmo no sentido de debelar o “perigo”, isto é, de impedir a mudança. É a forma mais radical de clericalismo. Se as mudanças são as que caracterizam o processo de desenvolvimento, é manifesto que uma tal atitude daria origem a posições e a uma linha de ação que se apresentariam como um obstáculo, ou seja, como desfuncionais ao desenvolvimento. b — Atitude integradora ou oportunista. Suponhamos que, animados ainda, como no caso anterior, por interesses particulares, os católicos, conscientes da inevitabilidade ou irreversibilidade da mudança, se sintam seriamente ameaçados no que concerne às vantagens ou privilégios de que desfrutam enquanto membros do grupo religioso. Em tal caso, poderão evoluir para uma atitude de tolerância e mesmo de aceitação da mudança. Procurarão, antes de mais nada, salvar o próprio sistema religioso, enquanto fonte de privilégios ou vantagens (prestígio, status social, poder, etc.) de que são depositários como membros do grupo religioso, mesmo que isto implique em sacrifício parcial (e momentâneo, assim esperam!) de tais benefícios. Receando ficar marginalizado, o grupo tenta integrar-se no processo de mudança, na esperança de salvar o “salvável” e. quem sabe, de ALCEU RAVANELLO FERRARO 85 retomar o controle da situação. Despojando o termo de eventuais conotações pejorativas, poderíamos também qualificar esta atitude de oportunista. O grupo poderá aceitar e introduzir mudanças também no setor religioso. Mas, precisamente porque o grupo é motivado primariamente por interesses vinculados ao sistema religioso, tais mudanças resultarão não de uma reorientação em termos de valores, mas de simples adaptação, de mudança de métodos ou tática, objetivando assegurar a sobrevivência do sistema religioso enquanto fonte de vantagens ou privilégios. “Os tempos estão mudados; é preciso adaptar-se aos tempos!”. Tal atitude não é senão o prolongamento moderno da atitude que, no passado, levara o grupo à inculturação. Tende a uma nova inculturação em o novo contexto social. Em termos de desenvolvimento, a presença do grupo no processo de mudança, justamente porque resultante de uma atitude oportunista, de integração num processo cuja origem e curso não dependeram do grupo, tende a assumir aspectos de não-desfuncionalidade. Não queremos com isto afirmar que católicos não possam, motivados por interesses particulares, empenharse ativamente na promoção de mudanças funcionais ao desenvolvimento. Dizemos apenas que, provavelmente, os que assim procederem, 1) não o estarão fazendo por interesse em vantagens ou benefícios cuja obtenção esteja vinculata à pertinência ao sistema religioso e 2) muito menos o farão em nome de sua identificação com o grupo religioso. Um tal caso se situaria fora da problemática tratada neste trabalho e fugiria à tipologia que ora apresentamos. 86 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal c — Atitude conservadora. Os católicos e especialmente os líderes mais conscientes resistem à mudança motivados pelos valores de que o grupo é depositário: a mudança se lhes apresenta como ameaça não a vantagens que a pertinência ao grupo lhes proporcione, mas aos valores que os animam. As preocupações voltam-se preponderantemente para o setor religioso. Trata-se antes de tudo de preservar e conservar um patrimônio de valores do grupo, considerados, porém, estes valores, não em sua forma original, mas em suas vinculações históricas — inculturados — o que faz com que o grupo religioso relacione a sobrevivência, de tais valores e, consequentemente, do próprio sistema religioso com a continuidade do sistema social em que estão, inculturados. É a religião ética por excelência. Instaura-se uma pastoral de conservação, de preservação do rebanho dos contágios do mundo e do remédio aos males espirituais — chamados de descristianizacão e entendidos principalmente como abandono de certas práticas religiosas e desmoralização dos costumes — cujas causas, são facilmente identificadas com fenômenos ou mudanças como a industrialização, a urbanização, a crescente independência, da mulher, no trabalho feminino fora do lar e tantas outras mudanças vinculadas ao processo de desenvolvimento. No plano temporal observa-se um proliferar de obras assistenciais e educacionais. Já altamente conceituada numa Igreja e sociedade tradicionais (norteadas pela tradição local), a prática da caridade cristã, entendida como assistência aos necessitados, como obra de misericórdia, apresenta novo aspecto no caso de uma Igreja animada por uma atitude conservadora: tais obras assistenciais são também uma ALCEU RAVANELLO FERRARO 87 forma de protesto contra os males sociais cujas causas são facilmente identificadas com as mudanças em curso. Coisa semelhante acontece com as obras educacionais. Numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica tais obras orientavam-se principalmente para a transmissão do éthos: bastava isso para Igreja desincumbirse de sua função de guardiã do éthos da sociedade. No presente caso trata-se também e principalmente de conservar e preservar o éthos ameaçado pela mudança. Tais obras são intensificadas não só enquanto instrumentos de comunicação do éthos, mas, e principalmente, enquanto possibilitam preservar crianças e jovens do contágio de outras ideias e condicionar-lhes o comportamento. Evidentemente o que no passado era função pacífica da Igreja passa agora a constituir fonte de conflito — conflito tanto mais grave e aberto, quanto mais controle do poder político tiverem os grupos promotores da mudança. Ao lado destas atividades, surgem também outras, como atividades culturais e particularmente esportivas, que, pelo seu poder de atração, exercem a função de preservar o rebanho e de condicionar-lhe o comportamento: futebol, bilhar, cinema, passeio, acampamento..., mas só para quem assiste missa, frequenta o catecismo, etc... Sintetizando, podemos assim caracterizar a Igreja conservadora: preocupada com a preservação do seu sistema de valores, que ela considera vinculados à sobrevivência da ordem social tradicional, a Igreja, tanto no plano religioso como no temporal (neste em função daquele), orienta-se para a conservação ou manutenção da ordem social estabelecida e, consequentemente, do éthos ou dos princípios cristãos inculturados que funda- 88 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mentam esta mesma ordem. Neste sentido, aceitando e defendendo esta vinculação, a Igreja aceita e defende seu estado de inculturação. Se o grupo religioso detém suficiente poder de controle que lhe permita condicionar opções, inverter prioridades, barrar ou retardar empreendimentos (se se tratar de reformas, terá máximo cuidado no que tange ao ensino), em tal caso a desfuncionalidade da presença do grupo é, do ponto de vista do desenvolvimento, mais evidente. A menos que a preocupação do grupo religioso pelos efeitos venha retardar a debelação das causas da fome, da miséria, da doença, do desemprego, do abandono, da mendicância, etc. — do próprio subdesenvolvimento — certas atividades assistenciais, desempenhando sem dúvida uma função social geralmente aceita e estimulada pela sociedade, situam-se, do ponto de vista de desenvolvimento, num plano neutro: nem funcionais, nem desfuncionais. No conjunto, a presença de um grupo animado por uma atitude conservadora é desfuncional ao desenvolvimento, mas parece ser menos desfuncional do que a de um grupo reacionário. Na medida em que o grupo persistir em sua atitude e se vir frustrado em seus objetivos (impedir a mudança), teremos a imagem de uma “Igreja da saudade”! d — Atitude inovadora. Aqui nos deparamos com a aceitação e mesmo com a promoção efetiva da mudança em nome dos valores do grupo religioso, mas dos valores libertados, através de um processo de desinculturação, das teias da tradição, isto é, desinculturados o reencontrados em sua forma original. Nos casos anteriores eram os católicos animados por alguma daquelas atitudes ALCEU RAVANELLO FERRARO 89 que se consideravam traídos em virtude do rompimento unila-teral do pacto (inconsciente) de inculturação. Na atitude integradora, é verdade, demonstravam-se dispostos a tolerar e mesmo aceitar mudanças, contanto que se encontrasse um modus vivendi que fosse ao encontro de seus interesses mais fundamentais. No presente caso, os acusados de rompimento com o passado são exatamente os católicos animados por uma atitude inovadora. Sua presença no campo temporal pode ir desde o apoio, o estímulo, a cooperação, até uma posição de liderança e de ação direta no sentido de desencadear ou acelerar o processo de mudança. As obras assistenciais passam para um segundo plano: mais do que os efeitos dos males sociais, importa debelar-lhes as causas, causas estas que consistem não na mudança, mas na ausência de mudança. As obras educativas, de simples canal de transmissão de cultura (do éthos tradicional), transformam-se progressivamente em instrumento de inovação cultural. E, precisamente porque o fazem em nome de valores e, por isso mesmo, não estão dispostos a barganhar em termos de interesses — trata-se de anunciar, e lutar por uma nova ordem social (orientação profética) que melhor espelhe os valores originais do grupo religioso — a crítica que estes cristãos movem contra a situação e a posição que assumem em favor da mudança constituem, para os interessados na manutenção do status quo, motivo para sérias apreensões e temores. Católicos e principalmente líderes católicos animados por tal atitude são fácil e sumariamente identificados como “subversores da ordem (estabelecida!)”, como “revolucionários”, e acusados de clericalismo, de 90 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ocupar-se mais com as coisas de César do que com as coisas de Deus. Levaria esta atitude a uma absorção pelo temporal e a uma consequente relativização da função específica do grupo religioso — a função religiosa? Pelo contrário, o que lhe diz primariamente respeito é sua função específica. O que há de mais fundamental nesta atitude é precisamente o reencontro com os valores religiosos originais, desinculturados. Mesmo valores como justiça, liberdade, igualdade, dignidade, progresso, etc., de si não especificamente religiosos, são também religiosos, enquanto fazem parte do sistema de valores originais do grupo religioso. É também e principalmente em virtude desta relação, que o grupo se propõe concretizá-los no temporal. Não se trata, porém, de uma simples instrumentalização do temporal, como no caso de uma atitude conservadora, de orientação ética. Ao contrário, a concretização de tais valores no temporal é entendida como parte da missão da Igreja, que se considera responsável pela concretização da mensagem original e total. Há uma valorização do temporal. Também no campo especificamente religioso observase uma série de mudanças, uma reorientação da ação pastoral, cujas características tentaremos definir, sempre em confrontação com a atitude conservadora, que também está voltada primariamente para o religioso. ALCEU RAVANELLO FERRARO 91 Distinguimos acima, referindo-nos à ação especificamente religiosa da Igreja, dois tipos de associações ou grupos de cristãos: 1) grupos de caráter educativo-preservativo, voltados para a educação moral (conhecimento e observância das normas éticas do grupo) e para a preservação dos que estão de fato ou se supõe estejam integrados na comundade eclesial; 2) grupos de caráter missionário, orientados para o anúncio da mensagem total, da qual os aspectos éticos são mais uma decorrência, do que o núcleo central, isto é, orientados para a evangelização. Neste sentido, o termo missionário não diz respeito à ação junto aos pagãos, mas ao trabalho junto a aqueles que, embora, porque batizados e dados a certas práticas religiosas, se digam católicos, são considerados pelos membros mais conscientes da comunidade eclesial 92 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal como insatisfatoriamente integrados na mesma e, por isso mesmo, como evangelizandos. O primeiro tipo de grupos ou associações correspondem a uma religião de tipo ético; o segundo, a uma religião de tipo profético. O primeiro visa a conservação da comunidade; o segundo, o crescimento da comunidade. A tipologia que apresentamos parece incluir as atitudes mais características que, numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica, a Igreja ou um determinado grupo católico poderia assumir ao se lhe apresentar o problema da mudança. Por hipótese, haveria uma vinculação 1) entre funcionalidade, do ponto de vista do desenvolvimento, das atividades temporais e tipo de atitude e 2) entre atitude-ação no setor temporal e atitudeação no setor religioso. Antes, porém, de passarmos à formulação da hipótese, importa 1) ressalvar prováveis limitações de ordem humana e material e 2) lembrar que o Movimento de Natal surgiu numa região ainda tradicional e tradicionalmente católica, na fase imediatamente anterior à tomada de consciência do estado de subdesenvolvimento e à aspiração consciente ao desenvolvimento da região, e atuou e firmou suas principais linhas de ação, como veremos na I Parte, precisamente na fase do desabrochar (antes, portanto, da instauração) de uma política de desenvolvimento regional (anos 50 e, inclusive, 1960 e 1961, isto é, antes da aprovação, em dezembro de 1961, do I Plano Diretor da SUDENE). Deixando-lhe a verificacção para a III Parte, podemos finalmente formular nos seguintes termos a II hipótese: Se e na medida em que as atividades temporais - empreendidas pelo Movimento de Natal se ALCEU RAVANELLO FERRARO 93 tiverem demonstrado funcionais ao desenvolvimento, corresponderia, por parte do Movimento e especialmente de seus líderes, uma atitude inovadora, motivada por valores e não por interesses particulares do grupo religioso, de orientação profética e não ética, atitude esta resultante de um processo de desinculturação dos valores cristãos e resultante num descomprometimento do grupo religioso com o status quo social e religioso e numa posição em favor da mudança tanto no campo temporal como no religioso. 94 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal NOTAS À INTRODUÇÃO 1. Jean Yves Calvez, em La Pensée de Karl Marx (Éditions du Seuil, Paris, 1956), no inicio de seu capitulo sobre “I’Aliénation Religieuse”, assim se exprime, parecendo fazer tal concessão a Marx:: “Mais, três tôt, il comprit 1’ampJeur de 1’influence que la religion exerçait sur la vie de ses contemporains... Surtout, dans l’État prussien, la religion pénetrait les affaires d’État, servant de rempart au conservatisme politique e social”. 2. Karl Marx vê no cristianismo uma dupla forma de alienação religiosa do indivíduo: a resignação ou evasão, resultante da própria moral cristã de resignação, e a justificação transcendente das injustiças sociais, fundada nos próprios princípios cristãos. O que Marx tem em mira em sua análise critica, porém, não é propriamente o cristianismo, nem qualquer outra religião, e muito menos formas de religiosidade, mas a religião em si. Não importa qual, a religião é essencialmente uma justificação da situação que a gerou. É ópio do povo. (Veja Jean Yves Calvez, op. cit., p. 80-83). De uma tal visão resultaria que a religião, sendo uma fórça essencialmente conservadora, constitui um obstáculo tanto ao desenvolvimento como a toda e qualquer mudança de um determinado status quo. 3. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, George Allen and Unwln, Londres, 6a. edição, 1962, e The Sociology of Religion (tradução de “Religionssoziologie”, da obra “Wirtschaft und Gesellschaft”), Beacon Press, Boston, 1963. Veja também, nesta última obra, a Introdução de Talcott Parsons, pp. XIX — LXVII. 4. Assim, R. H. Tawney, em Religion and the Rise of Capitalism (London, 1926), está mais propenso a inverter a causalidade, vendo antes no capitalismo a origem do protestantismo. 5. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963. 6. GIORGIO MORTARA, “A fecundidade da mulher no Brasil, segundo as Unidades da Federação”, Revista Brasileira de Estatística,- Janeiro/Junho de 1963, p. 39. 7. Id., ib. 8. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963. 9. Id., ib. 10. Id., ib. 11. Id., ib. 12. Pedro Calderan Beltrão, Sociologia do Desenvolvimento, Editora Globo, Porto Alegre 1965, p. 115. 13. Id., p. 116. 14. Id., ib. 15. Datando da segunda metade dos anos 40 o início do Movimento de Natal, antecipamos o que veremos na I Parte deste trabalho. Quanto à Região, não queremos evidentemente dizer que o Nordeste dos anos 60 tenha vencido a rotina secular, mas sim que está a caminho da modernização, do desenvolvimento. Também, ao definirmos como tradicional o Nordeste anterior a 1950, não queremos negar a existência de mudanças antes daquela data, mas simplesmente dizer que, apesar de certas mudanças, a Região ainda se caracterizava pelo dominio da tradição. Diríamos mais: as estradas construídas a partir de 1914, dentro do próprio programa de assistência aos flagelados, empregando mão de obra desocupada em tempos de sêca; o advento do caminhão, ALCEU RAVANELLO FERRARO 95 do ônibus, do carro, do avião, substituindo o cavalo, nas comunicações entre interior e Capital, e o vapor, nas comunicações inter-estaduais e com o CentroSul; a intensificação das migrações para o Centro-Sul mais desenvolvido; a presença de milhares de norte-americanos no Nordeste durante a II Guerra Mundial; a difusão do rádio; o próprio desenvolvimento do Centro-Sul e a onda desenvolvimentista que sacudiu o “Terceiro Mundo” no segundo pós-guerra; enfim, todos estes fatores possibilitaram o acordar do Nordeste, nos anos 50, para o desenvolvimento. Os primeiros passos neste sentido foram, entre outros: a construção da central elétrica de Paulo Afonso; a instalação do Banco do Nordeste do Brasil (1954); o I Encontro dos Bispos do Nordeste (Campina Grande, maio de 1956), com participação de técnicos e homens de Govêrno, inclusive o Presidente da República; a série de projetos-piloto que resultaram deste Encontro; o lançamento da Operação Nordeste (1956, após o Encontro); a Constituição do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (1956); a fundação do CODENO (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste — fevereiro de 1959); o II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, maio de 1959), seguido de nova série de Projetos-Piloto, e finalmente a criação da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste — dezembro de 1959). Pode-se dizer que a partir do Primeiro Plano Diretor da SUDENE, aprovado em dezembro de 1961, o Nordeste entrou na rota do desenvolvimento. 16. “La motivation socio-culturelle . sera le fait de personnalités plus “inner-directed”, plus consciement identifiées avec la société sous la forme conscient et achevée, la société nationale, e avec Ia culture que en est l’âme. Ces personnes voient das la religion une institution intégratrlce de la société, garantie de la paix sociale e protection contre les bouleversements que remettraient en cause leur statut social. Leur participation aux cérémonies est moins le lait d’un besoin spontané que la marque de leur volonté de soutenir la religion... Une telle motivation ne prédispose guère à accepter, encore moins à favoriser le changement social. Les personnes que en sont animées s’opposent à tout ce que peut modifier 1’équilibre social, à la sécularization bien sur, mais aussi à des formes religieuses de type prophétique.” (Émile Pin, “Les motivations des conduites religieuses et le passage d’une civilization pré- technique & une civilization technique”, Social Compass, XII/1 (1966) 33. 17. “Dans la plupart des sociétés pré-industrielles, la coutume impose aux membres du groupe, à côté d’autres prescriptions, des observances religieuses. Ces observances prennent le plus souvent 1’aspect de cérémonies ou plus ou moins consciement le group cherche à exprimer son unité. Le contenu rituel de ces cérémonies importe moins aux yeux du groupe ou de ses dirigents que la fidélité à la coutume elle-même, íidélité dans laquelle s’exprime la continuité du groupe. Lá ou le christianisme s’est établi, les observances coutumières ont pris une forme chrétienne... La motivation culturelle spontanée n’est pas une motivation consciente... Les personnes qui se soumettent ainsl à Ia coutume locale n’ont pas conscience d’une telle soumission... Les personnalités qui sont ainsl immédiatement soumises à la culture sont celles que David Riesman a appelées les personnes “tradiction-directed”. (Émile Pin, “Les motivations...”, op. cit., p. 31). 18. Em 1950 a proporção de católicos sobre a respectiva população total era a seguinte: Nordeste — 97,82%; Rio Grande do Norte — 97,65%; Brasil todo — 93,48% (dados do Censo de 1950). 96 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 19. Pedro Calderan Beltrão, op. cit., p. 117. 20. Veja: 1) Jean Yves Calvez, La Pensée de Karl Marx, op. cit., capítulo sobre “1’alienation religieuse”; 2) Max Weber, The Protestant Ethic..., op. cit.; 3)Marie Augusta Neal, Values and Interests in Social Change, p. 1-3. 21. Marie Augusta Neal, Values and Interest in Social Change, p. 9-10. Quanto à tipologia que apresentaremos a seguir, muito devemos à distinção que o autor citado faz entre orientação em favor da mudança e contra a mudança, em nome de interesses ou em nome de valores. ALCEU RAVANELLO FERRARO 97 I PARTE ORIGEM E EVOLUÇÃO MOVIMENTO DE NATAL INTRODUÇÃO À I PARTE É relativamente fácil situar no tempo o início de acontecimentos históricos, como uma revolução ou uma guerra, ou de obras, como a construção de um hospital ou de uma estrada. O mesmo não acontece quando se trata de movimentos. Destes, não podemos geralmente indicar senão momentos. Dificilmente podemos datarlhes exatamente o início. É o que acontece com o nosso caso. Para satisfazer à curiosidade de visitantes convencionou-se datar de 1948 o início do Movimento de Natal.1 “Em 1948 — diz Dom Eugênio — teve início o Movimento de Natal. Alguns sacerdotes preocupados com a necessidade de se unirem para melhor exercerem sua ação apostólica começaram a reunir-se privadamente. Eram seis. Estas reuniões mensais, que continuam até hoje com todo o clero, constituem um dos vínculos do Movimento de Natal”. E acrescenta imediatamente: “O segundo momento foi a necessidade de enfrentar os problemas da região. Uma pequena equipe de sacerdotes e leigos preocupava-se com a situação geral. Esse grupo era constituído de elementos militantes da Ação Católi- ALCEU RAVANELLO FERRARO 101 ca, Assistentes Eclesiásticos e leigos de nível intelectual elevado. A gravidade da problemática no meio rural levou essa equipe a tentar soluções em nome da Igreja com uma visão realista do cristão nesse meio. Realizou uma pesquisa em várias áreas do Rio Grande do Norte, um movimento de massa com presença das autoridades civis e religiosas como tentativa de chamar a atenção para o problema. Organizou-se uma entidade, o Serviço de Assistência Rural — SAR”. E torna a acrescentar: “O Movimento de Natal deu seus primeiros passos com a preparação de líderes e ainda hoje seus centros de treinamento constituem um dos aspectos vitais de suas atividades”.2 Sem dúvida nenhuma estes três momentos — a reunião mensal do clero a partir de 1948, a fundação do SAR em 1949 e o treinamento de líderes iniciado em 1952 — foram decisivos na origem e evolução do Movimento. A reunião mensal do clero certamente condicionou os dois momentos seguintes. Mas estes três momentos dizem respeito mais de perto ao que chamaremos de Ia e IIa FASE RURAL do Movimento (Capítulo III e IV). Nós recuaríamos mais alguns anos. Diríamos que os sacerdotes, antes de serem 6, eram 2 — Padre Eugênio e Padre Nivaldo. Dois Assistentes Eclesiásticos e dezenas de militantes leigos da Ação Católica. é inegável que a Ação Católica, embora sendo uma organização com finalidade especificamente religioso-missionária, desde seu início (1936) sempre se preocupou com os problemas sociais. De outro lado constatamos que, a partir de 1945, a Ação Católica deu uma verdadeira guinada para o social, colocando, já em 1945, um dos esteios do Movimento de Natal — a Escola de Serviço Social — e dando origem do 102 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal que chamaremos de FASE URBANA do Movimento (Capítulo II). É que algo de novo estava acontecendo em Natal. “Toda época de transição é sempre cheia de apreensões, de cuidados, de ansiedades” — dizia, em 1944, às Militantes da Juventude Feminina Católica (JEC) de Natal, o jovem sacerdote Eugênio de Araújo Sales, apenas chegado de Nova Cruz, cidade do interior onde vivera seus primeiros meses de sacerdócio, para ocupar o cargo de Diretor espiritual no Seminário Menor “São Pedro”, em Natal. “E nossa cidade — prosseguia ele — em vertiginosa carreira muda de aspecto. Novos costumes, novas atividades, novos interesses. Maiores responsabilidades para vós... Todo ambiente é julgado capaz de ser transformado... Podereis transformá-lo”. E justificava: “Embora o escopo supremo da Ação Católica seja de fim estritamente religioso — conduzir as almas a Cristo — conclui-se facilmente que tal fim só será cabalmente realizado com a atuação no meio social...” E, concluindo, apelava para “métodos apostólicos adaptados ao meio e manejados por santos”.3 Esta citação nos chama a atenção 1) para a relação religioso-temporal, o que veremos na terceira parte deste estudo, e 2) para o estudo dos possíveis CONDICIONAMENTOS do Movimento, do que trataremos a seguir, no Capítulo I. ALCEU RAVANELLO FERRARO 103 NOTAS À INTRODUÇÃO À I PARTE 1. “Movimento de Natal” — título de um artigo do pe. Tiago G. Clotn, publicado na Revista da Conferência dos Religiosos do Brasil (N°. 85, Julho de 1982) — foi o nome cunhado pelo autor para designar a “ação conjugada de evangelização e de ação sodal” que ele mesmo tivera oportunidade de observar na Diocese de Natal. A divulgação deste artigo em várias outras línguas e o livro do Pe. Alberto Collard: N. E. BRA — Au Nord-Est du Brésil (Mons, Éditions “DIMANCHE”, 1963, 106pp.), tornaram a experiência de Natal conhecida, principalmente no exterior, como “Movimento de Natai”. O termo “movimento”, contudo, embora pouco usado, não constituía novidade. Assim, o Relatório das Atividades do SAR em 1951 já falava na “necessidade de organizar um “movimento”, e no Relatório das Atividades do SAR em 195i denominava-se “movimento rural” o trabalho do SAR. Outro documento, sem data, mas certamente anterior a 1960 (trata-se provavelmente de um artigo inédito), referia-se ao Encontro Mensal do Clero e aos treinamentos de líderes rurais como sendo “Movimento de Ponta Negra”. 2. D. Eugênio Sales, Uma Experiência Pastoral em Região Subdesenvolvida — trabalho apresentado no Congresso Internacional “Pro Mundi Vita”, Essen (Alemanha), 3 a 5/9/1963. 3. D. Eugênio Sales, Palestra à J.F.C., aos 6-9-1944, por ocasião do 8º aniversário da Juventude Feminina Católica. 104 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal CAPÍTULO I CONDICIONAMENTOS1 1. A IGREJA 1) Da Diocese. A história da Diocese de Natal é curta. Antes de 1909 não havia no estado nenhuma Diocese. Aos 29 de dezembro de 1909 o Papa Pio X criou a Diocese de Natal, que pertenceu à Província Eclesiástica da Bahia até 1914, quando passou a ser sufragânea da nova Arquidiocese de João Pessoa. De 1909 até 1934 a Diocese de Natal abrangia todo o estado do Rio Grande do Norte. Em 1934 foi criada a Diocese de Mossoró, na Zona Oeste do estado. Seguiuse, em 1940, a criação da Diocese de Caicó, abrangendo o Seridó. Contando já o estado com três Dioceses, estas passaram a formar, em 1952, nova Província Eclesiástica, sendo Natal erigida em Arquidiocese. 2) Os bispos. O primeiro bispo de Natal, D. Joaquim Antônio de Almeida, tomou posse em junho de 1911. Tendo-se alterado sua saúde em consequência das longas viagens a cavalo pelo interior do estado, renunciou em junho de 1915, vindo a falecer em 1947, na cidade de Macaíba. Nos seus quatro anos de governo improvisou um ALCEU RAVANELLO FERRARO 105 Seminário para a formação do clero — sua maior preocupação — chegando a ordenar 10 sacerdotes. Após três anos de vacância, aos 30 de maio de 1918 tomou posse o segundo bispo de Natal, D. Antônio dos Santos Cabral, transferido para Belo Horizonte aos 21 de novembro de 1921. Em seu curto governo reabriu o Seminário, lançou a ideia da construção de uma nova catedral e fundou a Congregação Mariana de Moços. Graças a ele e aos marianos, surgiram durante seu governo a Escola de Comércio de Natal e o semanário A Palavra, ambos confiados à Congregação. Devem-se ainda a D. Antônio o mensário “Fé e Luz” e o “Boletim de Natal”, primeiro órgão oficial da Diocese. D. José Pereira Alves tomou posse em junho de 1923, sendo transferido para Niterói em janeiro de 1928. Destacou-se pela sua cultura e trabalho junto à classe intelectual. Suas pregações quaresniais constituíam a atração dos homens da cidade. Graças ao seu apoio e ao dinamismo dos marianos surgiram durante seu governo Diário de Natal e o Movimento Cooperativista no Estado, o que, no VI Congresso de Crédito realizado no Rio, lhe mereceu o título de “bispo do cooperativismo”. Tendo como marco inicial a fundação da Congregação Mariana de Moços, o decênio de 1918 a 1928, assinalado pelos governos de D. Antônio dos Santos Cabral e D. José Pereira Alves, constituiu uma fase creativa no que concerne à ação temporal da Igreja na Diocese de Natal. O quarto bispo, D. Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas, chegou a Natal em junho de 1929, ficando à frente da Diocese até 1962, data em que, já idoso e quase cego, conservando o título de Arcebispo de Natal até sua morte (8-4-1967), recebeu, na pessoa do então Bispo Auxiliar D. 106 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Eugênio de Araújo Sales, um Administrador Apostólico “sede plena”. A principal preocupação de D. Marcolino foi a formação do clero. Construiu o Seminário Menor São Pedro. Ordenou, de 1929 a 1960, nada menos de 40 padres. Combateu a injunção do clero nas lutas políticas. Insistiu em um clero “um com o bispo”. Praticamente todos os sacerdotes integrados no Movimento de Natal passaram por suas mãos, no Seminário. Outra característica de seu governo foi o apostolado junto às famílias natalenses. Conseguiu também trazer para a Diocese várias Congregações religiosas, especialmente femininas, tendo em vista a fundação de colégios ou a administração de hospitais. Exceção feita, porém, de algumas obras desse tipo, podemos dizer que, com relação ao setor temporal, D. Marcolino limitou-se praticamente a apoiar os trabalhos de Ulisses de Góis e seus marianos. Do ponto de vista creativo, grande parte de seu longo governo constituiu um hiato na história da ação temporal da Igreja na Diocese de Natal. Somente a Ação Católica, particularmente a partir de 1945 e sob a liderança de seus Assistentes, abriria nova fase creativa no que concerne à ação temporal (e mesmo, religiosa) da Igreja. É verdade que a Ação Católica, sem a qual não se entende o Movimento de Natal, surgiu durante o governo de D. Marcolino. Mas este não lhe pedia senão “O CATECISMO”.2 Além disto, D. Marcolino, pela sua própria personalidade autoritária e centralizadora, não era homem que inspirasse ou favorecesse experiências novas no campo religioso, embora deixasse algum respiro no que tangia ao campo social. ALCEU RAVANELLO FERRARO 107 Narra-nos um sacerdote que a nomeação de um vigário de interior por volta de 1940 era acompanhada do seguinte mônito: “O senhor vai para a paróquia X. Procurará manter boas relações com as autoridades, porque o senhor também é autoridade”. O vigário era ainda concebido como integrante da conhecida cúpula das “autoridades” das cidades do interior. “Neste tempo — observa o mesmo sacerdote — o vigário era o capelão de dois ou três por cento do seu rebanho. O tempo que lhe sobrava das “obrigações”, dedicava-o ao intercâmbio de visitas de cortesia com as “autoridades” do lugar. Estávamos dentro da estrutura. Naqueles anos morria-se por enfadamento. Apesar de miseráveis, o povo pobre nos considerava ricos, porque andávamos de braços com estes. Na realidade estávamos, como aqueles, na “sujeição” destes. A um sacerdote jovem que lhe apresentava uns “planinhos” D. Marcolino respondeu secamente: “Os seus planos bote-os no bolso. Aqui vogam os planos do Arcebispo”. Bahiano de ferro e autoritário, é admirável como tenha conseguido o que ele sempre quis: um clero “um com bispo”. Talvez porque, pela sua própria personalidade que não admitia interferência de quem quer que fosse em suas atribuições, passou a defender o clero da injunção das “autoridades” do interior. Narra-nos um sacerdote que, de certa feita, ao receber uma comissão que lhe ia fazer queixa contra o vigário, D. Marcolino passou primeiro um “sabão” no grupo, despedindo-o, e chamou mais tarde o vigário para ver o que havia. 3) O Marianismo. A Congregação Mariana de Moços, fundada por D. Antônio dos Santos Cabral em 1918, constitui sem dúvida o início de uma fase creativa no campo 108 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal da ação temporal da Igreja Quatro dias após sua fundação, a Congregação já instalava a Escola São Vicente de Paulo para meninos pobres. A Congregação atuou particularmente em três campos: formação de técnicos, imprensa e cooperativismo. A primeira obra de vulto da Congregação foi a Escola Técnica do Comércio, fundada em 1919 e acrescida, em 1962, da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Atuariais. No Setor de imprensa, surgiu, já no tempo de D. Antônio dos Santos Cabral, o semanário A Palavra. Este, no dizer de Dr. Otto de Brito Guerra, “saía quando Deus dava bom tempo”. Em 1924, foi fundado o Diário de Natal, que circulou até 1930 e renasceu em 1935 com o nome de A Ordem, já sob a influência clara de Tristão de Athaíde e Jackson de Figueiredo. O jornal estava nas mãos do Centro de Imprensa da Congregação Mariana de Moços. Parte do grupo estava sob a influência das ideias integralistas. “Hoje esse grupo seria considerado extremamente reacionário — confessa o Dr. Otto de Brito Guerra — mas no tempo era o que havia de mais avançado”. Durante os poucos dias de vida do governo comunista implantado em Natal pela revolução de 1935, a tipografia d’A Ordem foi ocupada, sendo-lhe mudado o nome para Tipografia Liberdade, com foice e martelo na placa. A Ordem circulou como diário até fins de 1953, voltando à circulação em outubro de 1960 mas, daí por diante, integrada no Movimento e como semanário. O Grupo de Imprensa da Congregação Mariana exerceu grande influência no meio político estadual. Muitos projetos surgiram e foram aprovados pela Assembleia ALCEU RAVANELLO FERRARO 109 graças ao apoio d’A Ordem. Pretendendo encaminhar à Assembleia o projeto que criava a Loteria Estadual, o Deputado Creso Bezerra foi ouvir a direção d’A Ordem. Só apresentaria o projeto se o Grupo de Imprensa não o combatesse. De fato, por outras razões desistiu do projeto. Contando com o apoio de D. José Pereira Alves e sob a. influência de católicos sulistas, particularmente de Plácido de Melo, a Congregação Mariana, com a criação da Caixa Rural e Operária de Natal, cooperativa popular de crédito, deu início ao Movimento Cooperativista no estado. A Caixa Rural e Operária foi transformada mais tarde em Cooperativa Central de Crédito Norte-Riograndense Ltda., contando hoje com mais de 5.000 associados. Várias outras cooperativas surgiram no estado por influência dos marianos. Em 1938, quando o estado criou a Divisão de Cooperativismo, já existiam 10 cooperativas, totalizando 3.591 associados. Dez anos mais tarde, em 1948, as cooperativas elevavam-se a 46, e os associados, a 14.275. O Seridó, devido particularmente à ação do primeiro bispo de Caicó, D. José Delgado, passou a formar o maior bloco cooperativista do estado. A partir de 1938, quer na direção do órgão estatal de incentivo ao cooperativismo, quer dando ampla cobertura através da imprensa, os marianos colaboraram ativamente com o esforço oficial no sentido de difundir o cooperativismo no estado. Dentre os pioneiros do movimento cooperativista no Rio Grande do Norte, além dos dois bispos já citados — D. José Pereira Alves e D. José Delgado — merecem des- 110 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal taque Dr. Ricardo Barreto (Pai do Cooperativismo no estado).3, Ulisses de Góis (sucessor de Ricardo na liderança do movimento desde 1931), Dr. Heráclio Vilar Ribeiro Dantas (um dos pioneiros e primeiro Presidente da Comissão Central de Cooperativismo de Crédito) e Francisco Veras Bezerra (Secretário d’A Ordem e 1°. Presidente da Divisão de Cooperativismo criada pelo estado e integrada por marianos). A Ordem de 24/4/1950, depois de observar que a Ação Católica dera início e mantinha várias obras sociais na capital, acrescenta: “Agora chegou a vez dos Congregados Marianos, que, embora já mantenham obras da importância de uma cooperativa de crédito, de um diário católico e de uma Escola Técnica de Comércio, não pretendem descansar sobre os louros das vitórias alcançadas”. Tratava-se da construção de uma escola-ambulatório no Alto do Juruá, instalada no dia 4 de junho de 1950. Mas o fato é que, quando no primeiro quinquênio dos anos 40 a cidade “em vertiginosa carreira mudava de aspecto”, a Congregação, embora dando continuidade às suas atividades sociais habituais, não soube reformular sua ação em função dos novos problemas da Capital, e, apesar de uma ou outra iniciativa isolada, “a vez dos Marianos” não mais chegou. Enquanto a Jovem Ação Católica abria, a partir de 1945, sempre novas frentes de ação, a Congregação encontrava-se em grande parte empenhada na promoção de “brilhantes” reuniões festivas, comemorações, recepções, homenagens e “imponentes” concentrações das “forças católicas”.4 ALCEU RAVANELLO FERRARO 111 À parte a própria estrutura das Congregações Marianas, que não favorecia o redimensionamento de seu trabalho social em face dos novos problemas da Cidade, deveu-se em grande parte à falta de renovação na liderança o declínio do marianismo em Natal em meados dos anos 40. O novo líder que começava a projetar-se — o Dr. Otto de Brito Guerra — passou a atuar mais na Ação Católica do que na Congregação e foi sempre um dos mais estreitos colaboradores de D. Eugênio. Eugênio, por sua vez, sempre admirou o líder dos marianos, o Comendador Ulisses de Góis, mas houve, sem dúvida, descontinuidade entre o trabalho de ambos. 4) A Ação Católica. “O pioneiro, na Diocese, desse grande movimento renovador — diz D. Marcolino E. Dantas — foi o Cônego Luiz Gonzaga do Monte”5, nomeado, em meados de 1936, Assistente Eclesiástico da Juventude Feminina Católica (J.F.C.), então em formação. A J.F.C., instalada aos 7 de setembro de 1936, foi o primeiro setor da Ação Católica, organizado em Natal. Outra pessoa intimamente ligada às origens da Ação Católica em Natal, foi uma religiosa. “Apareceu-me em palácio — comenta D. Marcolino — na madrugada desse movimento, um grupo de jovens, chefiado por Madre Fonsêca, que muito deu de sua inteligência e zelo à Ação Católica, entre nós”.6 Depois da J.F.C., surgiram a Liga Feminina da Ação Católica (L.F.A.C.), chamada mais tarde de Senhoras da Ação Católica (S.A.C.), e os Homens da Ação Católica (H.A.C.). Pouco depois do falecimento, aos 28 de fevereiro de 1944, do fundador da Ação Católica em Natal, Cônego Luiz Gonzaga Monte, Padre Eugênio dava início 112 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal à preparação do ramo de rapazes, fundando a Juventude Masculina Católica (J.M.C.). Já em 1936 as jovens da J.F.C. perguntaram ao Arcebispo: “Quais são as obras que V. Excia. quer que executemos?”. “Só uma, respondi — comentava D. Marcolino 10 anos mais tarde — O CATECISMO. Se o fizerem, dar-meei por satisfeito. E o fizeram. Os institutos, as escolas, as fábricas, os bairros foram o vasto campo de seu apostolado”.7 Embora não lhe fosse pedido senão o CATECISMO, a Ação Católica, desde seus inícios, se preocupou também com os problemas sociais. No campo social, porém, tem-se a impressão de que, até 1945, a Ação Católica tateava à procura de um caminho. “Era ação social na ‘raça’, comenta D. Nivaldo Monte”. Merece destaque o trabalho desenvolvido pela Ação Católica junto às domésticas e jovens operárias. Em 1940, a J.F.C. fundou o Instituto Jocista Pio XI, com curso primário para jovens operárias e domésticas. No ano seguinte o Instituto foi acrescido de mais um curso. A L.F.A.C., por sua vez, deu início, em 1941, à Escola Divina Providência, onde as próprias “liguistas” passaram a ministrar primeiras letras, doutrina cristã, corte e costura e bordado às domésticas. 5) O Clero. Ao tratar dos condicionamentos do Movimento de Natal, importa mencionar três sacerdotes. a) Temos, em primeiro lugar, Mons. Paulo Horôncio de Melo. Com frequência ouvimos falar de seu trabalho pioneiro ainda quando vigário de São José de Mipibu (1933 - 1937). “Muito amigo de D. Marcolino — explicou-nos um sacerdote — Mons. Paulo podia permitir-se fazer suas ALCEU RAVANELLO FERRARO 113 experiências, com desconhecimento, pelo menos oficial, do Arcebispo”. Quais experiências? O escotismo? Nenhuma outra nos foi mencionada. “Era mais um “espírito”, uma nova maneira de encarar os problemas religiosos e sociais”, justificou alguém. O fato é que bom número de sacerdotes e leigos da Ação Católica falam do trabalho pioneiro de Mons. Paulo. O segundo foi o Cônego Luiz Monte, ordenado sacerdote em 1927 e falecido, ainda jovem, em 1944. Foi o “sábio-asceta” de Natal. Foi o formador de militantes leigos para a atuação nos setores religioso e temporal. Nunca dissociou estes dois campos. Foi, como já dissemos, o pioneiro da Ação Católica na Arquidiocese de Natal. O terceiro a ser mencionado é o atual bispo de Caicó, D. Manoel Tavares. Como vigário de Angicos, já no início do decênio dos 40, tornou-se conhecido por suas realizações no campo social. Merecem destaque o Educandário Padre Félix e o Instituto Cônego Leão Fernandes. A construção do primeiro foi iniciada em 1941, sendo inaugurado o 1°. pavilhão já em março do ano seguinte. Em 1943, estando ambos em funcionamento — o Educandário e o Instituto — foi instalado, com a cooperação de L.B.A. e do SERAS, o Serviço de Menores, com o atendimento de cerca de 100 menores.8 Outros sacerdotes poderiam ser mencionados. Citemos um, Mons. Pedro Rebouças de Moura, vigário de Nova Cruz desde 1939. Sob sua liderança a paróquia conheceu, já no início dos anos 40, um surto de obras sociais: 1) um colégio (1941), confiado às Irmãs Franciscanas do Bom Conselho; 2) o Instituto Cura D’Ars (1944), visando a alfabetização e iniciação profissional do menor abando- 114 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nado; 3) o Albergue São Vicente (1945), para pobres desvalidos — originado de uma ideia de D. Eugênio quando coadjutor de Nova Cruz em 1944 — e mudado mais tarde para Instituto São Vicente de Paulo, destinado à infância abandonada; 4) a Escola São José de Campestre, na cidade do mesmo nome. Com excessão do Colégio, as três outras obras ministravam ensino gratúito, tendo surgido já na fase de atuação da L.B.A. e contando com a ajuda desta. Outras obras surgiram mais tarde na paróquia. Em 1947 Mons. Pedro Moura fundou o Instituto das Irmãs de Santa Gema, tendo em vista preparar auxiliares paroquiais para o trabalho religioso e o atendimento às obras sociais que iam surgindo. Mais tarde D. Eugênio confiaria a estas Irmãs a Casa da Empregada “Santa Zita” e a adminstração dos dois Centros de Treinamento de Líderes — o de Ponta Negra e o de Pium. Segundo Mons. Expedito de Medeiros, a grande mortandade causada no estado pelo gâmbia (anophelis gambiae) — mosquito que transmite o impaludismo e trazido da África para Natal pelos AVISOS (navios-correio) franceses provenientes de DAKAR — teria motivado, já por volta de 1940, uma série de iniciativas da parte de alguns vigários no interior. O próprio Mons. Expedito observa ter sofrido, quando vigário de Taipu em 1940, tremendo impacto ao presenciar as procissões que se sucediam com uma frequência nunca vista rumo ao cemitério da cidade. Grassava o impaludismo em sua paróquia. “Tanta gente morrendo!” — pensava ele. “Isto não pode continuar! É necessário fazer alguma coisa”. Vários sacerdotes pensavam assim: “É necessário fazer alguma coisa”. Mas, fazer O QUÊ? ALCEU RAVANELLO FERRARO 115 Como acabamos de ver, mais de um sacerdote não só pensou em fazer, mas realizou “alguma coisa”. O Serviço de Assistência Rural viria abrir, nos anos 50, novas perspectivas para o trabalho social no meio rural. É o que veremos nos Capítulos III e IV. 2. NATAL E A II GUERRA MUNDIAL O afundamento de navios brasileiros atribuído a submarinos alemães levou o Brasil a sair de seu estado de neutralidade. Assim, a 28 de janeiro de 1942, por ocasião do encerramento da Terceira Reunião de Consultas dos Chanceleres Americanos no Rio de Janeiro, o Brasil anunciava o rompimento das relações diplomáticas com as Nações do Eixo. Seguiu-se, em março, o afundamento de mais um navio brasileiro, o Cairu, e, a 22 de agosto, o reconhecimento, por parte do Brasil, do estado de beligerância com as Nações do Eixo. A 18 de setembro foi decretada mobilização geral em todo o territorio nacional. A 25 do mesmo mês foi instalado em Natal o Serviço de Defesa Anti-Aérea. A esta altura Natal já contava com uma Base Naval (brasileira), situada à margem do Rio Potengi, e uma Base Aérea (com participação também dos Estados Unidos), situada em Parnamirim, a 18km de Natal. Ambas as bases haviam sido construídas no decorrer dos anos de 1941 e 1942. Situada no extremo oriental do Brasil, a Base Aérea de Parnamirim, pela sua posição estratégica na rota Estados Unidos - Dakar, foi cognominada “Tram- 116 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal polim da Vitória”, enquanto Natal, além de receber as tropas americanas em trânsito, passou a hospedar avultado número de norte-americanos, constituindo-se, para os mesmos, num campo de adaptação ao clima tropical. Por outro lado, enquanto o próprio Brasil alimentava seus contingentes militares na cidade, o surto de mineração (especialmente do tungstênio e da chelita) no estado durante a Guerra atraia firmas e técnicos para Natal. As Bases Aérea e Naval, as linhas aéreas internacionais, a demanda de domésticas, o desenvolvimento do comércio, o aparecimento de novos hotéis, bares e cinemas, vieram criar um grande número de novos empregos na Cidade. Tudo isto e mais o dólar “fácil”, que corria abundante, vieram canalizar para a Capital a já existente corrente migratória, cujo elemento propulsor era constituído pelas Precárias condições de vida no meio rural, agravadas pelas escassas chuvas nos primeiros anos do decênio dos 1940. Os imigrantes que não puderam ser absorvidos pelos novos empregos, foram engrossar as fileiras dos que viviam da mascateaçao, à caça fácil do dólar. O encarecimento do custo de vida — problema que ocupava quase diariamente colunas inteiras dos jornais da época — decorrente o próprio estado de guerra e agravado pelas escassas chuvas nos primeiros anos do decênio dos 40, tomou novo impulso com a entrada do dólar americano, que veio concorrer na compra dos já escassos gêneros alimentícios. Terminada a guerra, desapareceu o americano e, com ele, o dólar e o ganho fácil. Muitos empregos nas Bases Aérea e Naval cessaram de existir. Grande número de ALCEU RAVANELLO FERRARO 117 domésticas ficaram sem emprego. O comércio caiu verticalmente. Bares e cafés desapareceram com a mesma rapidez com que haviam surgido. Roosevelt e Vargas não mais marcaram encontro em Natal. As linhas aéreas internacionais retiraram-se para o Recife. Muitos dos que tinham encontrado na mascateagem o seu ganha-pão, passaram a engrossar as fileiras dos vagabundos. Quase diariamente passaram a ocupar colunas do jornal A Ordem problemas como: o desemprego, a vadiagem, a delinquência (principalmente juvenil), a mendicância, o menor abandonado, a prostituição (principalmente de menores), a falta de luz, de água, de escola, de assistência médico-dentária, de estradas, de policiamento, de assistência religiosa nos novos bairros que iam surgindo em Natal. “A cidade acordara” — nos diz o Dr. Otto de Brito Guerra em sua entrevista — “e queriam mandá-la dormir novamente”. Tudo caiu em Natal, exceto a elevação do custo de vida (ainda hoje um dos mais elevados do país) e o crescimento da cidade. Segundo os dados dos Censos deste século, Natal tinha 16.056 habitantes em 1900; 30.696, em 1920; 54.836, em 1940; 103.215, em 1950; 162.537, em 1960, devendo ter superado os 200.000 habitantes em fins de 1965. Em termos percentuais, o crescimento da população de Natal foi da ordem de 91,2% entre 1900 e 1920 (20 anos); 78,6% entre 1920 e 1940 (20 anos); 88,2% entre 1940 e 1950 (10 anos) e 57,5% entre 1950 e 1960 (10 anos). Por conseguinte, o aumento percentual da população de Natal no decênio dos anos 1940 foi superior ao 118 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal verificado nos 20 anos anteriores a 1940 e quase igual ao verificado nos primeiros 20 anos deste século. O crescimento percentual verificado entre 1950 e 1960 (57,5%) foi inferior ao do decênio anterior, mas superior (pois se refere a apenas 10 anos) ao verificado nos dois primeiros períodos intercensitários (1900 a 1920 e 1920 a 1940). 3. A L.B.A. E O SERÁS A 28 de setembro de 1942 foi instalada em Natal a Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência, cuja Comissão Central funcionava no Rio de Janeiro sob a presidência de D. Darci Vargas, esposa do então Presidente da República. Entre os objetivos da L.B.A. podemos enumerar os seguintes: apoio às forças armadas; assistência às famílias dos convocados; assistência médico-dentária através de ambulatórios; assistência aos flagelados das estiagens; assistência financeira a instituições públicas e particulares de caráter assistencial. A 25 de março de 1943 o Governo do Estado instalou o Serviço Estadual de Reeducação e Assistência Social (SERÁS). O problema do menor era tão agudo neste tempo, que, a certa altura, o Diretor do SERÁS se viu na contingência, de apelar para o Juiz de Menores do Recife no sentido de encaminhar para lá os casos mais urgentes de desajustamento (9). No mesmo dia em que foi instalada a Comissão Estadual, D. Marcolino reuniu os diretores de todas as instituições católicas a fim de estudar os meios de colaborar ALCEU RAVANELLO FERRARO 119 com a L.B.A. Desenvolveu-se, em todo o estado, estreita colaboração entre a Igreja, a L.B.A. e o SERÁS. Na capital, a Igreja, até 1945, se limitou praticamente a colaborar com as iniciativas da L.B.A. e do SERÁS e a receber a ajuda da L.B.A. para as obras católicas já existentes. Em alguns lugares do interior a L.B.A. e o SERÁS organizaram seus próprios serviços, enquanto que, em outros, como na Diocese de Caicó (10) e na paróquia de Angicos, as duas instituições passaram a colaborar com uma série de obras iniciadas já antes pela Igreja. Logo de início deu-se conta a L.B.A de que não poderia atingir seus objetivos — a L.B.A. não queria fazer mera assistência — fundada apenas no empirismo, Desta preocupação em racionalizar a ação social surgiu o 1º Curso de Visitadoras Sociais, realizado em Natal, de 15 de novembro a 30 de dezembro de 1942. Pouco mais tarde, em fevereiro de 1943, instalou-se outro curso intensivo, desta vez para formação de Monitores Agrícolas, com o objetivo de estimular, através da organização de Clubes Agrícolas, a produção de alimentos. Isto, dentro da “Batalha da Produção”. Aos poucos, entre todos os que — seja na Ação Católica, seja na L.B.A. e no SERÁS — militavam no campo social, foi generalizando-se a preocupação pela formação de técnicos. O Dr. Rodolfo Aureliano, Juiz de Direito e Professor na Escola de Serviço Social do Recife, mariano e de grande abertura social, acentuando, em sua palestra proferida em Natal em 1944, a importância do Serviço Social e a necessidade de fundar uma Escola para a formação de trabalhadores sociais, confirmou todos no mesmo propósi- 120 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal to. Por sua vez, a Primeira Semana de Estudos Sociais, realizada em Natal de 5 a 11 de novembro de 1944, promovida pelo Centro de Estudos Sociais e levada a efeito pela L.B.A. e o SERÁS, apressou a efetivação de tal propósito. Com efeito, graças a um acordo firmado entre a L.B.A. e a J.F.C. em abril de 1945, ainda em junho do mesmo ano teve início o Curso de Serviço Social, primeiro Curso superior em Natal. No dizer de D. Nivaldo Monte — então Assistente da J.F.C., um dos pioneiros e principal organizador da Escola — a fundação da Escola de Serviço Social possibilitou superar paulatinamente a ação social na “raça”, o empirismo do primeiro quinquênio dos anos 40. Em todo este trabalho que culminou com a fundação da Escola de Serviço Social, projetou-se outro líder, que ascenderia mais tarde (1962- 1965) ao Governo do Estado. Trata-se do então mariano Aluízio Alves, que acumulava a presidência da L.B.A. e do SERÁS, o que explica a estreita colaboração havida naqueles anos entre estas duas instituições públicas e a Igreja no estado do Rio Grande do Norte. Da Escola voltaremos a falar no Capítulo seguinte. Antes, porém, importa lembrar um fato. A notícia de que a L.B.A. tomaria proximamente novos rumos, criou sérias preocupações nos meios católicos natalenses. “Se se confirmarem as decisões da Comissão Central da Legião Brasileira de Assistência — comentava A Ordem de 7/1/1946 — suspendendo, de uma vez por todas, a assistência direta individual, passando unicamente a auxiliar e orientar obras sociais, surge para os católicos dos municípios norte-rio-grandenses uma respon- ALCEU RAVANELLO FERRARO 121 sabilidade muito grande. Com efeito, não será justo que fiquem fechados os ambulatórios, os postos médicos, os centros sociais que se haviam fundado por aí a fora. É preciso que surjam iniciativas particulares... Nem se diga que é impossível...”. De fato, a 24 de Janeiro de 1946, a Comissão Estadual da L.B.A. confirmava ter recebido instruções no sentido de suprimir a assistência direta ou individual aos indigentes e procedia à distribuição dos medicamentos, roupas e material escolar às escolas e instituições de caridade (u). Esta mudança nos rumos da L.B.A. equivaleu a uma convocação para os católicos preocupados com os problemas sociais. 122 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal NOTAS AO CAPÍÍTULO I 1. Para a redação deste capítulo servimo-nos principalmente das fontes seguintes: 1) do Diário A ORDEM, de 1940 a 1951; 2) do Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de Natal (Natal, 1960); 3) da documentação da J.F.C. e J.M.C.; 4) de entrevistas. 2. SURSUM (número comemorativo do 10°. aniversário da J.F.C.), Natal, 1946, p. 3. 3. Lendo este capítulo, o Dr. Otto de Brito Guerra lembrou-nos a figura do pai de Ricardo Barreto e, a nosso pedido, redigiu esta nota que transcrevemos textualmente: “Um estudo sobre os primórdios da ação social no Rio Grande do Norte não pode esquecer a figura de Juvino César País Barreto. Juvino era pernambucano. Nascera na povoação de Aliança, então distrito da Cidade de Nazaré, a 2-2-1846. Em 1869 veio para o Rio Grande do Norte (para a Cidade de Macaíba), associan- do-se a irmãos, no comércio. Mais tarde, (21-71888) instalaria a primeira fábrica de tecidos no Estado — Fábrica de Fiação e Tecidos Natal — com 48 teares, 1.600 fusos e 80 operários. O Sr. Sérgio Severo, escrevendo sobre Juvino, diz: “...não era só o patrão... Ele era, e todos o proclamavam, o amigo, o conselheiro, o protetor e, mais ainda, um verdadeiro pai. ...ao lado da fábrica... construirá... a capela-escola “São José”, onde funcionava um curso de alfabetiza-ção para os filhos dos operários e onde também lhes era ministrado o ensino religioso”. A fábrica, depois de sua morte (9-4-1901), passou por diversas mãos e findou com o Banco do Brasil (em pagamento de empréstimos), o qual a vendeu para Belém do Pará. Juvino foi o fundador da Sociedade S. Vicente de Paulo em Natal, a 23-9-1888. No leito de morte, pediu à esposa, D. Inês Augusta Pais Barreto, que da herança reservasse dez contos para fundação duma casa de educação para meninos, outros dez para a educação de meninas e mais dez para a fundação dum hospital. Sua vontade foi cumprida e esta é a origem do Colégio Santo Antônio (hoje dos Maristas), do Colégio Imaculada Conceição (desde o início com as Dorotéas) e do Hospital “Juvino Barreto”, depois Miguel Couto e hoje Hospital das Clínicas, entregue à Universidade Federal. Embora a documentação seja nenhuma — prossegue Dr. Otto, tecendo agora considerações sobre possíveis influências externas em Natal — tudo faz crer na influência marcante do catolicismo social europeu e que em Pernambuco tivera seguidores, entre os quais o engenheiro Carlos Alberto de Menezes que por volta de 1895 (e aí está minha dúvida sobre quem o pioneiro) cuidava dos operários de sua indústria. Esses pioneiros pernambucanos foram estudados pelo professor Tadeu Rocha. Segundo Câmara Cascudo os operários tinham banda de música, assistência médica, manutenção do doente e sua família. Jovino Barreto sonhara construir uma vila operária (Acta Diurna, in A República, 30-1-1940).” 4. Veja, por exemplo, A Ordem de 10, 12 e 14 de julho de 1943. 5. D. Marcolino E. Dantas, op. cit., p. 3. 6. idem, ib. 7. Idem, ib. 8. A Ordem, de 8-4-1944. 9. A Ordem, de 3-6-1943. ALCEU RAVANELLO FERRARO 123 10. Já nos anos 30, como vigário de Campina Grande, D. José Delgado tornarase conhecido por seu trabalho em favor dos pobres daquela cidade. Como primeiro Bispo de Caicó e contando, na parte assistencial, com a cooperação da L. B.A. e do SERÁS, D. José Delgado, nos seus primeiros 3 anos de governo (1941-1943), dotou a Diocese com 1 Ginásio (inaugurado em 1942, contando com 240 alunos), 12 Escolas Primárias (com quase 2.000 alunos em 1943), 1 Escola Doméstica, 4 Ambulatórios e serviços de distribuição de alimentos e vestuário. Foram estas realizações que arrancaram de E-Diniz estas palavras: “E o Seridó acossado por três anos de seca é admirável pela sua prosperidade”. O que D. José Delgado conseguiu fazer em 1941, 1942 e 1943 atinge quase as raias do incompreensível (A Ordem, 06-02-1945). Em 1948 o Seridó, graças ao grande impulso dado por D. Delgado ao cooperativismo, apresentava o maior bloco de cooperativas no Estado. Aonde não chegava sua a sua voz, ia sua mensagem cooperativista através da imprensa (Veja, p. ex., “Cooperativismo Conjugado”, A Ordem, 29-07; 30-07 e 02-08 de 1948). Em 1943 publicou também uma série de 12 artigos sobre Ação Social” (A Ordem de agosto e setembro de 1943), num dos quais dizia: “Os infelizes muitas vezes não querem que lhes falemos em caridade. Na verdade é primeiro de justiça que muitas vezes precisam ouvir falar. A razão não está na degradação ou impotência da caridade, mas no desvirtuamento (desta) por parte dos inimigos dos pobres” (A Ordem, 10-09-1943). A pregação destas ideias já havia provocado reação no Seridó. A resposta não se fizera esperar: “Quem não estiver contente poderá procurar outros climas...” (A Ordem, 23-08-1943). Não é fácil determinar se e até que ponto o trabalho desenvolvido por D. Delgado no Seridó teve influência na gênese do Movimento de Natal. Dentre os mais estreitos colaboradores de D Eugênio, alguns, talvez porque provenientes do Seridó haviam sorvido as ideias de D. Delgado, afirmam tal influência, enquanto outros são mais cautelosos em admiti-la. Provavelmente uns e outros tem em parte razão. O exemplo de D. Delgado despertou em outros o desejo de fazer alguma coisa. Sua pregação da justiça social, seu ideal cooperativista, seu conceito de caridade passaram as fronteiras do Seridó. Quanto ao modo e tipo de trabalho desenvolvido, tratase de experiências inteiramente diversas. A semelhança que apresentam, sob alguns aspectos, o trabalho de Caicó e o Movimento de Natal em sua FASE URBANA deve-se, a nosso ver, à influência da L.B.A. e do SERAS em ambos os casos. Não resta dúvida, porém, que, até por volta de 1950, o “movimento” de que se falava era o de Caicó e não o de Natal. 11. A Ordem, 24-01-1946. 124 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal CAPÍTULO II FASE URBANA1 1. ERAM DOIS Já dissemos que os sacerdotes, antes de serem seis, eram dois: Pe. Nivaldo e Pe. Eugênio. Pe. Nivaldo Monte nascera em Natal aos 15 de março de 1918. De família pobre, não esconde ter passado fome e ter feito o primário em livros de segunda mão. Ordenado sacerdote aos 12 de janeiro de 1941, depois de breve permanência no interior como vigário de S. Gonçalo (1941) e de Goianinha e Arês (1942), ocupou, durante os anos de 1943 e 1944, o cargo de Capelão da Guarnição Militar de Natal. Após a morte do irmão — o Cônego Luiz Gonzaga Monte — em 1944, Pe. Nivaldo substituiu-o no cargo de Assistente Eclesiástico da J.F.C. e da S.A.C. Pe. Eugênio de Araújo Sales, filho de um Desembargador do estado, nascera aos 8 de novembro de 1920, em Acari, em pleno sertão seridoense. No ano seguinte sua família mudou-se para Nova Cruz, depois para São José de Mipibu, estabelecendo-se, por último, em Natal. Aos 16 anos de idade, o jovem Eugênio, renunciando à ideia ALCEU RAVANELLO FERRARO 125 de estudar agronomia, decidiu ingressar no Seminário, sendo ordenado sacerdote aos 21 de novembro de 1943. Após curta estadia (alguns meses apenas) no interior como coadjutor da paróquia de Nova Cruz, foi chamado a Natal, em meados de 1944, para ocupar o cargo de Diretor Espiritual no Seminário Menor. Longe de trancar-se entre as Paredes do Seminário, deu logo início à formação da Juventude Masculina Católica (J.M.C.), instalada solenemente em outubro de 1945. Dois sacerdotes jovens. Juntos, com seus leigos de Ação Católica, dariam início à FASE URBANA do Movimento. Duas personalidades bem diferentes: A propósito, faz parte do Patrimônio humorístico do Movimento este fato ocorrido em 1950, 5a praia de Ponta Negra. Pe. Nivaldo e Pe. Eugênio tomavam banho de mar. A certa altura exclamou Pe Nivaldo: “Eugênio! Olhe aquela jangada! Como é poético!”. “Sabe, Nivaldo!” — atalhou Pe. Eugênio “Hoje instalei no Bom Pastor o primeiro WC!” Um, Pe. Nivaldo, medindo 7 palmos de altura e pesando cerca de 45kg, reduzido à última expressão da matéria. O outro, Pe. Eugênio magro também, mas medindo l,80m de altura. O primeiro, dado à reflexão. Demorado. Poeta e escritor.2 Homem de contatos individuais. Formador e educador, antes de tudo. “psicólogo amador”. Por suas mãos — na J.F.C., na Escola de Serviço Social, no confessionário, na orientação espiritual — passariam quase todas as Assistentes Sociais que iriam formar o “staff” de D. Eugênio. O segundo, irrequieto. Incapaz de parar. Intuitivo. Extremamente prático.3 “Dinâmico”, como o define o próprio D. Nivaldo. O “dínamo”, no dizer de outros. “O ho- 126 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mem que toca 7 instrumentos”, segundo D. Marcolino. Que realiza já a ideia que lhe veio ou que apanhou no voo4. “Ousado”5, ”Metido”6. Viajado. Extremamente metódico: almoça exatamente às 12 horas, retira-se para a sua rede antes de 12h30 e parte para o trabalho impreterivelmente às 12h40.7 De grande capacidade de liderança. De boa prosa, numa roda amiga. De poucas palavras, no trabalho. Com certo “ar de Savanarola”, no dizer de John dos Passos8. Admirado, desde o início de seu trabalho. Também discutido, especialmente nos anos 609. O segundo precederia o primeiro no Episcopado. De fato, em 1954 Pe. Eugênio foi nomeado Bispo Auxiliar e em 1962 Administrador Apostólico “sede plena” de Natal. Com a renúncia do Cardeal D. Augusto Álvaro da Silva em 1964, D. Eugênio foi nomeado Administrador Apostólico “sede plena” de Salvador, acumulando também, até maio de 1965, a administração da Arquidiocese de Natal. O primeiro, Pe. Nivaldo, em abril de 1963 foi nomeado Bispo Auxiliar de Aracaju, cargo que ocupou até maio de 1965, quando sucedeu a D. Eugênio na administração da Arquidiocese de Natal. No início eram estes dois: Pe. Nivaldo e Pe. Eugênio. 2. DOIS E A AÇÃO CATÓLICA Fim da guerra. Retirada dos americanos. Inchação da cidade. Novos Bairros. Novos problemas. Solicitação para fundar uma Escola de Serviço Social. Novos rumos na L.B.A. Dois Assistentes Eclesiásticos, jovens e dispos- ALCEU RAVANELLO FERRARO 127 tos a enfrentar os problemas. Dezenas de leigos de Ação Católica, despertos para o social e já presentes nos novos bairros através de “Comandos missionários”. Eis, em síntese, os condicionamentos da guinada da Ação Católica para o social, a partir de meados de 1945. Assim, na I Semana Diocesana de Ação Católica, realizada em Natal em fins de outubro de 1945, tratou-se de temas como “a cooperação da Ação Católica nas obras sociais” e “o pensamento social da Igreja”10. Esta Semana constituiu, por assim dizer, uma antecipação ao pronunciamento da Comissão Episcopal da Ação Católica, a qual, por ocasião do encerramento da II Semana Nacional de Ação Católica realizada no Rio de Janeiro em junho de 1946, afirmava o propósito de “organizar um plano nacional de ação social” e convocava, para este programa, toda a comunidade brasileira11. A partir de meados de 1945, aparecem em A ORDEM, com sempre maior frequência, artigos sobre ação social, problemas sociais ou pontos de Doutrina Social da IgreJa, artigos estes saídos, quase sempre, da pena do jovem advogado e presidente do Setor de Homens de Ação Católica (H.A.C.) e da Junta Diocesana da Ação Católica, o Dr. Otto de Brito Guerra. A Semana Diocesana de Ação Católica e os artigos de A Ordem eram resultado e, ao mesmo tempo, manifestação da nova atitude em face dos problemas sociais que ia desenvolvendo-se no seio da Ação Católica natalense. 128 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 3. A ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL Como vimos no Capítulo I, já em fins de 1944 se havia generalizado a consciência da necessidade de fundar em Natal uma Escola de Serviço Social. Até então, tanto a L.B.A. como o SERÁS haviam resolvido o problema de pessoal através de cursos intensivos ou enviando alguns elementos para treinamento no Rio de Janeiro. Para fazer face às sempre crescentes necessidades e para conseguir uma maior racionalização do trabalho, fazia-se “necessária uma mais sólida formação e educação de pessoal”, o que só seria possível através de um curso regular de Serviço Social12. Tiveram imediatamente início os entendimentos entre a L.B.A. e a J.P.C. A 26 de abril de 1945 — já abertas as inscrições — a Legião Brasileira de Assistência e a Juventude Feminina Católica firmaram acordo, objetivando a fundação da Escola de Serviço Social. A J.F.C. se responsabilizava pela manutenção e administração da Escola, e a L.B.A., por sua vez, se comprometia a entrar com uma ajuda financeira durante 5 anos. A 2 de junho do mesmo ano procedeu-se à instalação da Escola de Serviço Social, dando-se início ao curso. A ajuda financeira da L.B.A. possibilitou, inclusive, a constituição de um pequeno patrimônio. Este, juntamente com pequenas verbas federais, posibilitou a manutenção da Escola até hoje. Pe. Nivaldo Monte, Assistente Eclesiástico da J.F.C. desde 1944, destacou-se como um dos mais entusiastas organizadores da Escola. ALCEU RAVANELLO FERRARO 129 Com razão o Dr. Otto de Brito Guerra, catedrático de Sociologia desde 1945, vê na Escola de Serviço Social um dos começos do Movimento de Natal. A Escola, seja através de seus campos de estágio, seja através de elementos por ela formados, possibilitou: a) o desenvolvimento de uma atitude favorável à pesquisa e uma abordagem mais científica dos problemas; b) uma maior racionalização do trabalho social, quer do Movimento de Natal, quer de outras Instituições; c) uma Progressiva passagem da mera assistência para a educação e autopromoção, aplicando os princípios do Serviço Social de Grupo e de Comunidade. Não há, praticamente, obra ou atividade social do Movimento, em que não tenha atuado uma Assistente Social, ou estagiado alguma aluna da Escola. 4. A AÇÃO CATÓLICA E OS PROBLEMAS DA CIDADE No que diz respeito à ação social propriamente dita, podemos distinguir, na FASE URBANA do Movimento, duas linhas mais ou menos paralelas de ação: a da J.P.C., liderada por Pe. Nivaldo, e a da J.M.C., liderada por Pe. Eugênio. 1) Pe. Eugênio e a J.M.C. Enquanto Pe. Nivaldo e a J.P.C. se entregavam à organização da Escola de Serviço Social, Pe. Eugênio preparava a sua equipe de rapazes da J.M.C., instalada oficialmente aos 28 de outubro de 1945, por ocasião do encerramento da I Semana Diocesana de Ação Católica. 130 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Instituída, pelo Decreto-Lei n°. 516 de 1o de fevereiro de 1946, a Assistência Religiosa aos presidiários, Pe. Eugênio, já presente nos presídios com sua equipe de rapazes desde meados de 1945, adicionou-lhe um complemento — a Assistência Social Penitenciária (ASP). Para isto contou logo com a colaboração da J.M.C., do Cônsul Carlos Llamas (primeiro presidente da ASP), do Dr. Otto de Brito Guerra, do Professor Geraldo Magela e de outras pessoas e instituições. Este começo levou alguns a dizer que o Movimento de Natal nasceu na cadeia. Ao mesmo tempo que entravam nos presídios, os rapazes da J.M.C., à frente Padre Eugênio, lançavam-se, ainda em 1945, para o Morro Branco, na periferia da cidade. “Miséria, falta de educação, completo desconhecimento das boas normas de higiene, pouca instrução religiosa: eis o quadro deparado pelos jovens da Ação Católica” — relata A Ordem de 16 de novembro de 1946. Num domingo de tarde os rapazes procederam a um ligeiro recenseamento do bairro. A primeira ideia foi construir um galpão para aulas. Decidiram, depois, alugar uma casa (propriamente, um casebre) onde funcionou, ainda em 1945, uma escola provisória, gratuita, Adquirido, com a ajuda do estado e da Prefeitura, um terreno, deu-se início à construção de um prédio. O então acadêmico João Wilson Mendes de Melo — hoje Presidente do Serviço de Assistência Rural (SAR) e Diretor da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Atuariais — funcionou como “mestre de obras”. Graças a uma ajuda mensal da L.B.A., à contribuição dos rapazes da J.M.C., à venda, nas portas das Igrejas, do Jornal O Domingo, às carteiras velhas doadas pelo Depar- ALCEU RAVANELLO FERRARO 131 tamento de Educação e consertadas pela Escola Industrial e a outros auxílios e donativos, a 20 de abril de 1947 foi inaugurada a Escola-Ambulatório Pe. João Maria, assumida depois pelas Irmãs de Caridade. Junto à escola organizaram-se Clubes de Mães, e surgiram a Casa da Criança, o Centro Social Des. Celso Sales e, em 1965, um posto de venda da Cooperativa de Consumo do SAR, em Natal. Este posto já conta com bom número de associados, devendo em breve, constituir-se em cooperativa. Enquanto prosseguiam os trabalhos no Morro Branco, Pe. Eugênio e os rapazes da JEC (Juventude Estudantil Católica — um dos ramos da J.M.C.) atacaram, ainda em 1946, a “Vila dos Pobres”, no Bairro do Carrasco, no extremo da Cidade. Instalou-se imediatamente uma escola numa casinha adquirida por 3 mil cruzeiros. Para conseguir este dinheiro, os rapazes da JEC, com a ajuda das moças da J.P.C., lançaram a campanha da garrafa vazia. Enquanto isto, Pe. Eugênio falava ao povo de seus planos para o futuro: construir um prédio que servisse de escola e ambulatório. Relata Moreira de Aguiar (1S) que um “ricaço” não teve dúvida em pedir 15 mil cruzeiros por uma nesga de terra. Mas o velho Bruno, simples servidor da Prefeitura de Natal, resolveu o problema, fazendo doação de um terreno de sua propriedade. Finalmente, a 5 de junho de 1949, foi inaugurada a Escola-Ambulatório Matias Moreira. Assim, também o povo da Vila dos Pobres teve sua primeira escola e primeiros serviços médicos. Mais tarde, em 1958, a Vila teria também o seu Centro Social. 132 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Por unanimidade, a Câmara Municipal de Natal, aos 18 de dezembro de 1956, aprovou Projeto-Lei pelo qual a antiga Vila dos Pobres passava a chamar-se Vila Dom Eugênio, em reconhecimento pelos serviços prestados àquela Vila pelo Bispo Auxiliar de Natal. Na mesma proposição foi conferido a D. Eugênio o título de Cidadão Honorífico da Cidade, em consideração pelos relevantes serviços por ele prestados à Cidade e a todo o estado do Rio Grande do Norte. No mês de abril de 1948, por ocasião de um passeio à praia de Ponta Negra distante cerca de 14km de Natal, os rapazes da J.M.C. deram-se conta da existência de um prédio abandonado, situado entre a praia e a Vila de Ponta Negra. “Vamos fazer alguma coisa com este prédio!”, pensaram os rapazes. Construído para abrigar filhos de tuberculosos, o prédio findara transformado em caserna durante a II Guerra Mundial, ficando depois abandonado. Em consequência de uma ida ao Rio, Pe. Eugênio conseguiu trazer para Natal o Serviço de Assistência a Menores (SAM), ficando como orientador e responsável, embora não como funcionário, indicando para o cargo de Superintendente pessoa de sua confiança, da J.M.C. Dada a orientação local de, em vez de criar, estimular o surgimento, muitas obras no interior, vinculadas às paróquias, surgiram da cooperação do SAM. O prédio abandonado foi remodelado prontamente. Em novembro de 1948 procedeu-se à inauguração do Patronato de Ponta Negra. Em 1949. o prédio passou a constituir patrimônio da J.M.C., continuando o SAM, até hoje, a fazer seus internamentos no Patronato. ALCEU RAVANELLO FERRARO 133 A partir de 1952, este prédio passaria a ser utilizado, no período de férias, para treinamento de líderes rurais. Mais tarde surgiriam: o Prédio II, com salão para aulas e alguns quartos; o Prédio III (1962), construído pelo SAR para atender ao crescente número de treinamentos; e, finalmente, o Prédio IV (1964), para atender aos encontros e cursos do Secretariado do Nordeste. Os treinamentos de líderes e os encontros do clero ali realizados tomaram tal vulto, que, antes de se ralar em “Movimento de Natal”, já se falava em “Movimento de Ponta Negra”. Faltava enfrentar o problema da menor transviada. A ideia de fundar um “Bom Pastor” amadureceu durante o ano de 1947. Pe. Eugênio e Dr. Otto de Brito Guerra dividiram o encargo de observar obras congêneres no Rio, Salvador, Recife e João Pessoa. Em janeiro de 1948 a Prefeitura de Natal fez doação de um terreno, no Bairro das Quintas, para a obra. Entre campanhas (de pedra, tijolos, janelas, portas) donativos e algumas verbas, o prédio, sob os auspícios da J.M.O. e J.P.C. foi subindo. Em janeiro de 1951, cinco religiosas da Congregação do Bom Pastor vieram assumir a obra. Além da recuperação e reintegração na sociedade de um bom número de menores transviadas que ali encontraram também escola e alguma iniciaçao profissional, o “Bom Pastor” proporcionou ao Bairro escola e assistência religiosa. O “Lar das Mães”, fundado por D. Eugênio em 1955, veio proporcionar à mãe solteira um ambiente familiar em que possa aguardar o parto e viver, depois, com seu filho, até que consiga um emprego, recebendo, enquanto isto, alguma iniciaçao profissional. Passou-se, depois, a atuar nas próprias áreas de prostituição, desenvolvendo-se um duplo trabalho: um, pre- 134 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ventivo, que visa, através da educação e do trabalho em grupo, desviar da prostituição as próprias filhas das prostitutas e as jovens de famílias (geralmente imigrantes do interior) localizadas nas áreas de prostituição; outro, visando através de contatos, reuniões formativas e atividades grupais, proporcionar, a largo prazo, oportunidade de recuperaçao as próprias prostitutas. A “alma” do Lar das Mães como também do trabalho nas áreas de prostituição foi a Assistente Social, Maria da Conceição Seminea, uma das mais antigas colaboradoras de D. Eugênio. O Instituto Estevão Machado, inaugurado em 1954, veio atender ao menor delinquente, proporcionando-lhe alfabetização e iniciação profissional. Pe. Nivaldo e a J.F.C. paralelamente ao trabalho da J.M.C., liderada por Pe. Eugênio, a J.P.C., liderada por Pe. Nivaldo, desenvolveu também intensa atividade social nos bairros da capital e mesmo no interior. O primeiro campo de ação da J.F.C. foi a “Baixa da Coruja”, no Bairro de Lagoa Seca, onde “a pobreza — diz uma testemunha do tempo — era de cortar o coração”. Surgiram ali, rapidamente, a Escola-Ambulatório e o Centro Social “Cônego Monte”, em memória do fundador da J.F.C. O prédio, inaugurado em dezembro de 1946, contava com local para 480 alunos, parque infantil e gabinete médico. A própria J.F.C. observa que este trabalho surgiu como uma das conclusões da Semana Diocesana de Ação Católica (14). Achando que o lugar não mais merecia chamar-se “Baixa da Coruja”, as jefecistas propuseram a mudança do nome para “Vila Betânia”. ALCEU RAVANELLO FERRARO 135 Em 1947, a J.F.C. lançou-se para as Rocas, deixando ali, no ano seguinte, em funcionamento, o Centro Social Leão XIII, com uma matrícula inicial de 110 crianças. Também por iniciativa da J.F.C foram fundados 3 Centros Sociais no interior: um em Macau (1949), outro em Ceará-Mirim (1949) e o terceiro em Macaíba (1951). Surgiram, depois, em Natal, o Centro Social D. Marcolino Dantas, no Bairro de Nova Descoberta, inaugurado em 1955, e o Centro Social N. Sra. de Fátima, no Areial, inaugurado em 1955. 2) AH AC e a S.A.C. No que concerne ao Setor de Homens de Ação Católica (H.A.C), merece destaque a atuação de seu Presidente, o Dr. Otto de Brito Guerra, seja junto à Escola de Serviço Social, como catedrático de Sociologia, seja através da imprensa e nos meios intelectuais, como versado em Doutrina Social da Igreja e estudioso dos problemas sociais regionais, seja ainda em tudo o que diz respeito ao Movimento, como assessor e colaborador de D. Eugênio. No que concerne ao setor de Senhoras de Ação Católica, podemos dizer que o melhor de seus esforços foi, durante anos, dispendido na construção da sede — o Centro Social Divina Providência — o que não deixou de ser “providencial”15. 5. EVOLUÇÃO POSTERIOR 1) Influência do SAR. A partir de 1951, como veremos nos capítulos seguintes, começou a atuar no interior o 136 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Serviço de Assistência Rural (SAR). Nos anos 60 a capital passou a beneficiar-se da longa experiência do SAR no meio rural. Assim o Setor de Cooperativismo do SAR está promovendo, ultimamente, treinamento de líderes cooperativistas, formando grupos cooperativistas e mesmo organizando cooperativas em alguns bairros na periferia de Natal. A Cooperativa Mista dos Servidores e Assistidos do Departamento Arquidiocesano de Ação Social de Natal passou a financiar alguns modestos projetos habitacionais, desde que os interessados se organizassem em grupos, geralmente de cinco famílias, comprometendo-se a se ajudarem mutuamente na construção ou melhoramento de suas habitações. Por outro lado, a própria CÁRITAS, que, até pouco tempo, fazia mera distribuição de alimentos fornecidos pelo Catholic Relief Service dos Estados Unidos, não quer mais fazer “puro assistencialismo”, como dizem seus dirigentes e responsáveis locais pela distribuição. Está tentando organizar serviços educativos junto aos seus postos de distribuição. Neste sentido, merece destaque a organização de grupos artesanais, onde as mães (são geralmente elas que recebem os alimentos) aprendem, entre outras coisas, a utilizar a própria embalagem dos alimentos para fazer toda sorte de utilidades. Outros tipos de trabalho artesanal estão surgindo em Natal. Nisto vai, em parte, a experiência feita no interior pela Cooperativa de Artesanato do SAR. O Setor de Ensino Médio do SAR, em entrosamento com a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG), suscitou, com a participação do povo e, em al- ALCEU RAVANELLO FERRARO 137 guns casos, de Colégios Católicos, a criação de Estabelecimentos de Ensino Médio gratuito — na capital. Fracassada, em grande parte, a tentativa de aplicação, em Natal, do sistema de alfabetização pelo rádio, experimentado no meio rural, organizou-se o Movimento de Educação de Base para a Capital (MEB Urbano) este, desde março de 1963, leva ao ar uma série de Programas como: “Em Marcha com os Grupos de Audiência”, “Conversa em Família”, “Conversa com as Mães”, “Encontro com os Líderes” e outros programas educativos, contando todos com audiência organizada. Em outubro de 1964, o MEB Urbano já contava — entre Clubes de Mães, Grupos de Casais, Clubes de Jovens e Grupos de Audiência — 52 grupos organizados, espalhados pelos bairros periféricos da Cidade. Vários grupos, porém, apresentavam pouca coesão e curta duração. Por falta de líderes treinados? Por falta de motivação? Talvez por ambas estas razões. É verdade que o MEB Urbano organizou alguns treinamentos de líderes, valendo-se da longa experiência do SAR neste campo. Mas, enquanto os treinamentos do SAR tinham geralmente uma duração de 1, 2, 3 e até 6 meses, o MEB Urbano não dispendia senão de 2 a 3 dias em cada treinamento. De outro lado, faltava a vários destes grupos um programa de ação. A mera audiência e discussão em grupos não eram suficientes para garantir a continuidade destes. Assim mesmo, vários destes grupos, especialmente os que encontravam na comunidade algum suporte institucional, como um Centro Social operante, conseguiram sobreviver e firmar-se. 138 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 2) A Escola de Serviço Social. As obras que iam surgindo em Natal, quer por iniciativa da J.F.C., quer da J.M.C., proporcionaram, desde o começo, ótimos campos de estágio à Escola de Serviço Social. Esta, por sua vez, através de estágios supervisionados e orientados para o Serviço Social de Grupo e de Comunidade, foi paulatinamente desenvolvendo um trabalho de formação de grupos e de ação comunitária, orientando-se, ultimamente, para a formação de Conselhos de Comunidade. Os Conselhos de Comunidade (há três: o de Lagoa Seca, o das Quintas e Dix-Sept Rosado e o das Rocas) visam o desenvolvimento do bairro, através de um esforço conjugado de todas as entidades e grupos existentes na área, estejam ou não ligadas ao Movimento de Natal. Assim, o Conselho de Comunidade de Lagoa Seca congrega 12 entidades diversas, numa das quais (o Conselho Intergrupal) estão representados 15 pequenos grupos locais. O Conselho de Comunidade das Quintas e Dix-Sept Rosado, por sua vez, congrega 15 entidades diversas, entre as quais um Centro Social e um Ginásio filiado à CNEG, criado e mantido com a cooperação do povo do bairro. A título de exemplo, vejamos a organização e as atividades desenvolvidas por um Centro Social. Tomemos o de Aparecida. Conta com 5 Departamentos organizados: O Departamento Econômico, com trabalhos de artesanato, uma cooperativa em formação, participação na Frente de Trabalho João XXIII. O Departamento Educacional, com curso primário (96 alunos em 1965), curso noturno de alfabetização de adultos, cursos de corte e costura e de datilografia, e uma casa para cursos, próxima ao Centro e adquirida por este. ALCEU RAVANELLO FERRARO 139 O Departamento Religioso, com catequese e equipe de liturgia. O Departamento Assistencial, com Ambulatório para assistência médico-dentária e curativos de emergência (1.440 atendidos em 1965) e auxílio para funerais (uma espécie de cooperativa “funerária”). O Departamento Social, com Clubes de Mães e de Jovens, encontros, comissões ocasionais para reivindicações. Poderíamos ainda mencionar que o povo de Aparecida trabalhou, anos atrás, no melhoramento de sua própria rua, tornando possível o acesso de transporte no bairro. Também, do Centro Social partiu a iniciativa de pedir policiamento — no que foram prontamente atendidos — sendo, assim, afastados alguns elementos estranhos que perturbavam a ordem no bairro, e libertando-se este da má fama — imerecida — de que gozava nas crônicas policiais. 6. SITUAÇÃO ATUAL Falamos, na introdução à I PARTE, da dificuldade em datar o início do Movimento. Tropeçamos com dificuldade semelhante quando tentamos definir o que pertence ou não ao Movimento. O Colégio Imaculada Conceição, fundado em 1902, não se deve ao Movimento. Mas o Ginásio Paula Frassinetti, gratuito, que funciona no prédio do Colégio Imaculada Conceição e que foi fundado pelas exalunas deste e, pela CNEG, é fruto do Movimento. 140 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Praticamente nenhum colégio católico de tipo tradicional se deve ao Movimento. Contudo, o esforço de renovação da parte de alguns destes nos últimos anos, a franquia de suas portas a cursos gratuitos e a cooperação das religiosas no trabalho social sao fruto do Movimento. Estes fatos — poderíamos citar outros — nos chamam a atenção para o seguinte: o Movimento, no que se refere à açao temporal na Capital, não se limita às linhas “Pe. Eugênio - J.M.C. e Pe. Nivaldo - J.F.C.” Outras pessoas e instituições, como alguns Colégios Católicos, também “entraram na dança”. Em 1965, o SAAS (Secretariado Arquidiocesano de Ação Social), órgão coordenador das atividades temporais do Movimento na Capital, enumerava 45 “Obras Sociais Católicas” por ele coordenadas. Destas, seis desenvolviam atividades de caráter meramente assistencial: atendimento a doentes, distribuição de alimentos e vestuário, e abrigo a desamparados. São elas: a Associação das Damas de Caridade (1905), a Rouparia Santa Inês (1913) e o Dispensário Sinfronio Barreto, das Irmãs de Caridade (1925), a Pia União de Santo Antônio (1941), os Abrigos Jesus-Maria-José (1943) e Frederico Ozanan (1959), dos Vicentinos. Cinco destas, por conseguinte, são anteriores ao Movimento. Nenhuma das seis deve sua origem ao Movimento, embora tenham, mais tarde, aceitado a coordenação do SAAS. Com excessao de uma, estão todas localizadas na Cidade Alta e no Tirol — os bairros “chiques” da Cidade. Outras quatro eram Obras de Reeducação: a Assistência Social Penitenciária (para presidiários), o Lar das Mães (para mães solteiras), o Instituto Bom Pastor (para ALCEU RAVANELLO FERRARO 141 menores transviadas) e o Instituto Estevam Machado (para menores delinquentes). As 35 restantes poderíamos defini-las como Obras Socioeducativas. Chamamos “socioeducativas” as Obras que desenvolvem não só atividades educativas (escolas, ginásios ou outros tipos de cursos e programas educativos), mas também alguma ação comunitária ou, pelo menos, atividades grupais. Observe-se, contudo, que bom número destas obras mantêm também serviços de distribuição de alimentos, e algumas, ambulatórios médico-dentários. As Obras de Reeducação e Socioeducativas (39 ao todo), devem sua existência ao próprio Movimento. Com excessão de meia dúzia, estão todas localizadas nos bairros pobres, isto é, na periferia da cidade. No ano de 1965, estas obras mantinham, ou junto a elas funcionavam: 22 estabelecimentos de Ensino Primário, gratuitos, com um total de 3.600 alunos, contando com 133 professores, dos quais 39 pagos pela própria Instituição ou pela Diocese, 76 pelo estado e oito pelo município. Quatro estabelecimentos de Ensino Médio — também gratuitos — com um total de 470 alunos e 45 professôres, mantidos pela CNEG e Setores locais, e, no caso de dois, também pelos Colégios a que estão agregados. Quer pela sua localização (bairros de periferia), quer pela categoria de pessoas a que se destinam (por exemplo, às domésticas), praticamente todos estes estabelecimentos atendem à população mais pobre da cidade. Grande número dos 22 estabelecimentos de ensino primário foram pioneiros nas áreas em que estão localizados. É sig- 142 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nificativa a ajuda dos Poderes Públicos no caso dos Estabelecimentos de Ensino Primário (84 professores pagos pelo estado ou município), mas esta ajuda só aos poucos se fez presente. Foi praticamente impossível determinar quantos cursos de alfabetização de adultos funcionaram — e durante quanto tempo — junto a estas obras. O mesmo se diga dos cursos de iniciação profissional: noções de enfermagem, marcenaria, carpintaria, dactilografia, artesanato, corte e costura, bordado, etc. Encontramos várias referências de cursos deste tipo realizados junto às diversas obras. Há ainda na Capital uma dúzia de Estabelecimentos de Ensino Primário ou Médio — não gratuitos — mantidos por Congregações Religiosas ou Paróquias. Estes não devem sua origem ao Movimento. Ministram ensino primário a 3.435 alunos e Ensino Médio a 2.106 alunos. O mais antigo destes Colégios data de 1902. Pelo fato de não serem gratuitos e pela sua própria localização, estes Estabelecimentos atendem principalmente às classes média e alta da Cidade. 7. CONCLUSÃO Nas necessidades urgentes de uma cidade que vivia uma fase de verdadeira inchação demográfica e no despreparo e morosidade dos Poderes Públicos em fazer face à nova situação, está o motivo principal da ação direta da ALCEU RAVANELLO FERRARO 143 Igreja no campo social e do consequente surto de obras sociais nos anos de 1945 a 1965, que caracterizam o que denominamos de FASE URBANA do Movimento. À parte a falta de experiência e de pessoal qualificado para o trabalho social nos primeiros anos do Movimento, deve provavelmente ser imputada em boa parte a esta situação e ação de emergência a tônica assistencial e “paternalista” que caracteriza bom número de obras desta fase do Movimento. Aliás, tanto D. Eugênio como outros líderes que atuaram naquele tempo, quando por nós entrevistados, penitenciavam-se ainda, olhando para o passado, do “paternalismo” não tanto das obras em si, mas na maneira como várias delas foram levadas a termo. E explicaram: “foram feitas de cima para baixo, com pouca participação do povo”. O termo tem hoje forte conotação ideológica. Empregamo-lo aqui no sentido que o próprio Movimento lhe deu. De outro lado, importa salientar que: 1) nenhuma das seis obras puramente assistenciais mencionadas acima deve sua origem ao Movimento; 2) as Obras de Reeducação orientaram-se para a reintegração dos reeducandos na sociedade, através da instrução e iniciação profissional; 3) as demais obras (35 ao todo), que chamamos de socioeducativas, distinguem-se principalmente pelo ensino primário ministrado a cerca de 3.600 crianças e por diversas formas de ação grupal e comunitária estimuladas através destas mesmas obras. Frise-se ainda a relativa independência econômica destas obras. É verdade que recebem alguma ajuda dos Poderes Públicos. Mas esta ajuda pode, como de fato acontece, ser tolhida, sofrer cortes ou delongas. Passa-se 144 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal então de quem tem para quem não tem. Pede-se um empréstimo. Aparece uma doação. Faz-se uma campanha. Promove-se um “show”, como o realizado recentemente em benefício da Casa da Empregada “Santa Zita”, em que as próprias domésticas compareceram em peso, pagando ingresso, para manter a Obra a elas destinada. Dá-se sempre um “jeito”. E assim, apesar de sérios apertos, as obras sobrevivem. O aspecto mais interessante desta fase consiste, talvez, na nova orientação que o Movimento imprimiu à ação da Igreja no setor do ensino. Contrariamente ao que acontecia com os colégios católicos tradicionais, que, pela sua localização e por não serem gratuitos, atendiam quase que exclusivamente as classes média e alta, o Movimento, semeando escolas primárias gratuitas na periferia, foi ao encontro das classes mais pobres e das áreas suburbanas carentes de escola. Ultimamente, estando os Poderes Públicos melhor aparelhados Para atender ao problema do ensino primário na Cidade, o Movimento vem dando mais ênfase à ação comunitária, através da dinamização dos grupos existentes e da organização de novos grupos de pequeno porte (Clubes de Jovens, Clubes de Mães, Grupos de Audiência, etc...); da dinamização dos Centros Sociais; da formação de Conselhos de Comunidade; do treinamento de líderes de comunidade; da organização de núcleos cooperativistas. Tudo isto nos leva a crer que se estaria delineando uma II FASE URBANA do Movimento, com maior ênfase na ação comunitária. ALCEU RAVANELLO FERRARO 145 NOTAS AO CAPÍTULO II 1. Para a redação deste capítulo servimo--nos principalmente das fontes seguintes: 1) o Diário A ORDEM; 2) arquivos da Cúria Metropolitana, do S.A.A.S., da J.F.C. e J.M.C.; 3) entrevistas; 4) levantamento junto às Obras Sociais em Natal. 2. De 1942 a esta data (maio de 1966), D. Nivaldo Monte publicou 9 livros, um dos quais, de poemas. Está atualmente preparando outra obra em que relatará uma experiência de exploração racional dos tabuleiros do Rio Grande do Norte. 3. Já em 1953, a Revista “VISÃO” punha em relevo o tino prático do então Cônego Eugênio Sales. Veja: “Cônego prático — Novos métodos de ensino técnico para o interior”, VISÃO, 20-2-1953. 4. “D. Eugênio — explicou-nos D. Nivaldo numa entrevista — apanha a ideia no voo e a realiza já”. Vejamos um exemplo. Inteirado pessoalmente dos Cursos de Renovação Pastoral para sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, promovidos pelo Secretariado Nordeste e realizados no Centro de Treinamento de Ponta Negra, o Bispo de Caravelas — isto em meados de 1964 — observou a D. Eugênio: “Por que não se organiza alguma coisa para os Bispos? Não podemos ficar atrás...” Bastou isto. Durante a Sessão Conciliar de fins de 1964, D. Eugênio levantou o problema junto a outros Bispos, e, em maio de 1965, realizou-se no Centro de Treinamento de Ponta Negra o primeiro Curso para Bispos, de que se tenha conhecimento. O Curso foi planejado e ministrado por uma equipe de sacerdotes e leigos. 5. Veja: José Rafael de Menezes, “Realizações de um Bispo Ousado”, A República, João Pessoa, 8-4-1960. Em termos jornalísticos, o autor descreve, em seu longo artigo, a “obra tão múltipla e tão pioneira” e “sem comprometimentos capitalistas” do “acrobata de Deus”, cujo “nomadismo sacral” bem correspondia a “uma Igreja em terra de Missão”. 6. Assim no-lo definiu uma Assistente Social que, desde o início do SAR, trabalhou com D. Eugênio. 7. Este era o horário de D. Eugênio, quando Administrador Apostólico de Natal. Seu próprio repouso costumeiro aos sábados de tarde na Granja-Escola Santo Isidoro, na Fazenda Catuana, obedecia a um ritual tão preciso, que, mais de uma vez, deu margem a pilhérias por parte de pessoas amigas. O tamanho do charuto que fumava dependia do tempo que queria dar à entrevista, à reunião ou ao bate-papo após o jantar. 8. John dos Passos, O Brasil Desperta (Tradução do original inglês: “Brazil On The Move”), Distribuidora Record, Rio de Janeiro, 1964, p. 165. 9. Enquanto uns viam “proselitismo”, “clericalismo medieval”, “instrumentalização do temporal” no Movimento liderado por D. Eugênio, outros o acusavam de “invasão do temporal” ou de absorção pelo temporal em detrimento do espiritual. Nos anos 60, em consequência da radicalização da política brasileira e do sindicalismo rural e campanhas de politização lançados pelo SAR, D. Eugênio — como, também, o SAR — ficou entre dois fogos. Enquanto uns o acusavam de “paternalismo”, “assistencialismo”, “conservadorismo reacionário”, outros o taxavam de “comunista”. Assim, por exemplo, poucos dias após a Revolução de 31 de março de 1964, o Deputado Paulo Barbalho, da própria tribuna da Assembleia Legislativa do Estado, advogou o fechamento 146 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal do Jornal e da Emissora da Diocese, que acusou de subversivos, e afirmou: “D. Eugênio Sales é comunista!” (Cfr. Correio do Povo, Natal, 24-4-1964). É que, provavelmente, Paulo Barbalho, como tantos outros grandes proprietários no Estado, teve, nos anos 60, sérias dores de cabeça por conta da sindicalização rural e das ideias carreadas para o meio rural pela Emissora e o jornal A Ordem, numa palavra, pelo SAR, do qual D. Eugênio era Presidente. 10. A Ordem, 25-10-45. 11. Veja a integra do documento em A Ordem de 28-6-1946. 12. A Ordem, 14-3-1945. 13. A Ordem, 11-6-1949. 14. A Ordem, 23-11-1946. 15. O prédio, com dois andares, 5 salas pequenas e dois salões grandes para reuniões solenes da Ação Católica, foi concluído no momento exato em que o Serviço de Assistência Rural (SAR) iniciava suas atividades (1950). Não dispondo o SAR de uma sala sequer, a S.A.C. cedeu-lhe uma no andar térreo, permutada, mais tarde, por duas, no 1.°. andar. Crescendo sempre mais, o SAR foi espalhando mesas e cadeiras (pertencentes à S.A.C.) por todo o 1°. andar, invadindo, depois, também o andar térreo. A esta altura, à S.A.C. não restava senão um salão. Até aí, graças à intercessão de Pe. Nivaldo, Assistente Eclesiástico da S.A.C, não houve problema. Posteriormente o SAR construiu um 2°. andar para a Emissora e findou ocupando o último reduto das Senhoras da Ação Católica. ALCEU RAVANELLO FERRARO 147 CAPÍTULO III FASE RURAL1 1. INÍCIO À medida que Padre Eugênio e Padre Nivaldo e seus colaboradores iam tomando consciência dos problemas da Capital e procuravam equacioná-los, aparecia, como sempre maior evidência, que estes, em grande parte, não eram senão consequência das condições de vida no meio rural. Por outro lado já havia trabalhos isolados no interior e uma certa angústia por parte do clero rural. Alguns, vendo o que se fazia em Natal, começaram a perguntar: “E para o meio rural não se faz nada?” 1) Origem do Encontro Mensal do Clero. A esta altura entram os seis. Pe. Eugênio e Pe. Nivaldo, indo do Grande Ponto para a Catedral, perguntaram-se: “Porque não reunimos estes padres”? Logo surgiu uma dificuldade: “E D. Marcolino?” O fato é que o Arcebispo acedeu, após ter feito algumas ressalvas: chamar-se-ia “reunião” e não “retiro” mensal, teria caráter “privado” e não “oficial” e seria “aberta” a todos. Eis a origem do primeiro encontro do clero. O objetivo era primariamente de ordem espiritual e missionária ou, como diziam então, apostólica. ALCEU RAVANELLO FERRARO 149 Diz D. Eugênio, diz D. Nivaldo, dizem todos: “No início eram seis”. Quando solicitados a mencionar os nomes dos seis, indicam-nos somente cinco. Pe. A. Collard assim comenta o fato em seu livro sobre o Movimento: “Num dos raros relatos cronológicos que pude encontrar em Natal, (porque o pessoal ali está de tal maneira preocupado em fazer a história que é impossível encontrar tempo para escrevê-la), assinala-se que no começo daquilo que seria mais tarde o Movimento atual, “eles eram seis”. Quando procurei saber quem eram os outros cinco” (evidentemente o primeiro dos seis é D. Eugênio) citaram-me quatro nomes: D. Tavares, então pároco de Angicos, onde, com a ajuda do Senhor suscitou uma boa dezena de vocações sacerdotais e que veio a ser depois o ativo bispo de Caicó, Capital da Região do Seridó. D. Nivaldo Monte, assistente da Ação Católica Feminina, o homem da Escola de Serviço Social e atualmente Bispo Auxiliar de Aracaju2. Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, o vigário-piloto da “paróquia-piloto de São Paulo do Potengi”. Monsenhor Pedro Rebouças de Moura, pároco de Nova Cruz e fundador nas Irmãs de Santa Gema Galgani, preciosas auxiliares paroquiais e diocesanas que se ocupam principalmente da casa de hóspedes de Ponta Negra onde servem, como anfitriãs atenciosas, a hóspedes que Podem de uma refeição a outra passar de três a cinquenta pessoas. O sexto veterano não houve meio de saber ao certo. Mas se tratava de um caso de “mais ou menos” bem brasileiro, creio antes que este anonimato é mais um jeito” delicado que permite a muitos poderem ser contados entre os do principio3. 150 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Seria Monsenhor Alair Vilar, atual Vigário Geral da Diocese e então vigário de Santa Cruz, o sexto veterano? Mas, participou ele desde o “comecinho”? Assim parece! No início eram seis. Aos poucos, principalmnte após a a 1 Semana Ruralista realizada no estado em 1951, outros passaram a participar do encontro. Da importância do Encontro Mensal do Clero na história do Movimento falaremos mais adiante. 2) Dr Otto e A ORDEM. De outro lado, principalmente a partir de 1948, começou a aparecer em A ORDEM uma série de artigos sobre a situação do meio rural, saídos geralmente da pena do Dr. Otto de Brito Guerra, por sugestão, não raro, do próprio Pe. Eugênio. Eis o título de alguns, todos da autoria do Dr. Otto de Brito Guerra: “Amparo ao homem do campo”4; “Pela redenção do homem do campo”5 uma série de artigos sobre “Imigraçao e Colonização6 num dos quais o autor chama a atenção para a responsabilidade de os católicos se preocuparem com os problemas do campo7. Merece destaque o artigo “O êxodo Rural”8, em que Dr. Otto de Brito Guerra analiza as causas do fenômeno (o latifúndio muitas vezes improdutivo, a excessiva divisão da propriedade pelo regime de partilha forçada, a falta de crédito) e conclui sugerindo: 1) um plano de redenção econômica do Rio Grande do Norte; 2) o saneamento dos vales úmidos, e 3) a açudagem e perfuração de poços. A profunda desilusão de ver isto realizado por iniciativa dos Poderes Públicos transparece das palavras finais do autor: “Mas quando se cuidará disso se a política não dá tempo?” ALCEU RAVANELLO FERRARO 151 3) Início do SAR. Estes artigos deixam transparecer algo das novas preocupações e dos novos planos em gestação na mente de Pe. Eugênio e de seus colaboradores. Por falta de visão, por falta de recursos, ou, provavelmente, porque a política partidária absorvia tempo e recursos, os Poderes Públicos permaneciam praticamente ausentes dos problemas do meio rural De outro lado iam surgindo no interior, por iniciativa de alguns vigários, uma série de “obrinhas” (como as chamaria D. Eugênio), que constituíam iniciativas isoladas, sem recursos e, não raro, sem’futuro, mas que traduziam o desejo de fazer “alguma coisa”. Por sua vez, Pe. Eugênio, na qualidade de coordenador da Obra das Vocações Sacerdotais, viajava muito pelo interior. Profundamente chocado com o que ele mesmo definia como “desgraceira” do meio rural, decidiu também fazer “alguma coisa”. Esta ideia, amadurecida principalmente nos anos de 1948 e 1949, se concretizou aos 22 de dezembro de 1949 com a fundação do Serviço de Assistência Rural (SAR), sob o patrocínio da Juventude Masculina Católica (JMC). Aos 23 de outubro de 1950, quando urgia a preparação da I Semana Rural no Estado, procedeu-se à instalaçao do SAR. Um fato interessante é que o Secretário, ao redigir a Ata da Sessão de Instalação, não soube indicar a data da fundação do SAR, ficando, até hoje, o espaço em branco9. Não bastavam a vontade firme de Pe. Eugênio e a colaboração voluntária da J.M.C. e de alguns alunos da Escola de Serviço Social. Não havia na região experiências que pudessem mostrar um caminho a seguir. “As luzes, 152 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal então, eram poucas”, comenta D. Eugênio. E os recursos? O SAR contava Inicialmente com uma máquina, um bureau, um local e Cr$ 2.000 — tudo emprestado. D. Eugênio assim comenta esta falta inicial de recursos: “Havia muito mais: o idealismo a serviço de Deus. E daí partimos”10. Certamente a qualidade de “metido” — como o definiu um de seus colaboradores — muito valeu a Pe. Eugênio nesta hora. Com suas idas ao Sul ia tomando conhecimento de experiências no meio rural e aprendendo a subir as escadarias dos Ministérios. De pontos mais diversos, de dentro e de fora do país, vinham chegando ideias ou “luzes”. Tudo indica que o primeiro plano de ação concebido por Pe. Eugênio foi percorrer o interior com uma “Volante da Saúde”, dotada de medicamentos de urgência e de materiais cirúrgicos, com um médico assistente e um dentista. Este plano de ação é anterior à própria fundação do SAR11, e a ideia veio provavelmente de muito longe. De fato, já em fins de 1949 A ORDEM publicara dois artigos: um sobre “Apostolado Circulante” no Rio Grande do Sul12 e outro sobre “Capelas em Caminhões — Moderna Missão Ambulante Inaugurada na Argentina”13. No início de 1950 A ORDEM comentou, em dois artigos14, a experiência de utilização do rádio na educação dos campesinos colombianos. Mas esta ideia — que, devido a entraves burocráticos para a liberação de um canal, só se concretizou em 1958 — surgiu, em Natal, já em 1948, independentemente da experiência de Mons. Joaquim Salcedo na Colômbia. O próprio Dom Eugênio nos falou de sua alegria quando, após ter falado nas possibili- ALCEU RAVANELLO FERRARO 153 dades que o rádio ofereceria para o trabalho que pretendia realizar no meio rural, urra senhora lhe mostrou um artigo da revista LIFE sobre a experiência na Colômbia. Eis a origem dos dois artigos de A ORDEM. De uma sugestão emanada do Seminário Inter-americano de Alfabetização e Educação de Adultos, promovido pela UNESCO e realizado no Rio de Janeiro em 1949, nascia a primeira Missão Rural no Brasil, a ser lançada em 8 a 10 municípios situados na região fronteiriça entre os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais e contando com ônibus rural, dois agrônomos, um veterinário, um médico, um assistente social, um técnico em economia doméstica e material de divulgação rural. A Missão Rural constituía nova sugestão para o SAR15 . Chegavam também a Natal — ou melhor, Pe. Eugênio ia ouvi-las no Rio — notícias das primeiras Semanas Rurais promovidas por algumas Dioceses brasileiras conjuntamente com a Ação Católica Brasileira (ACB), contando com a colaboração técnica e financeira do Serviço de Informação Agrícola (SIA) do Ministério da Agricultura. Foi assim que, de uma conversa de Pe. Eugênio, no Rio, em meados de 1950, com Mons. Helder Câmara (Assistente Nacional da Ação Católica Brasileira) e Dr. João Gonçalves (Técnico do SIA e ex-Presidente da Ação Católica Rural), foi planejada a realização de uma Semana Rural no Rio Grande do Norte. A ideia encontrou boa receptividade por parte do Ministério da Agricultura e do Governo do Estado. Vemos, assim, que a possibilidade de conseguir ajuda técnica e financeira fez com que o SAR iniciasse suas atividades com a realização de uma Semana Rural, poster- 154 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal gando a “Volante da Saúde”, a Rádio e a Missão Rural. Era o “COM QUE RECURSOS”, que determinava “O QUE FAZER”. Eram os meios que determinavam a escolha do objetivo concreto imediato. 2. I SEMANA RURAL De volta do Rio, Pe. Eugênio, com sua equipe de voluntários, deu imediatamente início aos preparativos para a realização da Semana Rural. Otávio Nóbrega — concluinte da Escola de Serviço Social, membro da J.M.C. e da equipe do SAR — realizou, a título de colaboração, um levantamento sobre as condições de vida em quatro municípios do interior, representativos de quatro zonas do estado. “Esta pesquisa — comenta Lourdes Santos em sua entrevista — demonstrou que havia poucas escolas; que não havia nenhuma assistência técnica e sanitária; que o trabalhador não tinha nenhum direito; que o patrão botava o trabalhador para fora (da propriedade) quando queria. Nesse tempo, aqui, só nós da Igreja falávamos de Reforma Agrária”. Um minucioso questionário enviado aos vigários do interior levou um bom número destes a uma tomada de consciência dos problemas sociais em suas paróquias. Assim, o Cônego Antônio Barros, em seu minucioso relato sobre a situação do Município de São José de Mipibu, chegou a afirmações como estas: “O nosso trabalhador (rural) é um vencido na vida... Vive como um miserável”16. ALCEU RAVANELLO FERRARO 155 A Semana Rural realizou-se dos dias 22 a 27 de Janeiro de 1951, na Escola Prática de Agricultura de Jundiaí, no Município de Macaíba, contando com a participação de representações de sacerdotes, professores, fazendeiros e trabalhadores rurais das três Dioceses do estado, e a presença de todos os Chefes de Serviços Públicos atuantes no meio rural. O Governo do Estado prestigiou mais de uma vez o conclave com sua presença. Vieram do Rio uma equipe de técnicos do SIA, chefiada pelo Dr. João Gonçalves, e uma equipe da Ação Católica Brasileira, chefiada por Mons. Helder Câmara. Dom José Delgado, então Bispo de Caicó, participou dos trabalhos da Semana. O Arcebispo de Natal, D. Marcolino Esmeraldo Dantas, compareceu às sessões mais solenes, sendo que, nas outras ocasiões, Pe. Eugênio representava a Diocese “mais ou menos por conta própria”, na qualidade de “metido” — como nos observou alguém que colaborou na organização da Semana. Na sessão de abertura, Pe. Eugênio assim se exprimiu: “Confrange o coração ver o estado de tantas habitações no interior, a alimentação deficiente, os métodos agrícolas aplicados, a escola vazia de altinos, o roubo da compra na folha”17. “Foi apresentado o resultado da pesquisa — diz Lourdes Santos em sua entrevista — e procedeu-se ao debate em grupos. Estudou-se mais o problema de assistência técnica e sanitária. Os patrões viam a coisa muito dentro de uma perspectiva paternalista. Não viam a liberação. Nossa intenção era libertar o homem pela cooperativa. Nós nos propúnhamos consciente e claramente, já nesta 156 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal época, a libertação do homem do campo pela cooperativa”. 3. O SAR APÓS A I SEMANA RURAL É práticamente impossível determinar até que ponto a primeira como todas as 14 Semanas Rurais realizadas no estado entre 1951 e 1959 tiveram algum resultado concreto do ponto de vista de introdução de novas técnicas no setor agropecuário norte-rio-grandense. Na nossa opinião, o resultado foi muito limitado, provavelmente mínimo, pois não havia no estado — como, em grande parte, não há ainda — condições para o desenvolvimento deste setor da economia18. Esta observação, porém, não quer significar que as Semanas Rurais não tenham dado seus frutos, pelo menos no que diz respeito à atuação do SAR. É o que veremos a seguir, não querendo com isto dizer que todo trabalho do SAR resultou da I Semana Rural. Boa parte das próprias conclusões da Semana foram pensadas e sugeridas pela equipe do SAR. Conhecimento dos problemas. As pesquisas preparatórias, as conferências dos técnicos e os debates durante a I Semana Rural despertaram muitos — sacerdotes, professores rurais, Escola de Serviço Social, técnicos e, talvez, também homens de Governo — para os problemas do meio rural. O contato estabelecido, por ocasião da Semana, com técnicos representantes de diversos Órgãos governamentais foi, sem dúvida, decisivo para ALCEU RAVANELLO FERRARO 157 o SAR. Este contato tornou possível um conhecimento mais científico dos problemas rurais por parte da equipe ao SAR e abriu caminho para um diálogo e uma cooperação, entre SAR e técnicos, que perduram até hoje. Uma tomada de posição. Da 1a Semana Rural e das pesquisas que a precederam resultou a Carta Pastoral dos Bispos do Rio Grande ao Norte sobre o problema rural no estado19. A 1a Parte da Carta Pastoral é uma espécie de exaltação do homem do campo, comparado com seu irmão da cidade: “Urge despertar a consciência do homem do campo para a valia que só ele possui hoje, diante da crise econômica, política e familiar”. Os argumentos apresentados nao subsistem a uma análise mais científica do problema. A 2a Parte consta de uma longa explanação dos princípios de solidariedade e subsidiariedade. Quanto ao segundo princípio — o da subsidiariedade — o Documento desce à seguinte norma prática: “Não fazer o dever do outro. Não ajudar no que, desajudado, é o nosso semelhante reais do que capaz de triunfo... O melhor caminho será começar pelo “fazer fazer”. Fala ainda a Carta Pastoral do entrosamento e coordenação de esforços. Esta 2a Parte se deve principalmente a D. José Delgado, então Bispo de Caicó. A 3a Parte do Documento foi incluída, segundo fomos informado, por sugestão de Pe. Eugênio, que coordenou entre os três Bispos o trabalho de redação. A ele e aos seus colaboradores leigos se deve a redação desta parte. “Do inquérito feito em municípios de quatro zonas diversas do Rio G. do Norte — lemos na 3a Parte do 158 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Documento — ficou suficientemente esclarecido que os nossos irmãos da lavoura e da criação andam atrasados muitos anos quanto ao trato da terra e dos animais... O atraso na cultura e na criação é acompanhado do atraso no próprio tratamento da pessoa humana... Dois maiores males morais nos afligem: o jogo... e a politicagem. Deram-se as mãos estas duas pestes... A politicagem agravada pelo já denunciado emprego do próprio jogo como meio de agradar ao cabo eleitoral... Comprar o voto, no sertão, começa a ser uma praga... Acima do partido e dos chefes insaciáveis de posição, paira a dignidade do eleitor humilde”. O Documento manifesta a preferência pelas “medidas pobres”, em lugar dos “colossos autárquicos e institutos potentíssimos”, cujos “defeitos administrativos cometidos pelos seus chefes... tornaram-se tão grandes que nós — dizem os Bispos — chegamos a denunciá-los em nome dos ludibriados”. Entre outras medidas, sugerem a mecanização da agricultura e o cooperativismo. O Documento, especialmente em sua 3a Parte, nos deixa entrever uma tomada de consciência e de posição em face dos problemas do meio rural. 3) Atualização do clero. Um dos resultados mais importantes — e, talvez, inesperado — da 1a Semana Rural diz respeito ao clero. Ao grupo inicial dos seis, outros foram juntando-se. A 3a quinta-feira de cada mês passou a ser um dia “sagrado” para o clero. Nenhum vigário assume compromisso para este dia: é o dia do Encontro em Ponta Negra. A importância deste Encontro Mensal já era posta em evidência pelos próprios líderes do SAR, em fins de ALCEU RAVANELLO FERRARO 159 1951: “Todo o trabalho do SAR que se vem realizando no estado do Rio Grande do Norte”, — lemos no Relatório das atividades do SAR, 1951 — “parece alicerçar-se nestas reuniões. Nestes encontros são abordados os problemas capitais do meio rural e estuda-se a maneira mais indicada para solucioná-los. O local é aprazível — o Patronato de Ponta Negra — e, embora essas reuniões, onde também é feito o retiro mensal, não sejam oficialmente aprovadas pela autoridade eclesiástica, contam com todo apoio da mesma” (observada, é claro, à risca, a precisão terminológica a que acenamos no início deste capítulo!) “e boa frequência de sacerdotes”. O Relatório das Atividades do SAR, em 1954, explicita a relação entre o Encontro Mensal e a Semana Rural: “Dos frutuosos encontros do clero na 1a Semana Rural ficaram bem claros os excelentes resultados desses contatos para os vigários. E a partir de agosto de 1951 até nossos dias, cada vez mais firme e com maior número de componentes, vem realizando-se na 3a quinta-feira de cada mês a reunião do clero da Arquidiocese, com a participação esporádica de elementos das duas (Dioceses) sufragâneas, e, por ocasião de Semanas Rurais, a reunião do clero da Província. Nesses encontros de líderes (sacerdotes) está o alicerce do movimento rural no estado”20. Nós mesmo, antes de tomarmos conhecimento destes Relatórios do SAR, chegáramos à mesma conclusão a respeito do Encontro Mensal do Clero, vendo nele um dos esteios do Movimento. Como fruto desse Encontro Mensal (do clero da Diocese) e Anual (do clero de todo o estado) e do próprio trabalho que ia sendo realizado no interior, surgiu a ideia de cursos de atualização para os sacerdotes. 160 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal A partir de 195721, as Semanas Rurais, “de movimento de massa, passaram a movimento de líderes”, constando seu programa de três partes: — Cursos de Extensão Universitária para o Clero; — Seminários sobre temas diversos, com a participação de autoridades, técnicos e clero (o Seminário de 1959 versou sobre Reforma Agrária); — Cursos de Economia Doméstica (inclusive para artesãs e dirigentes de Clubes Agrícolas)22. O primeiro Curso de Extensão Universitária para o Clero realizou-se em Ponta Negra, em janeiro de 1957. Reuniu 40 sacerdotes: 30 da Arquidiocese de Natal, 8 da Diocese de Mossoró, 1 da Diocese de Caicó e 1 religioso da Diocese de Amargosa (Bahia). Nove professores ministraram um total de 40 aulas sobre Relações Públicas e Humanas, Sociologia Rural, Cooperativismo, Extensão Rural, História Religiosa do Nordeste, Pedagogia Pastoral, Ação Católica Rural e Sociologia Religiosa. Das próprias matérias deste Curso transparece a preocupação pela atualização do clero, tanto no campo da ação apostólica como no da ação temporal. O de 1958 versou sobre Sociologia, Pesquisa e Organização de Comunidade, tendo-se também realizado uma mesa redonda sobre Reforma Agrária, com a participação do ex-Ministro da Agricultura, Dr. Costa Porto. Nos anos seguintes — até hoje — outros cursos foram realizados, como o ministrado pelo renomado Agrônomo Guimarães Duque, sobre problemas do Polígono das Secas, e o de Sociologia Religiosa, dado pelo Sociólogo Pe. Afonso Gregory. Alguns destes Cursos contaram também com a presença de Sacerdotes de outros estados do Nordeste. ALCEU RAVANELLO FERRARO 161 Com a criação, em 1962, do REGIONAL NORDESTE da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, outros cursos para sacerdotes foram realizados, destinando-se ao clero de todo o Nordeste e tendo em vista particularmente a renovação da ação pastoral. A partir de 1963, com a divisão da Arquidiocese de Natal em Zonas Pastorais, os vigários passaram a ter também, mensalmente ou cada dois meses, os seus Encontros Zonais. 4) A Missão Rural. A primeira recomendação da I Semana Rural dizia respeito à instalação urgente de uma Missão Rural Ambulante no estado, visando a promoção do “bem-estar das comunidades rurais”, e a “educação do homem do campo”, abrangendo serviços de assistência médico-dentária, educacional, diversional, moral e religiosa, e de orientação agropecuária. Nestes serviços a Missão deveria ter o cuidado de “evitar o paternalismo e de despertar a melhor colaboração dos próprios assistidos”23. A Missão era constituída de uma equipe de voluntários — um médico, um dentista, um agrônomo, um (ou uma) assistente social e um sacerdote — e contava com um transporte e um aparelho de audio-difusão cedido pelo SIA. Do início de suas atividades na Vila de Extremoz (19 de março de 1951) até fins de 1954 (quando foi substituída pela Missão Rural do Agreste), a Missão Rural Ambulante realizou cerca de 110 visitas a sedes de municípios e povoados do interior do estado, inclusive na Zona Oeste e no Seridó (Dioceses de Mossoró e Caicó). 162 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Inicialmente a equipe passava vim dia em cada localidade, reunindo o povo, fazendo palestras educativas sobre saúde, escola, técnicas agropecuárias, atendendo a consultas médicas e extraindo dentes. Desde as primeiras visitas constatou a equipe que um dia não era suficiente. Partiu então para a realização de Tríduos Rurais. Mas, excetuada a lembrança de ter visto — geralmente pela primeira vez — um médico, um agrônomo, um assistente social, ou de se ter livrado de uma dor de dente, não restava no povo das comunidades visitadas senão “apenas um despertar de consciência para um futuro trabalho construtivo”24. “Por onde passava a Missão — diz a Assistente Social Célia Vale Xavier em seu TCC sobre treinamentos — “era uma semente que se plantava. Uma semente que exigia cuidados mais frequentes, cuidados estes que a Missão não podia dispensar, em vista do seu trabalho volante. Cedo, portanto, sentiu a equipe a necessidade de capacitar pessoal do próprio meio a levar avante as iniciativas tomadas. Surgiu a ideia de se promover um curso de líderes...”25. O Relatório das Atividades do SAR em 1951 também é explícito neste sentido: “Do que se observou nas Missões e Tríduos, concluiu-se pela necessidade de um curso intensivo que visasse a formação de elementos capazes de promover a recuperação do meio rural”. Desta constatação resultou uma progressiva concentração de esforços nas áreas atingidas pela Missão, “no sentido de transformar aqueles aglomerados em verdadeiras comunidades”26. ALCEU RAVANELLO FERRARO 163 Em 1952 o SAR celebrava com a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) um acordo, pelo qual assumia a execução de Missões Rurais de Educação, de caráter permanente e em áreas restritas. Enquanto era treinada, em Cruz das Almas, tuna equipe de técnicos, o Geógrafo Orlando Valverde, técnico da CNER, após estudos em algumas áreas do estado, sugeria que se instalasse a I Missão Rural (permanente) de Educação em Nísia Floresta e, posteriormente, outras em São Paulo do Potengi e no Sertão do Seridó. Foi assim que, a 30 de agosto de 1954, teve início a Missão Rural do Agreste, com sede inicialmente em Nísia Floresta, depois em Goianinha. A equipe era constituída por um agrônomo, uma assistente social, um médico, e uma educadora familiar. Em 1959 a Missão atuava em 16 núcleos, nos municípios de Nísia Floresta, São José de Mipibu, Arês, Goianinha e Monte Alegre, contando com 24 grupos organizados, 6 núcleos cooperativistas e 1 cooperativa. Já por esse tempo as “indústrias rurais caseiras” evoluíam para a produção artesanal com fins comerciais, não mais visando apenas a produção de utilidades domésticas. Em 1962 foi extinta a CNER e, com esta, a Missão Rural do Agreste, que, já desfalcada, ficara reduzida às duas educadoras familiares e à cooperação do vigário de Goianinha, Pe. Armando Paiva. As duas educadoras foram postas à disposição do SAR, continuando, até hoje, seu trabalho na área da extinta Missão Rural do Agreste. Subsistiram os grupos cooperativos que se voltaram para o artesanato, dando origem à Cooperativa de Produtores Artesanais do Litoral-Agreste. 164 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Do ponto de vista agropecuário e sanitário, não parece ter havido mudanças significativas ou, pelo menos, duradouras na área. Os próprios líderes do SAR não parecem muito convencidos do sucesso da Missão Rural do Agreste: “Não deu os resultados esperados em proporção ao dinheiro investido”, declarou D. Eugênio em sua entrevista27. 4. DESENVOLVIMENTO DE COMUNIDADE a) O Binômio Escola-Paróquia. Desde 1951, paralelamente à linha de ação encetada pelo SAR através da Missão Rural Ambulante e continuada pela Missão Rural (permanente) do Agreste, que deu origem à Cooperativa de Artesanato, desenvolveu o SAR, junto ao Binômio Escola-Paróquia, outra série de atividades, que constituem nova linha de ação, mais original, sem dúvida, e mais determinante na evolução do próprio Movimento. A razão da escolha da escola e da paróquia como bases para este programa de ação comunitária é a seguinte: tanto o vigário como a professora, além de serem elementos estratégicos para qualquer trabalho, no meio rural, fundado na cooperação voluntária, eram os menos envolvidos pelas lutas políticas locais, que bem cedo se demonstraram sério obstáculo para o trabalho do SAR. Neste sentido, o Relatório das Atividades do SAR em 1952 nos revela que a campanha eleitoral daquele ano criou sérias dificuldades à ação do Centro Social de São Paulo do Potengi e de seus Sub-centros, comprometendo a boa ALCEU RAVANELLO FERRARO 165 marcha dos trabalhos, e resolvendo-se, em consequência, suspender as atividades dos Sub-Centros até o início do ano seguinte. Um documento intitulado Binômio Escola-Paróquia (sem data, mas certamente de 1951) assim definiu os objetivos do trabalho a ser desenvolvido pelo SAR junto à escola e à paróquia: “Promover o levantamento e a mobilização dos recursos locais com o fito de organização da comunidade”. No início do SAR falava-se mais em redenção, recuperação, soerguimento das populações rurais. O uso do termo “desenvolvimento” começou a generalizar-se pelo fim dos anos 1950. Da mesma forma falava-se em organização ou, embora menos, em soerguimento das comunidades rurais. Já em 1960 dizia-se explicitamente: “O SAR objetiva o desenvolvimento e a organização das comunidades rurais”28. Mas o uso do termo “desenvolvimento” está intimamente ligado à II FASE RURAL (desenvolvimento econômico e mudanças de estruturas), da qual falaremos no capítulo seguinte. Junto às escolas promoviam-se reuniões com as professoras, alunos e pais, com o intuito de melhorar o nível do ensino, motivar pais e alunos para aumentar a matrícula e melhorar a frequência escolar, organizar o ensino religioso nas escolas, promover a criação de Clubes Agrícolas e integrar a escola no trabalho de comunidade que se iniciava junto às paróquias. Logo aos primeiros contatos, os elementos do SAR aperceberam-se do baixo nível intelectual das professoras do interior, cuja grande maioria não tinha primário completo. Como integrar a escola em programas de ação comunitária? Nenhum destes objetivos poderia ser atin- 166 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal gido, a não ser através de cursos de aperfeiçoamento para professoras; foi esta a conclusão a que chegou, ainda em 1951, a equipe do SAR. De outro lado, atuando junto às paróquias, o SAR procurava auxiliar os vigários e seus colaboradores leigos a organizar: — um piano de ação social (Centros Sociais de Comunidade, Clubes de Jovens, Clubes de Mães, Clubes Esportivos, Ambulatórios de emergência, programas de educação sanitária, recreação, cursos de alfabetização, de arte culinária, de corte e costura, de bordado, de indústrias rurais caseiras, etc.), e — um plano de ação pastoral ou apostólica (fundação da Juventude Agrária Católica (JAC) e de Centros Catequéticos). “Nos debates com os colaboradores dos vigários” — observa, em sua entrevista, a Assistente Social Lourdes Santos, que teve grande atuação neste campo — “verificamos que esse pessoal era muito mal escolhido - pessoal que não dava trabalho, mas, também, que não trabalhava eram os bonzinhos. Uns carneirinhos. Os elementos expressivos estavam distantes do vigário. Os vigários estavam geralmente sobrecarregados, absorvidos pelo culto, administração dos sacramentos, e livros da paróquia. Vimos que urgia um trabalho de formaçao de quadros para qualquer trabalho no meio rural. Achávamos que (esta formação de quadros) não era função do vigário Concluia-se uma visita com um plano de trabalho. Não funcionava. Diante disto resolvemos promover um curso, com o intuito de treinar líderes rurais. ALCEU RAVANELLO FERRARO 167 b) Estratégia. Pelo fim dos anos 40, sob influência da Sociologia Americana (através, principalmente, de pessoas que regressavam ao Brasil, após terem realizado cursos nos Estados Unidos), as Escolas de Serviço Social, até então voltadas mais para o Serviço Social de Caso, passaram a dar ênfase ao Serviço Social de Grupo e de Comunidade. O conceito de líder está, por sua vez, estreitamente ligado ao de grupo. Ora o pessoal técnico do SAR era quase todo constituído de alunos ou ex-alunos da Escola de Serviço Social de Natal. Além disto, Pe. Eugênio, como professor, esteve, durante vários anos, em contato com a Escola de Serviço Social. A Escola estava, portanto, de posse dos elementos: líder, grupo, comunidade. A junção, porém, destes elementos, formando a estratégia típica da I FASE RURAL do Movimento — o tripé: líder, grupo, comunidade — deve-se particularmente às primeiras experiências — decepções! — das Assistentes Sociais no meio rural. Propunham-se estas a “organização”, a “dinamização da comunidade”, “atingir a comunidade”. Esta, porém, lhes fugia da mão: deparavam-se com “aglomerados humanos”, que “precisavam ser transformados em verdadeiras comunidades”. Os primeiros planos não foram bem-sucedidos. Pensaram em “pessoas do lugar”, capazes de assegurar a participação do povo e a continuidade das iniciativas tomadas. Mas, que podia fazer um elemento isolado contra a força da tradição? A formação de grupos seria a solução. O tripé estava montado: líder, grupo, comunidade. Mas não funcionava. Ou, pelo menos, não funcionava como se esperava. 168 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal c) Os treinamentos de Líderes Rurais. A ideia de líder veio da Escola de Serviço Social. A de treinamento deveu-se particularmente as primeiras experiências do SAR. Por onde quer que iniciasse um trabalho — seja através da Missão Rural Ambulante, seja atuando junto ao “Binômio Escola-Paróquia” — a equipe do SAR constatava, já em 1951, a necessidade de treinamento. Foi assim que surgiu o 1o Treinamento de Líderes Rurais, realizado de 14 a 30 de janeiro de 1952, na Escola Prática de Agricultura, em Jundiaí. Foi financiado cerca de 50% pelas paróquias de onde provinham as cursistas, e o restante, por 6 Instituições e Serviços diversos. A respeito, assim se exprimiu, em sua entrevista, a Assistente Social Lourdes Santos, coordenadora do 1°. Treinamento: Foi um curso em estilo de Escola de Serviço Social. Tudo girava em torno dos temas: família, escola, paróquia, comunidade. No fim do curso reunimos os elementos de cada município para debater os problema locais e elaborar um planejamento. Este curso levou os participantes a se descobrirem como pessoa humana — valores de inteligência, realização pessoal e vocação missionária; 2) a tomarem consciência de sua responsabilidade, como cidadãos e como membros da Igreja, Pela comunidade; e 3) a entenderem que não poderiam atingir sozinhos estes objetivos, mas através de grupos”. A correspondência das primeiras cursistas revela certa perplexidade ante as dificuldades encontradas: a falta de interesse e de cooperação do povo, a insegurança no lidar com grupos a inconstância dos membros destes grupos, etc. Grupos surgiam, dissolviam-se e ressurgiam novamente Tem-se a impressão de que estavam tateando ALCEU RAVANELLO FERRARO 169 ainda. O 1° treinamento dera pouca importância a tecnica de grupos. Algumas sugeriam cursos mais prolongados: achavam pouco 15 dias. Para o trabalho que se pedia. Durante o 1° treinamento promovido pelo SAR esteve em Natal o Dr. José Artur Rios, o qual, apenas regressando dos Estados Unidos, fora nomeado Coordenador da Campanha Nacional de Educaçao Rural. Ouvindo falar do trabalho realizado no Rio Grande do Norte, quis ver pessoalmente o que lá se estava realizando. Foi nesta ocasião que o próprio Coordenador da CNER ofereceu ao SAR um convênio, que foi firmado no Rio aos 16 de maio de 1952, pelo qual a CNER se comprometia a dar assistência técnica e financeira para o projeto do Centro de Treinamento (29) e para o Programa das Missões Rurais30. O Convênio possibilitou a manutenção de uma equipe responsável não só pelos treinamentos, como também pelo assessoramento e supervisão dos líderes treinados. O 2° treinamento, realizado ainda em fins de 1952, contou com 29 participantes e teve a duração de 90 dias. Foi dada, neste, maior ênfase à técnica de grupo. Em consequência, proliferaram os grupos no interior. De 1952 a 1964 (em 1964 já se voltara o SAR para os treinamentos especializados) o C.T.L. (Centro de Treinamento de Líderes) realizou 34 treinamentos, geralmente de 1, 2, 3, e até 6 meses, somando 757 participantes. Os dois treinamentos de 6 meses destinaram-se à formação de Auxiliares Sociais Rurais. À medida que se multiplicavam os treinamentos, os trabalhos iniciados no meio rural tomavam novo alento, firmando-se e expandindo-se. Novas escolas e novas 170 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal paróquias foram atingidas pela equipe que atuava junto ao “Binômio Escola-Paróquia”. Surgiram novos Centros Sociais de Comunidade. Proliferaram os Clubes de Jovens, de Mães, os Clubes Agrícolas e Juvenis. Expandiu-se a JAC. Os líderes treinados no C.T.L. passaram a promover, no interior, cursos de líderes, cursos de corte e costura, de bordado, de arte culinária, de indústrias rurais caseiras. Foram organizadas campanhas de saúde e de frequência à escola. Foram feitas demonstrações, como de combate à formiga e à lagarta, e experiências de criação de galinhas e de hortas caseiras. Atividades recreativas invadiram fazendas, sítios, povoados, vilas e mesmo cidades do interior. Talvez por responder a uma das necessidades mais sentidas pelas populações do interior, a diversão constituiu, muitas vezes, a primeira forma de cooperação e o ponto de partida para a organização de grupos e a integração do povo em outras atividades. d) O líder. O meio rural nordestino conhece dois tipos tradicionais de líderes, cujos expoentes máximos são as figuras do “coronel” e do “patriarca”. Demorada e minuciosa pesquisa (31) evidenciou-nos que o SAR teve, realmente, desde o início, a intenção de criar um novo tipo de líder, que tentaremos caracterizar aqui, esquematicamente, sem, contudo, nos preocuparmos, por ora, em verificar se este objetivo foi realmente atingido. Trata-se de um líder: — natural: pessoa do meio, com qualidades, pelo menos potenciais, de liderança; — voluntário: não remunerado (monetariamente); ALCEU RAVANELLO FERRARO 171 — treinado: “conscientizado” de sua responsabilidade como líder e capacitado para melhor exercício e maior rendimento de suas qualidades de liderança; — inovador: capaz não só de assumir responsabilidades e de tomar iniciativas quaisquer, mas, também, de promover a mudança de mentalidade e de padrões de comportamento no meio em que vive e a “transformação de aglomerados humanos em verdadeiras comunidades”32; — democrático: educado para o “fazer-fazer”, para fazer “com” e não “para”33, ao contrário do líder autoritário (o “coronel”) e do líder paternalista (o “patriarca”)34; — comunitário: voltado para os problemas de sua comunidade, entendida como a fazenda, o sítio, o povoado, ou a cidade do interior35; — solidário: educado para atuar através de grupos ou associações voluntárias de pequeno porte, e não isoladamente; — missionário: o próprio engajamento especificamente temporal do líder era apresentado como decorrência de sua condição de cristão e como testemunho de caridade cristã36. Estratégia: atuação junto ao Binômio Escola-Paróquia, fundada no Tripé: Líder - Grupo - Comunidade. Principais suportes (“alicerces”): 1. O próprio Padre e, depois, Bispo Eugênio, e, através do Encontro Mensal, o clero rural. 2. A Ação Católica: na origem (J.M.C.), na cúpula (J.M.C. e J.F.C.) e na base do SAR (JAC). 3. A Escola de Serviço Social, fornecendo o pessoal técnico. 4. A cooperação dos Poderes Públicos (especialmente o SIA e a CNER) e da ANCAR. 5. Os líderes treinados no C.T.L. e os grupos surgidos no meio rural. 5. CONCLUSÃO Utilizando, quanto possível, a própria terminologia do Movimento, tentaremos esquematizar, aqui, alguns aspectos mais fundamentais desta I FASE RURAL: Objetivo: “O soerguimento das comunidades rurais”. Meio: “Através de um trabalho de educação de base”37. 172 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 173 NOTAS AO CAPÍTULO III l. Fontes principais: a) A Ordem (para o período 1945-1951); b) a farta documentação do SAR para o período posterior a 1950; c) entrevistas; d) Trabalhos de Conclusão de Curso de ex-alunas da Escola de Serviço Social, sobre treinamentos.2. Em maio de 1965 Nivaldo Monte foi nomeado Administrador Apostólico “Sede Plena” de Natal, em substituição a D. Eugênio Sales, que fora transferido para a Bahia. 3. Pe. A. E. Collard, NEBRA — O Nordeste na Encruzilhada dos Caminhos, Edições “DI-MANCHE”, Mons (Bélgica), 1964, p. 82-83. 4. A Ordem, 19-12-1947. 5. A Ordem, 28-1-1948. 6. A Ordem, maio e junho de 1948 7. A Ordem, 12-6-1948. 8. A Ordem, 17-8-1948. 10. Cfr. Livro de Atas do SAR. 11. DR. Eugênio Sales, A Igreja e o bem Estar Rural: Aula proferida no 1º Curso para técnico do serviço social rural (SSR) no Centro de Ensaio e Treinainento da Fazenda Ipanema (CETI), em janeiro de 1959. Trata-se de uma nova modalidade de apostolado — comentava Moreira Aguiar em A ordem de 9 de abril de 1949 – a ser confiado ao patrocínio da Juventude Masculina Católica, visando prestar assistência médica, dentária, jurídica e parte diversional, às populações dos munidos dos Municípios a serem beneficiados, e mesmo dos particulares”. O mesmo jornais observa ainda que o Pe. Eugênio tinha tudo no papel : plano, Orçamento, onde conseguir o dinheiro e como fazer funcionar seu plano. 12. A Ordem, 19-10-1949. Trata-se certamente de experiência observada por Pe. Eugênio, quando de sua estada em Porto Alegre, por ocasião do Congresso Eucarístico Nacional, lá realizado em 1948. A Assistente social Célia Vale Xavier, em seu trabalho de concussão decurso (TCC), observa o seguinte: “ conta D. Eugênio Sales... que essa ideia de servir ao meio rural tomou vulto por ocasião do Congresso Eucarístico de Porto Alegre. Pequenas experiências da igreja do brasil no meio rural já se esboçavam”. (Cfr. Célia Vale Xavier, O treinamento de líderes voluntários nos programas de valorização do Meio Rural, Natal, novembro de 1958, p. 31) 13. A Ordem, 12-10-1949. ‘ 14. A Ordem, 10-01-1950 e 27-02-1950. 15. A Ordem, 25-02-1950 16. Em seu relato, o Cônego Antônio Barros – depois de constar o predomínio da grande propriedade, a pouca mecanização da agricultura, a falta de assistência técnica, a carência hospitalar e de qualquer assistência médico-sanitária – observava: “O trabalhador rural é pago em dinheiro, cuja média de salário é de Cr$ 8,00 a 10,00, o que representa uma miséria, tendo em consideração os elevados preços alcançados pelos produtos agrícolas, que ano a ano contribuem para o enriquecimento dos agricultores e criadores... O nosso trabalhador é um vencido na vida, geralmente mal alimentado, maltrapilho e doente, possuindo apenas a noite e o dia que Deus lhe dá. No dia em que não trabalha, a família passa fome. Não existe nenhuma assistência social para o nosso trabalhador... O nosso município é um verdadeiro celeiro de cereais. A riqueza, porém, é canalizada para os felizes proprietários das terras, sendo 174 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal que o principal propulsor do progresso, o trabalhador, vive como um miserável”. (Cfr. Cônego Antônio Barros, Contribuição a I semana Rural no Rio Grande do Norte, São José do Mipibu, 30-1-1950 — Arquivos do SAR). 17. A Ordem, 23-1-1951. 18. A parte as amarras da própria tradição, podemos mencionar: a) apropria estrutura agrária do Estado e do Nordeste (Cfr. Apêndice I, § 3, 3); b) o absentismo dos grandes proprietários; c) o lucro cavado nos grandes latifúndios, que é investido nas indústrias do Sul ou em imóveis nas capitais, seguindo a agricultura e a pecuária a sua rotina tradicional; d) a quase total ausência de créditopara o pequeno proprietário (de menos de 10 ha.) e os “sem terras”, que, juntos, constituem mais de 90% dos que encontram na agropecuária seu ganha pão; e) a precariedade dos poucos postos agropecuários existentes no interior; f ) a insegurança e a instabilidade do trabalhador rural que desestimulam qualquer – mesmo mínimo- investimento ou benfeitoria, de vez que este pode ser despedido a qualquer momento, sem adequada e, geralmente, sem nenhuma indenização. 19. Cfr, A Ordem, 2-7-1951. 20. Observe-se que, já nesse tempo, os próprios líderes do SAR consideravam seu trabalho como um movimento rural de âmbito estadual. 21. Ao todo foram realizadas, no estado do Rio Grande do Norte, 16 semanas rurais. As nove primeiras e a undécima (1951-1957), realizadas no interior, podem definir-se como movimentos de massa (chegaram a contar, em certos dias, mais de 200 e até 600 participantes). A X e as XII-XVI destinaram-se mais a líderes (autoridades, técnicos, clero e líderes rurais) do que ao grande público do interior. Cfr., sobre isto, os Relatórios das atividades do SAR e particularmente a documentação do SAR sobre as semanas rurais. 22. Safira Bezerra, pela Valorização do meio Rural (Trabalho de conclusão de curso), Natal, março de 1959, p. 28. 23. “conclusões da I Semana Rural”, A Ordem, 29-1-1951. 24. Relatório das atividades do SAR no ano de 1952. 25. Célia Vale Xavier, O Treinamento de líderes voluntários nos programas devalorização do meio rural (Trabalho de Conclusão de Curso), Natal, novembro de 1958, p. 34 Cfr. Também: Safira Bezerra, op. Cit., p. 35 ss. 26. Relatório dai Atividades do SAR em 1954. 27. Não é nossa intenção fazer aqui uma avaliação do trabalho da Missão Rural de Educação no Agreste, titulo de ilustração, transcrevemos o seguinte trecho referente ao trabalho desenvolvido pela Missão Rural num trimestre de 1957: - Parte agrícola: Horticultura: 16 aulas práticas com a frequência de 182 pessoas. Avicultura: 3 demonstrações. 13 reuniões para arborização, com a frequência de 314 pessoas. Parte educacional- 2 reuniões de pais, com a presença de 137 pessoas. 9 reuniões com 58 professores e 3 aulas teóricas. Em relação a clubes: 100 reuniões para assuntos diversos, com um total de 1 364 presentes. 12 Reuniões recreativas com a participação de 574 pessoas. 4 regiões festivas com 1 550 pessoas. Uma excursão com 10 pessoas. Realizou-se também uma reunião de líderes, bem como funcionou uma vez um comitê de estudos. Economia domestica, aulas teóricas, 4 Trabalhos manuais 23 com frequência de 246 alunos. Trabalhos em madeira, 26; participações. 237 pessoas. Arte culinária, 3 aulas. Indústrias rurais caseiras, 2 aulas para 17 senhoras. Foram ministradas ainda 3 aulas teóricas sobre alimentação. Formação moral e social; círculos de estudos, 12: frequência de 102 circulistas. Aulas teóricas de boas maneiras, 7, frequência de 79 pessoas. Realizaram-se 19 sessões cinematográficas, com filmes educativos. ALCEU RAVANELLO FERRARO 175 Compareceram 2.800 pessoas”. (Cfr CNER no Rio Grande do Norte (Relatório enviado a CNER pelo SAR, órgão executor do convênio) 1957. 28. Relatório das Atividades do SAR em 1960. 29. No que diz respeito ao Centro de Treinamento, o convênio com a CNER estendeu-so até 1957. Seguiu-se, então, um Convênio com o Serviço Social Rural (SSR), que assegurou a continuidadedos treinamentos até 1962. Os treinamentos promovidos em 1963 e 1964 foram realizados extra convênio. Mesmo entre 1952 e 1962 foram promovidos treinamentos totalmente custeados pelas comunidades interessadas. Em alguns casos, graças à cooperação das comunidades, as Já parcas subvenções dadas para um permitiram a realização de dois treinamentos. 30. O Convênio para o Projeto da Missão Rural do Agreste, cuja execução foi iniciada em 1954, teve fim em 1962, com a extinção da CNER. 31. Cfr. Sobre isto, o abundante material do SAR sobre os treinamentos e os já citados trabalhos de conclusão Curso de CéliaVale Xavier e Safira Bezerra. Servimo-nos, além destas fontes, de várias entrevistas e da observação participante em vários treinamentos, embora já da II FASE RURAL (treinamentos especializados). 32. Relatório das Atividades do SAR em 1954. 33. Sobre líder democrático, grupos democráticos e técnica de treinamento, veja os já citados Trabalhos de Conclusão de Curso de Célia Vale Xavier e Safira Bezerra. 34. A propósito, vale transcrever o depoimento de Célia Vale Xavier que durante 12 anos (1953- 1964) foi coordenadora do Centro de Treinamento: “Quem visita o Interior encontra-se, amiúde com indivíduos que, exercendo sua autoridade, o fazem de modo totalitário. Por outro lado o Paternalismo não tem deixado de trazer desastrosas consequências ao trabalho de formação de lidere. Comunidades dormem sob a proteção de uma ou outra família, que toma para si todos os encargos, que tudo faz sozinha... Repete-se por toda parte o caso da família patriarcal, eternamente responsável por todas as iniciativas locais, e empreender toda sorte de melhoramentos “em favor” da comunidade que tudo recebe, reconhecida, mas passivamente”. E pergunta-se a autora: “Como, então, Poderão surgir líderes naturais, se o ambiente próprio ao seu desenvolvimento - a comunidade - acha-se totalmente abafada por esses dois grandes inimigos da democracia, como sejam o autoritarismo e o Paternalismo? Se não for “no duro” nada vai para frente, afirmam os que defendem as iniciativas impostas, enquanto os geradores do “filhotismo” escolhem para postos de liderança “o amigo” “o compadre”, ou ainda o elemento “bonzinho”. O grupo democrático é, por excelência, o clima onde brotam os líderes naturais”. (Cfr. Célia Vale Xavier, op. cit., p. 19-20). 35. O interiorano serve-se habitualmente do termo “localidade” para designar o sítio, o povoado, a fazenda onde mora. O conceito “comunidade”, introduzido pelo SAR, tinha uma conotação norrmativa. “Comunidade” passou a significar não tanto o que uma localidade era quanto o que deveria ser “Transformar aglomerados humanos em verdadeiras comunidade” (Relatório das atividades do SAR 1954). Surpreendeu-nos a ênfase com que, em recantos os mais isolados do interior, se Pronuncia “co-mu-ni-da-de”. 36. Trataremos mais demoradamente deste aspecto na III Parte deste Trabalho. Antecipamos, contudo, a constatação feita pelo próprio Coordenador da 176 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal CNER, Dr. José Artur Rios, por ocasião do 1º Treinamento de Líderes realizado pelo SAR: “Precisamos de líderes rurais do tipo dos que aqui, encontrei. Não simplesmente interessados num trabalho qualquer, mas possuídos de ideal apostólico (hoje diz-se “espírito missionário”). Os treinamentos visavam levar os participantes a uma opção religiosa. O próprio engajamento temporal do líder era apresentado como decorrente de sua condição de cristão. Nada de admirar, uma vez que, por trás de tudo, estava a Ação Católica. A expansão da JAC (Juventude Agrária Católica), organização de caráter especificamente missionário, muito devo ao SAR. Por outro lado, a JAC constituiu um dos principais suportes de todo o social desenvolvido no meio rural. 37. SAR – CNER, Relatório do ano de 1953. ALCEU RAVANELLO FERRARO 177 CAPÍTULO IV II FASE RURAL Uma redefinição de objetivos, nova terminologia e novo surto de iniciativas marcam esta II FASE RURAL, cujas realizações podem ser agrupadas em torno de três objetivos genéricos: educação, desenvolvimento econômico, mudança de estruturas. 1. EDUCAÇÃO a) Como vimos no capítulo anterior, data de 1948 — anterior, portanto, ao próprio SAR — a ideia de uma Rádio-Escola ou da utilização do rádio para programas de educação de base das populações rurais. A luta pela obtenção de um canal teve início em 1952. Depois de frustradas várias tentativas, finalmente, pelo Decreto n°. 43.729 de 21 de maio de 1958, foi concedida ao SAR a autorização desejada1. A esta altura, D. Eugênio, com a ajuda do ETA (Escritório Técnico de Agricultura) do Ponto IV, havia percorrido as Américas em busca de novas “luzes”. Muito ALCEU RAVANELLO FERRARO 179 lhe valeu a observação pessoal da experiência de educação pelo rádio, realizada na Colômbia pela “Acción Popular Cultural” (Rádio Sutatenza)2. Com a inauguração da Emissora no dia 10 de agosto de 1958, foram organizadas as primeiras Escolas Radiofônicas, dando-se início à primeira experiência, no Brasil, de educação de base pelo rádio. No ano seguinte D. José Távora lançou experiência semelhante na Arquidiocese de Aracaju. O II Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Natal em maio de 1959, foi ocasião para interessar os Poderes Públicos na experiência. Em 1961 foi assinado Convênio entre a Presidência da República e a Conferência dos Bispos do Brasil, fundando o Movimento de Educação de Base (MEB) e estendendo a experiência a outras áreas subdesenvolvidas do Brasil3. A partir desta data o MEB passou a assumir o ensino radiofônico também na Arquidiocese de Natal, continuando, em entrosamento com o SAR, o trabalho por este iniciado. A educação de base — objetivo do ensino radiofônico — visava não somente a alfabetização, mas também a conscientização e politização4 das populações rurais. O próprio método de alfabetização era um processo de conscientização e politização, partindo não das tradicionais cartilhas de alfabetização, mas de termos como povo, voto, liberdade, libertação, trabalho, salário, direito, dignidade, justiça, doença, fome, união, força, sindicato, alfabetização, analfabeto, cristão, amor, responsabilidade, etc.5 Entre 1961 e 31 de março de 1964, na fase aguda da luta do SAR em prol da mudança de estruturas, o MEB deu à conscientização-politização pelo menos tanta ên- 180 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal fase quanta à alfabetização. O objetivo geral do MEB para 1963 foi assim descrito: “Contribuir para a autopromoção do povo, através do processo de conscientização”, com o intuito de promover “uma mudança de mentalidade e de estruturas”6. Além do ensino radiofônico, a Emissora abriu novas perspectivas para o trabalho do SAR. Com excessão de algumas — poucas — mais remediadas, a quase totalidade das famílias das fazendas, sítios e povoados do interior não possuía e não ouvia rádio. O aparelho cativo das Escolas Radiofônicos não pertencia ao monitor ou à sua família, mas à comunidade toda. Foi o mundo dentro da casa, dentro da fazenda, do sítio, do povoado. Treinamentos tiveram continuidade através do rádio. Programas radiofônicos revitalizaram Clubes e JAC, inclusive arrancando mulheres e moças à cozinha e lides caseiras, para reuniões, não raro, a léguas de distância. O rápido surto sindicalista dos anos 1960 não se entende sem Emissora... e sem os Centros Sociais, os Clubes, a JAC, enfim, sem os suportes institucionais criados, no interior, na I FASE RURAL do Movimento. O programa do Setor de Sindicalização, “Em Marcha Para o Campo”, passou a ser rendez-vous obrigatório para muitos trabalhadores rurais... e também para patrões, com uma diferença: enquanto aqueles davam todo volume ao aparelho, estes colavam o ouvido no “pé do rádio”, para que a vizinhança não se apercebesse... Programas religiosos e, particularmente, a Missa “radiada” levaram a mensagem evangelizadora a muitos que só viam e veem o padre algumas vezes no ano. ALCEU RAVANELLO FERRARO 181 Alguns programas recreativos tornaram-se famosos. Com eles ia sempre uma “pitadinha” de conscientização e politização. A Emissora constituiu novo e poderoso suporte para a expansão do Movimento nesta II FASE RURAL. Após um encontro do Presidente da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG) com D. Eugênio Sales, foi organizada a Secção Estadual da Campanha, passando esta a funcionar “integrada” no Setor de Ensino Médio do SAR, fundado com o objetivo de 1) possibilitar uma melhoria do ensino em alguns Ginásios paroquiais já existentes e 2) fundar novos Ginásios, integrando-os na CNEG. A CNEG passou a funcionar na própria sede do SAR. Fundou novos Ginásios. Outros, já existentes, associaram-se à Campanha, perdendo, assim, o Setor de Ensino Médio sua razão de ser. Em 1966, a CNEG passou a funcionar em sede própria. Embora não dependa juridicamente do SAR, nem mantenha convênio com este, a CNEG deve ao Movimento sua organização e muito de sua rápida expansão no estado do Rio Grande do Norte. Sua Diretoria e Conselho estaduais eram e continuam sendo constituídos de elementos todos eles voluntários e integrados no SAR ou em outros setores do Movimento. Além de encontrar comunidades abertas para a cooperação, a Campanha beneficiou-se ainda do apoio dos vigários e de toda a infraestrutura social criada pelo SAR no interior. Nos anos 60, seja atuando nos próprios Educandários, seja, através destes, nas respectivas comunidades, o Setor do Ensino Médio também se integrou no trabalho de conscientização e politização desenvolvido pelo SAR com vista a mudança de estrutura. 182 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Como resultado do II Encontro dos Bispos do Nordeste, o SAR organizou, em 1960, o Setor de Migrações. O objetivo inicial era bem ambicioso: ordenar e humanizar as migrações procedentes do Nordeste. Como primeiro passo, procedeu o SAR a um levantamento, em 12 municípios do estado, sobre as correntes migratórias: número de migrantes — permanentes e temporários — procedência e destino. Passou-se, então, ao treinamento de líderes de migração — voluntários — que pudessem assumir, no interior, o encargo de orientar o migrante. Através destes líderes e de programas radiofônicos, o Setor desenvolveu seu trabalho de orientação e educação, visando, de modo especial, tornar consciente o futuro migrante do comércio humano do “pau-de-arara” e orientá-lo a só viajar com passagem paga, emprego certo e documentos. Lembre-se, contudo, que a preocupação do SAR pela humanização das migrações é anterior ao II Encontro dos Bispos do Nordeste (1959). Já em 1954 foi enviado aos vigários um modelo de carta de apresentação, que o imigrante deveria apresentar ao vigário da paróquia onde fosse residir. e) Antes mesmo da fundação do SAR, já se cogitara numa “Volante da Saúde”. A Missão Rural Ambulante procurou dar alguma assistência médico-dentária às populações por ela atingidas. Os líderes rurais e os grupos por eles organizados foram orientados para a saúde preventiva: a educação sanitária do povo de suas localidades, através de palestras, campanhas, audiência de programas radiofônicos, etc. ALCEU RAVANELLO FERRARO 183 A partir de 1957 começaram a surgir algumas maternidades no interior, mantidas pelas respectivas comunidades. O Setor de Saúde visou não a manutenção, mas o assessoramento às maternidades e o treinamento de parteiras, de vez que estas comunidades não conheciam, neste campo, senão a tradicional “curiosa’. Em 1965, o Setor passou a insistir novamente na saúde preventiva, através de treinamentos de monitores de saúde. Algumas maternidades desenvolvem também algum trabalho de educação sanitária e alimentar. Tudo somado, o Setor visa mais a educação sanitária, do que a assistência propriamente dita. 2. DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Desde o início de suas atividades o SAR se preocupou, em seu programa de “redenção” do meio rural, com alguns aspectos econômicos, como a melhoria técnica na agropecuária, o incentivo ao cooperativismo, indústrias rurais caseiras e apoio à colonização de Pium, feita pelo INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização). A 2a FASE RURAL distingue-se, aqui, por uma ênfase maior e, sob alguns aspectos, uma ação mais direta no campo econômico. Que os agricultores e criadores andavam “atrasados muitos anos quanto ao trato da terra e dos animais” ficou demonstrado na pesquisa que precedeu a I Semana Rural8. As Semanas Rurais, a Missão Rural Ambulante e 184 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal os treinamentos iniciaram um trabalho de esclarecimento e educação neste sentido. Mas ficou logo patente que isto não era problema que se resolvesse com algumas palestras. Exigia-se uma assistência continuada, técnicos e dinheiro. Não era trabalho para o SAR. Ademais, já funcionava em alguns Estados Nordestinos a Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural (ANCAR), órgão integrado exclusivamente de técnicos e fora do alcance dos políticos. Por que não trazê-la para o Rio Grande do Norte? D. Eugênio Sales e o Dr. Cristovam Bezerra Dantas, então Secretário da Agricultura, iniciaram uma série de entendimentos que resultaram na instalação, em dezembro de 1955, de Escritórios da ANCAR em 5 municípios do estado9. Em janeiro de 1958 foi instalado o Escritório Estadual da ANCAR com sede em Natal. Multiplicaram-se os Escritórios no interior. Desde 1955, desenvolveu-se estreita colaboração entre ANCAR e SAR sendo que este, como membro fundador, integra ainda hoje a Junta Governativa, órgão máximo de deliberação da ANCAR10. Com o andar dos anos o SAR deu-se conta de que não bastavam “incentivos” para o desenvolvimento do cooperativismo no estado. A experiência foi demonstrando: — que a interferência de interesses particulares, geralmente políticos, levavam cooperativas à subserviência a um pequeno grupo, quando não, a fechar os batentes; — que a falta de pessoal capacitado em contabilidade e administração paralisava grande número de cooperativas; — que a maioria delas atendia quase que exclusivamente à classe patronal; ALCEU RAVANELLO FERRARO 185 — que o pequeno proprietário e o trabalhador rural não dispunham de crédito, obrigando-se, muitas vezes, a vender o produto “na folha” ou logo após a colheita, por preços baixíssimos. Consultada, a Divisão de Assistência ao Cooperativismo, órgão do Governo do Estado, respondeu não estar em condições de estimular a criação de novas cooperativas, de vez que não dispunha de meios nem para prestar assistência às já existentes. Foi então que o SAR se decidiu a agir diretamente. Após um Curso de Cooperativismo para técnicos e universitários o SAR realizou outro, também em 1956, visando a formação de líderes cooperativistas. Foi este o primeiro treinamento especializado promovido pelo SAR e o primeiro a engajar elementos do sexo masculino. O Setor de Cooperativismo do SAR foi criado com o objetivo de 1) treinar gerentes e administradores de cooperativas, 2) assessorar as cooperativas, 3) treinar artesãs e 4) manter uma equipe técnica, capaz de assumir os treinamentos e o assessoramento às cooperativas que, a partir de 1957, foram surgindo no interior. Uma pesquisa realizada em 1958 revelou grande desemprego feminino na entresafra e “a existência de matéria prima possível de ser utilizada no artesanato e em indústria de pequena e grande produção”11. No ano seguinte tiveram início os treinamentos de artesãs, surgindo, em consequência, os primeiros núcleos cooperativistas de artesanato. Estes, ligados, de início, ao Setor de Cooperativismo, fundaram, em outubro de 1963, a Cooperativa dos Produtores Artesanais do Litoral Agreste Ltda. 186 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Com o fim de assumir os treinamentos, prestar assessoramento à Cooperativa e organizar a comercialização da produção, foi fundado o Setor de Artesanato, confiado a duas educadoras da então já extinta Missão Rural do Agreste, postas à disposição do SAR. No discurso que levara pronto para o encerramento do II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, 1959), mas que de fato cedeu lugar a um improviso, o Presidente Juscelino Kubitschek frisava a “esplêndida” colaboração de D. Eugênio Sales na “descoberta” dos vales úmidos do estado do Rio Grande do Norte12. Teria sido mais exato, tivesse o Presidente falado em “colonização” ou “aproveitamento” e não em “descoberta” dos vales úmidos, de vez que o debate sobre a possibilidade de utilização econômica de tais vales é mais que secular13! A propósito, a história dos vales úmidos nos faz lembrar a lenda do urubu. Diz-se deste que, quando chove, jura pelas barbas de seus ancestrais que, apenas pare a chuva, construíra uma casa. Passada a chuva, porém, voltando o sol a brilhar, exclama: Para que casa, com um sol tão lindo?” Coisa semelhante acontece com os vales úmidos. Em momentos de crise de alimentos — como durante a última guerra e em anos de seca — todos se apressam em elaborar projetos de utilização dos vales úmidos. Passada a crise, arquivam-se os projetos: “Para que dispender tanto dinheiro com vales tímidos, se até nas pedras dá feijão”14? É a triste história dos 40.000 hectares de vales úmidos num Estado que tem 90,6% de sua área incluída no Polígono das Secas. É verdade que, desde 1938, o DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento) vinha executando ALCEU RAVANELLO FERRARO 187 alguns trabalhos de drenagem em alguns rios, “com absoluto êxito técnico”, mas sem nenhum benefício econômico”, por falta de “recuperação agrícola das terras saneadas”15. Em 1953 o INIC (Instituto Nacional de Imigração e Colonização) deu início, no vale do Pium, à primeira experiência de colonização de vale úmido no estado. No empreendimento, o Agrônomo Dr. Antônio Coelho Malta contou com o apoio e colaboração de D. Eugênio. O Jornalista João Marcílio Dias assim comenta, em O Diário de Belo Horizonte de 13 de abril de 1960, o trabalho de ambos: “Quando o percorríamos (o Núcleo Colonial de Pium), os agricultores informaram-nos: “Devemos isto a Dom Malta e Dom Eugênio”. Como era natural, pensamos tratar-se de dois bispos, e fomos procurar Dom Malta. Qual não foi nossa surpresa quando verificamos que o “Prelado” era o técnico Antônio Coelho Malta, Supervisor do Ponto IV e do Projeto 51 do ETA”16. D. Eugênio, em seu entusiasmo pela experiência do INIC, não duvidou em mandar-se para o Rio com uma mala cheia de bons melões produzidos na Colônia de Pium, a fim de, com argumentos concretos — “D. Eugênio primeiro fazia o homem salivar e só depois desembrulhava o melão”, comentou-nos Dr. Malta — interessar Ministros e chefes de Repartições Federais na continuidade — o impossível acontece! — da experiência iniciada pelo próprio Governo. Se os melões foram o argumento mais convincente, não sabemos. O fato é que a Colonização do vale do Pium foi levada a termo. Numa reunião preparatória do I Encontro dos Bispos do Nordeste (Campina Grande, maio de 1956), o Governador do Estado, embora reconhecendo a importância 188 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal dos vales úmidos, pendia mais para o aproveitamento do vale seco do Açu. Discordando do Dr. Antônio Coelho Malta e do Dr. Hélio Mamede Galvão, dizia o Governador ser mais fácil a vinda da energia de Paulo Afonso do que a drenagem dos vales úmidos. Por ocasião do Encontro de Campina Grande, D. Eugênio manifestou-se decididamente em favor do aproveitamento dos vales úmidos e do vale seco do Açu17. Em 1957, encaminhada a experiência de Pium, iniciaram-se estudos e tratativas para o lançamento de nova experiência — a Colônia de Punaú — executada pela Fundação Pio XII, integrada pelo Governo do Estado (já o Governador Dinarte Mariz se “convertera” para os vales úmidos), Serviço de Assistência Rural e Escola de Serviço Social, com uma participação mais direta, portanto, do Movimento de Natal. Em 1959, por ocasião do II Encontro dos Bispos do Nordeste (Natal, maio de 1959), foi apresentado o Projeto 51, sobre “Vales Úmidos”, contribuição do Escritório Técnico de Agricultura Brasil-Estados Unidos (ETA)18. A esta altura o DNOS já havia iniciado a drenagem do vale do Fonseca, instalando-se, pouco mais tarde, os primeiros colonos em Punaú. Enquanto redigíamos este parágrafo, os jornais de Natal anunciavam que o novo Governador do Estado acabava de nomear uma Comissão para estudar a possibilidade de novas experiências de aproveitamento de vales úmidos19. O estado todo estava sob a ameaça de nova seca. Resta saber se as chuvas, que, logo depois de nomeada a Comissão, caíram em todo o estado, não farão engavetar os novos projetos... ALCEU RAVANELLO FERRARO 189 3. LUTA PELA MUDANÇA DE ESTRUTURAS A luta pela mudança de estruturas desenvolveu-se em duas frentes principais: a sindicalização rural e as campanhas de politização. 1) Em 1960, após 70 anos de liberdade constitucional de associação20, 57 anos de facultação aos profissionais da agricultura e indústrias rurais de se organizarem em sindicatos21 e de várias outras Leis e Decretos assegurando e regulamentando o direito de sindicalização rural22, existiam no Brasil apenas seis sindicatos rurais devidamente reconhecidos (5 de trabalhadores rurais e 1 de patrões) e uns vinte e poucos com documentos no Departamento Nacional do Trabalho, aguardando “investidura” sindical23. De um lado, não havia ainda consciência de classe no meio rural. De outro, pelo menos no que diz respeito ao trabalhador rural, a liberdade de associação era tão clara na Constituição, Leis e Decretos, quanto inexistente na prática. É dentro deste quadro que se situa o movimento de sindicalização rural no estado do Rio Grande do Norte, iniciado pelo SAR, em 1960. Foi, sem dúvida, o sindicalismo rural que mereceu ao SAR e a D. Eugênio elogios dos mais rasgados e as mais graves acusações. Segundo uns, trata-se de um trabalho pioneiro. Segundo outros, o SAR ou — como dizem — a Igreja pensou em sindicalização rural, acossada pelas Ligas Camponesas e pelo perigo comunista. Segundo outros, enfim, com o sindicalismo, Bispo e SAR bandearamse para o comunismo. 190 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal A nosso ver, duas razões principais explicam estas interpretações tão desencontradas: 1) a radicalização da política brasileira e, por conseguinte, dos julgamentos, a partir principalmente de 1962, e 2) a falta de suficiente recuo histórico e de conhecimento do próprio Movimento de Natal por parte de pessoas que emitiram opiniões sobre o Movimento e especialmente sobre a sindicalização rural no estado, em função mais de uma posição tomada dentro do quadro político-ideológico nacional do momento, do que de uma observação séria e desapaixonada dos fatos. Embora de aviso contrário no início, hoje, depois de minuciosa pesquisa histórica, chegamos à conclusão de que a origem do movimento de sindicalização rural no estado do Rio Grande do Norte não tem nenhuma relação com as Ligas Camponesas de Pernambuco, nem com o perigo comunista ou a crescente radicalização da política brasileira nos anos de 1961 a 196424. Ao contrário, a verdadeira origem do sindicalismo rural no estado deve ser buscada 1) dentro do próprio Movimento — na pregação, desde 1947, da reforma agrária (25); na malograda tentativa do SAR em 1951 de fazer aplicar a legislação trabalhista no meio rural e de promover a organização do trabalhador rural em Círculos Operários Rurais (26); no acentuar-se, a partir de 19571958, de uma tendência reformista dentro do próprio SAR (luta pela mudança de estruturas, principalmente a agrária, para a qual a colonização de Punaú, então em estudos, queria ser um exemplo) — e 2) no aparecimento de Um líder leigo, técnico em sindicalismo, que se propôs promover, em entrosamento com o SAR, a sindicalização rural no estado27. ALCEU RAVANELLO FERRARO 191 O trabalho de sindicalização rural, planejado desde fins de 1959 e iniciado em agosto de 1960 com a fundação do Setor de Sindicalismo do SAR, teve as seguintes fases: — julho a dezembro de 1960: motivação e primeiros treinamentos de líderes sindicais; — janeiro a junho de 1961: fundação de sindicatos; — julho a dezembro de 1961: organização e planos de ação visando cobrir todo o estado; — janeiro a junho de 1962: trabalho pró-investidura sindical; — julho a dezembro de 1962: campanha de politização, levada a efeito em entrozamento com o Setor de Politização do SAR. De janeiro de 1963 a 31 de março de 1964 (data da Revolução) os Sindicatos Rurais, não esquecidos os aspectos das fases anteriores, se endereçaram mais para a ação reivindicatória e pressão no sentido de forçar mudanças de estrutura, especialmente agrária. O I Congresso de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte, realizado em Natal, de 22 a 25 de abril de 1961, com a participação de 96 líderes rurais, representantes de 52 municípios, constituiu um momento decisivo para a expansão da sindicalização rural no estado. No dia do encerramento do Congresso, D. Eugênio, em sua Palestra Dominical (25-4-1961), declarava: “Entre os grandes objetivos do conclave, destacam-se: dar uma consciência à classe que se reúne, fazer surgir o espírito de união, condição indispensável à defesa dos direitos entre os mais fracos. Na legislação vigente, a fórmula reconhecida no meio operário para essa união é o sindicato”. 192 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal E perguntava: “É cristã a liberdade de morrer de fome?” O papel da Igreja neste campo fora assim conceitualizado por D. Eugênio em sua Palestra Dominical de 7 de maio de 1960: “Realmente, não pode a Igreja resolver problemas de ordem econômica e material, pois competem ao Governo. Mas pode fazer e faz realmente ensinar o caminho e organizar seus filhos para que, dentro da Verdade e da Caridade, possam cumprir deveres e fazer valer direitos. Esse o sentido do movimento associativista estimulado pelo Serviço de Assistência Rural”. E, a 31 de dezembro de 1961 (Palestra Dominical), dizia: “Não se esqueça (ouvinte) que esses fatos sociais que estamos presenciando são irreversíveis. Por exemplo, ninguém deterá a marcha da sindicalização rural”. E aos que se escandalizavam com suas palavras e com o trabalho do SAR, observava: “A sindicalização é um dos postulados da Doutrina Social da Igreja. Os documentos pontifícios são peremptórios nas afirmações de que a caridade não substitui a justiça nas relações entre patrões e operários. Assim é um escárneo a Cristo o cristão que combate a sindicalização bem orientada, ou oprime o pobre” (Alocução, ?-l-1963). “Como diz o próprio nome” — comentava D. Eugênio, referindo-se à I Convenção Nacional dos Sindicatos Rurais, realizada em Natal em 1963 — “não se trata de um conclave promovido pela Igreja, mas pelos Sindicatos, que, por lei, no Brasil, são neutros em matéria religiosa e deveriam ser em política. Esta cidade foi escolhida possivelmente por ter aqui começado o movimento, hoje vitorioso, da sindicalização rural no Brasil” (Palestra Dominical, ?-?-63). ALCEU RAVANELLO FERRARO 193 Efetivamente, em 1961, um ano após o início da sindicalização rural no Rio Grande do Norte, surgiram movimentos semelhantes em Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Sul, Piauí e Paraíba. Em fins de 1963 a sindicalização já havia atingido todos os estados da Federação, devendo-se isto, na maioria dos casos, à inspiração da Igreja e à atuação de militantes leigos católicos. Em 1962, com o fim de incentivar e coordenar o trabalho em todo o Nordeste, foi fundada a Coordenadoria Nordeste de Sindicalização Rural, com sede em Natal. Em setembro de 1961, após a inesperada renúncia do Presidente Jânio Quadros e a tumultuada subida do líder trabalhista João Goulart ao poder, o Partido Trabalhista Brasileiro, que sempre controlara o Ministério do Trabalho e a maioria dos Sindicatos Urbanos, procurou assegurar-se o domínio também sobre os Sindicatos Rurais Que iam surgindo, e cujos processos de reconhecimento já estavam dando entrada no Ministério do Trabalho. De setembro de 1961 (os Sindicatos Rurais reconhecidos ainda eram seis) até 31 de dezembro de 1963, o Ministério do Trabalho reconheceu, para todo o Brasil, 256 Sindicatos e 10 Federações de Trabalhadores Rurais e 1 Sindicato de Patrões. Até esta mesma data encontravam-se no Ministério do Trabalho, aguardando investidura, outros 557 Sindicatos e 33 Federações de trabalhadores Rurais, e 34 Sindicatos e 4 Federações de Patrões. Como vemos, tratava-se de verdadeira “fúria” sindical. Encontrando-se diante de um fato consumado — um movimento de sindicalização rural que não partira das hostes do Partido Trabalhista e que “ameaçava” fugir-lhe 194 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ao controle e utilização política o então Governo envidou todos os esforços para atrair para dentro de sua área de influência os sindicatos rurais e assegurar-se o controle dos órgãos sindicais de decisão, quer criando empecilhos burocráticos e retardando assim o reconhecimento de sindicatos em áreas refratárias à sua “influência”, quer fundando “sindicatos-fantasmas” e instalando neles elementos de sua confiança, quer pregando uma frente única sindical, quer mesmo tentando subornar líderes sindicais28. 2) Se a rápida expansão do sindicalismo rural no estado (cerca de 45.000 sindicalizados em março de 1964) provocou forte reação por parte de chefes políticos e cabos eleitoreiros que viam ameaçados seus domínios eleitorais, e de patrões que pela primeira vez começavam a ver-se às voltas com questões trabalhistas, a entrada em campo, no 2º semestre de 1962, do Setor de Politização veio jogar mais lenha na fogueira. Pela sua curta duração (6 meses) e seu caráter intensivo, o trabalho desenvolvido teve a forma de “campanha”, cujo objetivo era politizar” as populações rurais. Ao Setor de Politização coube coordenar neste sentido uma mobilização geral do SAR (em sua cúpula, meios de comunicação e bases no interior), com a participação, inclusive, de Comandos Universitários. Programas radiofônicos, artigos em A Ordem e Vida Rural, Versos de Feira, Boletins de Politização (3, com 30.000 exemplares), Cadernos de Politização (2, com 1.000 exemplares cada), palestras na Capital e no interior, mesas redondas, concentrações, Semana de Politização, Curso de Politização promovido pelo MEB (deste falare- ALCEU RAVANELLO FERRARO 195 mos na II Parte), Curso sobre “Mater et Magistra”, discursos, alocuções e palestras dominicais de D. Eugênio e, como se isto não bastasse, uma Circular dos três Bispos do estado: tudo isto constituiu verdadeiro “assalto” organizado contra os padrões culturais que regulavam o sistema tradicional de relações sociais no meio rural. Quer procurando despertar uma consciência de classe, quer suscitando aspirações de posse da terra, quer ainda, e principalmente, estimulando e criando condições para a organização da classe trabalhadora rural em sindicatos, o Movimento, através de um processo educativo, visava em primeiro lugar atingir as relações de trabalho. O mesmo se diga das relações ou fidelidades políticas (aliás, intimamente ligadas às primeiras), através do combate ao “curral” eleitoral, ao “cabresto”, à venda do voto, e da pregação do voto livre e consciente. O adulto analfabeto era motivado a alfabetizar-se para progredir, para apagar uma “mancha” no mapa do Brasil, para ler e conhecer a legislação trabalhista e fazer valer seus direitos, para votar... Tudo isto foi, para muitos, um verdadeiro “deus-nosacuda”, uma “subversão da ordem estabelecida”, especialmente no que tangia aos sistemas de fidelidades políticas e relações de trabalho. A luta encetada pelo SAR contra a “Indústria das Secas” por ocasião da estiagem de 1958 visou mais a eliminação de um subproduto da estrutura político-administrativa do que propriamente uma mudança de estruturas. Este momento, contudo, foi decisivo na evolução do SAR. Pela primeira vez passou este à ação direta e organizada em defesa do trabalhador rural (do trabalhador rural flagelado, neste caso) contra um grupo de políticos 196 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal e cabos eleitorais, que, partidários do então Governo Federal, faziam do socorro aos flagelados uma “indústria” de enriquecimento rápido. Pela primeira vez, também, surgiu uma reação de vulto contra o Movimento, embora o escândalo nacional da “Indústria das Secas” aconselhasse aos “prejudicados” não manifestarem muito abertamente suas mágoas. O conflito era evidente. O problema da mudança de estruturas estava colocado. O sindicalismo rural e a campanha de politização alargaram o campo da luta e agravaram o conflito, consumando a divisão, ou melhor, a oposição, entre o Movimento e a própria classe (não mais um grupo) detentora do poder político e econômico. Dentro do próprio Movimento surgiram alguns conflitos. D. Eugênio, Presidente do SAR, inspirara, aceitara plenamente e apoiara a luta em prol da mudança de estruturas. Sempre entendera, porém, que esta luta devia ser travada dentro da lei, por via democrática. Por um lado, o obstinado não-cumprimento das leis trabalhistas (salário mínimo, aviso prévio, indenização...) e mesmo o uso da violência (ameaças aos sindicalizados ou expulsão destes da propriedade) por parte da classe patronal; o tradicional comprometimento de juizes, delegados de polícia, tabeliães, com a classe detentora do poder político e econômico; a renitência do Congresso em não aprovar a Reforma Agrária: eis os fatores principais que levaram alguns (poucos) elementos do Setor de Sindicalismo e da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais a usar uma linguagem não muito concorde com os cânones democráticos: “Se não vai com as boas, vai na “marra”! ALCEU RAVANELLO FERRARO 197 Por outro lado, a equipe coordenadora do MEB de Natal não deixou de sofrer certa influência ideológica de elementos (geralmente militantes ou ex-militantes católicos, de posição mais extremada, mas não comunistas) filiados à AP (Ação Popular), ou ao “Grupão” da JUC (Juventude Universitária Católica), ou pertencentes à equipe Nacional do MEB. Lembramos ainda que um ou outro elemento da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais passou a criticar e mesmo acusar de público D. Eugênio e os Padres de se imiscuírem em assuntos da classe. Tratava-se de reação contra uma forma de clericalismo? de um expediente para defender-se contra a pecha de “sindicato dos padres”, que extremistas, tanto da direita como da esquerda, lhes punham de revolta, motivada pelo fato de a cúpula do SAR (especialmente D. Eugênio) e os vigários do interior condicionarem a continuidade do apoio (necessário!) aos sindicatos, à renúncia, por parte de um ou outro líder, ao uso de certa linguagem julgada destoante das normas evangélicas? 5) A menção destes conflitos, porém, não nos deve levar a exagerar-lhes as proporções. O verdadeiro e fundamental conflito continuou sendo o que surgira entre o Movimento (incluídos os sindicatos rurais, estimulados e apoiados pelo SAR) e a classe “político-patronal rural”29. Aliás, este conflito já atingira também a própria indústria e grande comércio da capital, em cujos meios a tentativa de dinamização dos sindicatos urbanos, partida do Setor de Sindicalismo do SAR, suscitara sérias apreensões. Nada de admirar, por conseguinte, que — identificando-se rapidamente com os propósitos anticomunistas e antissubversivos da evolução de 31 de março de 1964, 198 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ou sob pretexto de servir aos ideais — a classe “políticopatronal” rural tomasse novo alento e se mobilizasse no sentido de erradicar toda e qualquer fonte de subversão da ordem estabelecida. Por subversão entendia-se principalmente tudo aquilo que, de alguma maneira, comprometia a sobrevivência dos sistemas tradicionais (estabelecidos de fato, nem sempre de direito) de relações políticas, político-administrativas e, especialmente, de trabalho, no meio rural. O resultado foi uma total paralisação de tudo o que dizia, mais de perto, respeito à “luta pela mudança de estruturas”: os sindicatos rurais, a conscientização, a politização. Tanto os termos “conscientização” e “politização”, como também a “mercadoria” que levava esses rótulos, tiveram que ser retirados da circulação. Por sua vez, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais — os mais visados, sem dúvida — sofreram total paralisação. Questões trabalhistas, pendentes ou surgidas a esta altura, foram resolvidas unilateralmente. Quando, vários meses mais tarde, a Federação pôde novamente reunir seus líderes sindicais para balanço e para, mais que prudentemente, tentar uma lenta recuperação, suas bases acusavam, no conjunto, um desfalque de quase metade de seis associados, e vários sindicatos não mais podiam constar no mapa. O MEB continuou normalmente com o ensino radiofônico, conservando da politização e conscientização apenas os aspectos não diretamente relacionados com a “luta pela mudança de estruturas”, e desta, apenas saudades! ALCEU RAVANELLO FERRARO 199 O mesmo se diga do setor de Ensino médio, da Emissora e d’A Ordem. O próprio SAR instaurou uma política de “salvar o que se pode”. Mesmo a preço de uma pausa na “luta pela mudança de estruturas”, Importava, antes de mais nada, assegurar a sobrevivência do conjunto e de cada uma de suas partes (Setores). As maiores preocupações voltaram-se para os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, reputados por D. Eugênio como uma das principais realizações do Movimento e a de maior repercussão no futuro30, e cuja sobrevivência de fato dependia, mais do que nunca, não só do apoio do SAR, mas de uma cobertura oficial da Igreja. Quer pessoalmente, quer através das gostosas risadas do Vigário Geral da Arquidiocese, Mons. Alair Vilar, D. Eugênio envidou todos os esforços para conseguir a restituição da liberdade a vários líderes sindicais (ao Presidente da Federação, inclusive), evitar novas prisões, impedir a todo custo uma intervenção da Revolução na Federação e obter novamente para os sindicatos a liberdade de reunião, primeiro passo para a recuperação dos mesmos. Voltaremos ainda a este assunto para um estudo mais aprofundado sobre o conteúdo ideológico, os meios empregados e o impacto produzido a) pela “luta pela mudança de estruturas” e b) pela contraluta, antes e após 31 de março. 200 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 4. SÍNTESE Como na I, assim também na II FASE RURAL do Movimento nos deparamos com uma proliferação de iniciativas e atividades em campos os mais diversos. Sem repetir todos os aspectos do trabalho desenvolvido pelo SAR, e descrito neste capítulo, procuraremos salientar, aqui, apenas aqueles que são mais predominantes e característicos desta fase. Enquanto os “movimentos de massa” (não-organizada ou só ocasionalmente organizada), ou foram suspensos (Missão Rural Ambulante), ou evoluíram para “movimentos de líderes” (Semanas Rurais — cfr. Capítulo III. 3), a linha de ação mais característica da I FASE RURAL — a organização e ação comunitária — não só teve continuidade na II FASE, como também lhe serviu de suporte. Sem obliterar, nem menosprezar a ênfase dada a outros Setores, não resta dúvida que a II FASE RURAL é fortemente marcada, caracterizada e contradistinta da 1a, pela preponderância do que chamamos de “luta pela mudança de estruturas”. Quanto a este aspecto, temos duas considerações a fazer. Em primeiro lugar, observe-se que o Movimento praticamente circunscreveu o conceito de “mudança de estruturas” à transformação dos sistemas tradicionais que, de direito ou de fato, regulavam as relações políticas, político-administrativas e de trabalho (inclusive a relação “homem-terra”). Trata-se, por conseguinte, de vir conceito de estrutura social, circunscrito a determinados setores desta. Acontece, porém, que o SAR, quando, na I FASE RURAL, se propunha criar um novo tipo de líder ALCEU RAVANELLO FERRARO 201 (democrático), suscitar novas formas associativas (grupos voluntários) e cooperativas (ação comunitária), ou, para usar a própria terminologia do SAR, quando este pretendia “transformar aglomerados humanos em verdadeiras comunidades”31, de fato visava suscitar, dentro do âmbito de uma vizinhança, de um aglomerado (a fazenda, o sítio, o povoado, a sede municipal), novo sistema de relações sociais, isto é, relações comunitárias. Em segundo lugar, em sua “luta pela mudança de estruturas” o SAR não só visava a transformação efetiva de estruturas ou sistemas de relações sociais (preferimos falar em relações sociais), como também — através da ação educativa, especialmente da politização e conscientização — intencionava transformar as próprias concepções a respeito destas mesmas relações. Neste sentido — uns, visando mais diretamente as relações, e outros, as concepções — praticamente todos os setores do SAR, inclusive a Emissora e A Ordem, estiveram mais ou menos intensamente engajadas nesta “luta”. 3) A ampliação de objetivos da 1a para a II FASE RURAL teve uma série de implicações. O próprio objetivo característico da I FASE — o desenvolvimento (“soerguimento”) das comunidades rurais — está a indicar que se tratava de promover a união e cooperação entre os comunitários ou moradores de uma mesma localidade. Já os objetivos típicos da II FASE - pelas próprias distinções e contraposições e fazem entre trabalhador e patrão, eleitor e político, eleitor e cabo eleitoral, povo e “autoridades” locais (juiz, delegado de polícia, tabelião prefeito patrão)... – aparecem como mais propensos a criar divisões e a suscitar conflitos. 202 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Por outro lado, o raio de ação definido pelo “binômio escola-paróquia” (de fato, “binômio escola-comunidade”, entendida esta como a fazenda, o sítio, o povoado, a sede municipal uma vizinhança, enfim) já não comportava uma ação que visasse atingir os objetivos da II FASE. Daí um alargamento do raio de ação para o âmbito de classes sociais, para o plano municipal, intermunicipal, estadual e mesmo regional e nacional. A própria estratégia do SAR foi redefinida em função dos novos objetivos. Embora o trabalho típico da 1a FASE tenha tido continuidade na 2a, no que esta apresenta de mais característico – a “luta pela mudança de estruturas” – já não encontramos o simples tripé: líder (de comunidade)-grupo (associação voluntária do pequeno porte) – comunidade (vizinhança, localidade). Temos um novo tripé, semelhante, sim, ao da 1a FASE, mas montado sobre bases mais amplas: líder “especializado” (cooperativista, sindical...) – grupo tipicamente secundário (associação voluntárias de grande porto, que extrapolam os limites da simples vizinhança: cooperativas e sindicatos) – classes social (trabalhador rural, pequeno proprietário) ou categorias sócias (agricultor, eleitor, etc.). 4) Deixando para a II Parte uma avaliação do volume de treinamentos realizados e de pessoal treinado, destacamos aqui apenas alguns aspectos conexos com a caracterização das duas FASES RURAIS. Os treinamentos característicos da I FASE RURAL a) tiveram geralmente, longa duração (1 ou mais meses), b) visaram formar líderes de comunidade, c) atingiram quase que exclusivamente elementos do sexo feminino, d) na maioria, jovens. Estes treinamentos foram promovidos ALCEU RAVANELLO FERRARO 203 pelo C.T.L. (Centro de Treinamento de Líderes) um dos setores do SAR. Tiveram início em 1952 e perduraram até 1964, reaparecendo em 1966 (julho), mas já com características um tanto diversas: trata-se de um treinamento que acaba de ser realizado em Pium, com o objetivo de transformar líderes de núcleos artesanais em líderes de comunidade. Mais uma prova de que a 2a FASE RURAL se caracteriza por uma ampliação e não por uma substituição de objetivos. Os treinamentos característicos da 2a FASE RURAL a) tiveram geralmente curta duração (menos de 15 dias), b) visaram formar líderes “especializados” (monitores de escolas radiofônicas monitores de saúde, artesães, e — os mais característicos desta FASE – elementos do sexo masculinos, líderes cooperativistas e sindicais), c) atingiram elevado número de elementos do sexo masculino, d) sendo significativa a participação de adultos. Iniciados em 1956, os primeiros — ainda raros — treinamentos especializados foram coordenados pelo C.T.L. Aos poucos, porém cada setor do SAR passou a assumir seus próprios treinamentos o que se explica tanto pelo caráter especializado, quanto pelo elevado número destes. Basta lembrar que, entre 1960 e 1964, o número de participantes em treinamentos se elevou a mais de 3 mil. 5) A esta altura poderíamos perguntar-nos: O que foi que tornou possível esta expansão do Movimento, da 1a para a 2a FASE RURAL? Sem dúvida alguma, um melhor conhecimento dos problemas do meio rural, notadamente de suas causas, e a tão simples, quanto dinâmica “filosofia da bicicleta”, segundo a qual só se mantém o equilíbrio, andando (32)... Mas não só isto! 204 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Já dissemos e voltamos a insistir neste particular: a II FASE RURAL foi montada, em grande parte, sobre as bases lançadas no interior durante a I FASE. Estas bases, mantidas e reforçadas durante a II FASE, foram mobilizadas no sentido dos objetivos desta servindo-lhe de suporte. Além disto, novos suportes somaram-se aos da I FASE. Mencionemos os principais: — a Emissora de Educação Rural (o mais decisivo, certamente, da 2a FASE), inaugurada no momento preciso (agosto de 1958) em que, após o embate do SAR contra os “industriais da seca”, tomava vulto a “luta pela mudança de estruturas”; — A Ordem, que recomeçou a circular, como semanário, a partir de outubro de 1960; — a CNEG (Campanha Nacional de Educandários Gratuitos), cuja Secção Estadual, de fato integrada no SAR, possibilitou a expansão do ensino médio; — novos recursos financeiros propiciados pelos Poderes Públicos, notadamente através do Convênio entre a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a Presidência da República, o qual — celebrado em 1961 e renovado nos anos seguintes (com relutância e cortes, após 31 de março de 1964) — possibilitou não só a difusão do ensino radiofônico (da educação de base) em outros estados da União, como também sua expansão a outras áreas da Arquidiocese de Natal; — a significativa ajuda exterior, financeira e técnica. Este último aspecto merece alguns esclarecimentos. Nos anos 60 — especialmente a partir de 1962, quando foi criado o Secretariado Nordeste da Conferência Nacio- ALCEU RAVANELLO FERRARO 205 nal dos Bispos do Brasil — Natal, sede do Secretariado Regional, transformou-se numa espécie de Meca. Entre 1962 e 1964, só os treinamentos, encontros e estágios, realizados com vistas à renovação pastoral na Região, carrearam para Natal aproximadamente mil pessoas, talvez mais. Este fato, mais a própria expansão das atividades temporais no meio rural da Arquidiocese e, inclusive, a projeção internacional do Nordeste como “grande Região subdesenvolvida e explosiva”, contribuíram para que o Movimento de Natal se tornasse conhecido no exterior. Desta projeção resultou uma tríplice presença estrangeira no Movimento: a) a vinda de numerosos observadores e estudiosos, interessados em conhecer (novas) experiências de ação pastoral e temporal; b) a presença atuante de vários técnicos estrangeiros, na maioria provenientes dos Estados Unidos e do Canadá, devendo-se, porém, salientar a grande contribuição dada, especialmente na reestruturação do SAR, pelo técnico do Governo Holandês, o sociólogo Henk van Roosmâlen, que, sob o nome mais familiar de “Eurico”, esteve por mais de dois anos à disposição do Movimento; c) a significativa ajuda financeira, vinda principalmente de duas organizações católicas alemãs (da “ADVENIAT”, para o setor religioso, e da “MISEREOR”, para o setor temporal), como também, embora em menor proporção, de outros países, como a Bélgica, a Holanda, os Estados Unidos... A ajuda financeira exterior, exatamente por propiciar novos recursos ao Movimento, permitiu-lhe também determinar com maior autonomia sua própria linha de ação. 206 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Estas ajudas financeiras destinaram-se à contratação de novos funcionários para o SAR, à realização de cursos, à manutenção e, em alguns casos, à aquisição de transportes, ao equipamento da emissora e à construção de um prédio para treinamentos (Prédio III, em Ponta Negra). Isto, porém, não nos deve fazer esquecer que todo o trabalho desenvolvido no interior estribou-se na participação voluntária de líderes, grupos e, de modo geral, das comunidades interessadas. 6) Referindo-nos à I FASE RURAL, dizíamos, na conclusão do Capítulo anterior, que o SAR visou promover, através da educação de base, o desenvolvimento das comunidades rurais. Da mesma forma os objetivos da II FASE - lembramos particularmente o cooperativismo, a colonização de Punaú e o sindicalismo rural — estiveram longe de se circunscrever a educação. Contudo mesmo nestes casos, o meio empregado continuou sendo fundamentalmente o mesmo: a educação de base. Esta, porém, não deve ser entendida como simples processo de transmissão de padrões mentais e de comportamento consagrados pela cultura local; na mente dos líderes do Movimento o processo educativo consistia na criação de novos padrões mentais ou concepções (conscientização e politização) e de novos padrões de comportamento. Poderíamos dizer que a educação foi encarada como primeiro objetivo e como meio para atingir ulteriores objetivos. Teríamos, assim três etapas lógicas, não necessariamente cronológicas, cada uma servindo de meio para a seguinte: — a EDUCAÇÃO, compreendendo a mudança de concepções e de comportamento; ALCEU RAVANELLO FERRARO 207 — a ORGANIZAÇÃO dos interessados (diversas formas associativas e cooperativas), servindo de suporte para a ação e para a própria educação; — a AÇÃO grupal, comunitária, de classe... Quanto mais se distancia da EDUCAÇÃO, por um lado e, por outro, quanto mais se aproxima da AÇÃO sobre o sistema de relações político-econômicas — o campo mais propício ao surgimento de conflitos — tanto menos direta se torna a presença do SAR. Assim, por exemplo este educou para o sindicalismo, criou condições para a organização da classe trabalhadora rural, treinou pessoal, mas os sindicatos rurais são autônomos com relação ao movimento. Os próprios treinamentos e o assessoramento aos sindicatos rurais estão, a partir de novembro de 1964, a cargo da FUP (Fundação da Universidade Popular), que é constituída por representantes do SAR da Escola de Serviço Social e das Federações de Sindicatos rurais e urbanos. Esta nossa conclusão parece coincidir com as já citadas palavras de D. Eugênio (cfr. § 3, neste Capítulo), segundo as quais, não compete à Igreja resolver problemas de ordem econômica, cabendo-lhe, porém o direito de “ensinar o caminho e organizar seus filhos”, para que o possam fazer. 5. ESTRUTURA DO MOVIMENTO O Movimento de Natal é um misto de “movimento social” e de “movimento religioso”. Tomado nesta dupla dimensão, só impropriamente se poderia falar em estrutura do Movimento. Este não é uma organização, embora 208 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tenha inspirado e compreenda organizações em ambos os campos — temporal e religioso — de ação da Igreja. O Secretariado Arquidiocesano de Pastoral é o órgão de planejamento e coordenação da Pastoral de Conjunto na Arquidiocese. Deste, na medida em que tiver relação com o presente estudo, falaremos na III Parte. Inicialmente o SAAS (Secretariado Arquidiocesano de Ação Social) era o órgão de cúpula para tudo o que dizia respeito à ação temporal, tendo-se, porém, praticamente limitado à Capital, em sua atuação. Após a criação do SAR, continuou, em princípio, o SAAS como órgão de cúpula, agindo diretamente na capital e, através do SAR, no meio rural. De fato, talvez por se tratar mais de obras sociais, só muito precariamente agiu o SAAS como órgão coordenador das atividades na capital, e, quanto ao meio rural, nunca interferiu — nem tinha condições para isto (33) — nas atividades do SAR. Este nunca esteve subordinado a aquele. Na realidade, de seu bureau, instalado no SAR, D. Eugênio, com sua equipe de leigos, coordenava diretamente as atividades na Capital e no interior. Em 1966 foi criado novo órgão especializado para a capital. Temos, assim, para o meio rural, o SAR (Serviço de Ação Rural (34), como se pretende denominá-lo hoje) e, para a Capital, o SAUR (Serviço de Ação Urbana). Representantes de ambos integram o SAAS. Na prática, funcionam o SAR e o SAUR. No organograma, figura também o SAAS. No que concerne ao SAR, havia, até 1963, tantas coordenadorias quantos Setores, todas elas subordinadas a uma coordenadoria central. Em 1964, continuando cada um com sua coordenadoria específica, os Setores foram assim agrupados: ALCEU RAVANELLO FERRARO 209 SETORES DE CONSCIENTIZAÇÃO E EDUCAÇÃO — Escolas Radiofônicas (MEB) — Migração — Centros Sociais (incluídos os Clubes) — Treinamento de Líderes — Ensino Médio SETORES DE AÇÃO IMEDIATA — Cooperativismo — Sindicalismo Rural — Colonização — Artesanato — Saúde Esta reestruturação parece não ter mudado muito as coisas. Os Centros Sociais e Clubes protestaram, dizendo visarem também a ação. Por outro lado, os treinamentos continuaram a cargo de cada Setor. Assim os Setores de Ação Imediata, como os de Sindicalismo Rural, Cooperativismo e Artesanato, fazem também conscientização e educação. O setor de Saúde, se se pensa nas maternidades, cabe no segundo grupo; ao contrário, se se pensa no treinamento e ação dos monitores de saúde, deveria figurar no primeiro grupo. Enfim, todos os Setores, mesmo os assim chamados “de Ação Imediata”, se ocupam também da conscientização e educação; apenas, não se limitam a isto. Esta imprecisão e flexibilidade entendem-se pelo seguinte: trata-se de um Movimento, mais do que de uma organização. À medida que vão surgindo novos tipos de atividades, são colocados novos bureaux, novas cadei- 210 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ras..., e os novos Setores estão encaixados no SAR. Onde e como, fica para ser resolvido nas horas vagas... Assim, onde se enquadrará a nova experiência de Coordenação de Base, recentemente iniciada em alguns municípios? Não é coordenação central, nem se circunscreve a nenhum dos dois grupos de Setores, de vez que os abrange todos. 6. PERSPECTIVAS ATUAIS O ano de 1964 constituiu um momento crítico para o Movimento. Por um lado, o impacto da Revolução sobre o que denominamos “luta pela mudança de estruturas” levantou sérias interrogações quanto ao futuro ou pelo menos quanto à futura orientação do movimento. Por outro lado, não faltou quem (geralmente pessoas alheias ao Movimento) entrevisse na transferência de D. Eugênio para a Bahia “o começo do fim” do Movimento. Na opinião destes o Movimento era o próprio D. Eugênio. Embora admitamos tratar-se de ótima ocasião para averiguar até que ponto se identificavam o Movimento e seu principal líder, parece-nos prematura uma tal previsão, especialmente se se tem em conta que o SAR, após a fase crítica de 1964, viu abrirem-se novas perspectivas para seu trabalho no meio rural. Assim, em 1965, em consequência de um Convênio com o Ministério da Educação e Cultura e a Secretaria de Estado da Educação e Cultura, o SAR instalou o SERTE ALCEU RAVANELLO FERRARO 211 (Setor de Rádio-TV Educação), cujo objetivo principal é oferecer a adolescentes e adultos a oportunidade de fazer ou concluir, pelo rádio, o curso ginasial. As aulas são gravadas em Natal e transmitidas pelas Emissoras de Educação Rural de Natal e de Mossoró, aguardando-se que, em fins de 1966, o sejam também pela Emissora de Caicó. No Rio Grande do Norte, o SERTE funciona dentro do sistema de recepção organizada (grupos), embora conte também com certo número de alunos isolados. Um Convênio recentemente firmado entre o INDA (Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário) e o SAR prevê a participação deste em programas de treinamento de líderes rurais de todo o estado, visando capacitá-los a participar ativamente nos projetos do INDA de desenvolvimento agrário no Rio Grande do Norte. Há também perspectivas de vir a ser firmado com o MEC (Ministério da Educação e Cultura) um Convênio, pelo qual o SAR, através de treinamentos adequados, capacitaria as professoras do meio rural a assumirem a liderança do “movimento social” nas respectivas comunidades. O mais importante de todos e o mais arrojado (para vários bilhões de cruzeiros) é, sem dúvida, o Projeto recentemente encaminhado à MISEREOR. Para a montagem do Projeto, SAR e SAUR contaram com o assessoramento de dois técnicos do CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais), incumbidos, para isto, pela própria MISEREOR. Foram três semanas de intenso trabalho. A presença atuante dos dois técnicos, um economista e um sociólogo, que “ameaçavam” bilhões, constituiu ótima motivação para uma revisão de objetivos e 212 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal métodos. Pelo que pudemos observar, este trabalho de revisão e planejamento, independentemente da (provável) a provação do Projeto por parte da MISEREOR, já deu alguns frutos. A Arquidiocese promoveu imediatamente um levantamento de todo o seu patrimônio, com o intuito de uma melhor utilização econômica do mesmo. No que diz respeito ao SAR, o Projeto prevê grande impulso ao cooperativismo, especialmente ao de produção, que é quase desconhecido no Nordeste. Com este ‘objetivo o SAR acaba de instalar uma Cooperativa Central. Se for aprovado o Projeto no que concerne ao cooperativismo (este absorverá mais de metade do financiamento previsto para o Projeto global), teremos provavelmente uma III FASE RURAL, marcadamente econômica. Mas ninguém se iluda: se o cooperativismo de crédito e produção atingir o trabalhador rural, estará novamente aberta a “luta pela mudança de estruturas”. O patrão, que retira do Banco empréstimos a juros de 8% ao ano e financia o trabalhador a juros de 4-6 e mesmo 8% ao mês, estará ameaçado numa de suas principais e mais seguras fontes de renda. O mesmo se diga do cooperativismo de produção: o patrão, habituado à diferença entre o preço de compra (na folha, não raro) e de venda do produto de seu trabalhador, ver-se-á cerceado noutra fonte segura de renda. Outro aspecto interessante foi a preocupação dos dois técnicos acima mencionados: “Não estaríamos nós preparando — perguntaram-nos — e não viria a aprovação do Projeto dar o golpe de misericórdia no “espírito” do Movimento”? ALCEU RAVANELLO FERRARO 213 De fato, é palpável o processo de burocratização por que está passando o Movimento, especialmente o SAR. Por um lado, uma maior racionalização do trabalho seria mais condizente com o processo de desenvolvimento. Por outro, surge a pergunta: a perda de sua motivação específica — preponderantemente não-econômica ou pelo menos não imediatamente econômica — não poderia marcar o início de uma estagnação do Movimento? É difícil prever agora as consequências de uma provável aprovação do Projeto-MISEREOR. Os técnicos quereriam maior racionalização no trabalho, conservando o Movimento o seu “espírito” O Movimento, por sua vez, também tem consciência do problema. E o pesquisador está curioso para ver o que acontecerá com uma provável injeção de bilhões num Movimento que optou pelos “meios pobres” e que sempre lutou com serias dificuldades financeiras, iniciando atividades HOJE, na esperança de AMANHÃ aparecerem os meios! CONCLUINDO esta visão histórica, não podemos deixar de lembrar experiências e atividades hoje de âmbito nacional, mas que tiveram início na Arquidiocese de Natal e devem sua origem ao Movimento Assim, de Natal irradiaram-se para o país todo as Escolas Radiofônicas os Sindicatos Rurais, a Campanha da Fraternidade, os Planos de Pastoral de Conjunto, e na experiência-piloto do Secretariado dos Bispos do Nordeste inspirou-se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para a formação de idênticos Secretariados Regionais no resto do país. 214 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal NOTAS AO CAPÍTULO IV 1. Cfr. D. Eugênio Sales, Educação de base (Trabalho apresentação do I Encontro de Emissoras Católicas, Rio de Janeiro, 25 a 29 de setembro de 1959) e a alucução no ato da inauguração da Emissora, no dia 10 de agosto de 1958 (Documentação de D. Eugênio). 2. Nesta mesma viagem D. Eugênio teve oportunidade de observar a) a cotonicultura e algarobicultura no peru (Departamento de Pirura), b) a experiência de organização de comunidade em Porto Rico e c) o trabalho desenvolvido nos Estados Unidos pela American Catholic rural Life, Além disso, participou, em Porto Rico, do congresso Internacional de Serviço Social e presidiu no Panamá, a 5a Mesa de trabalho do seminário Inter-Americano de desenvolvimento e Crédito Rural (cfr., na documentação de D. Eugênio, o relatório de viagem apresentando ao ETA). 3. Decretos nº. 50.370, de 21-03-1961, e nº 52.267, de 17-07-1963. O MEB é órgão da CNBB e não do governo, este apenas assegura ao movimento de Educação de base recursos financeiros. As dioceses interessadas colocam á disposição suas Emissoras, e o MEB se responsabiliza pelo treinamento e mobilização de monitores voluntários no interior. 4. Entende-se por conscientização processo pelo qual indivíduos ou grupos são levados a tomar ou tomam consciência de seus problemas, necessidade, direitos e obrigações, e se gera nos mesmos uma insatisfação pelas condições de vida presentes e uma atitude favorável à mudanças no que concerne a estas mesmas condições. Este processo pode englobar, de si, todos os aspectos da vida de uma pessoa, grupo ou comunidade. Já o termo politização tem geralmente um sentido mais restrito abrangendo apenas o aspecto político da conscientização. Não raro, porém, emprega-se o termo politização no mesmo sentido amplo de conscientização. Trata-se, em ambos os casos, de neologismos. 5. Veja, por exemplo, a cartilha do MEB de Natal – Educar para construir, gráfica do SAR, Natal, 1964, 68 p. por medidas de prudência, esta cartilha não foi distribuída. Pouco antes da Revolução havia sido apreendida no Rio uma cartilha do MEB nacional, que tivera e aprovação da comissão Episcopal que representavam a CNBB junto ao MEB. Quando não diretamente envolvidos em IPM´s (Inqueritos Policiais-Militares), autor e seguidores do método de alfabetização “ Paulo Freire” (Inclusive elementos da equipe nacional, e de equipes do MEB em vários Estados) eram tidos entre os da “ linha dura” do novo governo, como suspeitos de subversão. 6. SAR, revisão de 1962 e planejamento de 1963, gráfica do SAR, 1963, p. 7. Na II Parte deste trabalho teremos ocasião de avaliar o impacto produzido pela companhia (curso) de politização realizada pelo MEB em 1962. 7. “Pau-de-arara” designa o sistema, até pouco tempo generalizador, de transporte de migrantes nordestinos que demandavam o sul ou Centro-Oeste: indivíduos ou famílias inteiras viajando agarrados, como araras, encima de caminhões de carga. Na maioria dos casos o migrante geralmente flagelado, não podia pagar o transporte. Alguns fazendeiros interessados em mão de obra barata, como era nordestina, passaram a pagar o motorista pelo novo braço para a fazenda. Como o sistema desse “bons” resultados para ambos – motorista e fazendeiros- desenvolveu-se uma verdadeira exploração comercial da migração. Sem mencionar as péssimas condições de viagem, o migrante tornava-se praticamente um escravo, sem nunca saber quando integraria o ALCEU RAVANELLO FERRARO 215 preço de seu resgate. Este fenômeno, graças, em grande parte, à publicidade dada pela imprensa, tornou-se um escândalo nacional. “pau-de-arara”, designa também o próprio migrante que se serve deste sistema de transporte. 8. “carta pastoral dos bispos do Rio Grande do Norte sobre o problema Rural”, A Ordem, 02-06-1951. 9. Municípios de São Paulo do Potengi, Nova Cruz, Santa Cruz, São Tomé (todos na Arquidiocese de Natal, e trabalhos pelo SAR) e Currais Novos (na Diocese de Caicó). 10. A ANCAR colaborou em muitos treinamentos do SAR e, por outro lado, serve-se, ainda hoje, dos centros deste para seus próprios treinamentos e encontros. O planejamento anual de cada órgão passou a ser feito com conhecimento do programa do outro. A ANCAR reconhece ter encontrado nas comunidades trabalhadas pelo SAR um campo mais propicio para o seu trabalho: nos centros sociais, grupos e líderes rurais e nos vigários encontrou suportes institucionais e colaboradores para o desenvolvimento de seus programas, cooperação, por sua vez, nas atividades promovidas por estes. Em algumas comunidades a comunidades a cooperação entre SAR e ANCAR foi tão estreita, que não é possível distinguir o que se deve a aquele e o que a esta. 11. Relatório do setor de artesanato, 1964 (Arquivos do SAR-coordenação). 12. Veja a integra do discurso do presidente Juscelino Kubitschek no II encontro dos bispos do Nordeste (Natal, 24 a 26 de maio de 1959), serviço de documentação da presidência da república, p. 9-16. 13. O Dr. Eloy de Souza foi, sem dúvida, um dos que mais se tem batido pelo aproveitamento agrícola dos vales úmidos. (Veja, por exemplo, os seguintes artigos da série “ pela vida do Nordeste”, publicados em O Diário de Natal: TV – “localização dos retirantes” (22-4-1932), VIII – “Devemos Colonizar os Vales” (11-5-1932), IX — “Saneamento dos vales” 14-5-1932) e XI — Profilaxia Necessária” (22-5-1932). Neste último artigo o autor comenta: “A COLONIZAÇÃO dos vales úmidos, objeto de cogitação minha desde 1906, como já tive oportunidade de demonstrar, e defendida em artigos publicados n’A Tarde em fins do ano passado, me foi sugerida um tanto pela observação do fato econômico e também pela leitura dos relatórios de vários Presidentes que administraram a Província em épocas calamitosas”. Em 1933, embora velho defensor dos vales úmidos, o Dr. Eloy de Souza, deportado de seu Estado, em entrevista concedida no Recife insurgiu-se contra a “Lei do Cerco do Gado”, de autoria do seu próprio deportador, o Interventor Federal Bertino Dutra: “O Interventor — diz o entrevistado — entendera que não estaria à altura de sua missão se não fizesse sentir também sua autoridade sobre os quadrúpedes. Dai a “Lei do Cêrco do Gado... Para mostrar a infantilidade do comandante Bertino Dutra basta dizer que ele pensou resolver com um simples traço de sua pena ditatorial uma questão secular, cuja história pregressa passo a resumir. Há precisamente cem anos, em 1833, o presidente da província Basílio Quaresma Torreão fazia votar uma lei proibindo a criação de gados soltos em áreas delimitadas dos municípios litorâneos. A desobediência passiva revogoua; e dela já ninguém se recordava mais quando em 1894 reapareceu um projeto apresentado ao Congresso do Estado... Transcorridos trinta e cinco anos o Presidente Lamartine obteve da Assembleia uma lei dividindo o Estado em zonas distintas de criação e lavoura mais ou menos obedecendo aos limites da Lei Quaresma Torreão e do Projeto precitado. Foi mais uma tentativa frus- 216 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal trada; e de sua inexequibilidade o primeiro a se convencer foi o Presidente que a pleiteou, resolvendo não regulamentá-la para tranquilidade das populações sobressaltadas...” Não passados três anos, veio, em 1933, a “Lei do Cerco do Gado”, contra a qual se insurgiu o Dr. Eloi de Souza, invocando os argumentos seguintes: o prazo de apenas sessenta dias para cercar todo gado grosso e miúdo no estado, a escassez de arame, o gravamento do imposto sobre o arame farpado, a tributação sobre os animais de serviço nas fazendas, a época de seca, os litígios possessórios que decorreriam da aplicação da Lei, as limitadas áreas agricultáveis no Estado, a falta de água para o gado em muitas pequenas fazendas de criação... (Cfr. A Província, Recife 19-5-1933). Não cabe aqui discutir a conveniência do cerco do gado em todo o Estado, nem a exequibilidade da última Lei dentro do prazo previsto pela mesma (sessenta dias!). Lembre-se, contudo, que ainda hoje, mesmo em extensas áreas agricultáveis, cria-se solto o gado e cerca-se a lavoura, o que não deixa de gravar pesadamente a agricultura norte-rio-grandense. E toda esta luta mais que secular no plano legislativo pelo cerco do gado — e é isto o que mais nos interessa aqui — visava de modo especial (a Lei Quaresma Torreão visava exclusivamente) criar condições para o aproveitamento agrícola dos valos úmidos no litoral norte-rio-grandense. Evidentemente a voracidade dos quadrupedes soltos estavam longe de ser a única responsável pelo não aproveitamento agrícola de tais vales. Outras medidas se faziam necessárias, entre as quais a eliminação do impaludismo e outras de que falamos a seguir. 14. Vejamos alguns exemplos mais recentes. Em abril de 1942 a seca e a fome imperava no sertão. Imediatamente o DONOD (departamento Nacional de Obras e saneamento) encaminhou ao ministério de viação e obras públicas um projeto de saneamento dos vales úmidos, com o fim de “atenuar as consequencias das secas”, e o engenheiro Hildebrando de Góis salientava ser tal obra de saneamento “velha aspiração dos nordestinos” (A Ordem, 7-4-1942). No ano seguinte o Brasil entrava em guerra. A “Batalha de Produção” provocou uma “reunião de estudo dos Vales úmidos do Nordeste”, realizada em Natal, de 6 a 9 de abril de 1943 (A Ordem 6-4-1943), passadas a seca e a guerra, arquivaram-se os projetos... para serem novamente desarquivados em 1951, ante a perspectiva de nova seca. Assim A ORDEM de 2 de março de 1951, sob o título: “problemas dos vales úmidos – cresce a importância ante a perspectivas da seca – fonte de abastecimento”, comentava telegrama do então governador do Estado ao DNOS, convidando aquele órgão para uma discussão conjunta dos problemas do saneamento dos vales úmidos (A Ordem, 2-3-1951). 15. “Não adiantaria intervir grandes capitais na recuperação de um vale – comenta o agrônomo Roberto Bezerra Freire – para depois entrega-lo ao abandono. É indispensável que haja, em seguir, o aproveitamento agrícola das terras conquistadas as águas e a conservação contínua dos rios e canais”. O citado agrônomo sugere ainda a desapropriação dos vales inaproveitados, o saneamento por parte do DNOS, o loteamento e a localização de colonos (Cfr. “Na ordem do dia os vales úmidos”, A Ordem, 13-3-1951). 16. O Diário, Belo Horizonte, 13-4-1960. 17. “Antes do advento do INIC, teve o Dr. Coelho Malta notícia de uma bomba de sucção, que fora julgada imprestável em Alagoas. Adquiriu-a por seis mil cruzeiros e reformou-a. comentou o fato com D. Eugênio, que imediatamente procurou ajudá-lo. Foram então iniciados os trabalhos em vales secos. Hoje, ALCEU RAVANELLO FERRARO 217 terras outrora entregues ao maior abandono, estão ultrapassando todas previsões de produção” (Cfr. “Ação do Clero na Recuperação do Nordeste” o diário de Belo Horizonte, 13-4-1960). No Encontro dos Bispos do Nordeste em Campina Grande (maio de 1956), depois de bater-se pelo aproveitamento dos vales úmidos, D. Eugenio acrescentava: “No vale do Açu, temos doze mil hectares de aluvião com água e cinco metros de profundidade. Fosse essa terra irrigada com motobombas e, chovendo ou não no estado, o Rio Grande do Norte teria sempre feijão, arroz, milho e outros cereais durante o ano inteiro. Até então não podíamos pensar nisso senão como um sonho. Agora, porém, temos fundadas esperanças que deste encontro resultarão muitos e bons frutos para o Nordeste”. (O Globo, Rio, 25-05-1956). Como, porém, os vales secos irrigáveis através de motobombas, estão fora da Diocese de Natal, D. Eugênio preocupou-se mais com os vales úmidos, Aliás, os vales secos encontraram na pessoa do então Bispo de Mossoró, D. Eliseu Mendes, um devotado apóstolo. 18. Vales úmidos – Projeto 51 do II Encontro dos Bispos do Nordeste – trabalho de operação do ETA, Ministério da Agricultura e governo do Estado, trata-se de um projeto de saneamento e colonização do vale Fonseca, ou, maisprecisamente, da fazenda Punaú. 19. A Ordem, 4-6-1966. 20. Veja o art. 7, § 3, da primeira constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891. 21. Veja decreto no. 979, de6-1-1903. 22. Em 1960, quando teve início a sindicalização rural no estado do Rio Grande do Norte, havia para cada sindicato rural reconhecido. (6, ao todo no país) dois Decreto, Decretos leis ou portarias (12 ao todo) dispondo sobre a matéria! São os seguintes: 1) Decreto n°. 979, de 0-1-1903; 2) Decreto n°. 1.637, de 5-1-1907; 3) Decreto n°. 6.532, de 20-6-1907 ; 4) Decretonº 19.770, de 19-3-1931; 5) Decreto n°. 23.611, de 20-12-1933; 6) decreto nº 24.694, de 12-7-1934; 7) decreto nº 7.038, de 10-11-1944; 8) Portaria nº. 14 (Ministério do trabalho), de 19-31945; 9) Portaria nº 126, de 28-6-1958; 10) Decreto lei nº 7.449, de 9-4-1945; 11) Decreto-lei nº 8.127, de 24-10-1945 12) Decreto nº 19.882, de 24-10-1945. Seria longo transcrever aqui as três páginas em que a SUPRA (Superintendência de Política Agrária) enumera, em sua publicação “Sindicatos Rurais — Relação no. 1”, de 31-12-1963, os Decretos, Decretos- Leis e Portarias que, de 1903 àquela data, dispõem sobre Sindicalização Rural (página e meia), e sobre Previdência Social, Caderneta e principais Direitos do trabalhador rural (outra página e meia). 23. Cfr. Sindicalização Rural no Brasil, divulgação da Coordenadoria Nordeste de Sindicalização Rural, Natal, dezembro de 1962, p. 7 e 23, ou a supramencionada publicação da SUPRA, p. 18. O reconhecimento do primeiro sindicato rural no Brasil (o dos Empregados Rurais de Campos, no Estado do Rio de Janeiro) data de 9 de agosto de 1946. 24. Em Pernambuco, ainda em janeiro de 1955, Francisco Julião, Advogado e Deputado Estadual pelo Partido Socialista, conseguira legalizar a Sociedade fundada pelos “Galileus” (moradores do Engenho Galiléia, liderados pelo próprio feitor Zezé da Galiléia), ameaçados de despejo pelo filho do senhor-deengenho. Esta e outras sociedades semelhantes que foram surgindo em Pernambuco e em outros Estados tornaram-se conhecidas pelo nome de “Ligas Camponesas” (Cfr. Manoel Correia de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, p. 218 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 244-245). Em 1959, quando o SAR planejou a sindicalização rural no estado do Rio Grande do Norte, as Ligas constituíam ainda um fato circunscrito a Zona da Mata de Pernambuco (a zona açucareira). Tanto a criação do “mito-Julião” e a ereção das Ligas Camponesas em verdadeiro “espantalho” nacional, como o avolumar-se do assim chamado “perigo vermelho” são fatos intimamente ligados à fase aguda de radicalização politico- ideológica, que foi de 1960, especialmente de 1962, a 31 de março de 1964. Diríamos que foi mais o mêdo “capitalista” (a revolta contra as injustiças sociais) o que motivou o sindicalismo rural no Estado do Rio Grande do Norte. Foi, aliás, o que nos confessou D. Eugênio em entrevista: “Animavam-nos duas coisas: a preocupação pelo homem, pela miséria, pelo sofrimento das Secas e uma revolta contra as injustiças... Isto, quanto ao meio rural. Quanto à capital, um ponto que movimentou bem foi a necessidade de defender a Igreia contra a penetração de certos elementos que procuravam dar outra orientação à classe pobre da cidade. Isto pesou, também, sensivelmente — talvez um fator menos nobre — mas só pesou na fase final, de poucos anos para cá” (a partir de 1963). 25. “Desde o começo — disse-nos D. Eugênio em entrevista — houve preocupação pela mudança de estrutura, embora de maneira um tanto confusa. A reação tornou-se mais forte com a sindicalização rural. Mas eu creio ove a causa mais profunda foi o mêdo do Serviço Rural. Enquanto podia parecer a eles uma iniciativa da Igreja, que podiam apoiar, não houve problema. Mas quando começaram a sentir os efeitos do Serviço pela mudança de mentalidade, então começou a reação. Isto foi agravado pela preocupação de reforma agrária aqui sempre pregada. Eu me lembro que, em 1947, antes, portanto, da fundação do SAR, eu pregava sobre reforma agrária na Igreja do Rosário. No dia seguinte houve pessoas reclamando contra isto, na Cidade. (A reação) não é coisa recente. Tomou vulto quando começaram a temer o Serviço Rural, confirmando, portanto, o seu valor”. 26. “Sendo a finalidade da Semana (I Semana Rural) a recuperação do homem do campo, serão discutidos os seguintes meios como possíveis conclusões: prudente aplicação da legislação social ao trabalhador rural; instalação de Círculos Operários de cunho rural... (Cfr. Ata da Sessão de instalação do SAR, em Livro de Atas do SAR, 23-10-1950). De fato, a criação de Círculos Operários Rurais figurou entre as conclusões da I Semana Rural (Cfr. A Ordem, 29-1-1951). Contudo — ou porque a visada “prudente aplicação da legislação social” era “prudente” demais para despertar interesse por parte do trabalhador rural; ou porque, pela sua própria natureza, os Círculos Operários não constituíam resposta adequada às aspirações da classe operária rural; ou porque esta não tinha ainda aspirações nem condições de se organizar; ou porque o SAR não tinha ainda objetivos bem definidos a este respeito; ou por todas estas razões juntas — os Círculos Operários Rurais não tiveram nenhum sucesso como tentativa de organização da classe operária rural. 27. Maria Julieta Costa Calazans, que, desde 1950, como Supervisora do SESI (Serviço Social da Indústria), trabalhara junto aos operários salineiros de Areia Branca, matriculou-se. Em 1955, como bolsista daquela instituição, na Escola de Serviço Social de Natal. Em 1959, depois de dois anos de atuação junto aos Sindicatos de Trabalhadores da Indústria, apresentou sai “Trabalho de Conclusão de Curso sobre Sindicato, SESI e Serviço Social (Escola de Serviço Social, Natal, 1959). No mesmo ano, de duas conversas entre D. Eugênio e Julieta (as- ALCEU RAVANELLO FERRARO 219 sim é conhecida em Natal), surgiu a ideia de promover a sindicalização rural no Estado do Rio Grande do Norte. Daí a fundação do Setor de Sindicalismo. 28. Embora, exasperado com a violenta reação contra os Sindicatos, houvesse falado em “marra” e “revolução”, o então Presidente da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte — simples trabalhador de enxada e um dos poucos que votara contra a Frente única Sindical — afirmou haver recusado oferta de emprêgo altamente remunerado, que visava reduzi-lo à subserviência, quando não, afastá-lo da Presidência da Federação. De pouco lhe valeram estes antecedentes: esteve preso e respondeu a IPM. Seu pedido de licença do cargo e sua viagem ao exterior foram a fórmula conciliatória encontrada para evitar uma intervenção direta da Revolução na Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, no Estado. 29. No Rio Grande do Norte, como, de modo geral, em todo o Nordeste, praticamente se identificam o patrão (grande proprietário) e o político. De um lado, todo grande proprietário é “político”, no sentido de que ocupa, almejar ocupar ou decide, com “seus” votos, sobre quem irá ocupar cargos públicos eletivos. É também ele quem, no fim das contas, decide sobre quem terá acesso a cargos públicos não eletivos, os quais, pelos critérios de distribuição, não deixam de ser também “políticos”. Por outro lado, praticamente todo “político” (eleito, candidato ou cabo eleitoral) é patrão. Continuando a ser a posse da terra a fonte principal de prestígio, dificilmente alguém que não seja grande proprietário terá acesso à vida política. Daí falarmos em classe político-patronal rural. 30. Solicitado, em entrevista, a indicar qual, dentre as múltiplas iniciativas ou realizações do SAR, reputava mais importante, D. Eugênio declarou: “Há várias que reputo muito importantes. Uma delas é a sindicalização: a que, talvez, virá a ter, no futuro, maior repercussão. Mas a sindicalização está ligada a outras iniciativas, sem as quais teria desaparecido. É a própria iniciativa do SAR como conjunto, como articulação de obras e atividades, sem a qual não poderia ter-se mantido a sindicalização. Depois podemos mencionar também as Escolas Radiofônicas, dada a sua repercussão de caráter. nacional. E não podemos deixar de lado os treinamentos de líderes, que têm sido realmente a base da todo o trabalho do SAR”. 31. Relatório das Atividades do SAR em 1954. 32. Perguntado sobre o que possibilitara a continuidade e a expansão do SAR, D. Eugênio assim se exprimiu: “A grande preocupação do SAR foi de não ficar numa coisa só... Em vez de limitar o trabalho a um setor e aperfeiçoar somente um lado, o SAR achou que sua sobrevivência dependeria de sua própria força expansiva... Comparo com uma bicicleta: parou, você não consegue mais ficar de pé. Um serviço como o SAR, que depende do idealismo das pessoas, tem de estar sempre em movimento. Houve, durante algum tempo, uma pressão muito grande do SAR — não do pessoal mais diretamente ligado ao trabalho, mas de outros — para que não se multiplicassem atividades: achavam que eu era maluco; que era doido. Desde o começo achei que, se eu não multiplicasse o trabalho, não poderia mantê-lo. Há nisto uma certa técnica errada, pois é melhor fazer uma coisa ou outra e ir aperfeiçoando. Mas, dentro das condições do Nordeste e do SAR, só o elã que provoca novas coisas possibilitou a expansão. Isto é muito importante. A própria força expansiva do SAR é que mantinha o SAR, como, quem anda na bicicleta, só se mantém na bicicleta, enquanto está andando. E, para estar andando, qualquer problema que apareça está dentro 220 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal da alçada do SAR: tenta-se, contanto que haja pessoas que, sem ser as mesmas (dos outros setores), possam assumir o novo setor”. 33. O SAR, incluído o pessoal da Emissora, da Gráfica e das Cooperativas Arquidiocesana e de Artesanato, contava, em seus diversos Setores, com quase uma centena de funcionários, enquanto que o SAAS não tinha, na coordenação, mais do que 2 ou 3 elementos. O SAAS nunca dispôs de transporte próprio; precisando, recorria a frota de transportes do SAR. 34. Apesar de certo horror, mais ou menos generalizado, à assistência, parece que nova denominação – Serviço de Ação Rural – não está vingando. No uso corrente, diz-se SAR ou Serviço Rural. ALCEU RAVANELLO FERRARO 221 II PARTE SAR E DESENVOLVIMENTO VERIFICAÇÃO EMPÍRICA CAPÍTULO V METODOLOGIA 1. OPÇÕES Nosso interesse voltava-se principalmente para o meio rural. Na impossibilidade de abranger, em profundidade, todas as atividades temporais, na Capital e no interior, do Movimento de Natal, decidimos circunscrever-nos, nesta II Parte, a uma avaliação sistemática e empírica das atividades empreendidas pelo SAR (Serviço de Assistência Rural), a partir de 1951, no interior da Arquidiocese de Natal. Mesmo assim, dada a pluralidade de atividades, a extensão da área atingida e a limitação dos recursos financeiros de que dispúnhamos, impusemo-nos outras limitações. Na I PARTE distinguimos duas FASES RURAIS do Movimento: uma, voltada para o desenvolvimento de comunidade, entendida esta como a pequena cidade, a vila, o povoado, o sítio, a fazenda; a segunda, extrapolando já os limites da comunidade, voltada para a “luta pela mudança de estruturas”, entendida esta especialmente como mudança nos sistemas tradicionais de fidelidades políticas e de relações de trabalho. Tendo iniciado nossa pesquisa poucos dias após a Revolução de 31 de março ALCEU RAVANELLO FERRARO 225 de 1964, não víamos, pelo exposto no Capítulo IV, parágrafo 3, condições de levar a bom termo uma pesquisa por amostragem que visasse verificar empiricamente o impacto desta “luta pela mudança de estruturas”. Para uma tal verificação a área propícia seriam as grandes fazendas, onde — tudo indicava — nos depararíamos com a desconfiança dos patrões e o retraimento dos moradores. Daí termo-nos orientado, seja na escolha de área, seja na elaboração do questionário, especialmente para uma avaliação do programa de ação comunitária, típico da I FASE RURAL. Para a verificação empírica da hipótese da funcionalidade das atividades do SAR do ponto de vista de desenvolvimento, optamos pelo seguinte modelo experimental: confrontar, ex post facto, comunidades submetidas com bastante intensidade à ação do SAR, com comunidades não submetidas a tal influência, mas semelhantes às primeiras sob outros pontos de vista. O êxito na aplicação de tal modelo experimental dependeria precisamente de conseguirmos isolar ou manter constantes outras variáveis ou fatores, excetuado, no caso, o trabalho do SAR. Como, dada geralmente a presença de outras agências de mudança, seria mais difícil conseguir isto nas sedes municipais, deixamos estas de lado e voltamo-nos para pequenas comunidades no interior dos municípios, isto é, povoados e sítios, compreendida também a população circunvizinha, ligada àqueles pequenos aglomerados por centros de interesse comum (escola, capela, pequeno comércio — mercearias ou bodegas — e, no caso das comunidades trabalhadas pelo SAR, Centros Sociais, Clubes, JAC, etc.). 226 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 2. ESCOLHA DA ÁREA Como vimos na I Parte, algumas das atividades empreendidas pelo SAR atingem também áreas das Dioceses de Mossoró e Caicó. Na pesquisa por amostragem limitamo-nos à Arquidiocese de Natal. Contrariamente ao que acontece com aquelas duas Dioceses, que compreendem áreas bastante homogêneas, todas tipicamente sertanejas, na Arquidiocese de Natal, que cobre parte do Sertão, todo o Agreste e toda a Zona da Mata do Rio Grande do Norte, estão representadas as três Regiões típicas do Nordeste. (Sobre as características destas três Regiões veja Apêndice 1.1). Na Introdução (parágrafo 2) e no Apêndice I a este Trabalho, chegamos a duas conclusões: 1) que o Nordeste dos anos 1950-1960 — o Nordeste anterior à SUDENE — se revelava, segundo quase todos os indicadores empregados, como sendo a Região mais subdesenvolvida do país e 2) que o estado do Rio Grande do Norte, teatro do Movimento de Natal, dificilmente poderia figurar entre os 4 estados menos subdesenvolvidos dentre os 9 estados da Região. Não sem alguma surpresa para alguns norte-riograndenses, chegamos a outra constatação de suma importância do ponto de vista metodológico, isto é, que o principal campo de atuação do SAR — o meio rural da Arquidiocese de Natal, especialmente o Litoral-Agreste apesar de mais próximo à Capital, constitui a área mais subdesenvolvida do estado. Com efeito, segundo os dados do Censo de 1950, a Capital, com 62% de alfabetizados entre a população de 10 ALCEU RAVANELLO FERRARO 227 e mais anos (o índice mais elevado no estado), constitui uma ilha dentro da área de índices mais baixos de alfabetização no estado. De fato, se tomarmos como limite o índice de 30% de alfabetizados (tabela V.l — dados do Censo de 1950 e divisão municipal de 1954, segundo aparecem na Enciclopédia dos Municípios), o contraste é evidente: enquanto, dos 31 municípios abrangidos pela Arquidiocese de Natal, 25 ficavam aquém, e apenas 6 superavam os 30% de alfabetizados, dos 33 municípios abrangidos pelas outras duas Dioceses, apenas 6 ficavam aquém, e 27 superavam os 30% de alfabetizados. Se olharmos mais detalhadamente a tabela V.I., o contraste se torna mais patente ainda. Dos 20 municípios com menos de 25% de alfabetizados, apenas 1 (na Zona Serrana — Diocese de Mossoró) ficava fora, enquanto que 19 se situavam dentro da Arquidiocese de Natal. Por outro lado, dos 21 municípios com 35 ou mais por cento de alfabetizados (a média para o estado era de 31,98%), 9 ficavam na Diocese de Mossoró, 9 na Diocese de Caicó, e 3 apenas na Arquidiocese de Natal: a Capital, 2 municípios da Zona Centro-Norte, e, se considerada somente a área rural, isto é, excluída a capital, nenhum no Litoral-Agreste, a área de maior densidade demográfica do estado. Por conseguinte, não só a área rural da Arquidiocese de Natal, principal campo de atuação do SAR, é a que apresenta os índices menos elevados de alfabetização no estado, mas também a área por nós escolhida para a pesquisa (Agreste e limite entre Litoral e Agreste) se apresenta como a área menos alfabetizada dentro da própria Arquidiocese. 228 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal É tal a correlação entre os diversos indicadores de desenvolvimento e subdesenvolvimento (veja Introdução, parágrafo 2, e Apêndice I), que seria supérflua a aplicação de outros indicadores. Apenas acenamos para alguns outros aspectos. Assim, se o sertanejo costuma ser definido como um forte, à medida que, através do Agreste, nos aproximamos do Litoral Oriental (área açucareira e praia de pescadores), o homem é menos empreendedor, menos resistente ao trabalho, precisamente por ser menos bem nutrido (o consumo de carne, por exemplo, é menor do que no sertão), e mais doentio (a área de atuação da Campanha de Erradicação da Malária, por exemplo, praticamente coincide com o Litoral Oriental e Agreste). Agrônomos da ANCAR acabam de nos confiar que o sertanejo, o seridoense, por exemplo, é mais receptivo às inovações técnicas, do que o agrestino. Os vigários por nós entrevistados reconhecem unanimemente que seu trabalho é mais fácil no Sertão do que no Agreste e Litoral Oriental, o praieiro vive da pesca, empregando geralmente os métodos mais primitivos — o anzol e o arrastão. A Zona açucareira é a que mais se ressente do antigo sistema escravagista. O sistema de meação é, para o trabalhador rural, menos favorável no Agreste (meia do algodão e cereais) do que no Sertão (meia somente do algodão). O vaqueiro do Agreste está totalmente proletarizado, enquanto que o vaqueiro de certas áreas do Sertão ainda tem parte no gado (sistema de quarta). Tudo isto justifica nossa afirmativa de que o principal campo de atuação do SAR — a área rural da Arquidiocese de Natal — constitui a parte mais subdesenvolvida do estado. ALCEU RAVANELLO FERRARO 229 Dentre as diversas Zonas abrangidas pela Arquidiocese de Natal, excluímos, em nossa pesquisa por amostragem, a parte de Sertão (Zona Centro-Norte, que mais se assemelha às áreas cobertas pelas Dioceses de Mossoró e Caicó) e a Zona do Litoral (áreas açucareira e praieira), tomando somente comunidades situadas no Agreste (veja, adiante, Io, 2o e 4O pares de comunidades) e no limite entre Litoral e Agreste (3° par de comunidades). É precisamente nesta faixa onde se concentram os índices menos elevados de alfabetização no estado. Sob outros aspectos, a área escolhida para a verificação empírica das hipóteses pode, no máximo, ser considerada como ocupando uma posição intermediária (do ponto de vista de desenvolvimento) entre o Litoral e a Zona Centro-Norte (Sertão) da Arquidiocese de Natal. 3. ESCOLHA DAS COMUNIDADES Na escolha das comunidades, nossa maior preocupação foi a de isolar ou manter constantes, quanto possível, fatores outros que não o trabalho do SAR (veja o quadro a seguir). Tomamos 4 PARES de comunidades, situadas no interior dos municípios e paróquias, constando cada par de uma COMUNIDADE TRABALHADA pelo SAR (que, por brevidade, chamaremos CT), e de uma COMUNIDADE NÃO TRABALHADA (CNT). Com excessão do 3o par, onde isto não foi possível, as comunidades de cada par (CT e CNT) estão situadas dentro da mesma paróquia, a uma 230 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal distância, porém, suficientemente grande uma da outra, de maneira a excluir a possibilidade de uma influência pelo menos direta da primeira sobre a segunda. Segundo os dados do Censo de 1950, as duas comunidades de cada par (CT e correspondente CNT) pertenciam, naquela data, a municípios de idêntico (no 3o par, quase idêntico) índice de alfabetizados entre a população de 10 e mais anos. Se confrontarmos os dados do quadro acima com os da tabela 5.1, é óbvio tratar-se de índices de alfabetização dos mais baixos em todo o estado. No que tange à presença de Grupo Escolar, foi favorecida a CNT 1, tendo sido mantido constante este fator nos outros três pares. Em termos de distância da sede da respectiva paróquia (o centro mais importante na vizinhança), o grau de isolamento de cada CT e correspondente CNT foi mantido ALCEU RAVANELLO FERRARO 231 relativamente constante em cada um dos 4 pares de comunidades. Em termos de distância da sede do respectivo município, as CNT foram favorecidas nos pares 1 e 3, tendo-se mantido relativamente constante (levemente mais favorável às CNT) nos outros dois pares de comunidades. Em termos de quilômetros a serem percorridos para tomar um transporte coletivo, as CNT foram grandemente favorecidas nos pares 3 e 4. No que se relaciona com a presença de trabalho da ANCAR (Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural), foi favorecida a CT 2 (primeiro caso em que uma CT é favorecida). Nos outros três pares este fator foi mantido constante. A maior dificuldade encontramola precisamente em isolar ou manter constante o fatorANCAR. Esta atua em quase todas as comunidades mais ou menos intensamente trabalhadas pelo SAR. Não raro procura precisamente estas por encontrar ali, segundo nos confiaram alguns técnicos, maior receptividade. Não resta dúvida que a ANCAR exerceu influência, especialmente no setor agropecuário. Embora seja nossa intenção comparar conjuntamente as 4 CT com as 4 CNT, vez por outra estabeleceremos confrontação entre cada CT e correspondente CNT, o que nos permitirá controlar o fator-ANCAR, que só não é constante no 2o par de comunidades. A variável mais importante a ser mantida constante era o nível econômico das comunidades pesquisadas, o qual, enquanto fator independente do trabalho do SAR, podia ser determinado pela distribuição profissional dos chefes de família dos dois grupos de comunidades (das 4 CT e das 4 CNT). Não dispondo de dados fundamo-nos em 232 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nossa observação in loco e em depoimentos de técnicos da ANCAR, guardas da CEM (Campanha de Erradicação da Malária) vigários e outras testemunhas qualificadas, conhecedores do lugar. Os próprios dados da pesquisa nos possibilitaram controlar em que medida fora satisfeita esta exigência. Assim, segundo a tabela V.2 observamos a seguinte distribuição dos chefes das famílias pesquisadas segundo as 4 categorias profissionais estabelecidas: 13,5% nas CT e 11,4% nas CNT eram patrões (proprietários de terra, com dependentes); 32,8% nas CT e 31,7% nas CNT eram pequenos proprietários (proprietários de terra própria, isto é, trabalhando exclusivamente em terra de outros); 7,4% nas CT e 9,6% nas CNT não eram agricultores – a estes chamaremos simples “outros”. O teste de quiquadrado revela que tais diferenças em aproximadamente 85 sobre 100 casos poderiam ser imputadas a variações da própria amostragem, o que nos leva a conclusão de que variável em questão foi mantida satisfatoriamente constante. Mais do que o número de famílias de cada comunidade (sobre isto veja o quadro no paragrafo seguinte), interessa aqui confrontar as comunidades de cada par de ponto de vista do tamanho dos respectivos par do respectivo aglomerado (“sedes”). Nesse sentido, confrontada cada uma com a comunidade do respectivo par, as CNT 1, CTN 2, CT 3 apresentavam um número levemente mais elevado de famílias concentradas em torno do(s) centro(s) de interesse (capela, escola, etc.). No que tange ao 4º par, Serrinha (CNT 4), já com vantagens por ser a única, a dispor de transporte coletivo diário, as portas, para Natal, foi mais uma vez grandemente favo- ALCEU RAVANELLO FERRARO 233 recido: sua população estava praticamente toda concentrada na sede do povoado que acabara de tornar-se sede de um novo município, enquanto que redenção (CT 4) tinha cerca de metade de sua população dispersa, fora da sede do povoado. A razão de mesmo assim havermos opta-do por estas duas comunidades para formar o 4o par é a seguinte: já havíamos inutilizado 110 questionários preenchidos, por apresentarem as comunidades do 4o par características completamente diversas quanto à distribuição profissional dos chefes — a principal variável, segundo nosso modo de ver, a ser mantida constante. Percorremos imediatamente mais de mil quilômetros no sentido de substituir ambas as comunidades deste par. As alternativas que se nos apresentavam ou iriam favorecer a CT 4 ou a CNT 4. Para maior segurança no resultado da pesquisa e não podendo adiar por mais tempo a aplicação dos questionários, por se avizinhar a campanha eleitoral para Governo do Estado, optamos pela segunda alternativa. Esta — favorecer antes às CNT do que às CT — foi, para maior segurança no resultado, a norma conscientemente seguida toda vez que se demonstrou inviável isolar ou manter constante uma variável em algum dos pares de comunidades. A única excessão, controlável, aliás, através dos próprios dados da pesquisa, diz respeito ao fator- ANCAR, presente na CT 2 e ausente na CNT 2. Os outros fatores ou variáveis foram, na grande maioria dos casos, isolados ou mantidos constantes e, quando não, a situação foi mantida favorável às comunidades não trabalhadas pelo SAR (às CNT). 234 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 4. A AMOSTRAGEM As 8 comunidades tinham conjuntamente 939 unidades elementares (famílias), de cuja lista seria extraída a amostra. Estabelecemos os seguintes limites de precisão: probabilidade ou margem de erro que não deve ser superada na pesquisa = 5%; consequentemente, intervalo de confiança = 95%; erro padrão das razões ou frequências estimadas a partir das subamostras = 2%; valor de duas vezes o erro padrão = + -4% (0,04). Isto significa que, se repetida 100 vezes a mesma pesquisa com amostragens semelhantes, mas independentes, em não mais de 5% dos casos (1/20) as verdadeiras proporções da população total iriam, por mais do que o limite estabelecido (4%), superar ou ficar abaixo das proporções encontradas na presente pesquisa. Satisfeitas estas exigências, resultou (veja Anexo II) em 376 o número de unidades a serem incluídas na amostra. Esta foi subdividida em 10 subamostras independentes, a fim de obtermos uma precisão maior com um número menor de unidades, e um controle mais eficiente do erro padrão efetivo na pesquisa. Tivemos, contudo, que introduzir algumas alterações. Como as variáveis foram mantidas constantes ou isoladas em cada par de comunidades (em cada CT e correspondente CNT) e não nas 8 comunidades conjuntamente, era aconselhável dar, quanto possível, a mesma representação às comunidades de cada par. Por outro lado, embora intencionássemos principalmente confrontar as 4 CT com as 4 CNT conjuntamente, vez por outra estabeleceríamos confrontação entre cada CT e corres- ALCEU RAVANELLO FERRARO 235 pondentes CTN. Isto nos aconselhava a assegurar uma representação mínima (40 unidades) às comunidades menores. Estabelecemos assim em um mínimo de 1/3 (comunidades maiores) e um máximo de 1/2 a representação de cada comunidade. Conforme o número de famílias, foi estabelecido para cada comunidade o número de unidades a serem incluídas na amostra, de maneira a satisfazer às duas exigências acima. Tratando-se de extrair 10 subamostras, a proporção oscilou entre 10/20 e 10/30 unidades. Sorteamos para cada comunidade 10 números casuais compreendidos entre 1-20 e 1-30, conforme o caso. Deste processo resultou uma amostragem composta de 365 famílias — 11 unidades a menos, portanto, do que o montante requerido (376 unidades) para o grau de precisão almejado. Acreditávamos que nem este fato, nem as alterações acima iriam mudar substancialmente o grau de precisão. Em todo caso, teríamos possibilidade de controlar, através dos próprios dados da pesquisa, qualquer alteração. O questionário A (Anexo I.A) se destinava aos chefes de todas as 365 famílias que compunham a amostra. As perguntas diziam respeito, ora à família, ora aos membros de cada família tomados individualmente, ora ao próprio chefe (concepções, atitudes, comportamento). Decidimos estender certo número de perguntas (veja nota no fim do questionário A) também a outras pessoas, além dos chefes. A escolha destas obedeceu aos seguintes critérios: tomaríamos, dentre os membros das 365 famílias que compunham a amostra, 50% das pessoas de 14 anos e mais (excluídos os chefes), figurando cada membro escolhido na mesma subamostra do chefe da respectiva famí- 236 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal lia. Optamos por 50%, pois — estimada em 2 (excluídos os chefes) a média de membros de 14 anos e mais por família — teríamos um número aproximado de 365 outras pessoas (de fato, 368), o que nos permitiria, no caso de perguntas dirigidas também a estas, não só não superar o erro padrão previsto, mas mesmo mantê-lo a um nível mais baixo do que +- 4% (aproximadamente + - 3,2%). A escolha se processou da seguinte maneira: cada entrevistadora, à medida que entrevistava os chefes, ia anotando numa caderneta os nomes de todos os membros de l4 anos e mais, hierarquizando-os, família por família, em ordem decrescente de idade, independentemente de sexo, mas mantendo uma enumeração seguida, de 1-N, para os membros de todas as famílias dos chefes por ela entrevistados e aplicando questionários a todas as pessoas cujos nomes figurassem sob número par (50%): 2, 4, 6, 8 ... N. O quadro acima dá, para cada comunidade, 1) o número de famílias e 2) o número de chefes e de outros membros aos quais foram aplicados questionários. A CNT 4 ALCEU RAVANELLO FERRARO 237 apresenta, com relação à CT 4 um total de entrevistados bastante menor (81 contra 92), devido à proporção mais baixa de membros de 14 anos e mais nas famílias daquela comunidade. O erro padrão na pesquisa não foi calculado para todas as perguntas. Tomamos apenas, ao acaso, 14 perguntas do questionário A que proporcionaram 41 valores de 2 erros padrão, correspondentes a 41 tipos de respostas (características). Segundo os dados do Apêndice II podemos concluir: — Em apenas 9 sobre os 41 casos o valor de 2 erros padrão superou os limites estabelecidos (+- 4%), ficando abaixo de tais limites nos outros 32 casos. — Mais de 50% dos valores calculados ficam compreendidos entre + — 2,000 e 3,999%, ficando 9 acima e 9 abaixo destes limites. — A classe modal dos 41 valores obtidos está situada entre + - 2,500 e 2,999 (8 casos), situando-se também nesta classe a mediana dos valores de 2 erros padrão. Podemos, por conseguinte, concluir que o erro de amostragem na presente pesquisa ficou, de modo geral, bem abaixo dos limites máximos previstos (4% a mais ou a menos), com tendência a se concentrar em torno de + - 2,500 e 2,999%. Por outro lado, os valores calculados do viés (“bias”), isto é, de eventuais erros não imputáveis ao processo de amostragem, mas a outras causas, geralmente não excederam os dois décimos de 1%. Veja, sobre isto, no Apêndice II, os 41 valores calculados do viés, correspondentes às mesmas características para as quais foi calculado o erro padrão. 238 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 5. HIPÓTESES Depois do que vimos até aqui, podemos reformular e precisar nos seguintes termos a 1a hipótese enunciada na Introdução a este trabalho: HIPÓTESE As atividades temporais empreendidas pela Igreja, através do SAR, no meio rural da Arquidiocese de Natal, demonstraram-se funcionais ao desenvolvimento, seja 1) conformando concepções e atitudes com padrões mais funcionais ou mais compatíveis com os objetivos e o processo de desenvolvimento, seja 2) conformando com idênticos padrões o comportamento dos indivíduos atingidos e, em consequência e na medida; disto, desencadeando, no mesmo sentido, um processo de mudança nos sistemas tradicionais de relações do homem com os meios físico, social e cultural, seja 3) criando condições de vida já identificáveis com os próprios objetivos do desenvolvimento. Nesta nova formulação, nossa hipótese restringe-se às atividades empreendidas no meio rural. Não dissemos “contribuíram”, mas “demonstraram-se funcionais”, de vez que o primeiro termo nos delimitaria ao próprio processo e à realização dos objetivos do desenvolvimento, enquanto que o segundo, incluindo estes aspectos, engloba mais explicitamente a criação de precondições para o desenvolvimento. ALCEU RAVANELLO FERRARO 239 Se, em que sentido e em que medida esta hipótese deve ser aceita ou rejeitada, verificaremos, nos capítulos seguintes: 1) empiricamente, no que tange especialmente à I FASE RURAL (desenvolvimento de comunidade), e 2) através de outros métodos, no que tange de modo especial à assim chamada “luta pela mudança de estruturas”. Introduzimos aqui outra hipótese, não enunciada na Introdução a este trabalho. Referindo-nos à 1a FASE RURAL, dissemos que a estratégia do SAR consistiu no treinamento de líderes de comunidade, visando habilitá-los a promover, através da ação grupai, o desenvolvimento das respectivas comunidades, ou seja, que o trabalho do SAR se estribou no tripé: líder (treinado) — grupo — comunidade. Acontece que nem todos os participantes de tais treinamentos chegaram a formar grupos, e nem todos os grupos formados subsistiram. Posteriormente, os treinamentos de monitores de Escolas Radiofônicas, embora atingindo bom número de elementos pertencentes a grupos, como a JAC e Clubes, não orientaram diretamente os participantes para a formação de tais ou semelhantes grupos. Entendemos aqui grupos de pequeno porte, com raio de ação mais ou menos circunscrito ao âmbito da vizinhança (pequena cidade, vila, povoado, sítio, fazenda). Dito isto, podemos enunciar nossa hipótese, que deverá ser verificada empiricamente a partir dos dados da pesquisa feita nas 8 comunidades rurais e especialmente dos dados de outra pesquisa realizada entre 248 líderes (monitores de Escolas Radiofônicas), da qual falaremos oportunamente. 240 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal II HIPÓTESE O rendimento do líder associado foi maior do que o rendimento do líder isolado ou não associado. 6. CRITÉRIOS DE VERIFICAÇÃO No que concerne à verificação da 1a hipótese prestaremos especial atenção a eventuais mudanças de concepções, atitudes, comportamento e mesmo condições de vida, relacionadas corn os seguintes critérios ou indicadores, seja de desenvolvimento, seja de precondições de desenvolvimento: saúde, especialmente preventiva; técnicas agropecuárias; crédito agrícola; associações de caráter tipicamente secundário, especialmente de classe, como cooperativismo e sindicalismo; associações ou grupos voluntários de pequeno porte e cooperação comunitária; alfabetização e escolaridade; grau de consciência dos problemas; grau de inconformismo, de aspiração ou espectativa; capacidade de iniciativa ou empreendimento; sistemas de fidelidades políticas e relações de trabalho. Por último, verificaremos se e em que medida os membros das comunidades pesquisadas têm consciência das mudanças eventualmente constatadas e apontam o SAR como agente responsável por tais mudanças. Quando de sua utilização nos capítulos seguintes, daremos maiores esclarecimentos sobre os indicadores e testes usados na verificação empírica. Por ora, basta observar que, dentre o vasto elenco de critérios comumente aceitos e empregados pelos técnicos para identifi- ALCEU RAVANELLO FERRARO 241 cação do fato ou do grau de desenvolvimento de um país, região ou comunidade, escolheremos aqueles indicadores e testes que de fato estejam relacionados com as metas estabelecidas e com o tipo de trabalho empreendido pelo SAR. Careceria de sentido partirmos para uma verificação empírica de aspectos de desenvolvimento (industrialização, por exemplo), que nem sequer figuraram entre as metas do SAR e que constituem limitações que já emergiram na I Parte deste trabalho. Resta, portanto, fazer, nesta II Parte, uma avaliação a partir das metas e das realizações do SAR. A II hipótese, surgida em estado já avançado da pesquisa, ressente-se, por isso mesmo, de técnicas mais elaboradas de verificação empírica. Ao testarmos esta hipótese no Capítulo XI.2, referirnos-emos aos seguintes critérios: opinião dos entrevistados das comunidades trabalhadas, responsabilidade na administração das Escolas Radiofônicas, comportamento com relação à alimentação e saúde preventiva e participação em associações de classe (cooperativismo e sindicalismo). CAPÍTULO VI SAÚDE Neste Capítulo prestaremos atenção às concepções e ao comportamento com relação à saúde, especialmente preventiva: conhecimentos mais científicos e um maior domínio sobre as causas exógenas de determinadas doenças, como a verminose, constituem um indicador de desenvolvimento. Estabeleceremos, sob vários pontos de vista, uma comparação entre as CT e as CNT. 1) DADOS ADMINISTRATIVOS É praticamente impossível uma avaliação quantitativa global do trabalho de educação sanitária desenvolvido, desde 1951, pelo SAR no meio rural. Inúmeras campanhas de hortas caseiras, de queima ou enterro de lixo, de fossa, de água fervida ou filtrada, de uso de calçado... foram realizadas pelos Centros Sociais, Clubes, JAC, Escolas Radiofônicas. Os dados encontrados nos Relatórios do SAR ou de seus diversos Setores são parciais, fundando-se em depoimentos extraídos de cartas de líderes do 242 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 243 interior (nem todos escrevem!) ou colhidos em encontros de revisão e planejamento (nem todos participam!). Por outro lado, os dados fornecidos por um Setor podem ser os mesmos de outro Setor. Assim, por exemplo, as artesãs são também clubistas e, onde existem Centros Sociais, participam das atividades destes. Vejamos alguns dados referentes ao ano de 19611: o Centro de Treinamento de Líderes Rurais dá que 208 famílias fizeram hortas, 35 construíram privadas e 210 passaram a enterrar o lixo; segundo a Federação dos Clubes Agrícolas, cerca de 200 hortas foram feitas em 1961 (as mesmas mencionadas acima?); o Setor de Centros Sociais fornece, por sua vez, os seguintes dados referentes a 6 dos 26 Centros: Surubajá — 15 hortas; Itajé — 8 hortas- Taipu — 28 hortas, 20 fossas (numa campanha mais recente foram construídas 40), e 72 famílias que passaram a enterrar o lixo, e 6, a ferver água; Redenção — 16 hortas; Pirangi — 2 hortas; Senrote — 8 famílias passaram a ferver água e 4 construíram fossa. Referentes às atividades de 15 Clubes de Jovens que se reuniram, em fins de 1962, para revisão e planejamento, temos os seguintes dados2: — fizeram hortas domésticas ..................... 800 famílias — passaram a filtrar água ........................... 105 famílias — passaram a enterrar o lixo ..................... 240 famílias — construíram privada .................................. 51 famílias Mas, e os outros Clubes de Jovens, que não estiveram representados no encontro? E os 30 Clubes Agrícolas, os 7 Clubes de Mães as dezenas de Secções e Núcleos de 244 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal JAC e as centenas de Escolas Radiofônicas — todos, de uma ou de outra forma, se preocupando com a educação sanitária em centenas de pequenas comunidades rurais? Dos 26 Centros Sociais existentes em 1964, 12 reuniram-se para revisão e planejamento. Nestes funcionavam 30 Clubes. Os 7 Centros que haviam promovido, em 1963, a campanha da horta, acusavam 179 hortas feitas nas respectivas comunidades. Por sua vez, os 3 Centros que haviam promovido campanha de saúde mencionavam a construção de 25 fossas e 200 vacinações contra a varíola, não fornecendo dados sobre queima ou enterro do lixo e tratamento da água potável3. A Cooperativa de Artesanato também desenvolve uma ação educativa entre suas associadas. Em consequência, estas já adquiriram, através da Cooperativa, pagando a prestações com a própria produção artesanal, cerca de 50 filtros e 20 aparelhos para privada. Outras porém, fizeram suas aquisições no comércio da Capital, e não se sabe quantas. Em Umari, povoadozinho pertencente ao município de Ielmo Marinho, asseguraram-nos que antes, apesar de condições favoráveis (beira de lagoa), não se cultivavam verduras. Com a ação da JAC e de uma Escola Radiofônica, cerca de 10 famílias já tinham em 1965 suas pequenas hortas. Demos alguns dados parciais, referentes aos últimos anos. Nos parágrafos seguintes procuraremos estabelecer uma comparação entre as 4 comunidades trabalhadas pelo SAR (CT) e as 4 não trabalhadas (CNT), nas quais foram aplicados questionários a 733 membros de 365 famílias. ALCEU RAVANELLO FERRARO 245 2. FOSSA O Questionário A (veja Anexo I.A), aplicado a pessoas das 8 comunidades rurais pesquisadas, continha duas perguntas sobre fossa ou privada. A pergunta A. 16, que visava identificar as concepções existentes a respeito da utilidade de fossa ou privada, foi dirigida a 733 pessoas dos dois grupos de comunidades: 365 chefes de família e 368 outros membros (50%) de 14 e mais anos. Dos dados da tabela 6.1, referentes às 672 respostas, aparece que 89,4% dos entrevistados, nas 8 comunidades conjuntamente, consideram necessária uma fossa, restando ainda 10,6%, que a consideram supérflua. Confrontando os dois grupos de comunidades, temos nas CT uma proporção menos elevada de pessoas que a consideram supérflua (apenas 7,4% contra 14,0% nas CNT). A aplicação do teste de qui-quadrado revela que esta diferença encontrada entre os dois grupos de comunidades é significativa ao nível de 1%, ou seja, que é inferior a 1% a probabilidade de tal diferença resultar do próprio processo de amostragem, e, consequentemente, superior a 99% a probabilidade de os dois grupos de comunidades diferirem realmente quanto à proporção de pessoas (mais elevada nas CT) que reconhecem a necessidade de privada. Os chefes das 365 famílias pesquisadas nas 8 comunidades foram interrogados sobre a existência e o tipo de fossa ou privada nas respectivas casas (pergunta A.19). Segundo os dados da parte A da tabela 6.2, referentes às 342 respostas, o número relativo de famílias que dis- 246 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal põem de privada é levemente mais elevado nas CT (26,7%) do que nas CNT (22,4%). Esta diferença, porém, não chega a ser significativa ao nível mínimo estabelecido na pesquisa (5%). Não podemos, por conseguinte, concluir que os dois grupos de comunidades sejam significativamente diversos, quanto à frequência de privada. Os chefes das 85 famílias que dispunham de privada foram solicitados a indicar o tipo da mesma. As informações pedidas nos possibilitaram estabelecer duas categorias de privada: as de tijolo e as de palha ou aveloz. As primeiras contam realmente com fossa cavada na terra. As de palha ou aveloz, ao contrário, consistem geralmente numa “casinha” (sem fossa), não passando, assim, de uma mera proteção mais eficaz contra olhares indiscretos e de um sistema bastante econômico de alimentar algum porquinho “caseiro”..., que se encarrega de distribuir vermes por toda a redondeza da casa. Estas últimas, por conseguinte, têm pouco significado do ponto de vista higiênico. Nos dados da parte B da tabela 6.2, referentes às 81 respostas, é evidente a grande diferença existente entre os dois grupos de comunidades: enquanto, nas CT, 80% das privadas são de fossa e apenas 20%, de palha ou aveloz, nas CNT as privadas de Solo constituem apenas 33,3% do total sendo de palha ou aveloz as restantes 66,7%. Do teste de qui-quadrado tal diferença resulta altamente significativa (ao nível de 1/1.000). ALCEU RAVANELLO FERRARO 247 3. USO DE CALÇADO Os chefes das 365 famílias pesquisadas foram solicitados a declarar o próprio hábito e, no caso, o da esposa e dos filhos, quanto ao uso de calçado. A parte A da tabela 6.3 diz respeito somente aos homens chefes de família. Se confrontarmos os dois extremos, encontramos nas CT uma percentagem levemente mais baixa de homens que costumam andar sempre calçados (29%, contra 31,8% nas CNT) e bastante mais elevada de homens que costumam andar sempre descalçados (22,5%, contra apenas 16,9% nas CNT). Se, porém, reduzimos a duas as quatro categorias de respostas, a situação é inversa: 54,3% nas CT, contra 51,3% nas CNT, andam sempre ou geralmente calçados, e 45,7% nas CT, contra 48,7% nas CNT, andam geralmente ou sempre descalços. Tais diferenças não são significativas a nenhum nível. Comparemos agora o comportamento das mulheres (chefes de família ou esposas) dos dois grupos de comunidades (parte da tabela 6.3). A proporção das que andam sempre descalças é praticamente idêntica nas CT e CNT: 12,6% e 12,5%, respectivamente. A proporção das mulheres que andam geralmente descalças é bem menos elevada nas CT (apenas 18,2%, contra 29,3% nas CNT). Por outro lado, é mais elevado nas CT do que nas CNT o número relativo de mulheres que costumam andar, seja sempre, seja geralmente calçadas. Juntas, estas duas categorias (sempre + geralmente calçadas) compreendem 69,2% das mulheres das CT, contra apenas 57,9%, nas CNT. Esta diferenças encontrada no comportamento das 248 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mulheres dos dois grupos de comunidades é significantiva ao nível de 5%. 3) A parte C da tabela 6,3 se refere às 288 famílias que tinham filhos, e cujos chefes se pronunciaram a respeito do comportamento dos mesmos, tomados não individual, mas coletivamente (um ou mais filhos de cada família). Dos dados da tabela resulta que em maior número de famílias das CT do que das CNT costumam os filhos andar sempre (23,3%, contra apenas 13,4%) ou geralmente calçados (28,1%, contra 23,2%). Aqui a diferença entre os dois grupos de comunidades é significativa ao nível de 1% - mais significativa, portanto, do que a encontrada entre as mulheres. 4) Agrupando numa só as categorias “sempre” e “geralmente calçados” e distinguindo as três categorias de pessoas e os dois grupos de comunidades, podemos tirar as duas conclusões seguintes: a — quanto ao andar sempre ou geralmente calçados, em ambos os grupos de comunidades as mulheres figuram em 1°, os homens 2o, e os filhos em 3o lugar; b — confrontando, do mesmo ponto de vista, os dois grupos de comunidades, a diferença (em favor da CT) é mínima entre os homens-chefes de família (+ 3%), intermédia entre as mulheres-chefes de família ou esposas (+ 11,3%) e máxima entre os filhos (+ 14,8%). ALCEU RAVANELLO FERRARO 249 4. CHUPETA Tivemos oportunidade de observar, certa ocasião, que deixando a criança cair a chupeta no chão, a mãe apanhou-a, esfregou- a na saia e deu-a novamente ao filho. De outra feita, conversando com uma mãe, em Serrote (a primeira das 4 CT), a criança de poucos meses deixou também cair a chupeta no chão. A um simples aceno da mãe, um menino de três a quatro anos apanhou-a, lavou-a com água do filtro e deu-a novamente à criança. “Desde quando - perguntamos à mãe — se costuma agir assim em sua família?”. “Desde que participo do Clube de Mães” — foi a resposta. Estes dois fatos inspiraramnos a pergunta A. 17, que despertou boas gargalhadas por parte dos entrevistados: “Quando o filhinho deixa cair o consolo (bubu) no chão, Dona Josefa costuma limpá-lo na saia antes de dá-lo novamente à criança. O sr. (sra.) acha que a maneira de agir de Dona Josefa é certa ou errada? tados foram: lavar ou escaldar (lavar com água quente) a chupeta. Bom número dos que indicaram “escaldar”, acrescentaram: “para matar o micróbio”, “para matar o verme”, ou coisa que equivalha, demonstrando, assim, preocupação por uma medida mais eficaz do que simplesmente lavar a chupeta com água fria. Aqui a diferença entre os dois grupos de comunidades é ainda maior e mais significativa (ao nível de 1/1.000) do que na parte A da tabela. De fato, dos 604 entrevistados que discordaram da maneira de agir de Dona Josefa e souberam dar alguma sugestão, 15,4% nas CT, contra apenas 6,8% nas CNT, sugeriram que se deveria escaldar a chupeta. É interessante relacionar os dados desta tabela com os da anterior, onde constatamos, precisamente entre os filhos, a maior discrepância entre os dois grupos de comunidades (14,8% a mais nas CT), quanto ao hábito de usar calçado. Mais adiante teremos ocasião de confrontar os dois grupos de comunidades do ponto de vista das concepções existentes sobre a mortalidade infantil. (Se “errada”) O que deveria fazer?” Segundo os dados da parte A da tabela 6.4, referentes às 677 respostas, aparece ser menos elevada nas CT (8,0%) do que nas CNT (13,8%) a proporção de pessoas que aprovaram a maneira de agir de D. Josefa ou que não souberam indicar outra medida higiênica, mais eficaz. Tal diferença se revela significativa ao nível de 2%. A parte B da tabela diz respeito somente a aqueles que discordaram da maneira de agir de D. Josefa e sugeriram outra medida. As sugestões dadas pelos entrevis- 250 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 5. ÁGUA E VERMINOSE A maior parte da população interiorana abastece-se de água em rios, barreiros, açudes ou lagoas, bebendo-a “como Deus dá”. Aí também se toma banho, e vão beber — quando se limitam a beber! — os animais. Assim, por exemplo, todo um bairro da cidade X tira água de uma lagoa, onde bebem, pastam e... defecam dezenas de animais. Outros, mais “sabidos”, preferem tirar água de ALCEU RAVANELLO FERRARO 251 uma cacimba, cavada a poucos metros da lagoa, porque a água vem “filtrada”. Mas, como à lagoa, assim também à cacimba o gado tem livre acesso. “É limpa esta água?” — perguntamos a um grupo de senhoras que enchiam suas latas e cântaros, aproveitando o tempo para falar das vizinhas ausentes. “Tá muito cebosa “ — responderam. “Tá cheirando a urina”. E não tinham conhecimento de ninguém que fervesse ou filtrasse essa água. Na cidade Y a situação é idêntica, com vim agravante: na lagoa também se lavam caminhões. A água constitui-se, assim, um dos principais veículos de transmissão de doenças, entre as quais a verminose. As 733 pessoas sorteadas (chefes de família e outros membros (50%) de 14 anos e mais) foi proposto o caso seguinte (A.14c): “Na localidade de Umbuzeiro há muitas crianças e mesmo adultos doentes de vermes por conta da água que não é limpa. Não há outro lugar de onde o novo possa tirar água para tomar. O Sr. acha que, mesmo tomando essa água, o povo de Umbuzeiro pode fazer alguma coisa para evitar a doença de vences? (Se sim) O quê?” A tabela 6.5 apresenta a distribuição das 676 pessoas que, depois de satisfeita a curiosidade de saber a qual dos tantos “Umbuzeiros” conhecidos se referiam as entrevistadoras, se pronunciaram a respeito do caso proposto. Os dados da tabela revelam primeiramente, que, embora alta em ambos os grupos de comunidades é bem menos elevada nas CT (51,4%) do que nas CNT (66,4%) a proporção de pessoas que não conhecem nenhuma medida pro- 252 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal filática e consequentemente, bem mais elevada nas CT (48,6%) do que nas CNT (apenas 33,6%) a proporção das que souberam indicar alguma medida. Em segundo lugar, a esta primeira diferença acrescese o fato de as pessoas das CT haverem também, em maior proporção do que as das CNT, indicado medidas mais eficazes — filtrar ou ferver Assim, contra apenas 3 (0,9%) nas CNT, 45 pessoas das CT (12,8%) mencionaram ambas estas medidas. Se somarmos os dados dás colunas 3, 4 e 5, observamos que 130 pessoas das CT (37%), contra apenas 61 (18,8%) nas CNT, sugeriram filtrar ou ferver, ou ambas estas medidas. Já a proporção dos que souberam indicar somente outras medidas — menos eficazes: coar a água, limpar ou cercar o barreiro – é menos elevada nas CT do que nas CNT: 11,6 e 14,8%, respectivamente. O teste de qui-quadrado nos revela que esta diferença encontrada entre os dois grupos de comunidades, quanto ao conhecimento de medidas profiláticas da água potável, é significativa a um nível muito elevado (1/1.000). Nossa intenção, no presente trabalho, foi confrontar os dois grupos ou categorias de comunidades (4 trabalhadas e 4 não trabalhadas), e não, cada uma das CT com a correspondente CNT. Vez por outra, contudo, estabeleceremos tal comparação. Foi o que fizemos no presente caso. Assim, dos dados seguintes aparece claramente que, nos 4 pares de comunidades, o número relativo de ALCEU RAVANELLO FERRARO 253 pessoas que souberam indicar alguma medida profilática para o caso proposto é entre 9,9% e 20,1% mais elevado em cada uma das comunidades trabalhadas pelo SAR, relacionada com a respectiva comunidade não trabalhada4. Isto vem, evidentemente, confirmar a conclusão anterior de que os dois grupos de comunidades são significativamente diversos quanto à proporção de pessoas que têm conhecimento de medidas preventivas contra a verminose adquirível pela água. É lógico que nos perguntemos agora se, a esta diferença verificada no plano do conhecimento ou das concepções, corresponderia um comportamento igualmente diverso, nos dois grupos de comunidades. Os dados da tabela 6.6, concernentes às 339 famílias cujos chefes responderam às perguntas A.20b (uso de filtro) e A.20c (costume de ferver a água potável), demonstram que sim. De fato, contra apenas 14 (8,5%) nas CNT, encontramos, nas CT, 36 famílias (20,7%) que fervem — sempre ou às vezes — ou filtram a água. Esta primeira diferença já se demonstra altamente significativa (ao nível de 5/1.000). Se porém observarmos o tipo de tratamento aplicado a água, a diferença é ainda mais notória. Assim, das 14 famílias das CNT, que, de alguma maneira, tratam a água, apenas 2 filtram, 1 ferve sempre e as restantes 11 fervem somente às vezes. Ao contrário, nas CT, das 36 famílias que tratam a água, 18 filtram, 4 fervem sempre e “ fervem às vezes. A diferença mais palpável reside no número de famílias que têm filtro: 18 (10,3%) nas CT, contra apenas 2 (1,2%) nas CNT. Consideremos, agora, somente as 12 famílias das comunidades não trabalhadas, que fervem, pelo menos às 254 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal vezes, a água. Destas famílias, 8 eram da localidade de Fonte sendo que três declararam haver aprendido a ferver a água potável, na Escola Radiofônica. É que membros de uma destas famílias haviam frequentado, noutro lugar, e membros das outras frequentavam, na vizinhança, uma Escola Radiofônica. Das outras 5 famílias uma aprendeu do médico, outra dos guardas da CEM (Campanha de Erradicação da Malária), e três não souberam dizer de quem haviam aprendido. 3) Aos 276 chefes de família residentes havia pelo menos 7 anos na localidade (o trabalho do SAR nas 4 CT pesquisadas datava de pelo menos 7 anos) foi feita a seguinte pergunta (A.14). “No interior há geralmente muita gente doente de vermes. O sr. poderia dizer se, nos últimos 7 anos, essa doença diminuiu (muito, bastante, um pouco), continuou tão frequente como antes, ou aumentou (um pouco, bastante, muito) em sua família”? A tabela 6.7 distribui, segundo a escala proposta, as 257 famílias cujos chefes informaram. Considerando primeiramente só os subtotais (colunas 2, 6 e 10), constatemos que os chefes de família das CT: 1) em maior proporção acusam que diminuíram (22,5%, contra apenas 8 4% nas CNT), 2) em menor proporção declaram continuarem tão frequentes quanto antes (44,2%, contra 52,1%) e 3) também em menor proporção, acusam que aumentaram os casos de verminose nas respectivas famílias nos últimos 7 anos (33,3% nas CT, contra 39,5% nas CTN). Portanto, embora em ambos os grupos de comunidades as opiniões se concentrem ALCEU RAVANELLO FERRARO 255 ainda em torno de “continua como antes” e “aumentou”, revela que a diferença encontrada entre os dois grupos de comunidades é significativa não só ao nível de 5%, mas também ao de 1%. 4) Depois do que acabamos de verificar neste parágrafo sobre “água e verminose”, não deixa de ser surpreendente encontrarmos, nos dois grupos de comunidades, segundo declarações dos chefes, praticamente a mesma proporção de famílias (61,9% nas CT e 62 3% nas CNT) com membros afetados de verminose (5), e até uma proporção levemente mais elevada nas CT (41,5%), do que nas CNT (40,0%), de membros afetados desta doença (6). Poderíamos formular três hipóteses explicativas deste fato: — ou as conclusões, a que nos levaram os dados das tabelas anteriores, carecem de fundamento; — ou, antes do trabalho do SAR, as CT apresentavam uma maior incidência de casos de verminose, do que as CNT; — ou, finalmente, o fato que acabamos de mencionar se deve simplesmente a uma consciência mais desperta e a um melhor conhecimento, com relação à presença desta doença. Voltaremos, em seguida, a estas hipóteses. Por ora, prosseguiremos nossa confrontação dos dois grupos de comunidades. Os chefes que declararam existirem, nas respectivas famílias, membros doentes de vermes foram solicitados a indicar (A. 14a) se estes faziam ou não tratamento. Os dados da tabela 6.8 demonstram, com evidência, ser bem mais elevado nas CT (58,7%), do que nas CNT (apenas 44,2%), o número relativo de famílias, cujos membros doentes faziam tratamento contra a ver- 256 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal minose. Precisamente nesta tabela encontramos o quiquadrado mais elevado (=27,133) e, consequentemente, a diferença mais altamente significativa (a um nível muito superior a 1/1.000) até aqui encontrados. Voltando às hipóteses acima formuladas sobre o fato de os dois grupos de comunidades praticamente não diferirem, segundo informações dos chefes, nem quanto à proporção de famílias com pessoas doentes, nem quanto à proporção de pessoas doentes de verminose, podemos concluir: a — Parece insustentável a hipótese de que careçam de fundamento as diferenças até aqui encontradas entre as CT e as CNT: por um lado, tais diferenças em favor das CT são constantes, segundo todos os outros critérios aplicados (melhor e mais frequente conhecimento de medidas profiláticas da água potável; mais frequente adoção de tais medidas; consciência, da parte de um maior número de entrevistados, de uma menor ocorrência de tal doença e, finalmente, adoção mais frequente de medidas terapêuticas); por outro lado, segundo todos estes critérios aplicados, as diferenças encontradas entre os dois grupos de comunidades se demonstraram significativas a um nível muito elevado. b — Não parece de todo improvável a segunda hipótese, isto é, que, antes do trabalho do SAR, os casos de verminose fossem mais frequentes nas CT do que nas CNT, particularmente se lembrarmos que aquelas eram e continuam sendo relativamente mais isoladas do que estas. c — A explicação plausível parece-nos ser a de uma maior preocupação pela erradicação da doença, o que ALCEU RAVANELLO FERRARO 257 levaria a uma mais fácil e mais frequente identificação dos casos de verminose; a proporção, muito mais elevada nas CT, de pessoas doentes que se tratam, sugere esta explicação. 6. DOENÇAS EM GERAL Perguntados (A.15) sobre a ocorrência de algum caso mais grave de doença, nos últimos 5 anos, na família, 55,4 % dos chefes, nas CT e 53,3% nas CNT, responderam afirmativamente. Embora não significativa a nenhum nível, novamente encontramos nas CT uma proporção levemente mais elevada de chefes que acusam tais casos. Os chefes de família que assim declararam, foram solicitados a informar (A.15a) a quem ou a que haviam recorrido os membros doentes. As respostas aparecem na tabela 6.9. Comunidades mais desenvolvidas — as CT, por hipótese — apresentariam, com relação às CNT, menor frequência de práticas supersticiosas (“rezas” e benzeduras ou curandeirismo) e maior procura ao farmacêutico e, especialmente, do médico. a — Quanto ao recurso a “rezas” e benzeduras — contrariamente ao que esperávamos — as CT acusam maior frequência de tais práticas (33%, contra apenas 21,8% nas CNT), Tal diferença não chega a ser significativa ao nível de 5% (nível mínimo estabelecido na pesquisa), mas o é ao nível de 10%. b — Já o recurso ao curandeirismo é menos frequente nas CT do que nas CNT (5,8% e 9,5%, respectivamente), 258 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal não sendo, porém, significativa, a nenhum nível, tal diferença. c — É quanto ao recurso ao farmacêutico, que encontramos a diferença maior entre os dois tipos de comunidades: 67,4% nas CT, contra 53,1% nas CNT. Tal diferença é significativa ao nível de 6%, isto é, quase ao nível mínimo estabelecido (5%). d — É também mais frequente nas CT (46,2%), do que nas CNT (34,5%), o recurso ao médico, em caso de doença. Esta diferença, porém, só é significativa ao nível de 15%. Os dados da tabela 6.9, por conseguinte, não nos permitem tirar nenhuma conclusão dentro do limite de significância estabelecido na pesquisa (5%). Apenas, os dados das partes C, D e A respectivamente da tabela, a um nível de significância entre 15% e 6%, nos levam a desconfiar que, em caso de doença as pessoas das CT recorriam, com maior frequência do que as das CNT, ao farmacêutico, ao médico e, inclusive (o que não deixa de parecer um contrasenso) a rezas e benzeduras. No capítulo seguinte voltaremos a falar destas práticas surpersticiosas (“rezas” e benzeduras), com relação aos animais. Aí a situação é levemente inversa, entre os dois grupos de comunidades. 7. MORTALIDADE INFANTIL De certa feita, tivemos oportunidade de ouvir um sarcedote, que se dirigia nos seguintes termos a um grupo de líderes de sindicatos de Trabalhadores Rurais, ALCEU RAVANELLO FERRARO 259 reunidos na sede da FUP: “Como é que diz o povo das comunidades de vocês, quando morre uma criança? “Mais um anjinho no céu”, “Deus quis assim” — não é? Pois bem! Deus não quer isto!” E o sacerdote esforçou-se, por mais de 10 minutos, por fazê-los entender que muitas crianças morriam de fome, outras morriam por falta de assistência médica, outras, enfim, por falta de higiene, ou porque as mães não sabiam alimentá-las convenientemente, e que Deus não queria isto. Ao final da palestra procuramos saber quantos dos presentes eram pais. Os treze homens casados, de 24 a 53 anos de idade, tinham tido, conjuntamente, 127 filhos, 72 dos quais já haviam morrido, restando apenas 55 vivos. Esta é a origem do caso seguinte (A.21), sobre o qual foram solicitadas a manifestarem-se 733 pessoas dos dois grupos de comunidades (365 chefes de família e 368 outros membros (50%) de 14 anos e mais): “Dona Maria teve 12 filhos. Sete destes morreram antes de chegar à idade de 1 ano. Ela se consola dizendo que tem 7 anjinhos no céu. Nem se preocupa com isto, porque — diz ela — foi Deus que quis assim, e, quando Deus quer uma coisa, não adianta a gente fazer nada. O sr. concorda com a maneira de pensar de Dona Maria?” Evidentemente, a interpretação de Dona Maria, além de não ser conforme com os princípios originais do cristianismo, traduz uma atitude fatalista, desfuncional ao desenvolvimento. Dos dados da tabela 6.10, que distribui, segundo quatro categorias precodificadas de respostas, as 668 pessoas que se declararam, aparece que, 260 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal embora ainda muito elevado em ambos os grupos de comunidades, é menos elevado nas CT (62,3%), do que nas CNT (75%), o número relativo de pessoas que concordam com a maneira de pensar de Dona Maria. Por outro lado, é levemente mais elevado nas CT, do que nas CNT, o número dos que não souberam opinar (6,9%, contra 5%), e dos que discordaram em parte (11,8%, contra 10%). Já os que simplesmente discordaram da maneira de pensar de Dona Maria, são bem mais numerosos nas CT, do que nas CNT (19%, contra apenas 10%, respectivamente). O teste de qui-quadrado, aplicado aos dados assim distribuídos segundo as quatro categorias de respostas, que vão da discordância total à pura e simples concordância com a interpretação de Dona Maria, acusa uma diferença altamente significativa (ao nível de 2/1.000) entre os dois grupos de comunidades, quanto às concepções com relação à mortalidade infantil. Aos chefes de família residentes havia pelo menos 7 anos na comunidade foi pedido se declarassem sobre o comportamento da mortalidade infantil, nas respectivas comunidades, nos últimos 7 anos. A pergunta A.22 continha 7 categorias precodificadas de respostas: diminuiu muito, bastante, um pouco; ficou no mesmo; aumentou um pouco, bastante, muito. Dada a grande dispersão das respostas, agrupamo-las em três categorias (diminuiu, ficou no mesmo e aumentou), segundo as quais foram distribuídas, na tabela 6.11, os 255 chefes de família que se declararam. Dos dados assim agrupados, as CT apresentam, com relação às CNT: — uma proporção quase idêntica e muito elevada de chefes que acusam uma incidência maior (aumento) da ALCEU RAVANELLO FERRARO 261 mortalidade infantil nos últimos 7 anos (42,7% e 43,5%, respectivamente); — uma proporção menos elevada de chefes que não veem nenhuma mudança “ficou no mesmo” — (29,8%, contra 36,3%); — e uma proporção mais elevada de chefes que acusam uma melhora ou uma diminuição de casos de mortalidade infantil, nos últimos 7 anos, nas respectivas comunidades (27,5%, contra apenas 20,2%, respectivamente nas CT e CNT). No conjunto, por conseguinte, um maior número de chefes de família das CT, do que das CNT, veem uma melhora, nos últimos 7 anos. Embora tal diferença não atinja o nível de significância de 5%, a íntima correlação encontrada entre quase todos os critérios aplicados aconselha a não menosprezar a hipótese de uma baixa, maior nas CT do que nas CNT, da taxa de mortalidade infantil, nos últimos 7 anos. Resta explicar porque, em ambos os grupos de comunidades, um número tão elevado de chefes de família (42,7% nas CT e 43,5% nas CNT) afirmam que a situação piorou, deste ponto de vista, nos últimos 7 anos, o que parece pouco provável. Talvez porque, sem que tenha havido mudança sensível na situação real, estes chefes de família estariam começando a encarar de outra maneira o fenômeno: a morte de uma criança, habitualmente interpretada sob a forma consoladora de “mais um anjinho no céu”, estaria deixando de constituir, para estas famílias, um fato “normal”, fatalisticamente aceito. 262 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 8. MATERNIDADES É manifesto que a quase totalidade dos municípios do interior do Estado não conhecem, no campo da assistência à maternidade, senão os precários serviços da tradicional “curiosa”. A partir de 1957, algumas comunidades procuraram resolver este problema, através de pequenas Maternidades. O Setor de Saúde do SAR, atualmente coordenado por uma enfermeira profissional, canadense, Voluntária do Papa, treinou parteiras e vem prestando assessoramento às mesmas. A Maternidade de S. Antônio do Salto da Onça foi construída pelos “políticos”, como diz o povo. Estes, precisamente por tratar- se de obra “política”, não conseguindo entender-se para colocá-la em funcionamento, resolveram entregá-la à Paróquia e ao SAR. de S. Paulo do Potengi (1959) funciona em prédio cedido pela L.B.A que estava abandonado. As outras - Taipu (1957), Serra Caiada (1958), São Rafael (1959), Arês (1960), Touros (1962) e Lajes – funcionam em modestas casas residenciais, adquiridas ou construídas com tal finalidade. Além de outros serviços – injeções, curativos, pronto socorro – estas Maternidades prestam, cada mês, assistência a cerca de 120 parturientes, geralmente às mais pobres. Contudo mesmo parturientes de famílias mais remediadas estão paulatinamente passando a fazer seus internamentos nestas Maternidades, recorrendo a Capital só em casos mais delicados. Os aspectos mais importantes residem no seguinte: a — em se estar progressivamente substituindo nestas comunidades, a tradicional “curiosa”, que, de cachimbo ALCEU RAVANELLO FERRARO 263 na boca “assiste” ao parto, por parteiras que contam com algum treinamento (estágio em Maternidades) e com o assessoramento de uma profissional e que podem, em tempo, encaminhar para a Capital os casos mais delicados; b — em se estar criando, nestas comunidades, o hábito de as parturientes se internarem para o parto; c — no trabalho de educação sanitária, desenvolvido especialmente junto às parturientes; d — e, mais que tudo, em se terem transformado estas Maternidades em verdadeiras escolas de cooperação. Consideremos mais demoradamente este último aspecto o mais importante, a nosso ver, do ponto de vista de desenvolvimento suscitar e mobilizar recursos locais, através da participação cooperativa ou comunitária. Tomemos o caso da Maternidade de São Paulo do Potengi cujos relatórios anuais, de 1960 a 1964, pudemos coletar. Tendo iniciado e concluído o exercício de 1960 com um saldo de 66 cruzeiros a Maternidade teve, naquele ano, a seguinte receita: Destes dados aparece que apenas 10,3% da receita total se deveu aos Poderes Públicos, ultrapassando os 60,0% as contribuições da comunidade (alimentação fornecida pelas Donas de Casa — 39,0%; campanhas — 22,9%), de- 264 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal vendo-se o resto às próprias parturientes, Mas isto não é tudo. A direção da Maternidade é toda constituída de pessoal voluntário. A maioria das parturientes que não podem contribuir em dinheiro, trazem uma galinha, ovos, gerimu, batata, inhame, etc... Evidentemente, se a Diretoria fosse remunerada, tal receita não daria nem para pagar o Diretor! Já no ano seguinte a Maternidade contou com uma receita de 427.872 cruzeiros, não se devendo um centavo sequer aos Poderes Públicos. A contribuição do Clube das Donas de Casa foi estimado em 148.000 cruzeiros, ou sejam, 34,6% da receita total. Tal estimativa, porém, é feita a um preço muito baixo. Melhoraram, neste mesmo ano, as contribuições das gestantes. Da mesma forma, a Maternidade não recebeu nenhuma ajuda dos Poderes Públicos nos dois anos seguintes. Em 1964 o Ministério da Saúde deu uma subvenção de 200.000 cruzeiros, igual a 13,4% da receita total do ano (1.489.490). Tirando as contribuições das gestantes, 61,6% deveram-se a contribuições da própria comunidade (Clube das donas de casa, campanha, doações, contribuições do Centro social). Em Lajes foi construído imenso prédio para Maternidade, sem que, até o presente, o Estado tenha podido equipá-la e fazê-la funcionar. Ao lado, numa casa mais que modesta, funciona uma Maternidade, em condições muito precárias, mas que, a final de contas, presta alguma assistência, especialmente às parturientes pobres que não podem recorrer à Capital, distante cerca de 200 quilômetros. ALCEU RAVANELLO FERRARO 265 Em Goianinha, há decênios está em construção um prédio para Maternidade — verdadeiro sumidouro de verbas. Na cidade vizinha em Arês, durante anos funcionou uma pequena Maternidade, mantida quase que exclusivamente pela comunidade. Por falta de continuidade de motivação do povo, esta acabou fechando os batentes em 1965. Sabendo que tais obras não podem estribar-se em auxílios dos Poderes Públicos, o SAR acaba de realizar, em Arês, uma Semana de Ação Comunitária. Em consequência, o povo está organizando-se para “ressuscitar” proximamente a Maternidade. A história das outras é semelhante. Apenas, as de Touros e Taipu contaram com maiores ajudas governamentais para compra de aparelhos. Talvez devêssemos ainda lembrar a Maternidade “política” de Nova Cruz, que também figura no rol dos assim chamados “monumentos fantasmas” — sumidouros de verbas. Este prédio está hoje completamente inutilizado, devido à demora na construção, que só avançava em vésperas de eleição. Embora nunca tenha abrigado ninguém, senão alguns flagelados das enchentes de 1964, pessoas fidedignas asseguram-nos que jornais do Sul publicaram manchetes da primeira parturiente! A algumas centenas de metros, acaba de ser instalado, em convênio com o SESP, um Hospital da Paróquia. Este também, é verdade, contou com boa ajuda dos Poderes Públicos. A diferença está em que os promotores do empreendimento não são remunerados e em o dinheiro ter sido realmente aplicado. A propósito das 8 comunidades pesquisadas, vale lembrar que apenas 4 delas têm acesso relativamente fácil a 266 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal alguma destas Maternidades: Potengi (CT) e Santo Estevam (CNT), distantes cerca de 2 léguas da Maternidade de São Paulo do Potengi, e Redenção (CT) e Serrinha (CNT), distantes cerca de uma légua da Maternidade de S. Antônio. 9. SERROTE Em um documento do MEB (Revisão: Maio — Agosto de 1962), encontramos o seguinte relatório de uma visita de supervisão à Escola Radiofônica de Serrote (a primeira das 4 CT), que, embora não diga exclusivamente respeito ao tema tratado neste Capítulo, transcrevemos textualmente: “Tivemos oportunidade de visitar, no dia 9 de junho de 1962, a comunidade de Serrote. A Escola Radiofônica de Serrote foi fundada em 1958. Tratase de fato de uma Escola que é o Centro da Comunidade. Junto à mesma surgiram o Clube Agrícola, o Clube de Jovens e o Clube das Mães”. “O Clube Agrícola possui um trabalho de horta, realmente excelente. Interessante é notar que, além da horta comum, as crianças já treinadas plantaram suas hortas particulares. Vimos estas crianças. Sentimos sua alegria em nos mostrar suas plantações. Crianças educadas. Crianças desenvolvidas, que a todos cumprimentavam. Note-se, por exemplo, o orgulho de um menino de seis anos mais ou menos, que dizia só beber água fervida”. ALCEU RAVANELLO FERRARO 267 “O Centro Social por ora funciona na casa da moni- “Enfim nesta Escola Radiofônica reúne-se toda a co- tora (Em 1964, quando conhecemos Serrote, o Cen- munidade; chegamos de improviso e lá encontra- tro já funcionava em sede própria, construída pela mos umas 20 mocinhas planejando festas juninas”. comunidade). As monitoras são o fermento de todo “Desta Escola parte, além da instrução, toda uma este desenvolvimento comunitário. Excelente tam- intensa campanha de politização. Dela sai também, bém o fato de o irmão destas monitoras ser líder com a vibração e despertar “vivências”, todo um sindical. Aí se reúnem por isso, também os sindi- cristianismo de amor. Cristianismo que e consci- calizados locais. Aí fazem suas reuniões, seus de- ente: dar- se a Deus e à comunidade”. bates”. “Ponto a aprofundar, foi a declaração dos líderes locais. O primeiro movimento que surgiu foi a JAC” (Juventude Agrária Católica). A JAC é formidável. Fez a fermentação. Depois veio a Escola Radiofônica. Daí foi se alastrando”. “Na Escola Radiofônica de Serrote, cartazes os mais diversos espalham-se pelas paredes. Na entrada ria casa há um que diz: “Aprenda a ler pelo rádio”. Na sala onde funciona a Escola Radiofônica, há um jornal noticioso. Nêle a monitora coloca recortes de jornais artigos, manchetes, etc... Toda uma motivação espalha-se pela casa. Assim, em cima do pote, lê-se: “Beba já fervida”. Na copa, um bonito cartaz ilustrado faz alusão ao consumo de verduras e frutas”. “Quando lá chegamos, encontramos uma turma empenhada em confeccionar cartazes de politização (foi o ano da politização!). Frases como: “Voto não se vende consciência não se compra”, “Na democracia o voto é a arma do povo”, etc..., espalhavam-se sobre as diversas mesas estes cartazes serão colocados nas paredes das casas, nas feiras, nas bodegas e na sala de aula”. 268 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Até aqui, o texto do relatório. Quanto à JAC, esta não só constituiu o início, mas continua sendo a “alma” de todo o trabalho desenvolvido em Serrote. Além das cobras que costumam habitar o teto (durante a pesquisa matamos duas, de bem um metro de comprimento), pendem das paredes do Centro Social cartazes como estes: “Ou você acaba com os vermes, ou os vermes acaba (sic!) com você!” “Ande calçado e pise sossegado”. “Coma verdura e goze saúde”. Convidado, em uma família, a experimentar uma pamonha, foi-nos oferecida também água. Prevenindo uma possível surpresa — a água era meio barrenta — a moça explicou: “É a água que temos aqui. Mas pode tomar sem cuidado, que é fervida e filtrada”. “Que tal, Serrote? — perguntamos ao Dr. Paulo Sobral, agrônomo piauiense e chefe do Escritório da ANCAR, em Nova Cruz. “Leva vantagem de 10 anos sobre as comunidades vizinhas”, foi a resposta. E lembrou-nos, entre outros, o fato seguinte: quando de tuna campanha de vacinação das crianças promovida pelo SESP, o trabalho foi mais fácil em Serrote, dó que na própria cidade de Nova Cruz. “Bastou mandar um recado, marcando a ALCEU RAVANELLO FERRARO 269 hora”, prosseguiu Dr. Paulo, que acompanhara o pessoal do SESP. “Devido a um “prego” no caminho, chegamos perto de meio dia, com quase três horas de atraso e pouca esperança de encontrar o povo ainda reunido. Mas, foi só ouvir zoada do jeep, que começou a sair gente de todas as casas vizinhas: “Nós sabíamos — disseram-nos — que devia ter acontecido qualquer coisa no caminho, e que os senhores não iam faltar”. Em algumas ruas de Nova Cruz, mais de uma criança teve que ser vacinada na “marra”, porque as mães não queriam. Em Serrote não houve problema”. Concluindo este Capítulo, poderíamos perguntar-nos sobre quais as causas das diferenças encontradas entre os dois grupos de comunidades, quanto às concepções e comportamento com relação à saúde. Teremos ocasião de tratar disto, com mais vagar, no Capítulo sobre “Agentes de Mudança”. Por ora, transcrevemos apenas o diálogo que tivemos com a mãe de dois líderes de Serrote, quando, em fins de junho de 1965, lá chegamos, já ao pôr do sol. — Dalvina está? — perguntamos. — Estava numa reunião do Clube de Mães. Agora deve estar reunida com as outras moças da JAC, no Centro Social, fazendo a revisão do semestre. — E Cecílio? — Está com os rapazes da JAC, fazendo o planejamento para o segundo semestre. — Houve mais alguma reunião, hoje? — Hoje, só houve isto. Sim! Houve também catequese para adultos. 270 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Quando, pouco depois, inocentemente perguntamos a estes líderes quantas famílias aproximadamente moravam na localidade, um deles nos observou que, na comunidade de Serrote, deviam morar cerca de 150 famílias. ALCEU RAVANELLO FERRARO 271 NOTAS AO CAPÍTULO VI 1. SAR — Revisão de 1961 e Planejamento de 1962—1964, Tipografia do SAR, Natal,1962, pp.6, 12,18-19. 2. SAR (Equipe de Clubes) — Clubes Rurais e Promoção (mimeogr.), Natal, 1963, p.6. 3. SAR, Revisão de 1963 — Planejamento de 1964, Natal, Tipografia do SAR maio de 1964, p. 47-49. 4. Os números absolutos correspondentes às percentagens acima são os seguintes: Serrote 41/100; Potengi — 49/91; Jundiá de Cima — 39/74; Redenção — 43/87; Barra do Geraldo — 28/90’ S. Estevam — 29/89; Fonte — 27/70; Serrinha — 25/75. Total de pessoas declaradas nas 8 comunidades — 676 (CT — 352, CNT — 324); não declaradas — 57 (CT — 19, CNT — 38). 5. Questionandos — 365 chefes de família. Os dados se referem às 343 famílias cujos chefes responderam (CT -r- 17.: CNT — 167), sendo que 22 (CT — 7, CNT — 15) não responderam. 6. As 343 famílias cujos chefes responderam à I parte da pergunta A.14a, totalizavam 1.830 membros. As percentagens acima se referem aos 1.748 membros a respeito dos quais os chefes informaram (CT — 926, CNT — 322), restando 82 (CT — 41, CNT — 41), não especificados. 272 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal CAPÍTULO VII SITUAÇÃO TÉCNICO-ECONÔMICA 1. TÉCNICAS AGROPECUÁRIAS O fato seguinte deu-se por volta de 1956, na localidade de Potengi Pequeno, distante cerca de duas léguas da sede municipal e paroquial de São Paulo do Potengi, onde acabara de ser instalado um dos primeiros Escritórios da ANCAR, no estado. Foi num “dia de missa”. Era quase meio dia. Mons. Expedito concluíra sua parte: confissões, missa, pregação e batizados. Chegara a hora de o técnico da ANCAR fazer a sua “pregação” a várias dezenas de agricultores, bem motivados, aliás, pelas palavras do vigário. Mas, onde reunir, numa sombra, tanta gente? O povo de Potengi Pequeno não tinha ainda construído seu Centro Social, onde funciona hoje também a Escola da comunidade, nem seu Mercadinho (para o lanche nos dias de missa), levantado com dinheiro de uma festa, tomado emprestado ao Santo padroeiro, que até hoje não cobrou a dívida! “O jeito — disse-nos Mons. Expedito — foi pedir ao povo que entrasse novamente na igreja, e ao técnico, que subisse os degraus do altar, a fim de fazer sua “pregação” sobre pragas da lavoura e inseticidas, sobre doenças de animais e vacinação”. ALCEU RAVANELLO FERRARO 273 Provavelmente este foi o único agrônomo que, no cumprimento de sua missão técnica, subiu os degraus do altar. Mas, exatamente por se tratar de um órgão isento de interferências políticas, o SAR e os vigários, de modo geral, sempre colaboraram com o trabalho da ANCAR como por outro lado, contaram sempre com a cooperação deste. Esta colaboração tornou-se tão habitual, que, ainda recentemente, desinteresse demonstrado por certo vigário constituiu motivo de queixa da parte de um dos técnicos da ANCAR. De mais de uma dezena destes, com os quais tivemos oportunidade de manter conctato, ouvimos que, onde o SAR atua ou atuou, a ANCAR encontra terreno mais propício para o seu trabalho de orientação técnica. Aos agricultores dos dois grupos de comunidades foram propostos o caso e a pergunta (A. 13b) seguintes: “Alguns agricultores acham que os conselhos dos técnicos podem ajudar o agricultor a melhorar sua lavoura ou sua criação. Já outros não acreditam muito nos conselhos dos técnicos, porque - dizem - os técnicos são gente de cidade, que nunca pegou numa enxada, e pouco entendem dos problemas do homem do campo. O que o agricultor precisa — dizem — e de terra para trabalhar, chuva e vontade de trabalhar. O que o senhor acha; 1) que os conselhos dos técnicos são úteis ao agricultor ou 2) que basta ao agricultor terra, chuva e vontade de trabalhar?” Dos agricultores que responderam, respectivamente nas CT e nas CNT, 60,8% e 59,3% reconheceram a utilidade dos conselhos dos técnicos; 30,1% e 33,3% os con- 274 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal sideraram inúteis, e os restantes 9 1% e 7,4% declararam não saber ou responderam com ambiguidade à pergunta. Deste ponto de vista, portanto, praticamente não diferem os dois grupos de comunidades, restando ainda em ambos um numero elevado de agricultores (cerca de 40%) que não reconhecem a utilidade dos conselhos dos técnicos. Os agricultores foram solicitados a dizer se seus roçados haviam sido atacados, nos últimos três anos, pela formiga ou pela lagarta (A.6), ao que, respectivamente nas CT e nas CNT, 90,6% e 87,3% responderam afirmativamente quanto à formiga, e 85,6% e 90,3%, quanto à lagarta. Dos que acusaram a existência destas pragas, respectivamente nas CT e nas CNT, 95,9% e 97,6% usaram veneno contra a formiga, e 53,3% e 50,8% contra a lagarta: um número levemente mais elevado nas CNT, no primeiro caso, verificando-se o inverso no segundo, mas em ambos, sem nenhuma diferença significativa entre os dois grupos de comunidades. Quanto à prática de adubação da terra (A.ll), apenas 12 agricultores das CT (7,8%) e 13 das CNT (9%) responderam afirmativamente. Aos agricultores que afirmaram possuir animais (gado, cavalos, jumentos, porcos), foi pedido que declarassem se os haviam vacinado em 1964 e 1965 (A.5c). Segundo os dados da tabela 7.1, as CT acusam um número relativamente mais elevado de agricultores que vacinaram os animais em 1964 e em 1965 (13%, contra apenas 7,1% nas CNT), ou em ao menos um destes dois anos (22,8%, contra 18,4% nas CNT), sendo, ao contrário, menos elevado nas CT do que nas CNT o número dos que não vacinaram ALCEU RAVANELLO FERRARO 275 em nenhum dos dois anos (64,2% e 74,2%, respectivamente). Embora bastante elevada, tal diferença entre os dois grupos de comunidades não chega a ser significativa ao nível de 5%. Aos mesmos agricultores que afirmaram possuir animais foi perguntado se costumavam recorrer a “rezas” ou benzeduras, quando adoecia algum animal (A.5b), ao que, respectivamente nas CT e nas CNT, 3,4% e 7,2% declararam recorrer geralmente; 18,0% e 16,5%, às vezes, e 78,6% e 76,3%, nunca recorrer a tais práticas. Tal diferença — práticas supersticiosas levemente menos frequentes nas CT do que nas CNT — está longe de ser significativa ao nível de 5%. Os dados dos itens 2) e 3) não revelam nenhuma diferença significativa entre as CT e as CNT, do ponto de vista de técnicas agropecuárias. A única diferença sensível, mas não significativa ao nível de 5%, diz respeito à prática de vacinação dos animais, mais frequente nas CT do que nas CNT. Isto, porém, não equivale a dizer que não tenha havido nenhuma mudança (melhora) sob este aspecto, mas sim que, se alguma mudança houve, esta deveria ser atribuída à ANCAR, que atuou em cinco das oito comunidades pesquisadas: em três trabalhadas e em duas não trabalhadas. 2. CRÉDITO As tabelas 7.3 e 7.4, referentes às perguntas A. 12 e A. 12a, nos permitem confrontar os dois grupos de comu- 276 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nidades quanto ao comportamento ou à atitude dos agricultores com relação ao uso de crédito e tipo de crédito. À parte o fato de serem ainda muito limitadas para o pequeno agricultor e especialmente para o trabalhador rural as possibilidades de crédito bancário, lembre-se que ambos são, não raro, avessos a este tipo de crédito — o simples pensamento de ficarem “desacreditados”, isto é, de não poderem pagar, é o bastante para desestimulá-los de qualquer tentativa — preferindo o crédito particular a juros altíssimos (7-12% ao mês). Comecemos pela tabela 7.3. Segundo os dados desta, a diferença entre os dois grupos de comunidades, sem distinção de categorias profissionais, não reside tanto na proporção de agricultores que de fato obtiveram (18,9% nas CT e 16,9% nas CNT), quanto na dos que, sem ter conseguido, tentaram obter empréstimos para o plantio de 1965 (12,2% nas CT, contra apenas 2% nas CNT). Por outro lado a proporção dos que nem sequer tentaram obter é da ordem de 68,9% nas CN, contra 81,1% nas CNT. Esta diferença encontrada em favor das CT se revela altamente significativa, ultrapassando não só o nível (mínimo) de 5%, mas, mesmo, o nível de 0,5%, ou seja, de 5 por 1.000. A mesma tabela 7.3 revela que o número dos que nem sequer tentaram conseguir empréstimo para o plantio em 1965 é menos elevado nas CT do que nas CNT, seja entre os patrões (40,0%, contra 52 6%) seja entre os pequenos proprietários (70,2%, contra 78,9%), seja entre os trabalhadores rurais (76,8% contra 89,6%). Quanto aos primeiros, a diferença está em que um maior número de patrões das CT (56%) do que das CNT (42,1%) de fato conseguiram empréstimo. ALCEU RAVANELLO FERRARO 277 Consideremos agora somente os que obtiveram ou tentaram obter algum empréstimo. Os dados seguintes, referentes às mesmas perguntas A. 12 e A. 12a, nos permitem concluir: Quanto aos que obtiveram empréstimo, a diferença entre os dois grupos de comunidades reside precisamente no crédito cooperativista (8 nas CT, contra apenas 1 nas CNT); em consequência também do crédito cooperativista, inverte-se a situação quanto aos empréstimos tomados a particulares: 14/25 (56,0%) nas CTN, contra apenas 10/31 (32,3%) nas CT. Quanto aos que, embora sem sucesso, tentaram obter empréstimos, as CT acusam um maior número de tentativas com relação a todas as fontes de crédito; com relação ao crédito cooperativista, temos 6 tentativas nas CT, contra nenhuma nas CNT. Reside, por conseguinte, especialmente nas novas — embora ainda limitadas — perspectivas abertas pelo crédito cooperativista a principal razão das diferenças encontradas entre os dois grupos de comunidades, quanto ao comportamento dos agricultores com relação ao uso de crédito agrícola. Que isto se deve principalmente ao trabalho do SAR — seja através de sua rede de cooperativas, seja simplesmente motivando os agricultores para que se associem mesmo a outras cooperativas — ficará 278 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mais claro no parágrafo 3, ao tratarmos explicitamente do cooperativismo. 2) Já dissemos que não são nada sorridentes para o agricultor nordestino, especialmente para o pequeno proprietário e o trabalhador rural, as perspectivas de crédito bancário. Suponhamos, porém, que o Governo mudasse, neste campo, sua política. Como se comportariam, ou que atitude poderíamos esperar dos agricultores dos dois grupos de comunidades? Dos dados da tabela 7.4, referentes, também estes, às perguntas A. 12, 12a e 12b, resulta ser mais elevado nas CT do que nas CNT o número relativo de agricultores 1) que obtiveram empréstimo bancário em 1965 (8,1%, contra 5,9%), 2) que, embora sem sucesso, tentaram conseguir (6%, contra 2,2%) e, finalmente, que, embora não o tenham ainda feito, gostariam de tentar (43,6%, contra 36,8%, respectivamente nas CT e CNT). Por outro lado, ainda que alta em ambos os grupos de comunidades, é bem menos elevada nas CT (42,3%) do que nas CNT (55,1%) a proporção de agricultores que não só não obtiveram, nem tentaram, mas nem sequer gostariam de tentar obter empréstimo bancário. Aplicado da seguinte forma: conseguiram + tentaram + gostariam de tentar x nem sequer gostariam de tentar, o teste de qui-quadrado revela que a atitude, com relação a empréstimos bancários para a agricultura, é significativamente (ao nível de 5%) mais favorável entre os agricultores das CT, do que entre os das CNT. Que o crédito bancário a juros módicos seja condição indispensável para o desenvolvimento da agricultura, é por demais evidente. Por outro lado, uma atitude favorável por ALCEU RAVANELLO FERRARO 279 parte dos agricutores, com relação a este tipo de crédito, pode ser considerada como um pré-requisito para o desenvolvimento da agricultura. 3. COOPERATIVISMO É característico de áreas subdesenvolvidas a quase inexistência de grupos de tipo secundário, ou seja, de associações voluntárias, no campo econômico. Por outro lado, a proliferação de tais formas associativas pode ser considerada como um indicador de desenvolvimento pelo menos incipiente. No presente parágrafo limitarnos-emos ao cooperativismo. Antes de passarmos à análise do que o SAR realizou através de sua rede de cooperativas, vejamos o que representa o cooperativismo para as 8 comunidades pesquisadas. Aos 315 agricultores dos dois grupos de comunidades foi primeiramente dirigida a seguinte pergunta (A.40): “O sr. acha que uma cooperativa, para um agricultor como o senhor, seria: 1) necessária; 2) útil, mas não necessária; 3) inútil, ou 4) prejudicial?” As 308 respostas foram reduzidas a duas categorias (tabela 7.5), tendo sido agrupados em “desnecessária” todos os que não afirmaram a necessidade de uma cooperativa, inclusive 3 agricultores das CNT, que a acharam prejudicial. Considerando os dois grupos de comunidades conjuntamente, constatamos que 4 agricultores de cada 280 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 5 (79,2%) afirmam a necessidade de lima cooperativa, ou de se associarem a alguma cooperativa. O número, porém, dos que assim pensam, é bastante mais elevado nas CT (83,9%) do que nas CNT (apenas 74,1%), diferença esta que se revela significativa ao nível de 5%. Encontramos, por conseguinte, entre os agricultores das CT, uma propensão significativamente mais acentuada ao cooperativismo, do que entre os das CNT. A esta atitude diversa (mais favorável), corresponderia, nas CT um comportamento também diverso, isto é, uma proporção maior do que nas CNT, de agricultores associados a alguma cooperativa? Foi o que procuramos saber através da pergunta A.41. A tabela 7.6 nos permite dois tipos de confrontação: entre as 4 CT e as 4 CNT, e entre cada CT e correspondente CNT. Confrontando os dois grupos de comunidades, observamos que o número relativo de agricultores efetivamente associados a alguma cooperativa é muito mais elevado nas CT (20,5%) do que nas CNT (apenas 3,4%). Se, como vimos acima, os dois grupos de comunidades diferem significativamente (ao nível de 5%) quanto à atitude com relação ao cooperativismo, a diferença, aqui encontrada, quanto ao comportamento associativista (associados a alguma cooperativa), se demonstra significativa a um nível muito mais elevado (1 por 1.000). Considerando, do mesmo ponto de vista, cada um dos quatro pares de comunidades, encontramos em cada uma das 4 CT, relacionada com a correspondente CNT, uma proporção maior de agricultores associados a cooperativa. Assim temos, respectivamente para cada CT e correspondente CNT, os seguintes números de associados: ALCEU RAVANELLO FERRARO 281 1. 8 (19,5) em Serrote, contra nenhum em Barra do Geraldo; 2. 10 (21,7%) em Potengi, contra 1 (2,8%) em S. Estevam; 3. 9 (23,1%) em Jundiá de Cima, contra nenhum em Fonte; 4. 6 (17,1%) em Redenção, contra 4 (12,9%) em Serrinha. Multiplicando o número de associados pelo inverso da proporção de famílias pesquisadas em cada uma das 8 comunidades, temos, aproximadamente (+ - cerca de 3%), 86 agricultores chefes de família, associados a cooperativa nas CT, contra apenas 10, nas CNT. Do que veremos a seguir, aparece que as 4 comunidades trabalhadas pelo SAR e por nós pesquisadas não chegam a representar 2% do total de associados à rede de cooperativas suscitadas (“ressuscitadas”, algumas), assessoradas e coordenadas pelo Setor de Cooperativismo do SAR. 4. SETOR DE COOPERATIVISMO Neste e nos parágrafos seguintes deixaremos momentaneamente de lado nosso estudo comparativo entre as 4 CT e as 4 CNT, para tentarmos uma avaliação de conjunto do trabalho desenvolvido pelo SAR no campo propriamente econômico. Neste parágrafo veremos as realizações do Setor de Cooperativismo, deixando para o seguinte as atividades do Setor de Artesanato, embora também este desenvolva seu trabalho sob forma cooperativa. Concluiremos o capítulo com algumas considerações sobre a experiência de colonização, levada a termo pela Fundação Pio XII, em Punaú. 282 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 1) Como praticamente todas as atividades do SAR, também o cooperativismo teve seu início com treinamentos de líderes (cooperativistas). A educação cooperativa constituiu, desde o início, a maior preocupação do Setor, não só no sentido de formar líderes imbuídos de espírito cooperativista, mas também, de capacitá-los a administrar cooperativas. Podemos sintetizar da seguinte maneira as realizações do Setor, neste campo, desde 1956 até agosto de 1966: — 14 treinamentos de líderes cooperativistas (2 em 1956); — por ano, em 1958, 1960 e 1962 a 1965; e 5, de janeiro a agosto de 1966, com uma duração de 5 a 15 dias, todos, com excessão de 3, em regime de internato, atingindo um total de cerca de 340 participantes, 11 dos quais provenientes de outros estados; — outros 8 cursos (noturnos) em bairros da Capital ou junto a, e a pedido de outras Instituições; — 151 palestras sobre cooperativismo (excluídas as dos cursos), geralmente a pedido de outras Instituições; — 12 estágios de elementos do interior do estado e de outros estados, no Setor; — 23 programas radiofônicos; — 253 viagens (até fins de 1965), seja para a organização de Cooperativas, seja para supervisão, seja ainda para assessoramento às diretorias reunidas (34 reuniões); — 4 encontros com dirigentes e sócios de Cooperativas. Em 1966 o trabalho de educação cooperativista foi intensificado. Assim, além dos 5 cursos acima mencionados e de dois estágios, o Setor, de janeiro a agosto de 1966, realizou: ALCEU RAVANELLO FERRARO 283 — 68 reuniões com sócios de Cooperativas (52 no interior, com participação média de 15 pessoas); — 24 visitas de supervisão a Cooperativas do interior; — 5 contatos com diretorias, no interior; — orientação a dois elementos para assumirem trabalhos de tesouraria; — 1 dia de estudo, com a participação de elementos de diversas cooperativas, para a fundação da Cooperativa Central. Todo este trabalho educativo resultou na organização de 14 Cooperativas (apenas duas, anteriores a 1962), e na restauração de outras duas. A tabela 7.7, que analisaremos a seguir, sintetiza o movimento de apenas 12 destas Cooperativas. Os dados que nos acabam de ser fornecidos pelo Setor omitem 4 Cooperativas — a do Sindicato dos Produtores Autônomos de Caicó, a Agrícola de Açu, a Escolar, da Escola Doméstica de Natal, e a de Consumo, do Pessoal Civil e Militar da Marinha — todas organizadas pelo Setor, mas que este achou por bem não incluir, por não lhes estar podendo prestar todo o assessoramento necessário. Também não foi incluída a Cooperativa de Pium, que, embora não tenha sido organizada pelo Setor, recebe assessoramento deste. Além de o Setor se ver em dificuldades para prestar todo o assessoramento necessário às Cooperativas por ele fundadas ou restauradas, vem-lhe pedido da FUNDHAP (Fundação de Habitação Popular) para um trabalho de motivação, na Cidade da Esperança, para a instalação de uma Cooperativa de Produção, enquanto o DCOR (Departamento de Cooperativismo e Organização Rural) lhe pede que “tome conta” da Cooperativa Agropecuária de 284 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal S. Paulo do Potengi, e a Companhia Hidro-Elétrica de Boa Esperança (Piauí) solicita o chefe do Setor, a Assistente Social Severina Porpino, a verificar in loco as possibilidades de implantação de uma cooperativa naquela zona, pedido este que será em breve atendido. Assim, novamente, senão o impossível, pelo menos o inesperado acontece: enquanto o Setor conta com apenas 6 elementos (1 coordenadora, 2 educadores cooperativistas, 2 técnicos em contabilidade e 1 secretária), o DCOR tem 30 funcionários, sem que o Diretor saiba o que fazer com a maioria destes. A SUDENE mantém um funcionário no Setor, com a condição de este colocá-lo à disposição para todo curso que o DCOR venha promover. E o Diretor de um órgão que mantém convênios com a SUDENE, o INDA e o Governo do Estado vê-se na contingência de dizer: “Severina fabrica (técnicos) e manda para lá”! 2) A tabela 7.7 sintetiza o movimento de 12 cooperativas das quais acabam de nos ser fornecidos dados pelo Setor. De apenas duas em 1961 (fundadas já em 1957 e 1958), o número de Cooperativas elevou-se sucessivamente a 7, 9 e 12, respectivamente nos anos de 1962, 1964 e 1965. Por outro lado, o número de sócios, que não ultrapassava os 500 em fins de 1961, subiu a 1 877 em 1962, e superou os 5.000 em 1965 e primeiro semestre de 1966. A leve baixa verificada entre dezembro de 1965 e junho de 1966 (de 5 091 a 5.053) deveu-se ao “expurgo” de cerca de duas centenas de sócios que não estavam pagando regularmente suas quotas-partes, baixa esta quase totalmente compensada pela entrada de novos sócios. ALCEU RAVANELLO FERRARO 285 Apesar de não ser ainda suficientemente elevado, é interessante observar como, de apenas 3.326.000 cruzeiros em dezembro de 1962, o capital social subiu para 51.445.000 a 30 de junho de 1966. O mesmo se diga do movimento de crédito e venda de mercadorias. O valor total, em cruzeiros, dos empréstimos feitos pelas Cooperativas de Crédito e pela Secção de Crédito da Cooperativa Mista Arquidiocesana, de pouco mais de 15 milhões em 1962, elevou-se a quase 144 milhões em 1965 e, só no primeiro semestre de 1966 a quase 194 milhões, com perspectivas de atingir e mesmo superar os 400 milhões em fins do mesmo ano. Da mesma forma, de cerca de 13 milhões e meio de cruzeiros em 1962, o valor total das vendas de mercadorias efetuadas pelas Cooperativas Mistas, elevou-se a quase 248 milhões em 1965, atingindo, só no primeiro semestre de 1966, os 158 milhões com perspectivas de superar os 300 milhões no fim do mesmo ano. A Cooperativa Mista Arquidiocesana de Natal representava, no primeiro semestre de 1966, cerca de 40% (2.050) do total de sócios! quase 60% (30.615.600) do capital social total, cerca de 55% (106.765.500) do valor total dos empréstimos efetuados e quase 84% do valor total das mercadorias vendidas. Outra relativamente forte é a Cooperativa de Crédito de Santana do Matos. Esta, também no primeiro semestre de 1966, representava quase 28% (1.357) do total de sócios, 25% (12.921.Í00) do capital social total e 37% do valor total dos empréstimos efetuados. As restantes 10 Cooperativas não representavam, no mesmo período, mais do que 32% dos associados, 15% do 286 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal capital social, 8% do valor total dos empréstimos e 16% do valor total das vendas de mercadorias. A mais antiga é a Cooperativa Popular Mista de Surubajá. Fundada em 1957, numa vila de pescadores, contra o parecer de vários técnicos, subsistiu até hoje. A falta de capitalização foi a razão principal de seu pouco desenvolvimento. Enquanto, de 1962 a 1965, os sócios passavam de 86 a 132, seu capital social elevou-se de 50.000 a apenas 70.000 cruzeiros. Contudo, no primeiro semestre de 1966, tendo entrado apenas 3 novos sócios, seu capital social quase duplicou com relação ao ano anterior. Em consequência, o movimento de vendas, que superara de pouco os 3 milhões de 1965, só nos meses de janeiro a junho de 1966 superou os 4 milhões. Isto vem sendo conseguido desta e de outras cooperativas, graças ao intenso trabalho educativo desenvolvido pelo Setor no corrente ano. A 22 de julho de 1966, por ocasião de um encontro de dirigentes de Cooperativas, foi fundada uma Cooperativa Central. A esta filiaram-se 7 Cooperativas: a Arquidiocesana de Natal, as Populares Mistas de Nísia Floresta, Surubajá e Santana do Matos, e as Agrícolas Mistas de Espírito Santo, Várzea e Pium. Visa-se, com isto, através de compras em comum (gêneros de consumo, ferramentas, inseticidas, material veterinário, etc.), de vendas em comum da produção agrícola e de maiores facilitações de financiamentos por parte de instituições bancárias, possibilitar um maior desenvolvimento destas Cooperativas. Além da Central, deverão proximamente ser fundadas outras duas Cooperativas no interior: uma em Monte Alegre e outra em São Gonçalo. Com o pequeno “expur- ALCEU RAVANELLO FERRARO 287 go” feito este ano, a intensificação do trabalho educativo e as crescentes exigências feitas aos associados, tudo indica que o cooperativismo tomará grande impulso, especialmente se for aprovado (já recebeu parecer favorável da Comissão Técnica) o PROJETO-MISEREOR, que prevê um financiamento, em cinco anos, da ordem de cerca de 1/5 do orçamento anual do estado do Rio Grande do Norte. Em 1963, quando da fundação da Cooperativa, havia cerca de 450 artesãs, 60 das quais se associaram. O número de sócias elevou-se a 429 no ano seguinte, 670 em 1965 e 680 em meados de 1966. O capital social realizado, de menos de 100.000 cruzeiros em 1963, elevou se sucessivamente para pouco mais de 1 milhão no ano seguinte, cerca de 3 milhões em 1965, tendo alcançado os 4.100.000 em meados de 1966. O movimento da Cooperativa nos anos de 1964 a 1966 foi da seguinte ordem, em cruzeiros: 5. SETOR DE ARTESANATO Também a organização, em 1963, da Cooperativa dos Produtores Artesanais do Litoral-Agreste foi precedida por um bom número de treinamentos, atingindo particularmente os núcleos trabalhados pela extinta Missão Rural do Agreste. Assim, entre 1959 e 1965, o Setor promoveu 33 treinamentos de artesãs (5 em 1959, 2 em 1960, 6 em 1961, 10 em 1962, 8 em 1963, 1 em 1964 e 1 em 1965), somando um total de 450 participantes. Apenas 4 foram realizados na capital, e os restantes 29, no interior. 15 tiveram uma duração de 5 a 8 dias, e 17, de 10 a 15 dias, sendo que 1 se prolongou por três semanas. Tendo-se observado que era fraco, em vários núcleos, o trabalho de comunidade, foi promovido, em julho de 1966, um treinamento de 1 mês, com participação de 27 artesãs, de 19 áreas e 9 municípios, com o objetivo de capacitá-las a empreender ou intensificar a ação comunitária nos respectivos lugares. 288 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Dos dados acima resulta: a — levando em conta o índice inflacionário nos últimos anos, praticamente não houve aumento de produção a partir de 1964; b — considerando o aumento de valor da mercadoria entre uma operação e outra (compra e venda), está havendo um progressivo aumento de estoque; c — não há proporção entre o número “oficial” de artesãs e o valor da produção entregue pelas mesmas à Cooperativa. Segundo nosso modo de ver, tudo isto resulta de um único ponto de estrangulamento — a precária organização da Comercialização dos produtos manufaturados. Foi isto, aliás, que observamos desde nosso primeiro contato com a Cooperativa, em 1964. A não solução deste problema continua sendo o único responsável pelo não aproveitamento, pelo menos integral, de centenas de ALCEU RAVANELLO FERRARO 289 artesãs treinadas Se Natal, apesar de a loja — um verdadeiro mimo de loja — estar situada fora dos centros comerciais da Cidade, absorve mensalmente uma produção num montante de mais de 1 milhão de cruzeiros uma melhor organização da exportação para os grandes centros consumidores do Centro-Sul poderia elevar facilmente as vendas a várias dezenas de milhões por mês. O preparo profissional das artesãs a ótima qualidade da produção e o sistema rígido de controle da mesma (devolvida, quando imperfeita) justificam plenamente esta previsão. Ninguém melhor do que os dois técnicos do Setor, para treinamentos, supervisão, recebimento e controle da produção. Ninguém melhor do que Assistentes Sociais, para a ação comunitária. Mas uma Cooperativa deste tipo é uma emprêsa e requer também outro tipo de técnicos! Apesar disto, é admirável a transformação verificada em certas áreas onde atuou o Setor de Artesanato. Ainda em 1964 tivemos oportunidade de entrevistar, coletivamente, em cerca de 10 núcleos por nós visitados, quase uma centena de artesãs. “Desde quando se faz labirinto em Arês?” — perguntamos a um grupo de artesãs. “Desde a descoberta do Brasil!” — respondeu uma senhora. “Meus primeiros dentes nasceram no labirinto!” - atalhou uma môça. Quando as primeiras senhoras e moças de Arês, no início de 1964, se associaram à Cooperativa, os intermediários pagavam 2.200 cruzeiros pela confecção de uma colcha. A Cooperativa contratou os primeiros trabalhos por 5.500, preço que foi de imediato a- companha do pelos 290 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal intermediários. No ato de entrega, a Cooperativa pagou 7.200, elevando, depois, o preço para 12.000 e, em agosto do mesmo ano, para 13.000. A esta altura os intermediários já estavam pagando 9.000 em Arês, enquanto em Touros, pelo mesmo trabalho, ainda se pagava 2.500 cruzeiros. “O que é que a senhora faz com o dinheiro que ganha no labirinto?” — perguntamos a outra senhora. “Dou até para meu marido se divertir!” — foi a resposta; “o que ele ganha não dá nem pra isto!” Outra artesã nos confiou o seguinte: ainda recentemente, um intermediário, que ia de avião vender os trabalhos no Rio, pagava 3.500 pela confecção de uma colcha e toalha. Da Cooperativa ela já estava ganhando, em agosto de 1964, 19.000 cruzeiros. “Ganhavam nas costas da gente!” — acrescentou a artesã. Jundiá de Cima é um dos melhores núcleos artesanais. Percorridos a pé os três últimos quilômetros (as chuvas de 1964 haviam acabado com a estrada que dá acesso ao povoado), chegamos lá, ao entrar do sol. Umas 20 artesãs nos aguardavam. Sem saber quem era a líder da turma, jogamos a pergunta: “O que vocês fazem com o que ganham no artesanato?” Uma moça levantou-se, apanhou uns papéis e foi explicando: Começando por mim mesma, comprei dois garrotes, 11 porcos 1 lâmpada Coleman (12.000), 1 tear (4.000), 1 máquina de costura (45.000), 1 rádio (45.000), 1 filtro (5.000). A primeira coisa que comprei foi um garrote, por 12.000 cruzeiros. Sim, e botei alguém para trabalhar no roçado, em meu lugar. ALCEU RAVANELLO FERRARO 291 Tudo isto traduzido em termos de 1966, representa várias centenas de milhares de cruzeiros. Só uma máquina de costura está custando cerca de 200.000 cruzeiros. É tudo? perguntamos. Enquanto as outras se entreolhavam e sorriam, talvez querendo dizer que também o vestido e o penteado tinham vindo da Capital e com dinheiro das bolsas vendidas, a líder, sempre com os olhos na sua folha-controle de aplicação do dinheiro, continuou: Estas duas (apontou para duas irmãs) compraram 7 porcos, 1 filtro, 1 terreno para casa, 1 máquina de costura, pagam outro para trabalhar no roçado e, com o irmão, mantém a família. As duas irmãs, órfãs de pai, confirmaram, enquanto uma acrescentava: “Quando não falta trabalho, faço 25.000 por mês”. Ora, naquela mesma data, um trabalhador rural assalariado não fazia mais do que 300 a 350 cruzeiros por dia, dificilmente atingindo os 10.000 por mês. Umas ganhando mais, outras — seja por falta de trabalho, seja por só se dedicarem ao artesanato nas horas vagas — ganhando menos: todas estavam satisfeitas, e algumas achavam graça ao se lembrarem que ganhavam mais do que o próprio pai ou marido, que dava duro, de sol a sol, no roçado. A única mágoa, constatada em todos os núcleos, era a de não terem sempre trabalho. Cotizando-se, as artesãs de Jundiá de Cima haviam adquirido um terreno para a construção de um Centro Social. Com um “balaio-de-São-João” e a rifa de um rádio, haviam podido depositar 63.000 cruzeiros na Cooperativa, para a construção do Centro. Achando que a rua estava suja, haviam promovido uma operação-limpeza; quem não pôde comparecer, pagou outra pessoa para 292 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal fazer o serviço. Em 1964, a Campanha da Fraternidade rendeu mais em Jundiá de Cima, do que em Estivas, incluída a Usina e todo seu pessoal. Da mesma forma, já haviam sido adquiridos, pelas artesãs de Manoel Paz, relógios, filtros, rádios, porcos, garrotes, 4 máquinas de costura, etc., tudo com dinheiro de artesanato. Em outra localidade encontramos uma professora do Estado, que percebia um salário de 3.000 cruzeiros. De fato, não recebera um vintém em todo o ano de 1963, e já dispendera quase 1/3 do total (36.000) em viagens inúteis à Capital para receber o dinheiro. No artesanato estava fazendo cerca de 10.000 por mês, além de tomar conta da casa. Esta artesã está capacitada a fabricar qualquer novo tipo de bolsa: acabara de remeter à Cooperativa amostras de um novo modelo de bolsa, projetado pelo Setor. O que nenhuma artesã se lembrou de observar foi que, graças ao contato com a capital e com a moda, a uma melhor aprendizagem de corte e costura e à aquisição de máquinas de costura, estavam ficando cada vez mais exigentes em questão de moda. Já não se encontram, pelo menos entre as artesãs, tantos “espantalhos”! Se os fatos acima mencionados constituem a história de, talvez, não mais de 200 artesãs, que têm trabalho mais ou menos permanente, poderiam, uma vez melhor organizada a comercialização, constituir também a história, por ora apenas começada e descontínua das outras mais de 400 artesãs já treinadas. No momento o SAR está empenhado em conseguir um técnico em comércio que possa assumir o setor de vendas. ALCEU RAVANELLO FERRARO 293 6. A COLONIZAÇÃO DE PUNAÚ Com o rompimento da comporta construída pelo DNOCS no Rio Pium, deixando entrar, rio acima, as águas da maré, ficou comprometida a primeira experiência de colonização de vale úmido no estado, realizada pelo INIC. A obra fora tecnicamente mal construída. Dr. Estélio Fonseca Ferreira, antes mesmo de o DNOCS ter dado início à obra, previra que a comporta não resistiria ao volume de água. No presente parágrafo, porém, interessa-nos particularmente a experiência de colonização levada a efeito pela Fundação PIO XII, na Fazenda Punaú, no Vale do Fonseca. Como já dissemos na I Parte, a Fundação é integrada pelo Governo do Estado, SAR e Escola de Serviço Social. Destes, o grande ausente no empreendimento tem sido o Governo do Estado. Não fossem os financiamentos da MISEREOR, a experiência-piloto teria ficado na compra do terreno e nos primeiros trabalhos de saneamento. Em 1960 instalaram-se em Punaú 10 famílias japonesas. Pensava-se, com isto, facilitar a solução do problema técnico: os colonos japoneses serviriam de exemplo e estímulo aos futuros colonos brasileiros. Em 1963 foram instaladas 21 famílias de colonos potiguares. Até 1964, Pium e Punaú abasteciam de verduras a Cidade do Natal, exportando excedentes para o Recife. Em 1964, quando os colonos brasileiros se preparavam para a primeira colheita em Punaú, vieram chuvas torrenciais, que atingiram 39 municípios, danificando 5.015 propriedades agrícolas, desabrigando milhares de famílias 294 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal e destruindo cerca de 23.000 hectares cultivados nos diversos vales do estado. O Vale do Fonseca, onde se situa a Colônia de Punaú, não fugiu à regra geral: cerca de 330 hectares de cultura no vale foram arrasados pelas águas: 10 hectares de batata; 50 de milho; 60 de feijão; 10 de mandioca; 10 de cana; 120 de banana; 40 de arroz e 30 (praticamente todos na Colônia) de hortaliças. Foi a esta altura que, em meados de 1964, tivemos oportunidade de visitar pela primeira vez a Colônia de Punaú. Era evidente que a obra de saneamento ficara incompleta: os últimos 5 a 6 quilômetros do rio não haviam sido drenados. Junto ao mar, as águas passam imprensadas entre os morros, num leito de cerca de 2 metros de largura, que não permite o escoamento rápido das águas. D. Eugênio e os técnicos reconhecem haver sido precipitada a instalação dos primeiros colonos no vale. A razão foi a seguinte: conseguido um financiamento da MISEREOR, procedeu-se imediatamente à construção de 51 casas. Construídas, estas corriam o risco de serem invadidas, o que comprometeria toda a experiência. Daí haverem sido selecionadas de afogadilho e imediatamente instaladas, ainda em 1963, 21 famílias de colonos, sem que houvesse sido concluída a obra de saneamento. Em tais condições, os técnicos só asseguram cultura de pequeno ciclo: de agosto a janeiro. É evidente que, em tais condições, a Colônia não pode prosperar. Ao contrário, a partir das cheias de 1964, a maior preocupação da Fundação tem sido a manutenção dos colonos, na espera de que o órgão competente concluísse a obra de saneamento. ALCEU RAVANELLO FERRARO 295 Em 1964, ao lhe ser oferecida a Secretaria Executiva da Fundação, o agrônomo Dr. Estélio Fonseca Ferreira só aceitou, com a condição de D. Eugênio ir ao Rio pleitear do Ministério de Viação e Obras Públicas uma draga para concluir a abertura do canal. Depois de quase dois anos de insistência, acaba de chegar (agosto de 1966) a draga, tendo sido reiniciado o trabalho. Teria constituído um insucesso a experiência de Punaú? Até o presente momento não se pode dizer que constitua um sucesso. Se o DNOCS completar a abertura do canal — dizemos se, porque peças das dragas do DNOCS “se” quebram com muita facilidade, ficando as mesmas paralisadas por meses! — sem dúvida, não só a Colônia do Punaú, como todo o vale do Fonseca terá sido conquistado para uma agricultura permanente (de janeiro a dezembro). Que a produtividade por hectare de vale seja compensadora, já foi amplamente demonstrado, tanto em Pium, como em Punaú. Entre os colonos japoneses, o valor da produção por hectare ao ano atingiu um mínimo de 1.800.000 e um máximo de 5.500.000 cruzeiros. Dr. Estélio acha perfeitamente viável uma produção média da ordem de 3 milhões de cruzeiros por hectare ao ano. Pium, no tempo das “vacas gordas”, chegou a produzir 30 toneladas de tomate, 22 toneladas de cenoura, 20 toneladas de cebola, e 15 a 18 toneladas de gerimu por hectare. Em Punaú, um colono japonês colheu 2.200 quilos de arroz e, depois, no mesmo terreno e no mesmo ano, 18.000 quilos de melão e melancia, por hectare. Fora dos vales, nenhuma outra área agricultável no estado pode alcançar tal produtividade. 296 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Segundo nosso modo de ver, o principal significado, do ponto de vista de desenvolvimento, da experiência de Punaú reside na teimosia em demonstrar aos Poderes Públicos que é viável e economicamente compensador o aproveitamento agrícola dos 40.000 hectares de vales úmidos do estado do Rio Grande do Norte. Mas não poderíamos obliterar este outro aspecto: é tradicionalmente insignificante o consumo de verduras entre os potiguares: “Não sou coelho”, ouvimos algumas vezes dizer no interior. É reconhecido Que as Colônias de Pium e Punaú contribuíram para incrementar, entre a população de Natal, o consumo de verduras. Dr. Estélio, por sua vez, assegurou-nos que, a exemplo de Pium e Punaú, outros colonos, em outras áreas, estão se dedicando ao cultivo de verduras. A própria ANCAR, no interior, tem orientado, neste sentido, parte de seus esforços. E que todos estão convencidos de que o consumo de verduras constituiria ótimo complemento à tradicional alimentação nordestina. Contudo, ainda hoje, grande parte da verdura consumida em Natal provém de outros estados, especialmente de Pernambuco. ALCEU RAVANELLO FERRARO 297 CAPÍTULO VIII INSTRUÇÃO Antes de passarmos ao estudo comparativo dos dois grupos de comunidades (CT e CNT) do ponto de vista de alfabetização e escolaridade, tentaremos uma avaliação do que teriam representado, do ponto de vista de instrução, as atividades desenvolvidas pelos Setores de Ensino Médio e Escolas Radiofônicas. 1. ENSINO MÉDIO É muito cedo ainda para uma avaliação da recente experiência de Ensino Médio pelo rádio (SERTE — Setor Rádio e TV Educação), empreendida pelo SAR, em 1961, em Convênio com o Ministério da Educação e Cultura e a Secretaria de Estado da Educação e Cultura. Limitar-nos-emos, no presente parágrafo, a uma rápida apreciação do trabalho desenvolvido pelo Setor de Ensino médio do SAR em entrosamento com a CNEG (Campanha Nacional de Educandários Gratuitos). ALCEU RAVANELLO FERRARO 299 Do próprio número de Educandários fundados a partir de 1957, aparece a rápida expansão do Ensino Médio: 1957 -1; 1958 - 2; 1959 - 6; 1960 - 11; 1961 - 12; 1962 - 12; 1963 - 14; 1964 - 21; 1965 - 23; 1966-28 (dados cumulativos). Dos 28 estabelecimentos, 16 surgiram entre 1963 e 1966. O número de alunos, que era de 664 em 1961 e 1.646 em 1964, elevou-se rapidamente para 2.242 em 1965 e 2.924 em 1966: uma média de pouco mais de 100 alunos por Educadário. Dentro de 3 anos, quando estes estabelecimentos estiverem com todas as séries funcionando, o número de alunos poderá elevar-se facilmente para 6 mil, independentemente da criação dos novos estabelecimentos atualmente em projeto. Com excessão de 5, na capital, todos os outros 23 estabelecimentos estão localizados no interior do estado, a maioria em sedes municipais onde não havia nenhum estabelecimento de Ensino Médio. Como na FASE URBANA, assim também nas duas FASES RURAIS o Movimento de Natal demonstrou-se inovador no que tange ao ensino: ao invés do ensino particular católico não gratuito, o Movimento orientou-se para o ensino particular gratuito. Como as Escolas Radiofônicas e o SERTE, assim também os 28 estabelecimentos de Ensino Médio acima mencionados ministram ensino praticamente gratuito. Tornou-se possível o Ensino Médio gratuito graças 1) à ajudas dos Poderes Públicos, através da CNEG, e 2) à participação das comunidades interessadas. Assim, da receita total de todos os estabelecimentos no ano de 1963, cerca de 1/3 proveio das respectivas comunidades, através de contribuições dos sócios (sócios 300 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal dos Setores locais mantenedores dos Educandários), de donativos (de particulares) e de festivais. Os outros 2/3 deveram-se a auxílios dos Poderes Públicos, principalmente através da CNEG. Da mesma forma, a contribuição das comunidades (renda própria, contribuições dos sócios, festivais, donativos, etc.) constituíram cerca de 1/3 (Cr$ 16.318.122) da receita total no exercício de 1964 (Cr$ 49.067.622). Os responsáveis pelo Setor nos asseguram que a participação das comunidades na manutenção destes reducandários foi, em 1965, e está sendo, em 1966, mais elevada do que nos anos anteriores. A participação das comunidades estimada em 1/3 não diz tudo. Os Setores locais, encarregados da construção dos prédios, não são remunerados. O mesmo se diga das Diretorias dos Educandários. quando o saldo é positivo no fim do ano, recebem uma gratificação (simbólica!). Em muitos casos, pelo menos na fase inicial, o honorário dos professores constitui mais uma gratificação do que um salário propriamente dito: trata-se de uma participação parcialmente voluntária. Se tudo fosse levado em conta, a participação das comunidades representaria provavelmente 2/3 da receita total (em dinheiro ou trabalho voluntário). Esta mobilização de recursos locais, através da cooperação comunitária, apressando o advento do Ensino Médio em diversas cidades do interior; a motivação para o estudo, feita junto aos jovens e, através dos Círculos de Pais e Mestres, junto aos pais; o ensino gratuito: tudo isto nos parece de suma importância do ponto de vista de desenvolvimento. ALCEU RAVANELLO FERRARO 301 Já falamos no Capítulo IV das relações entre SAR e CNEG. Esta deve ao Movimento sua própria instalação no Estado. Apesar de funcionar em sede própria e de ser hoje “independente”, a Diretoria e o Conselho Estadual continuam em mãos de elementos voluntários, quase todos engajados no SAR ou em outros setores do Movimento. A CNEG beneficiou-se também de todo o trabalho desenvolvido pelo SAR no meio rural: encontrou comunidades motivadas e sempre contou com a colaboração dos vigários e de líderes locais engajados no Movimento. Até recentemente o SAR arcava com parte considerável na manutenção do Serviço. Assim, em 1961, de 736.000 cruzeiros (receita total), 706.000 deveram-se ao SAR, e apenas 30.000 à CNEG. Posteriormente inverteram-se os papéis. 2. AS ESCOLAS RADIOFÔNICAS Já observamos que, desde o início, o ensino radiofônico objetivou a educação de base e não apenas a alfabetização. De 1962 a março de 1964 foi dada pelo menos tanta ênfase à conscientização-politização (inclusive motivação para alfabetizar-se), quanto à alfabetização propriamente dita. Não podemos, por conseguinte, avaliar o trabalho do Setor de Escolas Radiofônicas ou, após 1961, do MEB, considerando apenas um de seus objetivos. No presente paragrafo, contudo, limitar-nos-emos a alguns aspectos mais relacionados com a alfabetização. Número de Escolas e de alunos. Como veremos a seguir, são muito imprecisos os dados fornecidos pelo Setor a 302 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal respeito do número de Escolas e de alunos nos anos de 1958 a 1964 (encerramos a pesquisa, neste campo, em meados de 1965): A baixa verificada no número de Escolas entre 1959 e 1960, atribuída pelo Setor à inexperiência neste campo — primeira experiência no Brasil! — deveu-se mais concretamente à verificação, em 1960, que várias Escolas fundadas no ano anterior ou não haviam nem sequer começado a funcionar ou não estavam mais funcionando como Escolas de alfabetização. Os dados referentes a 1959 são, por conseguinte, exageradamente elevados. O ano de 1961 foi, sem dúvida alguma, o de maior expansão do ensino radiofônico na Arquidiocese de Natal. O Planejamento 1961- 1963 previa a criação de 410 novas Escolas, em três anos. Este número foi ultrapassado de muito já no primeiro ano, instalando-se, só em três anos. Este número foi ultrapassado de muito já no primeiro ano, instalando-se, só em 1961, 779 novas Escolas, elevando-se assim o número das mesmas para 927. Parte deste crescimento foi anterior, e parte posterior à assinatura do Convênio entre a CNBB e a Presidência da República e à consequente instalação do MEB em Natal. este número (927 Escolas) representa mais a quantidade de tentativas, do que de Escolas realmente funcionando. ALCEU RAVANELLO FERRARO 303 Em junho de 1962 o MEB contava 1.201 Escolas, elevando-se o número das mesmas para 1.327 no fim do mesmo ano, atingindo 50 municípios da Arquidiocese de Natal. Contando com apenas 11 elementos e 1 transporte, o MEB, dentro da estrutura por ele montada (desta falaremos a seguir), não estava em condições de preparar devidamente a criação, nem de assegurar uma supervisão adequada às Escolas que a “sede radiofônica”, que tão subitamente tomara conta de centenas de localidades do interior, exigia, com ou sem condições, em qualquer localidade e a qualquer momento, mesmo durante o ano letivo. Lembre-se ainda que 1962 foi o ano da politização: se nem todas as Escolas alfabetizavam, todas conscientizavam e politizavam — o que também constituía objetivo explícito do Setor. Felizmente, a esta altura o idealismo começou a ceder lugar ao bom senso; em maio de 1963 a Equipe Central fez uma análise da situação, chegando às constatações seguintes: — o surgimento de Escolas pela mera distribuição de rádios, sem a devida preparação das (de todas as) comunidades interessadas e sem o adequado treinamento de monitores; — o surgimento de Escolas durante o ano letivo; — a falta de quadros, na Equipe Central e na base, capazes de assegurar uma supervisão eficiente; — a falta de transportes (apenas 1); — o grande número de Escolas não localizadas pela Equipe Central; — ótimas experiências no Setor de Politização e alguns programas radiofônicos de grande aceitação no meio rural; 304 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal — começo de estruturação de alguns Comitês locais; — insuficiente potência da Emissora (1 kw) para cobrir satisfatoriamente determinadas áreas, problema este agravado pela interferência da Rádio Tupinambá, de Sobral. Em face destas constatações, foi constituída uma Equipe de Supervisão. Esta, em 1963, em 38 encontros conseguiu reunir 747 monitores para uma revisão do trabalho. Nos 24 municípios atingidos pela Equipe de Supervisão no trimestre junho-agôsto de 1963, foram localizadas e visitadas 640 Escolas, tendo sido recolhidos 173 rádios “parados” Neste mesmo ano foram fundadas apenas 93 novas Escolas. Entre setembro de 1963 e março de 1964 outros 300 aparelhos “parados” foram recolhidos, cerca de 100 foram dados como estraviados, elevando-se para 944 o número de Escolas localizadas e visitadas pela Equipe de Supervisão. Do que acabamos de dizer aparece claramente que, para os anos de 1959, 1961 e 1962, pecam por exagero os números estimados de Escolas (de alfabetização) e de alunos. As estimativas para os outros anos são mais próximas à realidade. Os totais de alunos matriculados, por outro lado não compreendem todos os alunos que frequentaram Escolas Radiofônicas nos anos de 1962, 1963 e 1964: dos 203 monitores entrevistados (B.ll) e que haviam ensinado em 1964, 12% (24) não haviam enviado ficha de matrícula, devendo acrescentar-se a isto o estravio, todo ano, de certo número de fichas enviadas pelo correio ou por portadores. 2) Os alunos Um levantamento feito pelo Sociólogo Dr. Henk van Roosmalen (técnico do governo holandês, que ALCEU RAVANELLO FERRARO 305 esteve durante dois anos à disposição do SAR) permitiu uma serie de constatações. interessantes a respeito dos 16.133 alunos matriculados em Escolas Radiofônicas em 1962. a) Ao contrário do que se dá comumente nas Escolas Primárias no interior, as Escolas Radiofônicas apresentam maior número de alunos do sexo masculino do que do sexo feminino: respectivamente 8 592 (53,3%) e 7.541 (46,7%) (tabela 8 . 1 ) . Os dados que pudemos colher em nossa pesquisa realizada em 1965 junto a 248 monitores (B.l) acusam uma proporção ainda levemente mais elevada de alunos do sexo masculino: dos 3.723 alunos das 203 Escolas, cujos monitores entrevistados haviam ensinado em 1964 (os outros eram novos), 54,6% (2.004) eram do sexo masculino e 45,4% (1.663), do sexo feminino (não declarados — 56). Do total de alunos matriculados, de ambos os sexos, 56,5% (9.106) tinham 15 anos ou mais: 15 a 30 anos — 49% (7.770); 31 a 49 anos — 6,5% (1.141); 50 anos e mais — 1% (195). O significado destes dados torna-se óbvio, se lembrarmos que, no meio rural, especialmente no interior dos municípios, onde se encontra a quase totalidade das Escolas Radiofônicas, já a partir dos 11 anos a enxada começa a subtrair da Escola crianças, particularmente do sexo masculino, não restando, aos 13 — 15 anos, senão algumas mocinhas. Embora destinando-se, em princípio, a adultos (15 anos e mais), as Escolas Radiofônicas — seja por não haver outra Escola na localidade, seja para atender a crianças e adolescentes requisitados pelos pais para o roçado durante o dia, — funcionavam como Escola Primária co- 306 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mum para os restantes 42,5%, isto é, para 5.927 alunos de 14 anos e menos (tabela 8.1). Segundo os dados de nossa pesquisa, referentes às 203 Escolas acima mencionadas, em 1964 os alunos de 14 anos e menos constituíam apenas 32,9% contra 67,1% de 15 e mais anos (B.14). Os dados da tabela 8.1 revelam também que os alunos do sexo masculino são relativamente mais idosos do que os do sexo feminino: respectivamente 60% e 54%, de 15 anos e mais. Dos alunos matriculados em 1962, 40% dos alunos do sexo masculino, 51% dos do sexo feminino e 45% dos de ambos os sexos já eram alfabetizados (em Escolas Radiofônicas antes de 1962 ou em outra Escola). Para estes, a Escola Radiofônica representou uma oportunidade de prosseguimento na aprendizagem. Para os restantes 60% dos alunos do sexo masculino, 49% dos do sexo feminino e 55% dos de ambos os sexos — isto é, para cerca de 11.000 pessoas, se estimarmos em 20.000 o número de alunos em 1962: número superior ao dos alunos matriculados (16.133) e inferior à estimativa do MEB (25.399) — a Escola Radiofônica constituía, naquele ano, na área da Arquidiocese de Natal, a única oportunidade de alfabetização (tabela 8.2). Segundo a mesma tabela 8.2, encontram-se nos grupos de idade de 15-30 e 31-49 anos as percentagens mais elevadas de alunos já alfabetizados no início do ano letivo de 1962: respectivamente 42% e 48% entre os alunos do sexo masculino, 55% e 54% entre os alunos do sexo feminino, e 49% e 50% entre os de ambos os sexos. Sempre segundo a mesma fonte (omitimos de transcrever a tabela), á distribuição dos alunos de ambos os ALCEU RAVANELLO FERRARO 307 sexos era a seguinte, segundo as 4 séries: 70% — 1a série; 20% — 2a série; 8% — 3a série; 2% — 4a série. Isto nos leva a concluir não só que a maioria dos alunos matriculados em 1962 frequentavam a 1a série (70%), mas também que a maioria dos alunos das Escolas Radiofônicas só frequentavam a 1a série. De fato, a mais de 12 mil alunos matriculados na 1 a série em 1961, correspondia um total de pouco mais de 3.000 alunos matriculados na 2a série no ano de 1962. Que isto não se deva somente ao desinteresse dos alunos é manifesto: as aulas para as séries mais adiantadas eram transmitidas mais cedo, em horários impraticáveis especialmente para os que trabalham no campo desinteresse dos alunos é manifesto: as aulas para as séries mais adiantadas eram transmitidas mais cedo, em horários impraticáveis especialmente para os que trabalham no campo. Assim, do total de alunos matriculados em 1962, 15% dos do sexo feminino, contra apenas 5% dos do sexo masculino, frequentavam a 3a ou 4a série, sendo que mais da metade destes, de ambos os sexos, tinham mais de 15% anos. Outro fator a ser lembrado é o baixo nível intelectual de bom número de monitores, ao que alguém humoristicamente nos observou: “Quem não tem cão caça com gato!” Os dados de nossa pesquisa nos revelam que a situação melhorou um pouco nos anos seguintes: dos alunos matriculados em 1964 nas Escolas dos 203 monitores entrevistados e que haviam ensinado naquele ano, 60,3% (contra 70% em 1962) eram da Turma A, 29,1% da Turma B e 10,6% da Turma C. Em 1965 as Séries foram reduzidas a duas (Turmas A e B). 308 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal g) Dr. Henk van Roosmalen tentara, sem sucesso, utilizar as fichas de frequência de 1962. Foi-nos, também, absolutamente impossível chegar, com base nos dados administrativos, a qualquer conclusão sobre a frequência dos alunos das Escolas Radiofônicas no ano de 1964: alguns monitores não haviam enviado nem sequer uma ficha (mensal) de frequência, enquanto outros — a maioria — haviam-nas enviado irregularmente (salvo estravios) ou mal preenchidas As causas devem ser buscadas não tanto no desinteresse dos monitores, quanto 1) na falta de organização do serviço de distribuição das fichas, 2) no isolamento de muitas Escolas, o que obstacula não só a distribuição, como também a devolução das fichas preenchidas e 3) no fato de bom número de monitores não saberem preencher as fichas (estas soem aparecer após o período de treinamentos!). Em nossa pesquisa procuramos contornar o problema, solicitando, dos 203 monitores entrevistados e que haviam ensinado em 1964 uma estimativa da frequência média, nas respectivas Escolas, naquele ano. As 185 Escolas cujos monitores souberam fazer tal estimativa totalizavam 3.393 alunos (18,3 por Escola — média esta bem elevada, particularmente se observarmos que os monitores, ao indicar o número de alunos, geralmente subtraíam os que se haviam afastado no decorrer o ano) e apresentavam, segundo as estimativas dos monitores, uma frequência total diária de 2.567 alunos, o que representaria, para todas as Escolas conjuntamente, uma frequência média diária de 75,7% dos alunos, ou seja, de 3 alunos de cada 4. um índice de frequência desta ordem quer-nos parecer um tanto exagerado, mesmo limitando ALCEU RAVANELLO FERRARO 309 a estimativa às 185 Escolas pesquisadas: seria mais elevado do que o apresentado por bom número das Escolas municipais e estaduais do meio rural. Contudo, encontramos Escolas Radiofônicas — várias — com uma frequência de quase cem por cento. É por exemplo, o caso da “Radiofônica” de seu Severino, onde estudam 10 pessoas da família do monitor e 3 de uma família vizinha. “De dia, boto todo mundo no roçado — confiounos ele, referindo-se à sua família — e de noite, na Radiofônica. Ninguém escapa, a não ser por doença!” Foi também impossível, com base nos dados administrativos concluir qualquer coisa para o conjunto das Escolas Radiofônicas, quanto ao aproveitamento dos alunos. Sabemos que, como tantos outros monitores, Dona Emília — única pessoa alfabetizada (semi- analfabeta!) e única eleitora em sua localidade — preparou, em dois anos, 10 eleitores (com 11 eleitores já não foi difícil interessar o Prefeito para a fundação de uma Escola Municipal;) e que Lindalva, de 17 anos de idade, líder de sua comunidade e monitora há vários anos (desde os 13 anos), só tinha dois meses de Escola quando entrou na “Radiofônica” e, em 1965, já havia concluído, com outros 3 alunos, o 4o ano primário, enquanto outros já haviam terminado ou frequentavam as demais séries. Mais adiante, a propósito das 4 CT pesquisadas, teremos oportunidade de voltar ao assunto. 3) Os Monitores. Vejamos algo sobre este imenso voluntariado — os monitores de Escola Radiofônica. Os primeiros monitores foram recrutados dentre os líderes rurais que, seja antes, seja nos anos de 1958 a 1960, passaram pelo Centro de Treinamento de Líderes. 310 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Os primeiros treinamentos especializados para monitores tiveram início em 1961. Entre 1961 e 1964 foram, realizados 84 treinamentos, todos no interior, geralmente em sedes de município, com uma duração de 3 a 4 dias, atingindo um total de 2.137 participantes. Devido à já lembrada “sede radiofônica” em um número sempre crescente de sítios, fazendas e pequenos povoados do interior, o MEB, visando precisamente multiplicar as oportunidades, optou por um maior número de treinamentos e uma menor duração dos mesmos. Os 245 monitores que responderam à pergunta B.4 (entrevistados — 248) distribuem-se da seguinte maneira, segundo a idade: 15 anos e menos — 17 (6,9%); 16-20 anos — 93 (38,0%);21 - 30 anos — 84 (34,3%); 31-40 anos — 30 (12,2%); 41 e mais anos — 21 (8,6%). É, por conseguinte, elevado o número de jovens entre os monitores: quase metade destes (44,9%) têm 20 anos ou menos; apenas 20,8% passam dos 30 anos. Dos 1 084 participantes dos 45 treinamentos realizados em 1963 e 1964, foi-nos possível distribuir, segundo o sexo, 803 participantes de 31 destes treinamentos. destes 803, 16,7% (134) eram do sexo masculino, e 83,3% (669) do sexo feminino. Dos 248 monitores entrevistados em 1965, 14,1% (35) eram do sexo masculino, dos quais 60,0% (21) eram casados, enquanto que, dentre as mulheres monitoras, apenas 24,4% (52) eram casadas, 1,9% (4) de situação irregular, e as restantes 73,7% (157); solteiras. Considerando que o ensino primário no interior está confiado quase que exclusivamente a mulheres, parecenos elevada a proporção de homens entre os monitores ALCEU RAVANELLO FERRARO 311 (cerca de 1/6), particularmente se considerarmos que, contrariamente ao que acontece entre as mulheres, a maioria dos monitores-homens são casados. Isto significa que, como tantos outros, seu Severino, pai de família e pequeno agricultor no interior do município de São Pedro do Potengi, ainda com duas horas de sol deve trocar a enxada pelo giz, para tornar-se o mestre (gratuito) de um bando de analfabetos, de 8 a 25 anos, que, diariamente, se apinham na pequena sala de sua mais que modesta casa. Dos 248 monitores entrevistados, 243 especificaram o próprio grau de instrução (B7): 2,5% tinham apenas o 1o primário; 8,6%, o 2º primário; 37,9%, o 3º primário; 33,3%, o 4º. primário, e apenas 17,7 % haviam concluído o 5º ano primário. E os monitores são escoados sempre dentre as pessoas mais instruídas na localidade! Mas isto não é tudo. Em bom número de casos, o primeiro passo foi completar a obra de alfabetização dos próprios monitores. De fato, dos 248 monitores entrevistados, 137, ou sejam, 55,3% haviam estudado pelo menos 1 ano em Escola Radiofônica: 50 (20,2%) – 1 ano; 26 (14,5%) – 2 anos; 30 (12,1%) – 3 anos; 21 (8,5%) – 4 e mais anos. e) Por outro lado, a distribuição dos 248 monitores entrevistados segundo as respostas dadas as perguntas B.5, B.9 e B.10 nos permite fazer uma série de constatações de suma importância. 1 – dos 248 monitores entrevistados, 116 (46,8%) ensinavam somente em Escol radiofônica, enquanto que os outros 132 (53,2%) ensinavam também em outra Escola: Estadual – 0; Municipal – 48; Particular – 54 (tabela 8,3). 312 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 2 – dos 116 monitores que não ensinavam em nenhuma outra Escola, 72 (62,1%) haviam estudado pelo menos 1 ano em Escola Radiofonicas; 1 ano- 26; 2 anos – 17; 3 anos – 17; 4 e mais anos – 12 (tabela 8.1). 3 – dos 30 monitores que em 1965 ensinavam tanto em escola radiofônica como em escola estadual: 1) 9 (30,0%) haviam frequentado algumas escolas radiofônicas durante pelo menos 1 ano (tabela 8.3); 2) 7 monitores (23,3%) haviam começado a ensinar primeiro em escolas radiofônicas; 16 (53,4%), primeiro em escola estadual, e 7 (23,3%) haviam iniciado simultaneamente em ambas (tabela 8.4). 4 – dos 48 monitores que ensinavam em escolas radiofônicas e municipal; 1) 32 (66,7%) haviam frequentado escola radiofônica durante pelo menos 1 ano (1 ano – 13; 2 anos – 7; 3 anos – 8; 4 e mais anos- 4) (tabela 8,3); 2) 17 (35,4%) haviam ensinado primeiro em escola radiofônica; 15 (31,3%), primeiro em escola minicipal e 16 (33,3%) haviam iniciado simultaneamente em ambas a ensinar (tabela 8,4). 5 – dos 54 monitores que além da radiofônica, ensinavam também noutra escola particular; 1) 24 (44,4%) havia estudado durante pelo menos 1 ano em escola radiofônica (tabela 8,3); 2) 12 (22,2%) haviam ensinado antes em escola radiofônica; 27 (50,0%) haviam ensinado antes em outra escola particular e 15 (27,8%) haviam começado simultaneamente em ambas (tabela 8,4). 6 – sintetizando, podemos concluir o seguinte a respeito dos 132 monitores entrevistados que ensinavam também em outra escola: 1) 65 (49,2%) destes haviam estudado pelo menos 1 ano em escol radiofônica (1 ano – 24; ALCEU RAVANELLO FERRARO 313 2 anos – 19; 3 anos – 13; 4 anos e mais – 9), contribuindo assim, o ensino radiofônico para elevação do nível educacional também de professores de outras escolas (tabela 8.3); 2) se, por um lado, o MEB recrutara 58 pessoas que já ensinavam em outras escolas, por outro, 36 de seus monitores (dos 248 entrevistados) haviam passado a ensinar também em Escola Estadual (7), municipal (17) ou particular (12), enquanto que 38 haviam começado simultaneamente em ambas (tabela 8.4). O ensino radiofônico, por conseguinte, elevou o nível intelectual de seus monitores, diversos dos quais ensinavam também em outras Escolas, e foi, em bom número de casos, o ponto de partida para o surgimento de outras Escolas, inclusive preparando-lhes professores e deixando comunidades motivadas para o estudo. 4) Outros aspectos. Em longo estudo sobre o MEB, feito ainda em 1964, apontávamos uma série de causas, responsáveis pelas limitações encontradas no ensino radiofônico. 1. Limitada potência da Emissora. 2. Interferência da Rádio Tupinambá (Ceará). 3. Demora no conserto dos aparelhos avariados: estes devem ser enviados a Natal, sem que possam ser sempre imediatamente substituídos por outros. 4. Salas pequenas (quase todas as Escolas funcionam em casas de família); falta de inação adequada (talvez apenas metade das Escolas disponham de lâmpadas a ar, funcionado as outras à luz de candeeiros); falta de quadro negro em bom numero de Escolas; alunos que, por falta ou por impossibilidade número de mesas e cadeiras, apoiam os cadernos sobre os joelhos ou, em pé, apoiam- 314 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nos sobre a mão esquerda contra a parede ou o ombros do vizinho da frente. (D. Maria Juanara feição Lapa), que começara com 25 alunos em 1962, 30 em 1963, ensinavam, em 1964 a 38 alunos, 30 dos quais ficavam em pé: nem caberiam de outra torma numa sala de cerca de 3 x 4 metros!) 5.Baixo nível intelectual de bom número de monitores. 6. Aumento demasiadamente rápido do número de novas Escolas, especialmente nos anos de 1961 e 1962, em muitos casos sem a devida motivação das comunidades e o adequado treinamento dos monitores e sem que a Equipe Central estivesse em condições de assegurar uma supervisão eficiente às novas Escolas. 7. Supervisão pouco eficiente, particularmente pela ausência, na maioria das áreas, de comitês locais que colaborem com a Equipe de supervisão do MEB. 8. O próprio O próprio período escolar, que – sem lembrar os rios cheios, que, durante o inverno, impedem a frequência de certo número de alunos – inclui os dois períodos de trabalho agrícola mais intensos: o plantio e a colheita. (Em 1965 o período escolar foi modificado, começando já no fim das chuvas, apos a época do plantio). 9. A oposição da parte de alguns patrões (ameaças e expulsões da propriedade, inclusive), por conta do trabalho de conscientização e politização desenvolvido pelas escolas (combate ao “curral” eleitoral e apoio a sindicalização). 10. Falta de cooperação dos alunos, em algumas localidades, para a compra de pilhas e querosene e para a confecção de bancos e mesas. ALCEU RAVANELLO FERRARO 315 A propósito do item 7, a Coordenadora do MEB, que lera nosso trabalho sobre as Escolas Radiofônicas, fez, à margem, a seguinte observação que só agora, ao retomar o texto para a redação deste capitulo, percebemos: “gostaria que o senhor desse, como fez noutro lugar, a atuação dos monitores e comitês, o sentido profundo que precisam ter: povo assumindo o movimento para a própria promoção. Seu trabalho (dos monitores) não é colaboração conosco. Não deve ser, pelo menos Não é que somos assessores. Isto muda muito tudo. O senhor sabe” (Grifo da autora). A própria pesquisa nos quase dois anos que se seguiram após a redação daquele texto nos leva a afirmar que apesar de todos os obstáculos acima mencionados, muitos do quais independiam de boa vontade e de capacidade organizativa o ensino radiofônico teria lucrado muito em eficiência, tivesse o MEB levado com mais empenho à prática a norma de “povo assumindo o movimento” acima expressa nas palavras da Coordenadora. Vejamos. As Escolas Radiofônicas estão quase todas situadas em pequenos povoados sítios e fazendas no interior dos municípios, geralmente afastados da já precária rede de estradas intermunicipais. Acompanhando elementos da equipe de supervisão em vistas a cerca de 60 escolas em 12 municípios, tivemos oportunidade de dar-nos pessoalmente conta da dureza do trabalho realizado pelos supervisores, andando antena a beira do caminho, por dentro dos roçados ou atrás dos morros. Nesta peregrinação, mais de uma vez andamos quilômetros a pé, por dentro de roçados ou matas, em busca de escolas que – informavam os moradores a beira da rodagem – estavam logo aí... atrás do morro! 316 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Dados o elevado número de escolas, a precariedade das estradas e o alto custo de cada visita, a equipe não conseguiria assegurar nem sequer uma visita anual a cada uma das escolas. Daí ter o MEB pensado na criação de uma infraestrutura entre a equipe central (inclusive supervisão) e a base. Dos 30 comitês locais (municipais) organizados em 1963 e 1964, talvez 15 funcionaram de fato. A observação direta em mais de 30 municípios da arquidiocese de Natal, os contatos pessoais com cerca de 200 monitores, as vistas a aproximadamente 60 escolas nos confirmaram na conclusão de queas melhores escolas radiofônicas se concentraram precisamente naquelas áreas em que de fato funcionou a supervisão descentralizada, seja através de elementos da equipe de supervisão residentes no interior (dois), seja através de comitês municipais atuantes. Tivesse o MEB revisto em tempo a “maquina” por ele montada e concentrado seus esforços na efetivação desta infraestrutura, descentralizado a supervisão: 1) teria conseguido, com economia de dinheiro, um maior rendimento no trabalho; 2) teria mais facilmente superado os problemas advindos dos cortes nas verbas federais em 1964 e 1965. 3) teria montado um sistema – realista – capaz de ser mantido mesmo após a não-renovação do convenio em 1966. Provavelmente por não ter tido problemas sérios de ordem financeira (era mantido pelo convenio) o “irmão rico” (os outros setores do SAR consideravam-se os “irmãos pobres”) incorreu, segundo nosso modo de ver, em alguns erros graves na montagem do sistema radiofônico de Natal. ALCEU RAVANELLO FERRARO 317 a — Antes do advento do MEB, as comunidades interessadas organizavam-se e adquiriam o seu rádio. O MEB passou a distribuir gratuitamente os aparelhos. É verdade: isto estava no Convênio. Mas, pelo que pudemos observar, tudo o que é simplesmente dado, mais dificilmente consegue ser educativo. A experiência dos Centros Sociais confirma este ponto de vista: os Centros Sociais construídos exclusivamente com recursos locais, além de, geralmente, haverem sido construídos mais depressa, são mais “nossos” — para os comunitários — e mais dinâmicos. b — Desde nosso primeiro contato com o MEB, ficamos surpreendidos com o grande número de estudantes entre os componentes da Equipe Central (de Coordenação, Produção e Supervisão). Pudemos constatar que, em 1964, novos estudantes foram admitidos contra a vontade explícita de D. Eugênio: era preciso combater o clericalismo e, além disto, o MEB de Natal tinha bem consciência de, em virtude do Convênio, estar diretamente subordinado à Equipe Nacional, no Rio! O mais grave foi ter confiado a supervisão a uma equipe composta quase que exclusivamente de estudantes. Em consequência, as viagens de supervisão, mesmo quando em áreas distantes 100, 200 e mais quilômetros da Capital, não podiam durar mais do que três dias, um dos quais era dispendido em viagem de ida e volta. A maior parte do tempo a Equipe de Supervisão, que chegou a contar com 10 elementos, apinhava-se numa estreita sala em Natal! Acreditamos que três elementos sem compromissos escolares poderiam ter feito o mesmo trabalho, com grande economia não só de pessoal, mas também de 318 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal quilômetros rodados, de vez que poderiam permanecer por mais tempo no interior, diminuindo o número de deslocamentos a grandes distâncias, economizando tempo e diminuindo o custo da supervisão de cada Escola. Com a redução feita nas subvenções federais após 31 de março de 1964, o MEB consumou seu erro, demitindo os dois únicos elementos da Equipe de Supervisão que residiam no interior e supervisionavam as duas áreas (Nova Cruz e S. Paulo do Potengi) de maior densidade e, provavelmente, de melhores Escolas radiofônicas. c — Poderíamos, finalmente, observar que o sistema montado pelo MEB, porque centralizado, requeria grande número de funcionários e. consequentemente, só poderia ser mantido enquanto durasse o Convênio. Acontece que os cortes vieram, inesperadamente em 1964, repetiram-se em 1965, recusando-se o Governo, em 1966, por razoes óbvias e já mencionadas na I Parte, a renovar o Convênio. Consultados, não pelo MEB, que está agonizante, mas por D. Nivaldo, querer a todo custo salvar as Escolas Radiofônicas, observamos--lhe que isto nos parecia perfeitamente viável, com as seguintes condições: — que o Setor possa dispor de aproximadamente 1/3 dos recursos financeiros que antes lhe facultava o Convênio; — que o Setor volte ao realismo dos “Irmãos Pobres”, substituindo o sistema centralizado, dispendioso e, por isso mesmo, demasiadamente vinculado à continuidade de ajudas externas, por um sistema mais descentralizado, menos dispendioso e, porque estribado numa participação voluntária ainda mais ampla, menos dependente de ajudas externas; ALCEU RAVANELLO FERRARO 319 — que, em vez dos 30 elementos de antes, se reduza a Equipe Central a não mais de 7 a 10 funcionários, a tempo integral e sem compromissos escolares; — que, sempre que possível, se faça uso de transportes coletivos, bem menos dispendiosos; — que se organizem imediatamente Comitês locais, preferivelmente de âmbito paroquial, que, após treinamento adequado e contando com o assessoramento de um elemento da Equipe Central, possam assumir a supervisão das Escolas; — que a supervisão, em vez de consistir em visitas de 15 minutos a cada Escola, se oriente para reuniões de revisão e treinamento de monitores, aproveitando-se para isto o afluxo espontâneo dos mesmos às sedes de capela, nos dias de missa, e às sedes paroquiais ou sedes municipais, nos domingos ou dias de feira; — que, em caso de criação de novas Escolas, não se distribua gratuitamente o rádio, mas se motive a comunidade para adquiri-lo; — que o órgão Federal competente conceda finalmente a, há dois anos, pedida e esperada autorização, para que a Emissora possa funcionar com pelo menos metade da potência de seu novo transmissor de 10 kw, instalado já em 1964! 3. ALFABETIZAÇÃO Ficou demonstrado no Capítulo V que, segundo os dados do Censo de 1950, cada CT e correspondente CNT 320 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal situavam-se, naquela data, em áreas de idênticos índices de pessoas alfabetizadas. A atuação dos Poderes Públicos após 1950 não só foi mantida constante r pares de comunidades, mas até mais favorável às comunidades não trabalhadas, de vez que, na data da pesquisa (julho de 1965), contra apenas duas das quatro CT, três das quatro CNT tinham Grupo Escolar. O único outro fator que interveio após 1950 foi o trabalho do SAR: intenso nas quatro CT e nenhum ou mínimo nas CNT. Nossa hipótese era que, apesar de a ação dos Poderes Públicos haver sido relativamente mais intensa nas CNT, as CT, em consequência do trabalho do SAR, apresentariam, com relação às primeiras, uma proporção mais elevada de pessoas alfabetizadas, diferença esta que se concentraria nas faixas de idade compreendidas entre 11 e 30 anos (a população mais atingida) e que seria mínima ou nenhuma entre a população de 31 e mais anos (a menos atingida pelo trabalho do SAR, neste campo). A própria tabulação dos dados foi feita de maneira a permitir a verificação desta hipótese. A tabela 8.5 apresenta a distribuição, segundo a instrução, por grupos de comunidades e de idade, dos 1.247 membros de 11 anos e mais, de 357 famílias pesquisadas. O número de não-respostas não ultrapassou os 2,2%; cerca de 28 pessoas, de 11 anos e mais, de 8 famílias (CT — 3, CNT — 5). O resumo seguinte dos dados da tabela 8.5, representados no gráfico 8.1, nos permite tirar uma série de conclusões quanto à alfabetização nos dois grupos de comunidades. ALCEU RAVANELLO FERRARO 321 a — Entre toda a população de 11 anos e mais (TOTAL), a proporção de pessoas alfabetizadas é da ordem de 1/3 (33,7%) nas CT, contra menos de 1/4 (23,9%) nas CNT. O teste de qui-quadrado revela ser inferior a 1 por 1.000 a probabilidade de tal diferença (9,8% a mais nas CT) resultar do próprio processo de amostragem, ou seja, que tal diferença entre os dois grupos de comunidades é significativa a um nível muito alto, superior a 1/1.000. b — para os grupos de idade de mais de 30 anos temos as seguintes proporções de pessoas alfabetizadas, respectivamente nas CT e nas CNT: 10,0% e 10,3% (-0,3% nas CT) entre a população de 51 e mais anos; 13,2% e 9,6% (+3,6% nas CT) entre a população de 41-50 anos; e 27,8% e 29,3% (-1,5% nas CT) entre a população de 31-40 anos. Em ambos os grupos de comunidades a proporção de alfabetizados passa de cerca de 10% entre a população de 41-50 e 51 e mais anos, para quase 30% entre a população de 31-40 anos. Considerando toda a população de 31 e mais anos (os três grupos de mais de 30 anos), temos, respectivamente nas CT e nas CNT, 18,1% e 15,5% de alfabetizados. A pequena (não significativa) diferença em 322 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal favor das CT (2,6% a mais de alfabetizados) entre a população de mais de 30 anos ficaria reduzida a apenas 0,5% (16,0% e 15,5% de alfabetizados, respectivamente nas CT e nas CNT), não fossem 6 pessoas das CT de mais de 30 anos, alfabetizadas em Escolas Radiofônicas. Independentemente do trabalho do SAR, por conseguinte os dois grupos de comunidades não diferem por mais de 0,5% (em favor das CT) quanto à proporção de alfabetizados entre a população de mais de 30 anos. c — A diferença altamente significativa encontrada entre os dois grupos de comunidades quanto à proporção de alfabetizados entre todas as pessoas de 11 anos e mais, concentra-se quase totalmente entre as pessoas de 11-30 anos. De fato, temos as seguintes percentagens de alfabetizados, respectivamente para as CT e CNT. 47,2% e 29,7% (+ 17,5% nas CT) entre as pessoas de 21-30 anos 45,3% e 28 4% (+ 16 9% nas CT) entre as pessoas de 16-20 anos; 46,2% e 32,3% (+ 13,9% nas CT) entre as pessoas de 11-15 anos. Se considerarmos toda a população de 11-30 anos (os três grupos de idade: 11-15, 16-20 e 21-30) temos, respectivamente para as CT e CNT, 46,4% e 30,3% de alfabetizados (+ 16,1% nas CT). Esta diferença é ainda mais significativa (a um nível muito superior a 1/1.000) do que a encontrada entre toda a população de 11 anos e mais. d — Outros dados, que não figuram na tabela 8.5, nos permitem ir ainda mais longe na confrontação entre os dois grupos de comunidades do ponto de vista de alfabetização. Assim, entre as pessoas de 11 anos e mais, as CT apresentam, com relação às CNT, não só uma proporção maior de pessoas alfabetizadas, mas também um nível ALCEU RAVANELLO FERRARO 323 de instrução mais elevado. De fato, de cada 100 pessoas de 11 e mais anos, 5,9% nas CT, contra apenas 2,9% nas CNT (proporção de 2 para 1) tinham, na data da realização da pesquisa, 4o ou 5o ano primário completo. Se considerarmos somente as pessoas de 11 anos e mais que sabiam ler e escrever, o número dos que tinham 4o ou 5o ano primário completo em julho de 1965 era da ordem de 17 4% nas CT (37/212 alfabetizados), contra apenas 12,2% nas CNT (18/148 alfabetizados). e — Relacionando os dados seguintes com os números absolutos da tabela 8.5 referentes às CT, observamos que 78 sobre 629 pessoas de 11 e mais anos (12,4%) — 7 sobre 282 pessoas de 31 anos e mais (2,5%) e 71 sobre 347 pessoas de 11-30 anos (20,5%) — haviam aprendido alguma coisa em Escola Radiofônica: 31 — somente, 5 principalmente, 21 — igualmente e 21 — só secundariamente em Escola Radiofônica. O total acima (78) exclui algumas pessoas que frequentaram Escola Radiofônica sem terem aprendido nem sequer a assinar o nome, mas inclui 15 pessoas que, embora não se possam dizer alfabetizadas, aprenderam pelo menos a assinar o nome, o que já constitui para as mesmas — na maioria pessoas de mais de 20 anos — uma promoção, pois lhes possi- 324 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal bilita participar, através do voto. na vida política do país. Aliás, temos encontrado bom número de pessoas adultas que frequentaram Escola Radiofônica com o objetivo primeiro de tornar-se eleitores. Mas, sobre isto, voltaremos a falar em outro Capítulo. Se multiplicarmos o total de 78 por 2,675 (pelo inverso da proporção de famílias e, consequentemente, de pessoas pesquisadas nas CT), podemos, com 95% de probabilidade, estimar em 209 + - 0 (203-215) o número de pessoas de 11 anos e mais que, nas 4 CT pesquisadas, frequentaram Escola Radiofônica com algum proveito, seja que este se deva somente, principalmente, igualmente ou só secundariamente ao ensino radiofônico. Embora em proporção muito menor do que as CT, as CNT acusam um número relativamente elevado de pessoas que afirmaram ter aprendido alguma coisa em Escola Radiofônica: somente — 1 (Serrinha); principalmente — 0; igualmente — 6 (Barra do Geraldo - 1; S. Estevam — 5); e só secundariamente em Escola Radiofônica - 7 (todos em Fonte): 14 pessoas ao todo. Contrariamente às informações que nos haviam sido dadas pelo MEB, encontramos em Fonte, que supúnhamos não trabalhada, uma Escola Radiofônica; a influência desta Escola revelou-se também no que tange à saúde preventiva, como já tivemos oportunidade de observar. Igualmente, nas vizinhanças de S. Estevam funcionam Escolas Radiofônicas, que atingiram algumas pessoas desta localidade. Outras das 14 pessoas das CNT, que declararam haver aprendido algo em Escola Radiofônica, haviam frequentado tais Escolas, quando residentes em outras localidades. Isto nos leva a concluir que as CNT deveriam ser considera- ALCEU RAVANELLO FERRARO 325 das como pouco trabalhadas e não como simplesmente não trabalhadas pelo SAR. Não fosse, por conseguinte, esta influência do ensino radiofônico nas próprias comunidades não trabalhadas, a diferença entre os dois grupos de comunidades, do ponto de vista de alfabetização, seria provàvelmente mais acentuada do que a que acabamos de encontrar. A longa observação nos confirma na opinião de que esta diferença encontrada entre os “dois grupos de comunidades quanto à alfabetização não deve ser atribuída exclusivamente ao ensino radiofônico, mas ao trabalho do SAR, no seu conjunto. Antes das Escolas Radiofônicas já funcionavam, em alguns casos, escolas de alfabetização, motivadas pelo SAR. Em Serrote (Ia. CT), por exemplo, contrariamente ao que acontece em Barra do Geraldo (1a CNT), bom número de pessoas de 15 anos e mais frequentam a Escola Isolada que aí funciona, motivadas indiscutivelmente pelo trabalho do SAR, iniciado a cerca de 10 anos naquela comunidade. Concluindo este parágrafo, podemos dizer que, no que tange a alfabetização, nossa hipótese verificou-se plenamente (veja gráfico 8 1): 1) as CT apresentam, com relação às CNT, uma proporção significativamente maior de alfabetizados entre as pessoas de 11 anos e mais; 2) esta diferença concentra-se quase que totalmente nas faixas de idade compreendidas entre 11 e 30 anos; 3) esta diferença deve-se ao trabalho do SAR. 326 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 4. ESCOLARIDADE A alfabetização é função da escolaridade: uma proporção mais elevada de pessoas alfabetizadas só poderia resultar de uma proporção mais elevada de pessoas que estudam. Neste particular, nossa hipótese era de que as CT apresentariam uma curva de escolaridade mais levada do que as CNT. Para a verificação desta hipótese incluímos um item sobre a escolaridade de todas as pessoas de 7 anos e mais, de todas as famílias pesquisadas. O número de não respostas foi novamente mínimo: cerca de 25 pessoas de 7-40 anos, de 8 (CT — 3, CNT — 5) das 365 famílias pesquisadas. Os dados referentes a todas as pessoas de 7-40 anos (após esta idade ninguém estudava) encontram- se na tabela 8.6 e aparecem representados nos gráficos 8.2 e 8.3. Comecemos por considerar o gráfico 8.2 e os respectivos números percentuais no fim da tabela 8.6 (totais CT e CNT). Seguindo o padrão habitualmente encontrado no meio rural, as 4 CNT apresentam conjuntamente, para cada grupo de idade, as seguintes proporções de pessoas que estudam: 7-10 anos — 51,7% (escolaridade máxima); 11-15 anos — 38,3%; 16-20 anos — 18,6%; 21-30 anos — 4,2%; 31- 40 anos — 2,7% (escolaridade mínima e, a partir daí, nula). As 4 CT, ao contrário, apresentam para cada grupo de idade as seguintes percentagens de pessoas que estudam: 7 -10 anos — 54,5% (curva crescente, deste para o seguinte grupo de idade); 11-15 anos. — 73,5% (escolaridade máxima e diferença máxima com relação às CNT: 73,5%, contra 38,3%); 16-20 anos — 32,6%; 21-30 anos — 10,6%; 31 -40 anos — 1,7% (escolaridade mínima e, a partir daí, nula). ALCEU RAVANELLO FERRARO 327 Entre a população de 7-10 anos as CT apresentam, com relação às CNT, uma percentagem levemente mais elevada, mas não significativamente diversa (p=.70), de pessoas que estudam: 54,5% e 51,7%, respectivamente. Dos 7-10 para os 11-15 anos observamos um fenômeno interessante: enquanto, do primeiro para o seguindo grupo de idade, a escolaridade baixa, nas CNT, de 51,7% para 38,3%, nas CT a escolaridade segue sentido contrário, elevando-se de 54,5% para 73,5%, atingindo assim a curva de escolaridade das CT o seu ápice aos 11-15 anos, e alcançando a diferença entre os dois grupos de comunidades o seu máximo (73,5%, contra apenas 38,3%, numa proporção de quase 2:1). Tal diferença revela-se significativa a um nível extremamente elevado (muito superior a 1 por 1.000). Nos grupos de idade seguintes também a curva de escolaridade das CT passa a ser descendente. Entre as pessoas de 16 - 20 anos, as CT continuam apresentando uma escolaridade significativamente mais elevada do que as CNT, embora com uma diferença menor entre os dois grupos (32 6% contra 18,6%) e a um nível mais baixo de significância (5%) Com relação às pessoas de 21-30 anos encurta-se ainda mais a distância entre as CT e as CNT, com uma escolaridade de 10,6% e 4,2%, respectivamente. Esta diferença embora não o alcance, beira o nível de significância de 5%. Daí por diante, em ambos os grupos de comunidades a escolaridade é mínima e quase idêntica entre as pessoas de 31-40 anos (1,7% nas CT e 2,7% nas CNT) e nula entre as pessoas de 41 anos e mais. 328 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Como já observamos, nossa hipótese era de que as CT apresentariam, com relação às CNT, uma curva mais elevada de escolaridade, mas de maneira alguma suspeitáramos apresentassem uma curva diversa de escolaridade, com seu ápice deslocado dos 7-10 para os 11-15 anos. Ao apercebermo-nos do fato, pensando tratar-se de algum equívoco, controlamos outra vez, minuciosamente todos os dados, recorrendo depois à confrontação em cada um dos 4 pares de comunidades: até que ponto cada CT e correspondente CNT manifestariam as mesmas tendências encontradas nos dois grupos de comunidades? É o que veremos, referindo-nos ao gráfico 8.3, construído com base nos dados da tabela 8.6. a — Na sua origem (7-10 anos) a curva de escolaridade de cada CT, relacionada com a correspondente CNT, apresenta-se levemente menos elevada nos pares I e III, levemente mais elevada no IV par e bem mais elevada no II par. Tais dados não nos permitem concluir sobre uma diversidade de comportamento nos dois grupos de comunidades quanto à escolaridade entre as pessoas de 7-10 anos. b — Com relação aos outros grupos de idade (a partir dos 11 anos) as CT dos pares I, II e III apresentam curvas de escolaridade nitidamente mais elevadas do que as das correspondentes CNT. Apenas no IV par, a curva de escolaridade de Redenção (CT), inicialmente mais elevada (7 -10 e 11-15 anos) passa, a partir dos 16 anos, a situar-se num nível mais baixo do que a de Serrinha (CNT). c — Dos 7 -10 anos para os 11-15 anos, a curva de escolaridade das CT é ascendente nos pares I, III e IV (respectivamente de 36,0% para 66,7%; de 48,3% para 85,3%; e ALCEU RAVANELLO FERRARO 329 de 68% para 72,4%), permanecendo no mesmo nível no II par (70% e 70%), sendo que, neste último caso, a própria escolaridade entre 7-10 anos atingiu um índice muito elevado. O importante é observar que, em nenhum caso, a curva é descendente, sendo, em três casos, ascendente. d — Ao contrário do verificado nas CT, dos 7-10 para os 11-15 anos a curva de escolaridade das CNT em nenhum caso é ascendente, sendo descendente nos pares I, II e III (respectivamente de 45,5% para 31,2%; de 31,8% para 19,4%; e de 50,0% para 30,0%), permanecendo no mesmo nível no IV par (65,8% e 65,8%). Quanto às CT apresentarem curvas de escolaridade tipicamente diversas (escolaridade máxima aos 11-15 anos) das encontradas nas CNT (escolaridade máxima aos 7-10 anos), os dados parecem deixar pouca dúvida. Quanto às CT, pelo menos no que concerne a população de 11 anos e mais, apresentarem curvas de escolaridade mais elevadas do que as oferecidas pelas CNT, não resta dúvida no que tange aos pares I, II e III de comunidades. Quanto ao par IV, não podemos dizer a mesma coisa. Levemente mais elevada aos 7-10 e 11-15 anos, a partir dos 16 anos a curva de escolaridade de Redenção (CT 4) passa a mover-se num nível mais baixo do que a de Serrinha (CNT 4). Aqui, porém, importa lembrar o que já dissemos no Capítulo V. Serrinha apresenta uma série de vantagens com relação a Redenção: além de ser menos isolada, sua população (a da localidade e que foi considerada na pesquisa, não a do município) residia praticamente toda no aglomerado (então vila e hoje cidade, sede do Município), enquanto que mais de metade da 330 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal população de Redenção vivia dispersa Não nos é possível determinar até que ponto estes fatores tenham influência nas duas curvas de escolaridade. O povo de Redenção, contudo, tem consciência da mudança havida, o que, em grande parte atribui ao trabalho do SAR (dos líderes locais, motivados e orientados pelo SAR). A mudança do nome de “Gangorra” para Redenção e a expressão desta consciência. 3) Acabamos de receber de uma professora e líder de Serrote (CT 1) dados referentes à matrícula, naquela localidade, em agosto de 1966. Estes dados, distribuídos, no quadro seguinte, segundo o tipo de Escola frequentada, e a idade e sexo dos alunos, além de confirmar o que acabamos de ver sobre a escolaridade nas CT, nos permitem uma série de observações interessantes. Infelizmente a informante não explicou a idade de cada um dos 20 alunos da Escola Radiofônica, limitandose a dizer que todos estavam compreendidos entre 14 e 30 anos. ALCEU RAVANELLO FERRARO 331 Dos 72 alunos que frequentam a Escola Primária comum (Escola Isolada), apenas 20 (27,8%) são do sexo masculino. Destes 20,17 frequentam a 1a série, e 3, a 3a série, sendo que nenhum deles tem mais de 15 anos, e apenas 6 tem mais de 10 anos. Dos 52 alunos do sexo feminino, ao contrario, 11 frequentam a 4a ou 5a série, sendo que 9 tem mais de 15 anos. É o que acontece comumente no meio rural: dos alunos do sexo masculino, por serem muito cedo requisitados pelo pais para o trabalho agrícola, poucos continuam a frequentar nos períodos de intenso trabalho nos campos, e dificilmente vão além da 2a série primária. É interessante observar como, em Serrote, 20 rapazes de 14-30 anos, que, em outras circunstâncias, não teriam oportunidade de alfabetizar-se ou de prosseguir nos estudos, encontram refúgio na Escola Radiofônica (noturna). Como pudemos constatar, alguns destes rapazes, quando crianças, não haviam frequentado a escola. Já as moças, diversas das quais, inicialmente, como os rapazes, recorriam a Escola Radiofônica, passaram a frequentar a Escola Isolada, cujas professoras são remuneradas pelo estado, mas devem ao SAR seus cursos de aperfeiçoamento. Lembrem-se ainda que a Escola funciona no prédio do centro social da comunidade, por falta, em Serrote, de um grupo Escolar do Estado. O Curso de Madureza (Ginásio pelo Rádio), iniciado pelo SAR em 1965, em Convênio com o Ministério da Educação e Cultura e com a Secretaria de Estado da Educação e Cultura, veio abrir novas perspectivas para a população de Serrote, até então, por distar cerca de 3 léguas da sede do Município, sem acesso ao curso ginasial. 332 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Assim, 10 pessoas (9 moças e um rapaz) estão atualmente fazendo o Ginásio. Se considerarmos somente os que frequentam as Escolas Isolada ou Radiofônica, temos, em Serrote. 40 alunos do sexo masculino, para 52 do sexo feminino, numa proporção de 4 para 5, respectivamente. Não fosse o ensino radiofônico, esta proporção provavelmente não seria muito superior a 2 para 5, respectivamente do sexo masculino e feminino. Tanto Serrote (CT 1) como Barra do Geraldo tinham, em meados do decênio dos anos 50, quando teve início o trabalho do SAR na primeira comunidade, apenas 1 professora. Em meados de 1965 (data da pesquisa) Barra do Geraldo, com uma populaçao um pouco maior e mais aglomerada do que Serrote, dispondo de um Grupo Escolar do Estado, continuava com 1 professora, esta mesma vinda de fora (uma légua de distância) e, por isso mesmo, faltando com frequência, e não mais de 40 alunos matriculados, praticamente todos, crianças. Serrote, não dispondo de Grupo Escolar e com uma população relativamente menor e mais dispersa do que Barra do Geraldo além de ter “exportado” uma professora para uma localidade próxima contava com 4 pessoas ensinando, em 1965, a cerca de 90 alunos e em 1966 a 102 alunos, a maioria .dos quais, jovens e adultos. Já havia sido conseguida do Estado contratação de mais uma professora para Escola Isolada. As duas professoras desta Escolas com a ajuda de outras duas pessoas - uma moça e um rapaz - ensinavam gratuitamente num dos turnos da Escola Isolada, no curso de madureza e na Escola Radiofônica. ALCEU RAVANELLO FERRARO 333 A propósito desta ultima, não restam, em Serrote senão o símbolo (o rádio sobre a mesa) e o nome (radiofônica): bem ouvida pela manhã (6 horas) no curso de Madureza, a emissora deixou de ser ouvida a noite, na hora da transmissão das aulas para as Escolas Radiofônicas. Para atender aos rapazes, todo o “professorado” (as 4 pessoas de ensinar) passou a revezar-se voluntariamente no ensino, transformando a “radiofônica” numa escola de ensino direto, mantendo, porém, o horário noturno. CAPÍTULO IX 5. CONCLUSÃO O associativismo, isto é, a pertinência a grupos voluntários, em contraposição a grupos espontâneos, está intimamente relacionado com o fenômeno do desenvolvimento. No que tange a formas associativas tipicamente secundárias, já observamos no Capítulo VII que as CT apresentam um número significativamente mais elevado de associados a Cooperativas e teremos ocasião de tratar do Sindicalismo no próximo capítulo. No presente Capítulo limitar-nos-emos à consideração de formas associativas voluntárias — permanentes ou ocasionais — mais de perto relacionadas com o desenvolvimento de pequenas comunidades: 1) grupos voluntários permanentes, de caráter de si secundário, mas que, pelo pequeno porte dos mesmos e o âmbito restrito das comunidades em que atuam, facilmente evoluem para grupos de tipo primário, e 2) outras formas associativas ou cooperativas não permanentes, dentro do âmbito de pequenas comunidades rurais (tais são as 8 comunidades por nós pesquisadas). Em outras palavras, poderíamos dizer Concluindo este Capítulo, podemos dizer que o trabalho do SAR representou, nas 4 comunidades trabalhadas e por nós pesquisadas, uma notável contribuição no que tange à instrução, seja elevando significativamente o índice de alfabetização entre a população de 11-30 anos, seja elevando significativamente (com a ressalva feita com relação ao IV par comunidades) a curva de escolaridade a partir dos 11 anos, seja ainda modificando a própria curva de escolaridade, deslocando-lhe o ápice dos 7-10 para os 11-15 anos. A funcionalidade, do ponto de vista de desenvolvimento, de tais mudanças é manifesta: técnicos em desenvolvimento são unanimes em apontar a alfabetização e a escolaridade como critérios de desenvolvimento. A terceira, a mudança da curva de escolaridade, o fato mais surpreendente, porque totalmente inesperado, na pesquisa – reputamo-la, pelas razões já indicadas no decorrer deste capítulo, a de maior significado do ponto de vista de desenvolvimento. 334 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal FORMAS ASSOCIATIVAS E COOPERATIVAS, AÇÃO COMUNITÁRIA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL ALCEU RAVANELLO FERRARO 335 que se trata de verificar se e em que sentindo o trabalho do SAR teria modificado as concepções, as atitudes e o comportamento dos habitantes das CT, no que tange às relações sociais existentes entre os habitantes de uma mesma comunidade, ou seja, no que tange às relações comunitárias. 1. FORMAS ASSOCIATIVAS PERMANENTES, DE PEQUENO PORTE Interessam-nos aqui somente os grupos voluntários permanentes, de pequeno porte, restritos ao âmbito da comunidade local. Centro Social. Das 8 comunidades pesquisadas, somente três as quatro CT (Serrote, Potengi e Redenção) tem Centro Social. Estes centros estão abertos à participação de todas as pessoas da comunidade, mesmo que não sejam associadas. Das 138 famílias cujos chefes nestas três comunidades, se declararam 67, ou seja, 48 ,6% das famílias eram, em meados de 1965, associadas a Centro Social. Por categoria profissional, temos os seguintes números relativos de associados: patrões – 66,7% (14/21); pequenos proprietários – 52,2% (24/26); trabalhadores rurais – 38,6% (22/57); outros – 50,0% (7/14). Esta forma associativa e cooperativa interessou, por conseguinte, a todas as categorias profissionais. Os trabalhadores rurais são proporcionalmente menos representados (38,6%), mas apresentam, depois dos pequenos proprietários (24), o número absoluto mais elevado de associados (22). Sur- 336 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal preendente é que patrões – os mais avessos a tais formas associativas – estejam tão bem representados (66,7%). Segundo a idade dos respectivos chefes, temos as seguintes proporções de famílias associadas: chefes até 30 anos — 61,9% (13/21); 31-40 anos — 52,4% (22/42); 41-50 anos — 47,1% (16/34); 51 anos e mais — 39,0% (16/41). As famílias mais jovens, ou de chefes mais jovens, estão representadas em maior proporção. Contudo, mesmo as famílias de chefes de 51 e mais anos estão bem representadas (39,0%). Associações de mulheres. Das 168 mulheres (esposas ou mães viúvas ou separadas), membros das famílias pesquisadas nas 4 CT, 39 (23,2%) pertenciam a Clube de Mães. Segundo as comunidades, a proporção de mulheres associadas era a seguinte: Serrote — 50,0% (23/46); Redenção — 22,5% (9/40); Potengi — 9,1% (4/44); Jundiá de Cima — 7,5% (3/38). Nas duas últimas, em proporção bem inferior à das outras duas comunidades. Se considerarmos todas as mulheres (não só as das famílias pesquisadas) teremos, nas CT, cerca de 90 associadas a Clube de Mães. Em contraposição, entre todas as mulheres das CNT encontramos apenas quatro senhoras (tôdas de Serrinha e já bem idosas) associadas ao Apostolado da Oração, sendo que uma delas era também terceira franciscana e carmelita — todas estas, associações católicas tradicionais. Grupos de rapazes e moças. Embora bom número de crianças e adolescentes (de menos de 14 anos) pertençam, nas CT, a Clubes Agrícolas e, alguns, à Pré-JAC, limitamonos aqui a considerar o associativismo entre os solteiros — rapazes e moças — de 14-30 anos. ALCEU RAVANELLO FERRARO 337 A proporção de associadas a um ou mais grupos, sobre o total de moças de 14 - 30 anos pertencentes às famílias pesquisadas em cada uma das 4 CT, é a seguinte: Serrote — 10/24; Potengi — 16/23; Jundiá de Cima — 6/13; Redenção — 9/23. Nas 4 CT conjuntamente, de 83 moças de 14-30 anos (membros das famílias pesquisadas), 41, ou sejam, 49,4% eram associadas a um ou mais grupos: — JACF (Juventude Agrária Católica Feminina) ....... 12 — JACF e Clube de Jovens ............................................. 10 — Clube de Jovens ......................................................... 14 — Clube de Jovens e Clube Agrícola ............................ 3 — Clube Agrícola ............................................................. 2 Nas CNT, ao contrário, só encontramos 3 moças, todas elas de Serrinha, associadas à JACF, e uma delas também a Clube de Jovens. Mas isto já é o começo do Movimento em Serrinha. Nas CNT não encontramos nenhum rapaz associado a que quer que fosse. Nas CT, ao contrário, dos 91 rapazes de 14 - 30 anos, membros das famílias pesquisadas, 21, ou sejam, 23,1% eram associados à JAC, sendo que 12 destes pertenciam também a outro grupo. Dados recentes que nos chegam de Serrote (CT 1) nos dizem que, naquela comunidade, 67 famílias são associadas ao Centro Social. 73 mães, ao Clube de Mães; 17 rapazes, à JAC; 15 moças, à JACF e 37 crianças e adolescentes, ao Clube Agrícola. Isto. numa comunidade de cerca de 150 famílias. Para julgar da extensão e da importância dada pelo SAR a estas formas associativas, basta lembrar que, dos 248 monitores entrevistados em meados de 1965 (Ques- 338 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tionário B) 111, ou sejam, 44,8% pertenciam pelo menos a um grupo: JAC Clube de, Jovem, Clube Agrícola de Mães, Movimento Familiar Cristão (casais), sem lembrar outras formas associativas de âmbito mais vasto, como o cooperativismo e sindicalismo. 2. COOPERAÇÃO COMUNITÁRIA l) O caso de Carnaúba. Com o intuito de averiguar-lhes a capacidade de imaginar soluções e de verificar até que ponto julgavam poder provir da própria cooperação comunitária a solução de determinado problema – a ausência de Escola, no caso – propusemos a todas as pessoas sorteadas, de 14 e mais anos, dos dois grupos de comunidade, o fato seguinte (A.34): “Na localidade de Carnaúba não há Escola. O que o senhor sugere para resolver este problema?” a) Os entrevistados distribuem-se da seguinte maneira segundo as categorias em que foram agrupadas as respostas (tabela 9.1). respectivamente nas CT e nas CNT, 32,5% e (apenas) 14,3% observa que o povo do lugar (todos juntos, todos unidos, a comunidade...) poderia ou deveria construir uma Escola; 4% e 1,9%, que o povo deveria falar com as autoridades; 10,9%contra 17 1% que as autoridades deveriam construir uma Escola; 25,3% e 25,1% (na rnesma proporção, praticamente) que se deveria construir uma Escola, sem especificar a quem caberia fazelo; e, sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 27,3% ALCEU RAVANELLO FERRARO 339 e 41,6% (em proporção muito mais elevada nas CNT) demonstraram-se conformados com a situação ou declararam não ter sugestão a dar. Conjuntamente, 72,7% dos entrevistados das CT, contra 58,4% dos das CNT, deram ao povo de Carnaúba alguma das 4 sugestões acima mencionadas. O mais interessante, porém, é observar as duas categorias extremas: de todos os informantes, contra apenas 1/7 nas CNT, nas CT quase 1/3 declarou que o povo do lugar poderia construir uma escola, enquanto que, contra mais de 2/5 nas CNT, pouco mais de ¼ dos entrevistados das CT demonstrou-se conformado com a situação ou não soube dar nenhuma sugestão. O teste de qui-quadrado acusa nas CT, com relação as CNT, uma proporção significativamente mais elevada, a um nível de significância superior a 1/1.000, de pessoas que deram alguma sugestão. Por outro lado, aplicado aos dados agrupados em três categorias de respostas (colunas 3+4 x 5+6 x 7), o teste de qui-quadrado revela que os entrevistados das CT são, a um nível ainda mais elevado de significância, mais propensos a resolver através da cooperação comunitária um problema como a falta de Escola. b) Com relação ainda à pergunta A.34, os dados foram distribuídos, na tabela 9.2, por comunidades e por grupos de idade, mantidas distintas as duas categorias extremas de respostas, e agrupados em “outra sugestão” todos aqueles que, sem dizer que o povo do lugar poderia construir uma Escola, deram alguma das outras três sugestões mencionadas na tabela anterior. Dos dados assim agrupados e distribuídos, podemos, sem entrar muito em detalhes, tirar uma série de conclusões, que vêm confirmar o que acabamos de ver. 340 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal a — A proporção de pessoas que souberam dar alguma sugestão é mais elevada em todas as 4 CT, seja cada uma delas relacionada com a correspondente, seja com todas as 4 CNT. De fato, contra um máximo de 82,5% (Jundiá de Cima) e um mínimo de 65,5% (Redenção) nas CT, o número relativo dos que souberam dar alguma sugestão fica compreendido, nas CNT, entre um mínimo de 48,9% (Barra do Geraldo) e um máximo de 64,3% (Fonte), máximo este inferior ao mínimo encontrado nas CT (65,5%). De outra forma e considerando a última coluna da tabela 9.2, aparece que o número relativo máximo de pessoas conformadas ou sem sugestão a dar encontrado nas CT (Redenção — 34,5%), fica aquém do mínimo encontrado nas CNT (Fonte — 35,7%) (tabela 9.2-A). b — A parte A da tabela 9.2 nos permite observar também como o número relativo de pessoas inclinadas a solucionar o problema através da cooperação comunitária é mais elevado em todas as 4 CT, seja que se confronte cada uma destas com a correspondente, seja com cada uma das 4 CNT. De fato, respectivamente a cada CT e correspondente CNT de cada um dos 4 pares de comunidades correspondem os seguintes números relativos de pessoas que indicaram que o povo do lugar deveria construir uma Escola: 41,7%, contra 15,9%; 26,4%, contra 10,7%; 39,2%, contra 18,6%; e 23,0%, contra 12,3% sempre respectivamente para cada CT e correspondente CNT o número relativo mínimo dos que assim opinaram nas CT (2d,u /o em Redenção) é bastante mais elevado do que o máximo encontrado nas CNT (18,6%). c — O número relativo dos que, em cada grupo de comunidades e de idade (tabela 9.2-B), souberam apre- ALCEU RAVANELLO FERRARO 341 sentar alguma sugestão: 1) é quase idêntico nas CT e nas CNT (respectivamente 52,0% e 51,0%) para o grupo de idade mais avançada (51 e mais anos), é levemente mais elevado nas CT do que nas CNT ( respectivamente 72,2% e 68%) para o grupo de idade de 41-50 anos e 3) e acentuadamente mais elevado nas CT do que nas CNT, com uma diferença de cerca de 20% a mais, para cada um dos grupos de idade mais jo vem: respectivamente 80% contra 60,0%, para a população de 31-40 anos; 80,5% contra 57,1%, para a população de 21-30 anos; e 79,0% contra 61,4%, para a população de 14-20 anos. Quanto a capacidade de imaginar soluções para o problema dado por conseguinte sem apresentar diferenças, pelo menos não acentuadas nos grupos de idade mais avançada (a partir dos 41 anos), as CT levam, no que tange aos três grupos de idade mais jovem, grande vantagem sobre as CNT. A julgar somente pelo número relativo dos que souberam apresentar alguma sugestão, sem distinguir os tipos de sugestões dadas, deveríamos concluir que, sob o aspecto analisado, o SAR só teria atingido a população de 40 anos e menos. d — Segundo todos os grupos de idade, mesmo entre as pessoas de 51 e mais anos, onde encontramos a menor diferença entre os dois grupos de comunidades (respectivamente 25% e 17%), as CT apresentam um número relativo nitidamente mais elevado do que as CNT, de pessoas que opinaram que o problema poderia (deveria!) ser resolvido através da cooperação comunitária, isto é, que o próprio povo do lugar deveria construir uma Escola. A proporção mais elevada de pessoas que assim declararam encontra-se, nas CNT, entre a população de 14-20 342 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal anos (17,1%), proporção esta que fica muito aquém da mínima encontrada nas CT e precisamente entre a população de 51 e mais anos (25,0%). Segundo estes dados, a população mais idosa das CT (51 e mais anos) teria uma atitude mais favorável à cooperação comunitária, do que a própria população mais jovem das CNT (14-20 anos). Embora não possamos determinar em que intensidade, as próprias declarações de alguns entrevistados das CNT, que afirmaram que o próprio povo do lugar poderia construir uma Escola, deixam transparecer uma influência do próprio trabalho do SAR. Assim um chefe de família de S. Estevam (CNT 1) observou: “Se o povo de Potengi (CT 1) construiu uma Escola (o Centro Social onde funciona a Escola), porque o povo de Carnaúba não pode fazer o mesmo?”. O caso de Bela Vista. Uma sociedade subdesenvolvida, assim como tem tendência a atribuir fatalisticamente à vontade de Deus tudo o que acontece (a morte prematura de uma criança, por exemplo), da mesma forma está inclinada a esperar tudo dos Poderes Públicos e a responsabilizá-los por todos os males ou carências existentes. Com o objetivo de verificar se as CT apresentavam uma atitude menos fatalista com relação aos Poderes Públicos, propuzemos o caso seguinte (A. 35): “Na localidade de Bela Vista também não há Escola. O povo foi falar com o Prefeito. Este disse que não podia fazer nada. Falaram então com o Governador. Este se prontificou a pagar uma professora, mas não pode construir a Escola. Na localidade não há nenhuma sala suficientemente grande para os 30 alunos que querem estudar. O povo não sabe o ALCEU RAVANELLO FERRARO 343 que fazer. O que é que o senhor acha que se poderia fazer neste caso: 1. Esperar até que o Prefeito ou o Governador de decida a construir uma Escola? 2. Ou tem outra sugestão? (Se tem) Qual?”. a) Em proporção mais elevada, em ambos os grupos de comunidades, do que no caso anterior, mas com uma diferença igualmente significativa (a um nível superior a 1/1.000) em favor das CT, 47,6% nestas, contra apenas 33,6% dos entrevistados das CNT, repudiaram a atitude fatalista e afirmaram que o próprio povo do lugar deveria construir uma escola, enquanto que os outros 52,4% e 66,4%, respectivamente nas CT e nas CNT, não viam outra possibilidade, senão esperar pelas Autoridades (tabela 9.3-A). b) A parte B da tabela 9.3 nos permite duas observações quanto à distribuição dos informantes segundo o sexo. Primeiramente, o número relativo dos que afirmaram que o povo do lugar deveria construir uma Escola é mais elevado nas CT do que nas CNT, tanto entre os entrevistados do sexo masculino (respectivamente 50,7%, contra apenas 37,6%), como entre os do sexo feminino (43,4%, contra apenas 27,4%, respectivamente nas CT e nas CNT). Embora isto independa do trabalho do SAR, observese, em segundo lugar, que, em ambos os grupos de comunidades, os homens, em proporção maior do que as mulheres, apelaram para a solução do problema através da cooperação comunitária (povo do lugar): assim opinaram 50,7% dos homens e apenas 43,4% das mulheres das CT, e 37,6% dos homens e apenas 27,4% das mulheres das CNT. 344 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal c) Vejamos agora a atitude dos diversos grupos de idade nos dois grupos de comunidades (tabela 9.3-C). Oscilando entre 29,3% (população de 21-30 anos) e 36,4% (população de 31-40 anos), não difere sensivelmente entre os diversos grupos de idade o número relativo dos que, nas CNT, declararam que o próprio povo do lugar deveria, sem esperar pelas Autoridades, resolver o problema. Nas CT, ao contrário, o número relativo dos que assim opinaram, partindo de um mínimo de 37% entre a população de 51 anos e mais mínimo este levemente superior ao número do correspondente grupo de idade (35,4%) e praticamente idêntico ao máximo (36,4%) encontrado nas CNT), eleva-se, à medida que passamos para os grupos de idade mais jovem, sucessivamente para 40,4%, 47,7% e 55,8%, atingindo os 57,9% (o máximo) entre a população mais jovem (14-20 anos). d) Aos que, no caso proposto (A.35), em ambos os grupos de comunidades, declararam que o “jeito” era esperar pelas Autoridades, foi perguntado (A.35a): “O senhor acha que o povo mesmo do lugar poderia construir uma sala de aula?” Respectivamente nas CT e nas CNT (os dados não aparecem em tabela), 58,1% e 47,3% responderam “sim”, e 19,7% e 13,2%, “talvez” (em proporção acentuadamente mais elevada nas CT, por conseguinte) 8,6% nas CT e 8,8% nas CNT (praticamente na mesma proporção) declararam não saber; os “não”, por sua vez, foram muito menos frequentes nas CT do que nas CNT (respectivamente, 13,6%, contra 30,7%). Se às diferenças anteriormente encontradas (A.35 — tabela 9.3) adicionarmos as aqui observadas (A.35a), torna-se ainda mais evidente que a população das CT é acentuada e significativamente mais propensa ALCEU RAVANELLO FERRARO 345 “Em Pitombeira não há nenhum local onde o povo b) Deixando para o parágrafo 3 o resto da tabela 9.4 (dados distribuídos segundo o sexo), vejamos como se manifestaram os entrevistados dos dois grupos de comunidades com relação à possibilidade de concretização da ideia de seu João e seu Pedro. Aos que se haviam manifestado favoravelmente à ideia dos dois foi feita a pergunta A. 36b: se possa reunir para uma festinha, uma diversão, “A reunião foi feita, e a maioria se entusiasmou com uma reunião ou para discutir os problemas do a ideia e decidiu construir uma sala para o povo se lugar. Seu João e seu Pedro pensaram em convidar reunir. O senhor acha que o povo de Pitombeira, o povo para uma reunião, para tratar do assunto. que é pobre, poderá construir o seu Centro Social?” à solução de problemas através da cooperação comunitária, do que a população das CNT. 3) O caso de Pitombeira. Continuando a confrontação sob o mesmo ponto de vista, vejamos a atitude manifestada pelos entrevistados de 14 anos e mais, dos dois grupos de comunidades, com relação ao caso seguinte (A.36): As esposas de seu João e seu Pedro não gostaram muito da ideia, porque acham que eles devem preocupar-se com a família e não com reuniões e construção de sala, o que só vai criar confusão na localidade. Quem o senhor acha que tem razão: seu João e seu Pedro, ou as esposas deles?” a) Considerando todos os entrevistados de 14 anos e mais (tabela 9.4, homens + mulheres), a proporção dos que deram razão a seu João e seu Pedro, isto é, dos que se demonstraram favoráveis ao empreendimento comunitário dos dois, é muito mais elevada nas CT do que nas CNT (70,5% e 52,2%, respectivamente), sendo, consequentemente, muito menos elevada nas CT do que nas CNT a proporção de pessoas que desaprovaram o empreendimento (29,5% e 47,8%, respectivamente para cada grupo de comunidades). Esta diferença, como as encontradas nas tabelas 9.1 e 9.3, revela-se extremamente significativa, a um nível muito superior e 1/1.000. 346 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Os que já se haviam manifestado contrários ao empreendimento planejado pelos dois homens de Pitombeira foram computados como tendo respondido “não” à presente pergunta. Assim, sobre o total de entrevistados dos dois grupos de comunidades, 52,1% (182/- 349) entre os das CT, contra apenas 31,4% (100/318) entre os das CNT declararam que, apesar de pobre, o povo de Pitombeira tinha possibilidade de construir seu Centro. Se, já nos dados da tabela 9.4, encontramos uma diferença altamente significativa em favor das CT (a um nível muito superior a 1/1.000), esta diferença demonstra-se, aqui, ainda mais elevada e mais significativa. Este fato pode ser expresso de outra forma: nas CT 70,5% (246/349) aprovaram a ideia, e, dentre os que a aprovaram, 74,0% (182/ 246) acreditam na possibilidade de. o povo de Pitombeira concretizá-la; nas CNT, ao contrário, apenas 52,2% (166/318) aprovaram a ideia, e dentre os que a aprovaram, apenas 60,2% (100/166) acreditam na possibilidade de esta vir a ser concretizada. ALCEU RAVANELLO FERRARO 347 As CT, por conseguinte, não só apresentam um número relativo, significativamente mais elevado, de pessoas que aprovaram, mas também, dentre os que aprovaram um número relativamente mais elevado de pessoas que acreditam na possibilidade de o povo de Pitombeira levar a termo o empreendimento planejado. 3. ATITUDES SEGUNDO O SEXO Os dados referentes às perguntas A.36 e A.36a, nos permitem uma série de observações sobre a atitude dos entrevistados dos dois grupos de comunidades com relação à participação social, tanto das pessoas do mesmo sexo, como das do outro sexo. a) Voltemos à tabela 9.4. Entre os homens, a proporção dos que se manifestaram favoravelmente ao empreendimento comunitário de seu João e seu Pedro foi da ordem de 71,9% nas CT, contra 60,8% nas CNT, demonstrandose esta diferença significativa ao nível de 5%. Entre as mulheres, a proporção das que manifestaram a mesma atitude com relação àquela forma de participação social dos homens foi da ordem de 68,6% nas CT, contra apenas 39,5% nas CNT, revelando-se esta diferença significativa a um nível extremamente elevado (superior a 1/1.000). Estes dados, por conseguinte, não só demonstram que as CT apresentam um número relativo, significativamente mais elevado, de pessoas — tanto homens, como mulheres — favoráveis à participação dos homens em empreendimentos fundados na cooperação comunitária, 348 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mas também que o número relativo dos que manifestaram tal atitude é, nas CT, quase tão elevado entre as mulheres (68,6%), quanto entre os homens (71,9%), enquanto que, nas CNT, é muito menos elevado entre as mulheres (39,5%) do que entre os homens (60,8%). Em outras palavras isto significa que, com relação àquela forma de participação social dos homens, o número relativo de mulheres das CT que a “permitem” é quase tão elevado, quanto o de homens que, no mesmo grupo de comunidades, a “reivindicam”, ao passo que, nas CNT, o número de mulheres que a “permitem” fica muito aquém do de homens que, no mesmo grupo de comunidades, a “reivindicam”. Portanto, se nas CT, a mudança atingiu as pessoas de ambos os sexos, esta parece ter sido mais intensa entre as mulheres do que entre os homens. b) Vejamos agora a atitude dos entrevistados de ambos os sexos, dos dois grupos de comunidades, com relação à participação social da mulher. Aos que se manifestaram favoráveis à iniciativa tomada por seu João e seu Pedro foi feita a pergunta seguinte (A.36a): “A quem o senhor acha que seu João e seu Pedro deveriam convidar para a reunião: somente os homens e rapazes, ou também as mulheres e moças?” Não havendo por que esperar-se o contrário, os que se haviam manifestado desfavoravelmente à iniciativa dos dois homens de Pitombeira foram computados como tendo-se manifestado desfavoravelmente também à participação das mulheres na reunião desaprovada. Assim, 65,3% dos homens e 65,4% das mulheres das CT contra 51,3% dos homens e apenas 31,8% das mulheres das CNT, ALCEU RAVANELLO FERRARO 349 demonstraram-se favoráveis à participação da mulher na reunião convocada pelos dois. Estes dados merecem ulterior análise. Observe-se primeiramente que, em ambos os grupos de comunidades e entre as pessoas de ambos os sexos, o número relativo dos que aprovaram a participação da mulher é menos elevado do que o daqueles que haviam aprovado a a participação dos homens; esta baixa, porém, foi relativamente menor nas CT (respectivamente de 71,9% para 65,3% entre os homens e de 68,6% para 65,4% entre as mulheres), do que nas CNT (respectivamente de 60,8% para 51,3% entre os homens e de 39,5% para 31,8% entre as mulheres). Observe-se, em segundo lugar, que nas CT, semelhantemente ao encontrado na atitude com relação à participação dos homens, também com relação à participação da mulher no empreendimento comunitário, é praticamente tão elevado o número de mulheres que a “reivindicam”, quanto o de homens que a “permitem”. No que tange às CNT, observamos um fato curioso: embora sempre menos elevado do que entre os homens e mulheres das CT, é mais elevado nas CNT tanto o número relativo de homens que “reivindicam” para os do mesmo sexo, do que o de mulheres que lhes “permitem”, quanto o de homens que “permitem”, do que o de mulheres que “reivindicam” para as do mesmo sexo a participação no empreendimento comunitário. O que observamos neste Capítulo nos leva a concluir: 1) que, independentemente do trabalho do SAR, os homens seriam mais propensos a participar e a permitir que as mulheres participem de tais atividades comuni- 350 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tárias, do que estas lhes permitiriam ou reivindicariam para as do mesmo sexo; 2) que, em consequência do trabalho do SAR, elevou-se significativamente nas CT o número relativo de homens e especialmente de mulheres que demonstram tal atitude, atingindo praticamente o mesmo nível o número de pessoas que “reivindicam” para as do mesmo sexo e o de pessoas que “permitem” às do outro sexo tal forma de participação social; 3) que, embora menos do que nas CT, também nas CNT é relativamente elevado o número especialmente de homens que se manifestaram favoravelmente a tal forma de participação social, seja dos homens, seja das mulheres; 4) que, em consequência, as múltiplas formas associativas e cooperativas encontradas nas CT, devem-se não somente ao desenvolvimento de uma atitude favorável, mas particularmente ao fato de o SAR ter dado oportunidades e ter criado condições para isto; 5) que a quase total ausência, nas CNT, de tais formas associativas e cooperativas deve ser atribuída não só a uma atitude menos favorável, mas, também, e principalmente, ao fato de não lhes haverem sido dadas oportunidades e criadas condições isto como, por exemplo, através de treinamentos e formação de grupos). 4. PARTICIPAÇÃO SOCIAL DA MULHER Se considerarmos também o associativismo tipicamente secundário (cooperativismo e sindicalismo rural), é extremamente mais elevado o número de homens ALCEU RAVANELLO FERRARO 351 pertencentes a associações voluntárias, do que o de mulheres. Se, porém, nos limitarmos àquelas formas associativas circunscritas ao âmbito da pequena comunidade interiorana (grupos de pequeno porte e tendentes a evoluir para grupos primários), o índice de associativismo é bem mais elevado entre as mulheres do que entre os homens. No que diz respeito ao trabalho do SAR (dados de 1965) os 26 Centros Sociais e os 31 Clubes Agrícolas atingem pessoas de ambos os sexos, enquanto que os 31 Clubes de Jovens e os 12 Clubes de Mães (o de Serrote tem 73 associados) atingem somente a população feminina. Lembre-se ainda a Juventude Agrária Católica (JAC), que, só na Arquidiocese de Natal tem mais de 60 Secções ou Núcleos ativos, atingindo a juventude tanto masculina como feminina — esta, em maior proporção. Observese que a JAC, embora sendo um movimento missionário e, por isso mesmo, independente do SAR, sempre, seja na cúpula, seja na base, desenvolveu suas atividades em estreita colaboração com este no conjunto, tais formas associativas atingem em maior proporção a população feminina do que a masculina. Se é verdade que o trabalho do SAR esteve, na base, estribado na participação voluntária tanto de homens como de mulheres, não se pode não lembrar que, no tocante à atuação dentro do âmbito das pequenas comunidades interioranas, as mulheres tiveram um papel de destaque não só no que tange à participação em grupos voluntários, mas também à participação em outras formas cooperativas. Assim, por exemplo, cerca de 85% dos monitores de Escolas Radiofônicas são mulheres. Estas, em bom número de casos, lideraram em suas comunidades o próprio movimento de sindicalização dos ho- 352 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal mens. Tais fatos nos chamam a atenção para um aspecto possivelmente de extrema importância em se tratando de desenvolvimento de pequenas comunidades rurais: a participação da mulher. Independentemente do trabalho do SAR, a mulher desempenha papel de destaque nas comunidades interioranas: o ensino primário é função quase privativa da mulher. Partindo precisamente de uma função sancionada pela tradição — o ensino — o SAR estendeu paulatinamente a outros campos — notadamente à ação comunitária — a participação social da mulher, enquanto que, nas comunidades não atingidas pelo SAR, especialmente no interior dos municípios, a mulher, excetuados o ensino e a participação nas atividades religiosas, fica quase que exclusivamente circunscrita ao âmbito da família. Do ponto de vista de desenvolvimento de comunidade (pelo menos, de pequenas comunidades rurais), parecenos de estrema importância o fato de o SAR haver ampliado a função social da mulher ou de lhe haver atribuído novos papéis sociais na comunidade: o nível de instrução é mais elevado entre as mulheres, e são precisamente elas que têm mais tempo disponível. Não teria, por conseguinte, a mulher um papel de destaque no desenvolvimento de comunidades do tipo que analisamos? 5. ALGUNS DEPOIMENTOS Deixemos de lado a assim chamada “Área Piloto” do Movimento de Natal — a Paróquia de São Paulo do Po- ALCEU RAVANELLO FERRARO 353 354 tengi — que abrange 4 municípios, com uma população superior a 30.000 habitantes, e que mereceria, por si só, não um Capítulo, mas um estudo à parte. Deixemos também de lado as quatro CT, nas quais foram aplicados questionários, bem como tantas outras comunidades trabalhadas pelo SAR, e de cujas atividades tivemos oportunidade de inteirar-nos pessoalmente. Vejamos apenas, a título de exemplificação do que analisamos neste Capítulo, o trabalho desenvolvido em alguns pequenos sítios do interior, isolados e nunca por nós visitados, tal qual nos é descrito por monitores de Escolas Radiofônicas, em cartas de 1962. Para não truncar demasiadamente o texto e não perder outros detalhes interessantes, transcrevemos também trechos referentes a outros aspectos do trabalho do SAR, que não os analisados neste Capítulo. Embora tenhamos feito correções na ortografia e pontuação, procuramos manter intacto o estilo. Grifamos alguns termos, cuja ocorrência vale ser observada. 1) A “Radiofônica de seu Severino. Seu Severino, agricultor, participara do “movimento” no povoado de Redenção (CT 4). Mudando-se para Tanques, pequeno sítio no município de Santo Antônio do Salto da Onça, iniciou aí, com uma Escola Radiofônica, “movimento” semelhante. Segue a história narrada por ele próprio: fazer!’ - gritem todos os alunos, e eu, animando “Dona Carmem! Estou muito sacrificado com a O prefeito daqui deu ‘uma mil covas’ de terra para minha Escola, porque os alunos não querem estu- a Escola. Um vereador deu 70 carnaubeiras de 20 dar pelo rádio e não estão acompanhando a leitura palmos cada uma ‘Quero fazer e faço até sozinho!’ do livro. É por isto que me sinto perturbado. Outra - e o meu grito, todo o dia Nada mais de um moni- coisa que me perturba: eu estudei em Redenção, tor que trabalha para a melhora deste povo que me no meio da sociedade (!), e aqui em Tanques o povo estima. (Idem, 8/6/62)”. Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal é rebelde, malicioso e não quer saber de religião. Apenas deram o nome de católicos. Dona Carmem, eu ensinei nos dias em que não teve aula, porque, se eu faltar, eles saem da Escola, porque são ignorantes, e é muito dificílimo (!) acabar com ela (a ignorância). Outro motivo de fracasso: eu não tenho tempo de escutar os programas, porque sou agricultor e, além disso, a escola é isolada (distante), e eu só vejo o rádio na hora das aulas ou então no domingo Eu só estou ensinando porque tenho dó dos pobres analfabetos e também porque sou mariano. Tenho este privilégio”. (Descreve, a seguir, a situação dos alunos: alguns mais adiantados, outros menos. Tanques, Monitor Severino Lourenço da Silva, 28/2/62). “A minha escola continua cada vez com mais entusiasmo e progresso. Eu estou trabalhando para fazer uma festinha na noite de São João, e para isto nós já temos Cr$4.250, que o povo vai dando em beneficio da Escola... Espero que vá render mais de Cr$ 8.000. Os alunos com os moradores da comunidade gritam ‘avante’ para fazer a sede da Escola, e, depois deste mês, nós iremos continuar na construção da sede que será o futuro Centro Social de Tanques. ‘Vamos ALCEU RAVANELLO FERRARO 355 356 “O que me desgosta é eu não fazer este curso de um povo politizado É por isto que estamos poden- politização. Já faz mais de 20 dias que não pude dar do conseguir tudo, porque eu só trabalho para liber- mais aulas pelo rádio. Procure dar um jeito. (Não tar o povo brasileiro da escravidão que está havendo sabemos se se tratava de defeito técnico do apare- agora. Dona Zelia, as Escolas Radiofônicas estão tra- lho ou interferência da rádio Tupinambá). Fizemos zendo a liberdade para o Brasil por intermédio da uma festinha na noite de São João, mas não prestou, Emissora de Educação Rural, graças a D. Eugênio. devido a um aluno que interrompeu todo o tra- Zélia, para a melhora desta terra ou de minha balho. Mas eu fiquei satisfeito, porque foi em paz. terra, eu resolvi mudar o nome de tanques. Fiz Dei uma suspensão (!) nas aulas por sete dias e, du- uma reunião e foi aprovada pelo povo a mudança rante este período, mudei a Escola para outra casa, para ‘Nova Esperança’. Falta só a Câmara aprovar”. porque o povo da casa onde eu ensinava era contra (Idem, 13/7/62). a Escola. Mas eu não desanimo. Continuo trabalhan- “O trabalho desta localidade está bem beneficiado do pelo povo que me odeia. Não houve prova na e bem progressivo, graças a Deus. Já fiz duas cam- minha Escola, devido o rádio não prestar. Estamos panhas em benefício da escola, e todas as duas ti- trabalhando para comprar uma mesa, porque a que veram grandiosos proveitos. Na primeira, a cam- tínhamos era emprestada. Nós arranjamos 4 ban- panha do tijolo todo o mundo cooperou bastante. cas no valor de Cr$4.000 e vamos comprar também As moças e as mulheres do lugar trabalharam como uma lâmpada Colman e estamos estudando um nunca eu esperava; os moços fizeram tijolos, fize- plano para começar a construção de um Centro, de ram campanhas e chegaram a carregar muita água que já falei. Sim, na reunião que houve em Nova para a fabricação do tijolo, e finalmente, mostra- Cruz, eu fiquei como representante do Sindicato”. ram as suas bravuras sociais. A ia a campanha da (Idem, 28/6/62). pedra. Os homens quebraram as pedras e os moços “Nesta mando para você algumas novas. O movimen- fizeram um bingo, que rendeu a importância de to educativo aqui em Tanques vai evoluindo mais e Cr$ 2.500 em beneficio desta campanha. Nós es- mais. Nós estamos trabalhando para construir um tamos na campanha da telha para terminar cam- Centro Social nesta localidade. E para isso já com- panha do material do Centro Social da Escola Santa pramos as portas, os caibros, as ripas, as linhas, Luzia. Se Deus nos ajudar a vencer as dificuldades as telhas e finalmente já arranjamos quase todo o inauguraremos, daqui para o dia 12 de dezembro material para a construção do futuro prédio. Não no Centro Social de Tanques. A maior dificuldade foi tudo comprado mas já tivemos possibilidade de deste lugar é fazer a união deste povo. Tanques e arranjar tudo isto O povo deste lugar está ficando povoado por três grandes famílias, e estas famílias Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 357 cada uma quer ser melhor, e nunca se unem para Porque sei ler, e meu irmão não sabe; tenho o que estudar e trabalhar juntas. Eu tenho mais de 50 alu- comer e meu irmão não tem; tenho sapato, meu nos mas só assistem 28, por não haver união entre irmão não tem; tenho roupa, meu irmão não tem; as famílias. tenho casa para morar, meu irmão não tem. É isto Tem mais de 40 alunos esperando que faça a casa, que faz meu coração sentir que morrerei em de- ou seja, o Centro Social. Nem estudam e nem tra- fesa do próximo... Vou terminar porque a minha balham, e por isto é que não posso dizer quantos história é um discurso, e o papel não dá”... (Idem alunos tenho. Vou terminar 17/11/62). porque estou com sono”. (Idem, 13/10/62). 358 Não nos consta que a Câmara tenha aprovado a mudança do nome de Tanques, mas isto não impede que o trabalho ali desenvolvido signifique “Nova Esperança”: O estilo quase impecável demonstra tratar-se de pessoa bastante instruída. O tom é, por vezes, oratório, mas os fatos estão aí para demonstrar a transformação de um líder, o qual, por sua vez, transforma uma comunidade! “No dia 1o de novembro fiz a campanha do ali- “Lúcia chegou a oportunidade de me dedicar a cerce do Centro Social da Escola. Foi maravilhoso! escrever para você, contando a evolução social de Compareceram 6 homens e trabalharam com tan- minha comunidade. Graças a Deus nós já estamos to entusiasmo, que pareciam querer acabar com terminando de construir o Centro Social pelo qual a miséria do mundo (!). Serviço de gastar 15 dias há muito tempo trabalhávamos. No dia 23 deste eu eles fizeram em 6. Estou reunindo o povo para fiz uma reunião com o povo do lugar, e neste dia começar no dia 27 deste, porque de material só fal- nós fundamos o Centro Social E neste mesmo dia tava a telha, mas, graças a Deus, já encontramos foi escolhida a diretoria... (Seguem os nomes das 9 quem desse. No dia 27 temos certeza que iniciamos pessoas escolhidas sendo que seu Severino foi elei- a construção daquele maravilhoso prédio, que vai to Presidente). No dia da posse tive o maior prazer acabar com a cegueira deste povo pobre que vive na minha vida, porque eu não esperava que che- morrendo na ignorância. D. Carmen, hoje eu estou gassem a assistir uma média aproximada de 200 com uma viva lembrança daquelas doces palavras pessoas. Eu já criei um time de futebol e creio que que ouvi saindo da boca de Raimunda e Lúcio, que vai dar um grande resultado ao Centro. Se Deus diziam: ‘O monitor é um líder que gira em tômo da quiser e o povo quiser, tudo se vence. O Centro So- comunidade na prática do bem’. Foi naquele dia que cial Educador Santa Luzia, criado pelo povo, está em entrou no meu coração o prazer de perder ate a acabamento e já nos estamos preparando para a minha própria vida por amor do próximo. Por quê? inauguração no dia 20 de janeiro. Já estamos traba- Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 359 lhando para arranjar uma máquina de costura para cio, Cr$ 50 para as primeiras despesas: gás, pilha, dar um curso de corte e costura às moças pobres antena. No dia 15 de fevereiro convidei todo o pes- desta terra. Para isto eu já planejei que no dia 20 (dia soal para uma reunião. Iniciei explicando aos pais da inauguração do Centro Social) nós deveríamos e aos alunos o que era a Escola Radiofônica e falei fazer uma festa, para, com a renda, comprar uma também em Centro Social. Depois que terminou máquina a prestações. Nós arranjamos a máquina, a reunião, uns saíram dizendo: ‘Sabe que a coisa eu já arranjei a professora paga pelo Vice-Prefeito. vai!’ Outros diziam: ‘Vai nada!’ Continuei trabal- Prezadas amigas do M.E.B.! Eu acredito, se não mu- hando... (Passa a narrar as diversas campanhas fei- dar, Tanques será uma das maiores comunidades do tas em prol da construção do Centro, já descritas Município de S. Antônio, e espero que você esteja à anteriormente, ressaltando que a melhor de todas frente para fazer uma visita a meu lugar, junto com foi a dos tijolos, ‘porque — diz ele — trabalharam a equipe... Eu vou colocar um ponto final porque até as mulheres’). “No dia 26 foi a inauguração (do não é jornal, e mesmo porque eu só posso contar Centro). Depois, por iniciativa do Presidente do Sin- todo o passado do meu movimento com 10 folhas de dicato Rural, o sr. Sebastião Getúlio da Silva, veio Papel”. (Idem, 28/12/62). a construção de uma capela, em frente ao Centro “Tanques era uma localidade abandonada como Social. Assim a localidade melhorava dia a dia. Ser muitas outras” — historiava seu Severino, em monitor foi o maior passo que dei em minha vida, carta, após um ano de trabalho. Não havia Escolas. porque aprendi a viver com Deus e conheci que o Mas o povo estava querendo estudar. Falei da Es- homem não pode viver só e vi o valor da união. cola Radiofônica. De início, não acreditavam muito. Monitores, precisamos estar unidos para podermos Depois que expliquei, todo mundo ficou entusias- ajudar uns aos outros Porque no amor e na união mado. Saí um dia e matriculei 20 pessoas. Comecei podemos tudo e sem isto nada seremos. Tanques, a pensar no que devia fazer para fundar aquela Es- um ano atrás, não tinha nada Hoje tem Escola, cola: tínhamos o problema do local, dos assentos, Centro Social, Catecismo para as crianças! brinque- do lampeão, do gás. As autoridades não se interes- dos em família para todo o povo. Reuniões todos saram. No primeiro dia de aula chegaram os alunos os meses para educar o povo. Tudo isto se deve a matriculados. Primeiro expliquei para todos o que uma pequena Escola Radiofônica”. (Idem. A Ordem, era uma Escola Radiofônica, e que era preciso a co- que publicou esta carta, data-a de 12/12/61. Deve laboração e ajuda de todos para manter a Escola. ter havido um equívoco, devendo ser posterior a 26 A Escola era de todos, todos deviam ajudar. Eles de dezembro de 1962). cooperaram de boa vontade. Cada um deu, de iní- 360 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 361 2) A “Radiofônica” de Francisca. As cartas de Francisca Mendes e Silva, Monitora de uma Escola Radiofônica na Fazenda Jacu, nos descreve o que representaram para a sua localidade a Escola Radiofônica e os grupos ali organizados. “Pergunto se recebeu a ficha de matrícula, feita no dia 28 de fevereiro, com o número de 45 alunos... Estou bem satisfeita com a Escola. Todos os alunos são bem comportados e cooperam no que for preciso. Aqui segue o que comemoramos e fizemos durante este 1º semestre de 1962.1) todos os alunos “Sinto-me feliz com minha Escola. Os alunos (es- assistiram pelo rádio, com a comunidade, todos os tão) entusiasmados com o ensino radiofônico. atos da semana santa, com muita atenção, como Cooperam para que a Escola não dê fracasso (!). Agora mesmo fizemos uma rifa para comprar lâmpada e querosene. Estou preparando 11 meninos e meninas e 3 rapazes para a primeira comunhão... Estamos organizando a festa para o Dia das Mães, com cânticos, poesias e recreações... Estamos fazendo uma horta na Escola isto é, juntamente com os alunos. Consegui que 20 pais de alunos tirassem a carteira do Sindicato. Estou dando um curso de bordado a 8 moças da Escola Radiofônica. No encerramento estamos pensando fazer uma festinha. O catecismo é bem comparecido pelos alunos e pessoas adultas. Todos os primeiros domingos de cada mês nós fazemos reunião com os alunos. Eles di- se estivessem na igreja. 2)... No dia 1º de maio foi lançada a campanha da pascoa, com cartazes, e comemorando o dia das mães. No dia 13 de maio foi celebrada a missa na capela local. Dos alunos, fizeram a primeira comunhão, e 32 a Páscoa. Incluindo a comunidade, houve 40 primeira comunhão, e 47 homens e 129 moças e senhoras fizeram a pascoa. Um total de 216 comunhões. As 19 horas comemoramos o dia das mães... cada aluno trouxe um presente para oferecer as mães... O programa constou de poesias, cânticos e recreação. Tendo sido encerrado com uma palestra sobre o dia das Mães, feita por mim. 4) no dia 18 de maio recebemos a visita de Célia vale, acompanhada de uma moça da JACF do Ceará, que veio conhecer nosso trabalho... zem que estão prontos para ajudar em qualquer 5) No dia 27 de maio comemoramos o congresso coisa que precisar para a Escola. Eu, como moni- mundial da JAC. Fomos a passagem, participar da tora, me considero feliz com os meus alunos. Antes concentração dos jovens Rurais. Nós nos fizemos da Escola Radiofônica, minha localidade era uma representar com 230 pessoas. Participaram a escola luz apagada. Graças a Emissora de Educação Rural, radiofônica com os seguintes grupos de redenção: com o ensino Radiofônico estamos felizes, saindo Clube de Jovens, Clube de Rapazes, Clube Agrícola da escuridão”. (Monitora Francisca Mendes e Silva, e outros membros da localidade... Estou esperando Fazenda Jacu, Santo Antônio, 7/4/62). portador para ir até aí na emissora e trazer 37 testes...” (idem, 28/5/62). 362 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 363 “A Escola vai ótima” — escrevia a mesma moni- tra solução. Com a ajuda de Deus, tudo faremos...” tora 4 meses mais tarde. “Os alunos continuam (Idem, 21 /9/62). muito entusiasmados com os estudos. Continuam ca. A festa constou de novena, barraca, leilão e pes- 3) A “Radiofônica” de Eunice. O testemunho de Eunice monitora da Escola Radiofônica ‘São José’, em Outeiros, fundada em março de 1962, nos mostra como uma monitora, orientada num treinamento, não só se dedica à alfabetização do povo de sua localidade, mas também desperta-o para a cooperação comunitária e introduz, nas mínimas coisas, o sistema democrático. caria. Renda da barraca — 18 520 cruzeiros. Renda “Moro num sítio por nome Outeiros. É um pouco do leilão — 23.500 cruzeiros. Renda pescaria — atrasado, mas confio em Nosso bom Deus que hei 1.050 cruzeiros. Os alunos que não deram galinha, de ver tudo melhorado. Para isto estou trabalhando, deram outra coisa para o leilão. Uma aluna deu procurando unir o povo, porque, unidos, podemos uma galinha assada, com a qual se fez um sorteio vencer. A Escola Radiofônica foi iniciada no dia 19 que rendeu 2.300 cruzeiros. As Comissões feitas na de março (1962). Temos 22 alunos... A turma tinha comunidade renderam a importância de 9.120 cru- dois candidatos (para Patrono da Escola): Santa zeiros. A comunidade participou da festa e ajudou Maria Goretti e São José. Para não haver confusão, ao máximo. A festa deixou um saldo de 41 385 cru- fizemos eleição, porque a maioria é quem vence. Foi zeiros. Nossa Escola tinha material emprestado. uma coincidência: sendo o dia de São José, o mes- Fizemos esta festa para organização da mesma. mo foi eleito. Em seguida dividi o grupo (dos alu- Graças a Deus, agora está uma beleza. Já compra- nos) em 4 equipes, para comprar querosene. Cada mos 22.000 cruzeiros de material: uma lâmpada Col- equipe tem 5 pessoas, e cada pessoa colabora com man, bancos, mesas e já entregamos o material em- 6 cruzeiros e compra um litro de querosene para prestado. A turma da Escola manda dizer que estão a lâmpada. Em cada grupinho há um responsável, muito felizes por estarem estudando numa Escola que apanha os 30 cruzeiros, compra o querosene e organizada por eles, com a ajuda da comunidade. me entrega... Faltando querosene, eu aviso dois dias Temos em caixa a importância de 19.385 cruzeiros antes para providenciarem. (Para o) álcool, como se Pensamos fazer, com esse dinheiro, um salão para gasta menos, temos dois alunos responsáveis... Eu a Escola, mas tiramos a conta, e o dinheiro não dá aviso: ‘chegou o dia de vocês’, e eles sabem com- para a construção do mesmo. Vamos pensar nou- prar... Para monitora não houve eleição, porque a estudando 40. Continuam também ouvindo os programas educativos, como sejam: Em Marcha Para o Campo (o programa dos sindicatos), O último Pau-de-Arara, Conversa com Monitores e Alunos, a Missa do domingo, etc... Realizamos, no dia 25 de agosto, uma festa em benefício da Escola Radiofôni- 364 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 365 turma toda concordou. Seis dias depois vieram à com seus irmãos, não é? E também ter uma casinha minha casa para se matricular. Gostei, porque não limpa, bem higiênica, de maneira que as visitas se precisei ir à casa deles. Sentem-se como um cego sintam bem nesse ambiente.” (Idem, 22/6/62). E, na a quem tivesse voltado a vista. Em continuidade, mesma data, a outra professora: “Aviso-lhe que se- fiz com a turma duas reuniões: uma para escolher guem 6 testes. Não vão os 22, como pensava, porque o local e fazer um ambiente para o funcionamento só 6 alunos foram capazes de preencher. 16 ainda e outra para dividir a turma em grupos e distribuir não sabem fazer escrita sem ser pelo quadro. Te- tarefas. Dividimos o (os do) sexo masculino em duas mos agora (só) três meses de aula, e, quando inicia- equipes: uma para providenciar madeiras e ou- mos, eles não sabiam escrever um ‘a’. Hoje, graças tra para construir o ambiente (para a Escola), que a Deus, já escrevem alguma coisa”(Idem, 22/6/66). chamamos latada. No primeiro dia de aula combinei com os alunos para comprarem pilhas para o rádio. Perguntei como é que eles queriam: pagar 5 ou 10 cruzeiros por mês. Toda a turma concordou em pagar 10 cruzeiros de mensalidade... (Monitora Eunice, Outeiros, São Gonçalo do Amarante, 8/6/62). “... Estamos animados para fazer uma festinha escrevia a mesma monitora poucos dias mais tarde - o que nunca houve aqui no sítio. Será a primeira vez Os alunos querem muito conhecê-las (as Professoras). Venham. O sítio é atrasadíssimo, e as casas muito pobres. Temos vontade de melhorar. Confiamos em Deus e queremos o progresso de nosso meio rural. As casas são pobres, não temos nada, mas não (nos) importamos com isso. Antigamente eu sentia decepção quando chegava alguma pessoa como vocês, porque era pobre e não tinha nada a apresentar. Já pensou. Depois que fui fazer o curso de líderes em Ponta Negra e Pium, melhorei muito... Entendo que o que vale é a pessoa ser boa, caridosa, ter boas maneiras, bom procedimento e se unir 366 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 4) A “Radiofônica” de Maria Nazinha. “(A festinha em benefício da Escola) foi muito animada e em paz, graças a Deus. O leilão, com a barraca, rendeu 25.000 cruzeiros. Os alunos todos cooperaram para a festa. Houve novena de Nossa Senhora do Destêrro. Aqui nunca houve festa. A primeira foi esta. Todo o dia me pedem para fazer outra, breve. Fiz 8 eleitores e todos votaram consciente (conscientemente): não venderam voto a ninguém, que não deixei. Aqui quase todos vendem seu voto para ficarem escravizados. Trocam voto por vestido ou sapato ordinário, mas os meus eleitores não receberam nada. Votaram livre para melhorar o país”. (Monitora Maria Nazinha Xavier, Salgado, 10/11/62). 5) A “Radiofônica” de Damiana. “Comunico-lhe que minha Escola está um fósforo na escuridão. Tenho 17 alunos. São bem estudiosos. eles dizem que se sentem bem felizes pelas atividades de D. Eugênio, pois sentem-se como um cego a quem tenha voltado a vista, retirando-se da ignorância e trabalhando por um Brasil melhor. Interesso-me muito pela aprendizagem das pessoas de minha ALCEU RAVANELLO FERRARO 367 localidade e tenho fé em Deus que breve verei uma localidade bem organizada. Estamos trabalhando para organizar um Clube de Jovens em minha localidade. Estamos fazendo horta. Organizamos a festa da páscoa, levando diante do altar de Deus pessoas que não frequentavam a igreja. Organizei uma festa para comprar pertences para a Escola. Quanto ao curso de politização, foi bem ouvido. (Monitora Damiana Araújo da Silva, Santa Tereza, Mun. de Santana do Matos, 26/8/62). CAPÍTULO X POLITIZAÇÃO E SINDICALIZAÇÃO No presente Capítulo analisaremos alguns aspectos do trabalho do SAR, referentes à assim chamada “Campanha de Politização” e à sindicalização rural. 1. VOTO Embora ao termo “politização” tenha sido dado sentido bem mais amplo, em nossa pesquisa por amostragem circunscrevemo-nos a investigar dois aspectos mais relacionados com este conceito: voto e sindicalização rural. No que tange ao voto (é disto que nos ocuparemos neste parágrafo), a Campanha de Politização levada a efeito pelo SAR em 1962 insistiu nos aspectos seguintes: 1) no dever do voto e 2) no combate à venda do voto e ao voto no “cabresto”. Com o intuito de determinar uma possível mudança de atitude nas CT a este respeito, foram propostas as três perguntas seguintes aos entrevistados de 18 anos e mais, de ambos os grupos de comunidades: 368 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 369 “Seu Manoel sabe ler e escrever. Não tem título de eleitor e, portanto, não pode votar. Não tira o título, porque — diz ele — não tem tempo para perder com política. O que é que o senhor aconselharia a seu Manoel: tirar o título ou não perder tempo com política?” (A.47). “Um político estava oferecendo aos eleitores 5.000 cruzeiros em troca do voto. O que é que o senhor aconselharia fazer: receber os 5.000 cruzeiros e votar no candidato - receber os 5.000 cruzeiros, dizendo que vota nele, votando, depois, em quem julgar melhor, ou não aceitar os 5.000 cruzeiros e votar em quem julgar melhor?” (A.48). “No município de Touros um patrão, que é um grande proprietário, ameaçou expulsar da propriedade os moradores que não votassem nele. Seu Antônio, que é morador dele, acha que o outro candidato e melhor do que o patrão. O que é que o senhor aconselharia a seu Antônio fazer: votar no patrão para não arriscar ser expulso da propriedade ou votar no outro candidato, que ele julga melhor, mesmo arriscando ser expulso da propriedade?” (A.49). Dos 647 questionados no primeiro caso (todas as pessoas de 18 anos e mais incluídas na amostragem), 58 (CT - 19 e CNT-- 39) não responderam. Dentre os 589 declarados, 90,1% nas CT (283/314) e 87,6% nas CNT (241/275) aconselharam a seu Manoel tirar o título. 370 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal A proporção dos que assim se manifestaram é bem elevada em ambos os grupos de comunidades, não se revelando significativa ao nível de 5% a pequena diferença encontrada em favor das CT. No segundo caso, de 647 questionados (todas as pessoas de 18 anos e mais incluídas na amostragem), 59 (CT — 17 e CNT — 42) não responderam, tendo-se declarado 588 (CT — 316 e CNT - 272). Dentre estes, respectivamente nas CT e nas CNT: 76,0% e 72,7% aconselharam a não receber os 5.000 cruzeiros e votar em quem julgar melhor. 6,3% e 5.5%. a receber o dinheiro, votando, depois, em quem julgar melhor: 13,6% e 19,1%, a receber o dinheiro votando no candidato doador, e, sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 4,1% e 2,6% declararam não saber aconselhar. Em ambos os grupos de comunidades, por conseguinte, mais de 70% repudiaram a venda do voto. A pequena diferença encontrada em favor das CT não chega a ser significativa ao nível mínimo estabelecido (5%). No que diz respeito ao terceiro caso, consideramos somente as pessoas de 18 anos e mais, membros de famílias de agricultores. Dos 567 questionados, 28 (CT — 13 e CNT — 15) não responderam, tendo-se declarado 539 (291 e 248, respectivamente nas CT e nas CNT). Em ambos os grupos de comunidades menos de 1/3 dos entrevistados (28,9% e 26,3%, respectivamente nas CT e nas CNT) “ousou” aconselhar seu Antônio a votar contra o patrão, isto é, a dar seu voto ao candidato considerado melhor. Responderam evasivamente 4,8% (14) nas CT e 0,4% (1 apenas) nas CNT, o que provavelmente deve ser interpretado no sentido de recusar o voto ao patrão. Embora em proporção menos elevada nas CT do que nas ALCEU RAVANELLO FERRARO 371 CNT (66,3% e 73,3%, respectivamente), em ambos os grupos de comunidades um mínimo de 2/3 dentre as pessoas declaradas aconselharam seu Antônio a não se arriscar a negar o voto ao patrão. Os patrões das CT constituem a única excessão às proporções acima indicadas: dentre estes, 57,8% aconselharam a votar no outro candidato (melhor); 40%, a votar no patrão, sendo que 2,2% declararam não saber aconselhar. Feita esta excessão, segundo as três categorias profissionais, segundo todos os grupos de idade (18-30; 31-40; 41-50; 51 e mais anos) e em ambos os grupos de comunidades (embora levemente menos elevada nas CT), foi de 64% a proporção mínima dos que aconselharam seu Antônio a votar no patrão, para não se arriscar a ser expulso da propriedade. A única conclusão que podemos tirar destes dados é que cerca de 2/3 dos entrevistados não ousaram manifestar-se contra a norma tradicional, ou seja, contra a fidelidade “devida” ao patrão, no que tange ao voto. Mas traduziriam estes dados as atitudes reais e o comportamento efetivo do trabalhador rural? Nossa observação por ocasião das eleições para Governador em 1965 nos leva a duvidar que o trabalhador seja de fato tão dócil ao patrão! Nos 15 dias que precederam às eleições percorremos algumas áreas do Litoral-Agreste do estado. Infalivelmente, sobre todas as moradias de cada fazenda — casa-grande ou mocambo de trabalhador — erguiamse ou só bandeiras verdes, ou só bandeiras vermelhas, demonstrando que, pelo menos naquelas áreas, não haviam mudado as expectativas dos patrões. Soubemos depois que, em duas destas áreas, uma no Litoral e outra no Agreste, cada uma compreendendo meia dúzia de 372 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal grandes fazendas, mais de 50% das bandeiras vermelhas haviam depositado nas urnas um “voto verde”. Deve atribuir-se isto exclusivamente ao “fenômeno Aluízio Alves”? Não foram do mesmo parecer os patrões interessados, os quais, desde 1962, vêm culpando os sindicatos por suas sucessivas derrotas ém seus próprios domínios. Ademais, como se explicaria que, em outras áreas, também por nós visitadas nas vésperas das eleições, bom número de bandeiras verdes escondiam “votos vermelhos”? Contudo, os dados referentes às três perguntas analisadas não nos permitem concluir nada sobre uma eventual mudança de atitudes com relação ao voto, resultante do trabalho do SAR. Embora sempre favoráveis às CT, as diferenças encontradas não chegam, em nenhum dos três casos, a ser significativas ao nível de 5%. 2. CURSO DE POLITIZAÇÃO No Apêndice III.A, transcrevemos alguns documentos que podem dar uma ideia do conteúdo ideológico da assim chamada “Campanha de Politização” lançada pelo SAR em 1962. De toda a abundante documentação que tivemos oportunidade de analisar, é manifesto que não se tratou de simples conversa “para boi dormir”! 1) Análise da Correspondência. Neste parágrafo limitar-nos-emos a tentar uma avaliação, através da correspondência dos alunos e monitores de Escolas Radiofônicas, da Campanha de Politização e, especialmente, do Curso de Politização realizado pelo MEB em julho de ALCEU RAVANELLO FERRARO 373 1962. Antes de passarmos ao resultado desta pesquisa, cabem aqui algumas observações metodológicas. — O quadro analítico foi construído e testado a partir de três amostragens prévias. A seguir — para o que contamos com a valiosa cooperação da Assistente Social Maria da Conceição Bezerra — as cartas foram analisadas uma a uma, anotando-se, no quadro analítico, as diversas ocorrências. — Uma amostragem de cartas de 1962 nos permitiu determinar as diversas categorias de missivistas. Quase 2/3 das cartas (68,8%) haviam sido escritas por monitores, e pouco mais de 1/3 (34,2%), por alunos de Escolas Radiofônicas. Dentre as cartas escritas por monitores, apenas 10,4% provinham de monitores do sexo masculino, sendo que estes, naquele ano, representavam cerca de 15% de todos os monitores. Das escritas por alunos, apenas 18% provinham de alunos do sexo masculino, os quais, naquele ano, representavam 53,3% de todos os alunos. No conjunto, apenas 13% das cartas provinham de monitores ou alunos do sexo masculino. Por conseguinte, as pessoas do sexo masculino — precisamente as mais visadas pela Campanha de Politização, intimamente ligada à sindicalização rural — estão relativamente pouco representadas na correspondência analisada. — Em outras partes deste trabalho teremos ocasião de referir-nos a outros temas analisados. Aqui limitarnos-emos aos temas relacionados mais de perto com “politização”. Feitas estas observações e ressalvas, passemos à análise dos dados da tabela 10.1, onde as cartas referentes aos anos de 1959 e 1962 aparecem distribuídas segundo 374 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nove itens relacionados mais de perto com politização 1959 foi o primeiro ano (completo) de funcionamento das Escolas Radiofônicas. 1962 foi o ano da Politização e, no mês de julho, do Curso de Politização promovido pelo MEB. As Escolas Radiofônicas eram muito mais numerosas em 1962 do que em 1959, e, consequentemente, também as cartas. Dos dados da tabela 10.1 aparece claramente a grande diferença entre os anos de 1959 e 1962: contra apenas 2,6% em 1959 (1o ano completo de funcionamento das Escolas Radiofônicas), 22,4% das cartas escritas por monitores e alunos em 1962 continham um ou mais temas (itens 1-9) relacionados com politização. Se considerarmos separadamente as cartas de cada um dos meses de 1962, aparece mais claramente a mudança. De fato, de cerca de 10% no primeiro trimestre (janeiro — 12,2%, fevereiro — 7,8% e março — 11,6%) o número relativo de cartas que continham um ou mais temas especificados sobe sucessivamente para quase 20% no segundo trimestre (abril — 16,7%, maio — 19,3%, junho — 18,5%) e para 33,3% em julho (precisamente no mês do Curso de Politização), continuando aproximadamente na mesma altura nos 4 meses seguintes (agosto — 34,2%, setembro 29,3%, outubro 32,3% e novembro — 29,6%), baixando para 25,0% no mês de dezembro. Observe-se ainda que os temas ocorridos nas cartas de 1959 (item 6 — desenvolvimento, progresso, e item 9 — comunidade) são exatamente os mais “inocentes” dentre os 9 temas especificados na tabela. São estes também que, juntamente com o item 8 (união, colaboração, tema também relativamente “inocente”), aparecem, já desde ALCEU RAVANELLO FERRARO 375 376 os primeiros meses de 1962, em número relativamente elevado de cartas. Já antes deste Curso de Politização, o MEB, seja através das aulas, seja através de treinamentos e encontros de monitores, ia carreando para o interior aquilo que o monitor Manoel Felipe de Melo confessa ter levado do encontro de monitores de Lajes, isto é, a memória repleta de inovações, de ideias novas”, “muita vontade de trabalhar para promover um movimento renovador na comunidade , cuja população - o que ele, Manoel Felipe, apontava coma indício de dias melhores” — já apresentava “outro aspecto”, “outra atitude” (Monitor Manoel Felipe de Melo, Pedra Preta, 14-5-62). 2) Alguns depoimentos. No capítulo anterior transcrevemos alguns depoimentos relacionados com os itens 8 e 9 da tabela 10.1 (união-colaboração e comunidade). No final deste Capítulo teremos ocasião de fazer o mesmo com relação a sindicalização rural. Limitamo-nos aqui a transcrever alguns depoimentos relacionados com os outros itens, especialmente com o voto, o que nos permite identificar algumas das ideias veiculadas para o meio rural em 1962. “Fiz 8 eleitores, e todos votaram consciente. Não “Chegou aqui um político oferecendo-me um di- “Eu tenho gostado bastante do Curso de Politização nheiro Eram 20.000 cruzeiros. Eu disse que não. ... Eu aqui e meu pessoal não nos vendemos mais. Não quero ser escravo, nem levar o povo para a es- Nossos votos agora vão ser votos livres. Nós até gos- cravidão. Ganhando esse dinheiro, a minha carne távamos de arranjar alguma coisa pelo voto, mas fica saciada. Mas, meu espírito? Este fica escravisa- agora estou ciente que voto não se vende.” (Moni- do”. (José M., Guaramiranga, ?-?-62). tora Maria Creuza, Barra de Pajuçara, 14-7-62). “Eu estou na Escola Radiofônica. Já sei fazer uma “Eu acho que a Escola Radiofônica é uma porta carta. Vou ver se faço meu título para votar.” (Aluno aberta para os analfabetos. Há gente, aqui no sítio, João de Deus, Barra da Condessa, 9-6-62). que nunca tinha tido intenção de aprender a ler, e Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal venderam voto a ninguém, que não deixei. Aqui quase todos vendem seu voto para ficarem escravizados. Trocam seu voto por vestido ou sapato ordinário, mas os meus eleitores não receberam nada. Votaram livre para melhorar o país”. (Monitora Maria Nazinha, Salgado, 10-11-62). “Meus alunos dizem que não votam porque não têm idade ainda. Mas, quando for para o outro ano, eles dizem que votam. Olhe, meus alunos só falam em voto, que devemos votar bem, que não devemos sujar nossa arma por besteira que se acaba, e a pessoa fica na mesma. Falo no voto, porque é só o que vejo (ouço).” (Maria das Neves, Nova Cruz, 23-7-62). “Gostei do Curso de Politização, que todos os alunos escutaram. Nesta localidade havia muitos políticos (!), mas, por causa destes programas, ficaram politizados (!). Uns só queriam votar por roupas ou sapatos; só queriam viajar de jeep a troco do voto. Agora estão a saber que voto não se vende, e consciência não se compra.” (Aluna (e monitora?) Maria das Neves, Mangericão, ?-?-62). ALCEU RAVANELLO FERRARO 377 muitos deles votaram neste ano. Sim, aqui todos que as lágrimas lhe vieram aos olhos... Com a fé votaram bem”. (Monitora Alaída F. Silva, Trinchei- que tem em Deus, com dois meses de aula se fez ras, 14-10-62). eleitor. ele envia o retrato dele para Dona Cármen.” “No dia 25 passado fizemos uma reunião, falando (Monitora-aluna Maria das Dôres, Pôrto Carão, 7-8- sobre politização. Todos ficaram cientes que um 62). povo politizado é um povo livre. 45 pessoas par- “Olhe, existe gente aqui que tinha título e rasgou, ticiparam. Ficamos combinados para de 15 em 15 dizendo que não votava mais nunca. E agora, escu- dias fazer uma reunião para o povo da localidade. tando os programas, estão qualificados para novo De 8 em 8 dias, catecismo, e, depois, reunião, fa- título. É isto mesmo que nós queremos para um lando sobre politização. Todos já sabem que voto não se vende e consciência não se compra. Estamos combatendo a verminose, fervendo a água e vamos comprar um filtro para a Escola.” (Monitora Almira Maria, Jacuzinho, 8-9-62). “Serra do Algodão era um lugar sem escola, sem desenvolvimento. Mas, desde 1961, luto para ver o povo sair da ignorância... Sim, saber é coisa boa, e este rádio veio trazer, para nós do campo, um grande desenvolvimento: a luta pela vida do camponês, que vive sem escola, sem medicação, sem nada na vida. E também o Curso de Politização (nos ensinou) que devemos votar num candidato de consciência, num homem que saiba trabalhar pelo povo. Quem sofre mais é o povo do campo. An- 378 mundo melhor. Não é isso mesmo?” (Monitora Hilda, Quirambu, 23-5-62). “Fiz muito esforço para que nossa comunidade ficasse sabendo o que é Reforma Agrária. E hoje todos sabem que unidos podemos tudo, e sozinhos nada podemos.” (Lourdes N., Cuité, 8-8-62). “Os meus alunos não sabiam o que era comunidade, e eu expliquei. Outros não sabiam pegar no lápis e agora já estão melhor...” (Monitora (?), Logradouro, 16-3-62). “Tenho fé em Deus que hei de aprender para desempenhar meu papel de cidadão brasileiro”. (Aluno Francisco F., Serra do Lombo, 9-11-62). “Nós somos uma pequena luz que clareou no Sertão, pois é para clarear aqueles que vivem na escravidão, isto é, que não conhecem seus direitos. tes das eleições não faltam escolas... Mas, quando Pois queremos todos os nossos irmãos unidos. Te- terminam as eleições, os pobres eleitores sofrem.” mos que ser um por todos e todos por um. Unamo- (Monitor Sebastião Batista, Serra do Algodão, 7-7- nos no Sindicato. Pedimos Reforma Agrária, pois 62.) tudo isto falta ao campesino.” (Epílogo de um dis- “Já fizemos dois eleitores. Imagine que um tem 50 curso pronunciado pela Monitora Elza Maria, por anos e só agora conseguiu ser cidadão, como ele ocasião da inauguração de uma nova Escola Ra- diz. Ele ficou tão emocionado quando fez a petição, diofônica. Anexo à carta de 30-11-62, Várzea Fria). Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 379 “Sei que nós lutamos pelo Brasil de amanhã: mais para baixo. O Prefeito daqui me dizia zangado: “Na escolas, menos analfabetos. Procuramos melhorar próxima eleição nenhum chefe político vai poder a situação do homem do campo. Eu faço jeito (!) controlar esse povo. Antigamente, quando o povo para melhorar minha localidade. Trabalho com fé precisava de alguma coisa, procurava o chefe políti- em Deus que hei de vencer. 30 eram alfabetizados. co. Hoje ninguém mais dá bola para os políticos.” Já Hoje já tem 40 alfabetizados na localidade. Ama- no segundo dia da Revolução — continua o vigário nhã já podem ser todos alfabetizados...” (Monitora foram enviados bilhetes anônimos intimidando os (?), Saúna, 25-12-62). líderes do Sindicato Rural. Os próprios depoimentos citados parecem sugerir que nem tudo ficou em palavras! Da mesma opinião parece ser também a família X, que, depois de ter governado o município Y durante vários lustros, se viu inesperadamente apeada do posto. Pelo prejuízo, por haverem-se atrevido a optar por um “menos pior” — como o qualificou um trabalhador — pagaram os monitores de Escola Radiofônica, ou suas famílias, e os líderes sindicais, residentes em áreas de domínio daquela família. O depoimento de um vigário do interior também é elucidativo: “Os chefes políticos tinham antigamente o padre a seu serviço. Felizmente acabamos com isso. Em 1962 saiu uma Carta Pastoral dos três Bispos do Estado, contendo 10 conselhos práticos para os cristãos se orientarem nas eleições. Insistia sobre a dignidade da pessoa humana. Espalhamos também três “sueltos” sobre a Carta Pastoral, explicando o direito do voto. O patrão ameaça botar para fora da propriedade o trabalhador que não votar com ele ou com o candidato dele. É uma injustiça organizada de cima 380 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 3. O SINDICALISMO RURAL 1) Associações de classe. Nas 4 CT pesquisadas, de 155 agricultores chefes de família que se declararam a respeito da pergunta A 42, 23 ou sejam, 14,8% pertenciam a alguma associação de classe: 10 a Sindicatos de Trabalhadores Rurais, 10 a Sindicatos de Pequenos Proprietários, e 3 a Associações Rurais (patronais). Em Jundiá de Cima (CT 3) não encontramos nenhum associado. Nas CNT por outro lado, de 152 agricultores declarados, apenas 5, ou sejam, 3,3% pertenciam a alguma associação de classe: 4 a Sindicatos de trabalhadores Rurais e 1 a Associação Rural. Em Barra do Geraldo e Fonte (CNT 1 e 3) nao encontramos nenhum associado. O que mais nos interessa aqui é tentar uma avaliação do que tenham representado para a classe trabalhadora rural os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, que, nas vésperas da revolução de 31 de março de 1964, contavam, no estado do Rio Grande do Norte aproximadamente 45.000 associados. Ora, se dermos credito as declarações ALCEU RAVANELLO FERRARO 381 dos entrevistados — é bem possível que alguns, por temor, tenham negado pertencer ao Sindicato — teríamos, nas 8 comunidades conjuntamente, não mais de 35 (dos quais cerca de 25 nas CT) trabalhadores rurais, chefes de família, sindicalizados. Nao podemos. Portanto considerar estas comunidades, nem mesmo as CT, como representativas do sindicalismo rural (do trabalhador) no estado. Estas comunidades, ademais, não são as áreas adequadas para um tal tipo de avaliação, como o seriam as grandes fazendas — a Lapa, por exemplo. O próprio clima de desconfiança e de temor que reinava entre os trabalhadores rurais sindicalizados nos aconselhava a não falar muito em Sindicato, o que poderia comprometer toda a pesquisa. Assim, só incluímos, já pelo fim do questionário, duas perguntas referentes a Sindicato, que passaremos a analisar. 2) Opinião dos agricultores. Os dados da tabela 10.2, referentes à pergunta A 43 e representados no gráfico 10.1, nos permitem uma série te constatações quanto à opinião do grupos de comunidades, com relação à situação do trabalhador rural após a criação do Sindicato. 1 — Os agricultores das CT, em proporção acentuadamente mais elevada do que os das CNT, acusam uma melhora na situação do trabalhador (respectivamente 42,6% contra apenas 28,8%) concentrando-se esta diferença em “melhorou muito” (respectivamente 22,7% contra apenas 11,0%). 2 — Embora apenas levemente, é também mais elevado nas CT do que nas CNT a proporção dos que acham que a situação do trabalhador piorou após a criação do sindicato (respectivamente 24,8% e 212%) em ambos os 382 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal grupos de comunidades, porém, o número relativo dos que assim pensam fica aquém do daqueles que acusam uma melhora. 3 — Contra 50% nas CNT, apenas 32,6% dos agricultores das CT declararam que á situação do trabalhador não mudou em nada com o Sindicato. 4 — Embora os agricultores das CT, em proporção acentuada e significativamente mais elevada (nível superior a 2 % ) acusem uma melhora, importa lembrar que quase 1/3 (28,8%) aos agricultores das CTN, apesar de estas terem lido pouco atingidas pelo sindicalismo, afirmam da mesma forma que, nos respectivos municípios a situação do trabalhador rural melhorou com a sindicalização o que equivale a um reconhecimento, também por parte dos agricultores CNT, de benefícios advindos àquela classe, através da sindicalização rural promovida pelo SAR. 5 — Observe-se ainda que a proporção de não-respostas (18%- 56/315) foi muito mais elevada do que no resto de questionário, o que confirma nossa previsão quanto às dificuldades (reservas) que encontraríamos ao pesquisar este aspecto. 6 — Os dados da tabela 10.3 (referimo-nos a esta, a partir daqui) confirmam as três primeiras observações feitas acima. Com efeito, segundo todas as três categorias profissionais, os agricultores das CT, com relação aos das CNT, a) em proporção bastante mais elevada (menos entre os patrões) acusam uma melhora, b) em proporcão levemente mais elevada (mais entre os pequenos proprietários) Selaram que a situação piorou e c) em proporção muito menos elevada do que nas CNT afirmam que o ALCEU RAVANELLO FERRARO 383 Sindicato não mudou em nada a situação do trabalhador rural nos respectivos municípios. 7 — Entre os pequenos proprietários e os trabalhadores rurais de ambos os grupos de comunidades é mais elevado o número dos que acusam uma melhora, do que o daqueles que vêem uma piora na situação do trabalhador rural, dando-se precisamente o inverso no que tange aos patrões, entre os quais, em ambos os grupos de comunidades, é menos elevado o número dos que veem uma melhora, do que o daqueles que acham que o Sindicato veio piorar a situação do trabalhador rural. 8 — Podemos hierarquizar da seguinte maneira, em ordem decrescente, os agricultores de ampos os grupos de comunidades que acusaram uma melhora na situação do trabalhador: 1º lugar — os trabalhadores rurais das CT ........... 46,1% 2º lugar — os pequenos proprietários da CT ....... 41,8% 3º lugar — os pequenos proprietários das CNT .. 34,2% 4º lugar — os patrões das CT .................................. 33,3% 5º lugar — os patrões das CNT ............................... 29,4% 6º lugar — os trabalhadores rurais das CNT ....... 25,0 % É interessante observar como, com relação a todas as três categorias de agricultores de ambos os grupos de comunidades, os trabalhadores rurais — os mais interessados, no caso — situem-se, respectivamente nas CT e nas CNT, precisamente em primeiro (46,1%) e em último lugar (25,0%), quanto ao reconhecerem na sindicalização uma melhora para os da própria classe, nos respectivos municípios. 384 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 3) Melhora. O quadro seguinte nos permite observar o tipo de melhora atribuída ao Sindicato. Juntamos os dois grupos de comunidades, mantendo distintas as três categorias de agricultores. Dentre os que haviam acusado uma melhora, 21 (em proporção menor entre os trabalhadores rurais) não souberam indicar em que. Dos outros: 35 (19 dos quais, trabalhadores rurais) observaram que o trabalhador rural encontrou defesa, direitos; 28 (16 dos quais, trabalhadores rurais) acusaram uma melhora na situação econômica), e 8 na situação geral do trabalhador rural. Os depoimentos seguintes poderão ilustrar melhor, com as Próprias palavras dos entrevistados, o tipo de melhora acusada. Depoimentos de patrões: “A classe é Sindicalizada”; “Libertou mais os trabalhadores do carrancismo dos patrões”; “Ajudou na agricultura, e os trabalhadores passaram a ter algum direito”; “O trabalhador ficou mais liberto”; “O Banco está facilitando dinheiro (empréstimos) para o trabalhador”; “Deu direito ao trabalhador”. Depoimentos de pequenos proprietários: “Deu conhecimento ao povo e melhorou os pagamentos”; “Deu valor ALCEU RAVANELLO FERRARO 385 ao trabalho do homem do campo, dando-lhe direito”; “O povo ficou mais liberto”; “Veio dar justiça”; “Melhorou o preço do trabalho”; “O morador é valido nos seus direitos”; “Não trabalham tão aperreados”. Depoimentos de trabalhadores rurais: “Facilitou dinheiro (empréstimos) para o trabalhador”; “Os proprietários melhoraram”; “Melhorou a situação do trabalho do pobre”; “Dá segurança: antigamente o patrão expulsava os moradores por qualquer besteira”; “O Sindicato dá razão a quem tem”; “As atitudes do patrão são outras, com relação aos moradores”; “Ganha-se mais”; “Melhorou o salário e deu garantia no trabalho”; “Ajuda na agricultura, e o homem passa a ter algum direito”. Piora. Dentre os que declararam que a situação do trabalhador piorou com a sindicalização, 4 (dos quais, 3 trabalhadores rurais) não souberam indicar em quê, e outros 4 (dos quais 2 patrões) não deixam ver, em suas respostas, se a situação piorou para o trabalhador ou para o patrão. Os outros foram distribuídos, no quadro abaixo, segundo os diversos tipos de respostas, sendo que os dois 386 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal primeiros tipos englobam a grande maioria dos declarantes: 22 (12 trabalhadores, 7 pequenos proprietários, e apenas 3 patrões) afirmaram que a situação piorou para os trabalhadores, porque os patrões expulsaram, ou se negam a dar morada e trabalho aos sindicalizados, e 19 (dos quais, apenas 1 trabalhador), que os trabalhadores sofreram, apanharam, perderam, porque quiseram prevalecer-se (tomar o que era dos outros, mandar mais do que o patrão, ter sempre razão), por serem sindicalizados. Depoimentos de patrões: “O pessoal ficou doido e queria tomar as terras dos outros”; “Os moradores querem sempre ter razão”; “Ia desgraçar, porque queriam roubar os proprietários”; Eles não querem mais ter superior”; “Porque tem uma infiltração comunista muito grande” (patrão da CNT 4: o único a falar em comunismo); “No preço” (para o trabalhador ou para o patrão?). Depoimentos de pequenos proprietários: “Os moradores querem se adiantar em muitas coisas, e por isso o povo (os patrões) não quer botar moradores”; “Ficaram com medo da revolução e houve quem deixasse a família”; “Os patrões não pagam o salário que deviam pagar, e houve mais castigo”; “Não teve futuro”; “Querem dar direito a quem não tem”; “Os proprietários não querem mais moradores”; “O proprietário não quer mais moradores que pertençam ao Sindicato e bota fora”; “Surgiram questões com os patrões”; “Os moradores correm, por qualquer coisa, ao Sindicato”. Depoimentos de trabalhadores rurais. “Os proprietários não querem mais empregar quem pertence ao Sindicato”; “Muitos proprietários dispensaram os moradores”; ALCEU RAVANELLO FERRARO 387 “Não consegue mais moradia”; Muita gente sofreu com isso, e outros, como eu conheço, ganharam os matos”; “Houve briga com o povo que tem carteira do Sindicato”; “Os proprietários não querem mais arrendar terra”; “Diminuíram os trabalhos”; “O trabalhador está mais caro, e os patrões não dão trabalho”; “Trabalho para morrer e nunca Sindicato veio em meu auxílio” (não sindicalizado: CNT 3); “O Sindicato faz o trabalhador brigar com o patrão” (CNT 3). Lembramos que os entrevistados foram perguntados se e em que sentido o sindicalismo teria mudado a situação do trabalhador rural nos respectivos municípios e não apenas nas respectivas localidades. De tudo o que vimos neste parágrafo aparece que, na opinião de 2/3 nas CT e de 1/2 dos entrevistados nas CNT, o sistema tradicional de relações de trabalho, foi, nos respectivos municípios, abalado Pelo sindicalismo. As consequências é que nem sempre foram favoráveis para o trabalhador: em ambos os grupos de comunidades conjuntamente, para 36,3% dos entrevistados (CT - 42,6% e CNT - 28,8%) a situação melhorou para o trabalhador, enquanto que, para 23,2% (CT - 24,8% e CNT - 21,2%), a situação piorou para o trabalhador, devido à forte reação da classe patronal. Mas, não constituiria esta mesma reação dos patrões uma prova de que o sindicalismo colocou em cheque os padrões tradicionais que regulavam o sistema de relações de trabalho entre patrão e trabalhador rural? 5) Atitudes. O simples fato de o número de sindicalizados entre os trabalhadores rurais haver subido, no estado do Rio Grande do Norte, de zero, no início de 1960, a cerca de 45.000 em março de 1964 — em pouco mais 388 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal de 4 anos, portanto — parece não deixar dúvidas quanto à mudança profunda de mentalidade e de atitude entre os trabalhadores rurais, no que tange à organização da própria classe. Com o objetivo tão somente de determinar até que ponto os agricultores das 8 comunidades pesquisadas seriam favoráveis à sindicalização do trabalhador rural mesmo contra a vontade do patrão, propusemos a seguinte pergunta: “Seu Pedro foi sempre muito bom para com seus moradores, mas não quer que entrem no Sindicato, porque acha que isto só vai atrapalhar as boas relações dele com os moradores. O que é que o senhor aconselharia aos moradores de seu Pedro: entrar no Sindicato ou não entrar?” “Não entrar no Sindicato!” — respondeu secamente, ao se ver diante de uma entrevistadora de lápis e questionário na mão, um agricultor que liderara a sindicalização dos trabalhadores rurais na área, não raro contra a vontade dos patrões. Da mesma opinião foram 52% dos entrevistados em todas as 8 comunidades, em número maior, porém, nas CNT (56,6%) do que nas CT (47,8%). Apesar de saberem muito bem quais tenham sido as consequências para o trabalhador sindicalizado contra a vontade de seu “senhor”, assim mesmo cerca de 1/3 (32,9%) dos agricultores de ambos os grupos de comunidades — em proporção mais elevada nas CT (36,8%) do que nas CNT (28,7%) — aconselharam aos moradores de seu Pedro filiaram-se ao Sindicato, mesmo contra a vontade do patrão. Quer se considere os que declararam não saber, quer se os omita, em nenhum caso a diferença ALCEU RAVANELLO FERRARO 389 encontrada entre os que assim pensam nos dois grupos de comunidades chega a ser significativa ao nível de 5%. Esta diferença, porém, é constante, em favor da CT, segundo todas as três categorias profissionais. De fato, assim aconselharam, respectivamente nas CT e nas CNT, 36,4% e 31,6% dos patrões, 39,3% e 28,6% dos pequenos proprietários e 35,0% e 28,4% dos trabalhadores rurais. Embora não significativa, a constância com que tal diferença aparece em favor das CT nos leva a crer que a mudança tenha sido mais acentuada nas comunidades consideradas trabalhadas. Não vemos, porém, a que atribuir, senão ao trabalho do SAR, o quase 1/3 dos agricultores de todas as três categorias profissionais que, nas comunidades consideradas não trabalhadas, optaram pela independência do trabalhador no que diz respeito à sindicalização. A mesma tabela 10.4 nos permite ainda uma constatação importante: os trabalhadores rurais — a classe que arcou com as consequências da sindicalização contra a vontade de seus patrões — são precisamente os que, em ambos os grupos de comunidades, em menor numero aconselharam os moradores de seu Pedro a entrar no Sindicato (35,0% e 28,4%, respectivamente nas CT e nas CNT). O por que disto será ilustrado a seguir. 4. A REAÇÃO Em entrevista concedida a A ORDEM de 26 de dezembro de 1964 o Dr. Edson Lucena, advogado da Federação 390 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte, assim definia as quatro espécies de casos mais frequentes entre proprietários e trabalhadores- “1) Rescisão de contratos de arrendamento por tempo indeterminado e despejo sem notificação prévia ao arrendatário; 2) rescisão de contratos de parceria agrícola, por parte do proprietário da terra, antes de o parceiro colher a sua parte; 3) destruição da lavoura do trabalhador pelo gado do proprietário; e 4) falta de cumprimento da legislação trabalhista pelo proprietário. No tocante à última espécie — continua o Dr. Edson Lucena — há a justificativa de ser o Estatuto do Trabalhador Rural uma lei nova e inteiramente desconhecida da maioria dos proprietários rurais. Quanto às demais, não há justificativa para a sua ocorrência, pois versam sobre assuntos regulados pelo Código Civil, com todos os seus aspectos já conhecidos pelos proprietários de terra.” Tradicionalmente cabiam ao proprietário rural Poderes mais ou menos absolutos para a solução de casos surgidos dentro de seus domínios. O que a grande maioria dos patrões não conseguiu ate hoje “engolir” foi a interferência de um órgão de classe, que visava substituir às normas de fato existentes, as normas de direito, isto é, as previstas no Código Civil e no Estatuto do Trabalhador Rural. Seja difundindo o conhecimento dos direitos assegurados por lei ao trabalhador rural, seja pregando o voto livre e consciente, a Campanha de Politização de 1962 constituiu-se numa ameaça a sobrevivência dos sistemas tradicionais que regulavam as relações de trabalho e as fidelidades políticas. Em alguns “currais” eleitorais ALCEU RAVANELLO FERRARO 391 foram abertas brechas profundas. Por outro lado, a esta altura, em áreas onde já havia Sindicatos organizados, os patrões começaram a ver-se às voltas com questões trabalhistas. A primeira reação de vulto se fez sentir em 1962, quer no sentido de impedir a sindicalização dos trabalhadores, quer expulsando da propriedade líderes sindicais, trabalhadores sindicalizados e famílias de monitores de Escola Radiofônica engajados na Campanha de Politização. Não é possível determinar o volume dessa ação repressiva. Duas centenas de cartas de 1962, por nós lidas, revelaram que dez famílias de monitores haviam sido despejadas por conta de voto ou Sindicato. Quer pela morosidade dos processos, quer pelos comprometimentos existentes, a Federação entendeu logo que a Justiça era o caminho menos indicado. O acordo passou a constituir a via mais comum para a solução de questões. Com o progressivo fortalecimento dos Sindicatos, e contando a Federação com assessoria jurídica, bom numero de patrões passou a conformar-se com o fato consumado! O Movimento Revolucionário de 31 de março, se não acobertou, também não impediu que, a pretexto de extirpar a subversão no estado, se desencadeasse, frequentemente como concurso ostensivo da polícia, uma onda de violências contra os sindicatos, violências essas que foram desde a intimidação até as expulsões da propriedade e a prisão de líderes sindicais. A total paralização dos sindicatos durante meses ocasionou a extinção total de alguns sindicatos nascentes, o enfraquecimento de outros, e, de modo geral, a debandada de quase metade dos sindicalizados. Neste paragrafo limitar-nos-emos a 392 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal descrever a ação repressiva levada a efeito na área de Nova Cruz, cujo Sindicato cobria também áreas limítrofes, no estado da Paraíba. a) fornecemos nela carta de um patrão, que deixa entrever as verdadeiras razões da reação contra o Sindicato de Nova Cruz. Em carta, com firma reconhecida, datada de 25 maio de l964 dirigida a D. Eugênio Sales, com cópia remetida ao General Comandante de Natal, pedindo providências no sentido de fazer “desaparecer de vez o Pavor implantado entre todos os proprietários”, assim se exprimira o Sr. José Paulino de Carvalho, proprietário de uma fazenda no município paraibano de Caiçara, próxima à cidade norte-rio-grandense de Nova Cruz: “Há muito tempo que necessitava falar com V. Revma. no sentido de apresentar minhas sugestões e necessidades, a respeito do Sindicato Rural de Nova Cruz, do qual V. Revma. é o organizador (!).” “E eu, na qualidade de proprietário, no Município de Caiçara, estado da Paraíba, abaixo 9 km de Nova Cruz, passo a expor o seguinte: quando chegou ao meu conhecimento da organização do Sindicato Rural, dirigido (!) por V. Revma. com a finalidade de combater o comunismo, fiquei muitíssimo satisfeito, dando todo o meu apoio a esta organização, não proibindo a nenhum dos meus moradores a associarem-se ao Sindicato. Até esta altura corria tudo bem entre eu, proprietário, e os meus moradores a associarem-se ao Sindicato. Até esta altura corria tudo bem entre eu, proprietário, e os meus moradores. Depois surgiriam casos que precisei tomar as providências...” ALCEU RAVANELLO FERRARO 393 “Tudo eu resolvia — confessa o proprietário — sem Êstes e outros fatos levaram o proprietário a concluir: nunca haver briga e muito menos morte, isto den- “Tinha, portanto, (o Sindicato) a finalidade de im- tro de 30 anos que sou proprietário, adotando até plantar a discórdia entre o morador e o propri- agora o sistema de não consentir dentro de minha etário. Vinha eu, com os meus moradores, viven- propriedade a venda de água ardente, jogos nem do, antes do Sindicato, dentro da maior harmonia samba, e quando surge um elemento que não cor- e compreensão, tratava a todos sem excessão com responde às minhas recomendações então procuro atenção e consideração, como também dando toda hàbilmente e prudentemente botá-lo para fora...” Ao surgir o caso de um morador, acusado de estar “procurando conquistar” a mulher de um vizinho, o proprietário, que sempre fora primeira e última instância na solução de questões surgidas em seu domínio, em vez de encaminhar o caso para a justiça, achou que “o caminho certo era botar o J. M. (o faltoso) para fora”. Sua decepção e irritamento deveram-se ao fato de não mais terem bastado sua “habilidade” e “prudência” para a solução do caso, uma vez que o trabalhador apelara para o Sindicato no sentido de assegurar-se a indenização que a Lei lhe garantia em virtude da ação de despejo. Foi também motivo de espanto o fato de alguns de seus moradores haverem concorrido para duas “invasões” de terra em propriedades vizinhas: numa, “arrancando um partido de agave” que o patrão plantara no roçado de um morador, e noutra, “botando um roçado de um associado”, sem o consentimento do patrão. O que o autor esquece de lembrar na carta é que estes — o plantio de agave no roçado do morador e a proibição de o morador plantar na fazenda — constituem dois dos mais eficazes expedientes usados pelos proprietários para que os moradores, “por livre e espontânea vontade” (!), deixem a propriedade, sem direito a qualquer indenização! 394 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal assistência que eles precisavam... e hoje vivo com os meus moradores sem eu poder confiar neles, pois não posso confiar, porquanto saíram de minha orientação... “O que está visto — prossegue o autor — é que Sindicato, Liga Camponesa e o Comunismo vinham trilhando em um só caminho que era a guerra civil. Chegado a conclusão que ai de nós, se não fora Deus com o seu infinito poder, ter compaixão de todos nós e do nosso Brasil, que na hora em que não podia mais ser adiada, salvou a todos, iluminando o espírito e unindo as gloriosas fôrças armadas para um só fim, de livrar o nosso país do comunismo, trazendo a paz, a ordem, a justiça, a liberdade e a tranquilidade a todos nós, para nossa felicidade e engrandecimento de nosso Brasil...” Não é nossa intenção discutir aqui qual teria sido o desfêcho da radicalização político-ideológica que antecedeu o 31 de março de 1964. Lembramos apenas que a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte foi uma das poucas que recusou integrar a assim chamada “Frente única”, tida então como comunizante. Igualmente, sem entrar no mérito e nas ALCEU RAVANELLO FERRARO 395 reais intenções do Movimento de 31 de março de 1964, lembramos apenas o seguinte: não bastaram algumas declarações vagas, em Brasília, de que os Sindicatos continuariam a existir, de que a Revolução não fora feita contra os trabalhadores; palavras pronunciadas em Brasília não chegavam aos ouvidos do trabalhador rural e frequentemente eram desmentidas pelos fatos. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Sindicato de Nova Cruz. b) Neste município os patrões, com o concurso da Polícia local, quando necessário, aproveitaram a ocasião para resolver “pacificamente” todos os casos existentes, inclusive os que estavam em mãos de advogados e na justiça. Vejamos um caso. Antônio Alves da Silva, casado e pai de 7 filhos, trabalhara durante 6 anos em Serrote da Macambira, em propriedade de um Deputado Estadual. No início de 1964 o patrão pediu-lhe que deixasse a fazenda. O morador apelou para o Sindicato, Recusando-se a sair sem indenização pelas mais de 30 mil covas de terra que havia amainado. Não tendo podido resolver sozinho o caso nos primeiros 4 dias de abril, valeu-se o patrão do concurso pronto Polícia. De fato, em intimação datada de 5 de abril de 1964, o Delegado de Polícia de Nova Cruz, arvorando-se em “autoridade competente” (que seria o juiz), mandou desocupar a moradia dentro de 48 horas, por flagrante invasão” (o intimado morava havia 6 anos na propriedade), Par atentado aos dispositivos Constitucionais no seu Art. 141 — Parágrafo 1°. — DIREITO DE PROPRIEDADE” (este parágrafo estabelece Precisamente que todo cidadão é igual perante a lei!), acrescentando que, caso se recusasse a cumprir a ordem, seria “taxado como comunista”, tendência esta manifestada pela ação 396 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal do intimado (recusa a sair aa propriedade sem a devida indenização). Antes de completadas as 24 horas, o morador, acuado por policiais, ganhou a estrada, em busca de outra morada. Segue a íntegra do documento que, ao contrário de outros, por descuido do Delegado, não foi recolhido em tempo. Rio Grande do Norte SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA PÚBLICA DELEGACIA DE POLICIA DE NOVA CRUZ OFÍCIO S/N.° do: Ao: Em 5 de abril de 1964 Io Tenente Delegado Especial Senhor Antônio Alves de Lima, vulgo Antônio de Celso Assunto: 1. Deveis por ordem expressa da autoridade competente, cumprir as determinações legais, desocupando a casa em que você estar morando motivamento como um atentado aos dispositivos Constituas no seu Art. 141 - Parágrafo 1°. (DIREITO DE PROPRIEDADE) deste modo prorrogo o prazo de 48 horas, para abandono da residência em você estar morando, flagrante como invasão, se isto não for cumprido mandarei o Poder de Polícia tirá-lo da citada residência, taxado como comunista, porque sua ação mostra essas tendências. 2. No sentido de manter o direito de propriedade, esta autoridade manda um militar explicar melhor o atentado que o Senhor esta contra os preceitos constitucionais e flagrante contra o código penal brasileiro. ALCEU RAVANELLO FERRARO 397 3. Esta determinação deve ser cumprida pelo senhor e serve como intimação. sando da bondade. Seu João, o sr. queria ser proprietário, para não mandar no que era seu? Seu João, seja mais consciente. O sr. deve pensar melhor (aa) José Luís Soares – 1º Tenente Delegado Especial para poder criar seus filhos. Seja mais consciente. Se aí não está bom para o sr. procure outro lugar e c) Em fins de 1964, quando de nossa visita a algumas Escolas Radiofônicas na Lapa, no município de Nova Cruz, tivemos oportunidade de tomar conhecimento de outro caso, muito comum, por sinal, nas grandes fazendas. Depois de conversarmos com a monitora, já conhecida através de suas cartas escritas em 1962, seu João Felipe Neri pai de 13 filhos, entre os quais a monitora, nascido e criado na Lapa, mostrou-nos uma carta recebida da esposa do patrão, que transcrevemos aqui: “Sr. João Felipe! João Paulo não estando em casa eu resolvi lhe escrever. Acabo de receber queixas do sr Pois o senhor quer abrir serviços sem o consentimento do proprietário. O sr. acha certo isso? É melhor o sr. vir até aqui se entender com o proprietário, pois eu acho que o sr. se sairá melhor. Pois se neste terreno que o sr. quer trabalhar o proprietário vai fazer um cercado de criação o sr. não pode ir contra a vontade do dono. O sr. acha que está certo invadindo a propriedade alheia? Pois o sr. deve saber que invasão é contra o exército. ele agora é quem resolve, não é mais o sindicato. Hoje quem fala em sindicato é preso na hora. Cuidado também com a família que continua mexendo nas canas. Seu João, veja que desde que João Paulo tomou conta ou melhor comprou estas propriedades o sr. nunca pagou renda, e hoje está tentando agora invadir. Está abu- 398 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal vá morar, não queira desinquietar, tirar o sossêgo alheio. Eu estou lhe fazendo este apelo como amiga pois gosto muito do sr. e de sua família... E. M.” Alguns detalhes ajudarão a entender o caso. Antes de João Paulo adquirir a propriedade, João Felipe não pagava fôro, pois era administrador da fazenda. Substituído na função pelo irmão do novo proprietário, prontificouse a pagar. A intenção do patrão, porém, era cercar a área cultivada por João Felipe e por outros moradores, com intuito de ampliar as pastagens para o gado. Embora pudessem permanecer nas próprias moradias, os moradores não teriam mais terra em que trabalhar. Segundo João Felipe, foi este o diálogo que teve com o Delegado de Nova Cruz: “Veja, João Felipe, — teria dito o Delegado — o gado está sem pasto, e o proprietário precisa fechar esta Parte da propriedade para alimentar o gado”. “O proprietário pensa no gado — confessa ter respondido João Felipe — mas eu penso em como vou alimentar meus treze filhos!” Trata-se de expediente dos mais frequentes: impede-se o morador de trabalhar, sem, contudo, despejá-lo da propriedade. Como tantos outros, assim também seu João Felipe, quando lá estivemos, estava decidido a abandonar a fazenda, com destino a São Paulo, desistindo dos direitos adquiridos Por uma vida inteira de trabalho na fazenda (nascera na Lapa). ALCEU RAVANELLO FERRARO 399 d) Poderíamos analisar inúmeros outros fatos que diariamente são levados às Sedes de Sindicato ou à Federação. Bastam estes. Sintetizando, podemos dizer que a subversão de que foram e continuam sendo acusados os Sindicatos consiste substancialmente nisto: na luta Pela substituição da ordem de fato pela ordem de direito, isto é, das normas tradicionais que de fato regulavam as relações de trabalho no meio rural, pelas normas de direito previstas no Código Civil e no Estatuto do Trabalhador Rural. A reação patronal, por outro lado, consiste precisamente na luta pela manutenção da ordem de fato, ou seja, pela sobrevivência do sistema tradicional de relações de trabalho e, inclusive, de fidelidades políticas. Trata-se, antes de mais nada, de uma questão de justiça social. Contudo, o significado desta “luta pela mudança de estruturas” parece-nos óbvio do ponto de vista do desenvolvimento. A total insegurança ou “sujeição” do trabalhador rural, consequência do sistema tradicional de relações de trabalho e de fidelidades políticas, é, segundo nosso modo de ver, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento agricola do Estado. “Quem mora no alheio só vive de retirada! — observada, em carta de 1962, uma monitora cuja família fora despejada propriedade por conta de voto e de Sindicato. Esta insegurança desestimula qualquer investimento, qualquer melhora nos métodos de produção por parte do trabalhador. Ademais, os proprietários geralmente não pensam em termos de produtividade: suas economias são canalizadas para a aquisição de novas terras e não no sentido de aumentar a produtividade das terras já cultivadas ou de melhorar as pastagens. Uma pressão salarial por parte da classe traba- 400 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal lhadora poderia despertar por parte dos proprietários, iniciativas tendentes a melhorar a produtividade. Neste sentido encaramos como funcional ao desenvolvimento a “luta pela mudança de estruturas” e como disfuncional, como um retrocesso, do ponto de vista de desenvolvi-mento a contra luta ou a repressão desencadeada contra os Sindicatos Rurais Esta “contraluta” conseguiu manter em grande parte inalterado o sistema tradicional de relações de trabalho e de fidelidades políticas, mas, sem dúvida alguma, não conseguiu fazer voltar ao estado anterior as novas expectativas despertadas no seio da classe trabalhadora. Empregando o termo comumente usado pelos trabalhadores poderíamos a classe trabalhadora continua ainda, em grande parte, ‘sujeita’, mas já não se conforma com este estado de sujeição . ALCEU RAVANELLO FERRARO 401 CAPÍTULO XI CONSCIÊNCIA E AGENTES DE MUDANÇA 1. CONSCIÊNCIA DA MUDANÇA Os critérios aplicados nos Capítulos VI a X nos possibilitaram verificar que, sob vários aspectos, as comunidades trabalhadas pelo SAR são significativamente diversas das não trabalhadas, ou seja, que o trabalho do SAR é responsável por uma série de mudanças nas comunidades por ele atingidas. Mas, teriam os habitantes dos dois grupos de comunidades consciência diversa quanto ao sentido, intensidade e tipo de mudanças verificadas nas respectivas comunidades? Com o intuito de verificar isto, propusemos às pessoas de 18 anos e mais, membros de famílias residentes havia pelo menos 7 anos na localidade, a seguinte pergunta (A.50): “Segundo seu modo de ver, o que é que aconteceu com sua localidade nos últimos 7 anos: melhorou (muito, bastante, um pouco), ficou no mesmo, piorou (um pouco, bastante, muito)?” 1) Na tabela 11.1 e no gráfico 11.1 as respostas aparecem distribuídas segundo os 7 graus da escala proposta. ALCEU RAVANELLO FERRARO 403 Um número relativamente baixo e quase idêntico de entrevistados de ambos os grupos de comunidades (11,3% nas CT e 8,5% nas CNT) declararam que a situação das respectivas comunidades piorou nos últimos 7 anos. Considerando porém os outros dois subtotais, observamos uma diferença muito grande entre os dois grupos de comunidades: 63,7% nas CT, contra apenas 30,7% nas CNT, acusaram uma melhora, e apenas 25,0% nas CT contra 60 8% nas CNT, não acusaram nenhuma mudança nos últimos 7 anos As CT apresentam, com relação às CNT, uma proporção mais elevada em todos os três graus positivos da escala, concentrando-se porém em “melhorou muito” a diferença entre os dois grupos de comunidades: melhorou um pouco — 14,5%, contra 10,9%; melhorou bastante - 13,3%, contra 9,4%; melhorou muito — 35,9%, contra apenas 10,4%, respectivamente nas CT e nas CNT. Como quer que se aplique (aos três subtotais ou aos 7 graus da escala), o teste de qui-quadrado revela uma diferença, entre os dois grupos de comunidades significativa a um nível extremamente elevado, muito superior a 1/1 000. A representação gráfica (gráfico 11.1) evidencia que as opiniões dos entrevistados das CT concentram-se em “melhorou” — especialmente em “melhorou muito” — enquanto que as opiniões dos entrevistados das CNT estão fortemente concentradas em ficou no mesmo”, dando, portanto, uma ideia de estagnação das respectivas comunidades. Os dados da tabela 11.1, distribuídos segundo as 8 comunidades, nos permitem ainda uma série de observações. 404 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal a — Os números relativos de entrevistados que acusaram uma piora são relativamente baixos e quase idênticos em cada CT e correspondente CNT nos 1o, 2o e 4o pares de comunidades, sendo sensível a diferença apenas no 3o par, onde precisamente a CT 3 (Jundiá de Cima) apresenta o número relativo mais elevado de pessoas que acusaram uma piora (21,6%), não só com relação à correspondente CNT (6,8%), mas também com relação a todas as 8 comunidades. Este fato não deixa de ser surpreendente, pois Jundiá de Cima é a comunidade mais beneficiada pela entrada de dinheiro através do artesanato. Por outro lado, é a que apresenta, com relação às 4 CT, o trabalho de comunidade mais fraco. b — O número relativo dos que não acusaram nenhuma mudança (ficou no mesmo) oscila, nas 4 CT, entre 10,5% e 34,2%, enquanto que, nas CNT, vai de 42,6% a 74,5%. Por conseguinte, o máximo encontrado nas 4 CT (CT 2 - 34,2%) fica muito aquém do mínimo encontrado nas 4 CNT (CNT 2 - 42,6%). c — por outro lado, o número dos que acusaram uma melhora é mais elevado em cada CT, do que em cada correspondente CNT: 1o par — 65,1% contra 14,6%; 2o par — 61,9% contra 53,2% (a menor diferença encontrada); 3o par — 51,7% contra 25,9%; 4o par — 77,2% contra 32,6%, sempre respectivamente em cada CT e correspondente CÍTT. d — Se considerarmos apenas a coluna dos que responderam “melhorou muito”, as diferenças são igualmente notáveis, sempre em favor de cada CT comparada com a correspondente CNT: 1o par — 34,9% contra 0,0% (nenhum); 2o par — 34,2% contra 14,9%; 3o par — 26,7% ALCEU RAVANELLO FERRARO 405 contra 12,1%; 4o par — 49,1% contra 15,3%. Contra um máximo de 15,3% nas CNT (CNT 4), temos, nas CT, um mínimo de 26,7% de entrevistados (CT 3) que declararam que a situação das respectivas comunidades melhorou muito nos últimos 7 anos. 2) Os que, na pergunta A.50, haviam acusado uma melhora na situação das respectivas comunidades foram solicitados a especificar em que estas haviam melhorado. As respostas aparecem agrupadas, no quadro acima, em 8 categorias, sendo que as percentagens foram calculadas sobre o total de declarados em A.50. sentam, nos itens 3, 5 e 7, números totalmente inexpressivos. O que vimos neste parágrafo evidencia 1) que os entrevistados das CT, em número muito mais elevado do que os das CNT, têm consciência de que a situação melhorou e 2) que o tipo de melhora acusada coincide, sob vários aspectos, com as diferenças anteriormente encontradas entre os dois grupos de comunidades. 2. AGENTES DE MUDANÇA 1) Opinião dos entrevistados. Os entrevistados que, na pergunta A.50, haviam acusado uma melhora na situação das respectivas comunidades nos últimos 7 anos foram perguntados sobre quem havia contribuído para esta melhora. As respostas aparecem agrupadas no quadro abaixo: É quase idêntico e pouco elevado em ambos os grupos de comunidades o número dos que acusaram um crescimento do lugar e uma melhora nas comunicações. O mesmo se diga quanto à situação sanitária, apesar das diferenças encontradas, no Capítulo VI, entre os dois grupos de comunidades. Quanto a todos os outros itens (situação geral, econômica, educacional, religiosa e formas associativas ou cooperativas), o número dos que acusaram uma melhora é sempre e sensivelmente mais elevado nas CT do que nas CNT, sendo que estas apre- 406 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 407 a — Os agentes não identificados com a ação do SAR (itens 5-10) foram mencionados nas CT quase tantas vezes, quantas nas CNT — respectivamente 71 e 81 vezes. Isto nos leva a crer que a influência destes agentes teria sido mais ou menos homogênea nos dois grupos de comunidades, ou seja, que realmente fatores outros que não o trabalho do SAR foram isolados ou mantidos constantes nos dois grupos de comunidades pesquisadas. b — Nas CNT as 81 menções não identificadas com o trabalho do SAR (itens 5-10) representam a quase totalidade de todas as menções feitas naquele grupo de comunidade (97,5%, ou sejam, 81/83). Nas CT, ao contrário, as 71 menções de tais agentes representam apenas 25,1% de todas as menções feitas no mesmo grupo de comunidades; as outras 211 menções (itens 1-4), que identificam precisamente o trabalho do SAR, representam 74,9% do total. c — Nas CNT figuram em 1o lugar (37 menções) os crefes políticos locais (pràticamente todos grandes proprietários). Nas CT, ao contrário, cabe a estes o 5o, figurando em 1o. lugar os líderes locais engajados em atividades do SAR (79 menções). este fato não só confirma a importância estratégica do treinamento de líderes de comunidade, como também parece indicar que o SAR teria mudado substancialmente a estrutura das comunidades por ele atingidas, despertando e formando uma liderança não identificada com a liderança tradicional, isto é, com o chefe político e (ou) o patrão. d — De um total de 67 menções das diversas atividades do SAR (item 2 — 2o. lugar), 35 (mais da metade) podem ser identificadas como formas associativas de pequenos 408 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal porte, atuantes no âmbito da comunidade ou localidade (Clubes e JAC — 19 menções). Além disto, praticamente todos os líderes mencionados no item 1 estavam de fato vinculados através de tais formas associativas. Aceito o fato, manifestado, aliás, pelos próprios entrevistados, de que os líderes de comunidade teriam sido os agentes mais decisivos na mudança (melhora) verificada nas CT, levantamos aqui a hipótese, a ser verificada logo adiante, que o rendimento do líder associado teria sido maior do que o do líder não associado.. e — Contra apenas 2 menções nas CNT, o “povo do lugar” foi mencionado, nas CT, 37 vezes (3o lugar). Isto vem fazer eco às conclusões a que chegamos no Capítulo VIII, sobre a participação em empreendimentos comunitários. f — Contra nenhuma menção nas CNT, nas CT os vigários foram mencionados/29 vezes (4o lugar). Obesrvese que, nos pares 1, 2 e 4 de comunidades, o vigário da CT e correspondente CNT era o mesmo. Não raro o SAR, como, aliás, todo o Movimento de Natal, tem sido acusado de clericalismo, isto é, de se identificar, na cúpula, com a pessoa de D. Eugênio e, na base, com os vigários. No que tange à forma de atuação dos vigários nos empreendimentos do SAR nas 4 comunidades pesquisadas, podemos observar o seguinte: 1) num total de 211 menções de agentes direta ou indiretamente identificados com o SAR (itens 1-4), os vigários foram mencionados apenas 29 vêzes, enquanto que os líderes locais (de comunidade) aparecem 79 vezes, e o povo do lugar, 37 vezes; 2) em 23 das 29 menções, os vigários foram citados juntamente com o povo, algum líder ou grupo do lugar. Eis ALCEU RAVANELLO FERRARO 409 alguns exemplos: “O povo, o vigário, a Rural”; “O vigário, o povo, as moças”; “Seu Pedro, do Centro Social, e Mons. Expedito”; “Seu Alfeu, o padre e seu Pedro, do Centro”; “O vigário e o povo mesmo”; “O padre e o povo”; “Padre Armando, os moços da Emissora, O Clube de Jovens e o Artesanato”; “Os homens. Deus, o vigário, Glória (chefe do Setor de Artesanato — única menção nominal de um elemento da cúpula do SAR) e Aparecida” (líder do Clube de Jovens e do núcleo de artesanato de Jundiá de Cima); “O vigário e seu Francisco”; etc. Tudo isto confirma o que nossa observação apurou nas 4 CT pesquisadas, isto é, que o trabalho é assumido por pessoas do lugar, agindo os vigários mais como inspiradores, estimuladores e educadores. Ademais, os entrevistados têm consciência de que o trabalho é deles, ou do povo, e não do vigário, ou, pelo menos, que é mais deles do que do vigário. Não nos parece se possa qualificar de clericalista o trabalho desenvolvido pelo SAR nestas comunidades. Por último, encerrando o questionário A, foi proposta a seguinte pergunta aos entrevistados das 4 CT (A.52): “Quais destas coisas o senhor acha que mais contribuíram para melhorar a situação de sua localidade ou quais julga mais importantes: Centro Social, Clube de jovens, Clube Agrícola, Clube de Mães, JAC, Cooperativa, Sindicato, Escola Radiofônica, Artesanato?” Os entrevistados podiam mencionar 4 atividades, em ordem de importância. A maioria, porém, se limitou a indicar uma ou duas. Segundo os dados da tabela 11.2, os grupos de pequeno porte mereceram, tanto em 1o, como 410 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal em 2o, 3o e 4o lugares, o número mais elevado de menções, sendo seguidos ora pelos Centros Sociais, ora pelas Escolas Radiofônicas. Considerando os 1° a 4o lugares conjuntamente, foi o seguinte o número de menções de cada atividade: grupos de pequeno porte — 260 vezes; Centro Social — 120 vezes; Escolas Radiofônicas 120 vezes; Cooperativa (excluída a de Artesanato) — 43 vezes; Cooperativa de Artesanato — 31 vezes; Sindicato — 18 vezes. E evidente, por conseguinte, a importância atribuída pelos próprios entrevistados das CT aos grupos de pequeno porte. Isto se torna ainda mais claro, se lembrarmos que a vitalidade dos Centros Sociais repousa, em grande parte, nestes grupos. 2) Pesquisa entre monitores. Acabamos de constatar que os entrevistados das CT atribuíram especial importância aos líderes de comunidade e aos grupos de pequenos porte, como agentes de mudança. Levantamos, também, a hipótese de que o rendimento do líder associado teria sido maior do que o do líder não associado. Especialmente com o objetivo de verificar esta hipótese, foi realizada, em meados de 1965 uma pesquisa (questionário B), atingindo 248 líderes treinados (no caso, todos monitores de Escolas Radiofônicas), pertencentes a 31 municípios do interior da Arquidiocese de Natal. Preenchidos os questionários, os monitores foram divididos em duas categorias: monitores associados a um ou mais grupos de pequeno porte - Clube de Jovens, de Mães, Agrícola, JAC (Juventude Agrária Católica) e MFC (Movimento Familiar Cristão) e monitores nao associados a nenhum destes (nem semelhantes) grupos. Uma série de critérios aplicados nos permitiu estabelecer algumas confrontações en- ALCEU RAVANELLO FERRARO 411 tre o comportamento das duas categorias de monitores e entre a situação das respectivas famílias. Por brevidade falaremos simplesmente em monitores associados e não associados, entendendo-se a grupos de pequeno porte, quais os acima mencionados. a) Responsabilidade dos monitores (B.ll e B.16). Dos 203 monitores declarados e que haviam ensinado em 1964, 94,4% entre os associados, contra 83,3% entre os não associados, declararam haver enviado, naquele ano, ficha de matrícula à Equipe Central do MEB. O teste de quiquadrado revela ser esta diferença significativa ao nível de 5% (parte A da tabela 11.3). Quanto à regularidade na remessa de fichas de frequência (parte B da tabela 11.3), temos as seguintes percentagens, respectivamente entre os monitores associados e os não associados: nunca — 4,4% contra 17%; 1-2 meses — 13,2% contra 15,2%; vários meses — 26,4% contra 19,6%; todos os meses — 56,0% contra 48,2%. Sem a correção de Yates, a diferença entre as duas categorias de monitores revela-se significativa ao nível de 5%; com a correção, a diferença encontrada beira este nível de significância. Os dois critérios conjuntamente parecem indicar que os monitores associados se demonstram mais responsáveis, na administração das respectivas Escolas, do que os não associados. Cultivo de verduras (B.23). O SAR sempre se tem empenhado na difusão do cultivo e consumo de verduras. Segundo a tabela 11.4, temos as seguintes percentagens, respectivamente entre as famílias de monitores associados e as dos não associados: não plantavam nenhuma 412 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal qualidade de verdura — 3,6% contra 11,0%; 1-2 qualidades — 3,6% contra 10,2%; 3-4 qualidades — 16,2% contra 35,0%; 5-6 qualidades — 35,1% contra 36,5%; 7-8 qualidades de verduras — 41,5% contra apenas 7,3%, sempre respectivamente entre as famílias de monitores associados e as dos não associados. O nível de significância das diferenças encontradas entre as famílias das duas categorias de monitores é extremamente elevada, a um nível muito superior a l/l.000. Tratamento da água potável. No caso do tratamento da água potável (B 25 e B 26), com o fim de manter constante o fator econômico distribuímos, por categoria profissional dos chefes, as famílias dos monitores. Assim, segundo declaração dos 248 monitores entrevistados e distribuídas as respectivas famílias por categoria profissional dos chefes (tabela 11.5), era da seguinte ordem o número relativo de famílias, respectivamente de monitores-membros associados e não associados, que filtravam ou ferviam água: respectivamente 53,9% e 55,5% entre as famílias de patrões; 44,9% e 29,3% entre as famílias de pequenos proprietários; 42,5% e 28,1% entre as famílias de trabalhadores rurais - 55,6% e 38,5% entre as famílias de não-agricultores (outros) Com excessão das famílias de patrões, em todos os outros casos o número relativo de famílias que filtravam ou ferviam água e bem mais elevado no caso de monitores-membros associados. Independentemente de categoria profissional dos chefes, contra apenas 314% das famílias de monitores não associados, 45,9% das famílias de monitores associados ferviam e filtravam a água potável. ALCEU RAVANELLO FERRARO 413 Fossa. Sempre com o objetivo de manter constante o fator econômico, também neste caso (B.24) distribuímos, por categoria profissional, as famílias dos monitores entrevistados. Assim, segundo aparece na tabela 11.6, a frequência de fossa, embora menos acentuadamente no caso dos pequenos proprietários, é sempre mais elevada entre as famílias de monitores associados do que entre as de monitores não associados: respectivamente 61,5% contra 33,3%, entre as famílias de patrões; 22,4% contra 17,5%, entre as famílias de pequenos proprietários; 25,6% contra 6,9%, entre as famílias de trabalhadores rurais; e 55,6% contra 38,5%, entre as famílias de não-agricultores (outros). Sem distinção de categoria profissional dos respectivos chefes, 30,9% das famílias de monitores associados tinham fossa, contra apenas 16,1% das famílias de monitores não associados. Esta diferença é significativa a um nível elevado (superior a 1%). e) Cooperativismo e Sindicalismo. Segundo a parte-A da tabela 11.7 (B.20), excessão feita dos não agricultores (outros: respectivamente 22,2% e 23,1%), segundo todas as outras categorias profissionais é mais elevado entre as famílias de monitores associados do que entre as famílias de monitores não associados o número relativo das que tinham um ou mais membros associados a alguma cooperativa: famílias de pequenos proprietários, respectivamente 55,1% contra 20,7%; famílias de trabalhadores rurais — 35% contra 24,6%; famílias de patrões — 61,5% contra 22,2%. Tomando todas as categorias profissionais conjuntamente’, o número de famílias que tinham um ou mais membros associados a alguma Cooperativa era da ordem de 45,9% entre as famílias de monitores asso- 414 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ciados, contra apenas 22,6% entre as de monitores não associados. Neste caso a diferença é significativa a um nível superior a 1/1.000. Segundo a parte B da tabela 11.7 (B.21), excessão feita das famílias de trabalhadores rurais, onde a situação é levemente inversa (55,0% contra 57,9%), em todos os outros casos é mais elevado entre as de monitores associados do que entre as de monitores não associados o número relativo de famílias que tinham um ou mais membros sindicalizados: respectivamente 38,5% contra 11,1%, entre as famílias de patrões; 59,2% contra 34,5%, entre as famílias de pequenos proprietários; 77,8% contra 46,2%, entre as famílias de não agricultores (outros). Sem distinção de categoria profissional dos chefes, 56,8% das famílias de monitores associados, contra apenas 43,8% das de monitores não associados, tinham um ou mais membros sindicalizados, revelando-se esta diferença significativa ao nível de 5%. Concluindo, podemos dizer que parece confirmada também a hipótese de que o rendimento do líder associado teria sido maior do que o do líder não associado. As declarações das pessoas entrevistadas nas CT, indicando como principais agentes de mudança os líderes de comunidade e os grupos de pequeno porte, reforçam as conclusões a que chegáramos em nossa observação direta em dezenas de comunidades do interior. Os dados da pesquisa realizada entre 248 líderes (monitores), se não considerarmos a categoria profissional dos chefes das respectivas famílias, confirmam, sem excessão, a hipótese. Se mantido constante o fator econômico (distribuição dos monitores ou das respectivas famílias segundo a ca- ALCEU RAVANELLO FERRARO 415 tegoria profissional dos chefes), a hipótese encontra também confirmação em todos os casos, com excessão de três (patrões — tabela 11.5; não agricultores (outros) — tabela 11.6; trabalhadores rurais — tabela 11.7-A), onde a situação é levemente inversa. CONCLUSÃO À II PARTE 1. Nos Capítulos VI - X ficou evidenciado que, segundo a grande maioria dos critérios aplicados, são significativamente mais frequentes ou significativamente diversos nas CT, em relação com as CNT, concepções, atitudes, padrões de comportamento e, inclusive, condições de vida identificáveis como funcionais ao desenvolvimento e mesmo, como no caso de um índice mais elevado de alfabetização, com os próprios objetivos do desenvolvimento. Mesmo no que concerne a mudanças na situação técnico-econômica, a respeito da qual, no Capítulo VI, não encontramos, sob diversos aspectos, nenhuma diferença significativa entre os dois grupos de comunidades, a aplicação de outros ou mais acurados critérios talvez nos levasse a conclusões diversas. De fato, dos chefes de família que se declararam sobre o sentido e o tipo de mudança verificada nas respectivas comunidades nos últimos 7 anos, 28,5% nas CT, contra apenas 18,9% nas CNT, acusaram mudanças (melhoras) na situação econômica (Capítulo XI.2.2). 2. Isolados ou mantidos constantes outros fatores (Capítulo V), o SAR apresenta-se como o único fator ca- 416 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 417 paz de explicar as diferenças quase sempre significativas encontradas entre os dois grupos de comunidades, ou sejam, as mudanças, em termos de desenvolvimento, significativamente mais intensas nas CT do que nas CNT. Ademais, esta conclusão é confirmada pelas próprias declarações dos entrevistados: a) a maioria dos entrevistados das CT (63.7%) têm consciência de tais mudanças (melhoras), enquanto que nas CNT a maioria (60,8%) acusa uma estagnação nas condições de vida nas respectivas comunidades (ficou no mesmo); b) os diversos tipos de mudanças (melhoras) apontadas pelos entrevistados das CT (com duas ressalvas: com maior intensidade no que concerne à situação econômica e com menor intensidade no que tange à saúde) confirmam as conclusões a que nos conduziu a verificação empírica; c) os agentes apontados pelos entrevistados das CT permitem identificar o SAR como principal agente de mudança. Dentro, por conseguinte, dos objetivos estabelecidos e salvas imitações de ordem econômica (parcos e descontínuos recursos financeiros) e humana (inabilidade ou desinteresse da parte de alguns 6 corpo técnico composto quase que exclusivamente de assistentes sociais), podemos dizer que, no tocante às atividades temporais empreendidas pelo Movimento (SAR) no meio rural, a hipótese da funcionalidade ao desenvolvimento encontrou, segundo a quase totalidade dos critérios aplicados, eco favorável nos dados da pesquisa. Segue-se, portanto, que, mesmo numa sociedade tradicional e tradicionalmente católica (catolicismo de tradição), a Igreja ou determinado grupo religioso pode, em determinadas condições, demonstrar-se funcional ao de- 418 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal senvolvimento ou exercer uma função de desenvolvimento. Em que condições o possa fazer, é o que tentaremos verificar na III Parte. 3. Parece também confirmada pelos dados da verificação empírica a hipótese de um maior rendimento do líder que atua na comunidade através de grupos ou formas associativas, do que o rendimento do líder que não conta tais suportes associativos ou que atua isoladamente. Isto nos leva a duas conclusões práticas de suma importância: — a primeira, sobre a ineficácia ou pelo menos sobre a menor produtividade de investimentos em treinamentos de líderes de comunidade sem que ao mesmo tempo se os oriente e estimule para a criação de formas associativas que lhes sirvam de suporte em seu trabalho de desenvolvimento de comunidade, — e a segunda, sobre a validade prática da estratégia típica do SAR na I FASE RURAL, montada no tripé: líder treinado — grupo — comunidade. ALCEU RAVANELLO FERRARO 419 III PARTE RELAÇÃO ENTRE FUNCIONALIDADE E ATITUDE E ENTRE TEMPORAL E RELIGIOSO CAPÍTULO XII RELAÇÃO ENTRE FUNCIONALIDADE E ATITUDE E ENTRE TEMPORAL E RELIGIOSO Ao levantarmos, na introdução a este trabalho, a hipótese da funcionalidade, do ponto de vista de desenvolvimento, das atividades temporais empreendidas pelo Movimento de Natal, perguntamo-nos também se o resultado da verificação empírica a que submeteríamos tais atividades não estaria vinculado a determinada atitude da Igreja em face da mudança em ambos os campos — temporal e religioso. Levantamos, assim, a hipótese (2ª na introdução e 3a aqui, uma vez que no Capítulo anterior intercalamos outra), segundo a qual, a uma eventual funcionalidade corresponderia, da parte do Movimento e especialmente de seus líderes, uma atitude inovadora. A hipótese da funcionalidade saiu confirmada na quase totalidade dos testes a que a submetemos. Trata-se, agora, de verificar a hipótese da relação 1) entre funcionalidade e atitude e 2) entre atitude-ação no setor temporal e atitude-ação no setor religioso. Podemos manter-lhe inalterada a formulação, suprimindo apenas a forma condicional, uma vez que os dados confirmaram a hipótese da funcionalidade. Temos assim: ALCEU RAVANELLO FERRARO 423 III HIPÓTESE: Por parte do Movimento e especialmente de seus líderes, de cujas atividades temporais empreendidas no meio rural ficou demonstrada a funcionalidade ao desenvolvimento, correspondeu — dados colhidos durante mais de dois anos de observação in loco e dados coletados através de algumas perguntas incluídas no questionário A, aplicado nas 8 comunidades pesquisadas. uma atitude inovadora, motivada por valores e não por interesses particulares do grupo religioso, de orientação profética e não ética, atitude esta resultante de um processo de desinculturação dos valores A. VISÃO RETROSPECTIVA cristãos e resultante num descomprometimento do grupo religioso com o “status quo” social e religioso e numa posição em favor da mudança tanto no setor temporal como no religioso. Na verificação desta hipótese teremos presentes os principais critérios distintivos das quatro atitudes-tipo que mencionamos na introdução a este trabalho. Com o objetivo não só de definir a atitude atual do Movimento (de seus líderes), mas de determinar-lhe também a evolução, insistiremos, semelhantemente ao que fizemos na I Parte, na perspectiva histórica. Como fontes principais utilizaremos: — o que vimos até aqui, especialmente na I Parte; — o Diário A ORDEM, particularmente no que se refere aos anos de 1940 a 1951; — os numerosos documentos dos arquivos privados de D. Eugênio (dircursos, conferências, alocuções radiofônicas, homilias, artigos), de 1944 a 1964, aos quais nos foi permitido livre acesso; — a documentação do Secretariado Arquidiocesano de Pastoral e do Secretariado Regional dos Bispos do Nordeste; 424 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 1. 1940 A MEADOS DE 1945 Utilizando como fonte principal o Diário A ORDEM, tentaremos reconstituir sinteticamente a imagem da Igreja no período imediatamente anterior ao início do Movimento, ou seja, na primeira metade dos anos 1940. Antes de tudo tem-se a impressão de uma Igreja ameaçada, que se defende de uma série de “inimigos”. São frequentes os ataques contra o protestantismo, o espiritismo, a maçonaria, o laicismo, numa palavra, contra os “inimigos da fé”. Observa-se paralelamente o tom moralizante, seja do jornal, seja das atividades e pronunciamentos de líderes católicos, relatados no jornal: são as repetidas investidas contra o baile, o carnaval, o neopaganismo, a má imprensa, “certa” literatura infantil, a coeducação, o divórcio, a jogatina, a imoralidade nas praias e nas ruas, etc., enfim, contra os “inimigos da ordem moral”. Sintomática e característica desta época foi a criação do Departamento de Defesa da Fé e da Moral, de âmbito nacional, instalado, pouco mais tarde (outubro de 1946), em Natal e confiado a aquele que seria o principal líder do Movimento, o então jovem Pe. Eugênio. ALCEU RAVANELLO FERRARO 425 Outra característica desta época é a forma triunfalista sob a qual o jornal apresentava a Igreja. Vejamos apenas um exemplo: A ORDEM de 10, 12 e 14 de julho de 1943 relata que a Obra das Vocações Sacerdotais e a Congregação Mariana (está, aliás, nunca ausente em tais ocasiões!) “mobilizaram” as “forças católicas” para “homenagear” o clero da Diocese por ocasião do encerramento de seu retiro anual e observa com satisfação que a celebração, realizada na sede da Confederação Católica, cuja fachada estava “feericamente iluminada”, revestiu-se de “excepcional brilhantismo”. Em lugar da unanimidade católica da região, começava a surgir o pluralismo religioso. O começo do fim do isolamento da região abria caminho à penetração de novas ideias, de novos costumes, para o que muito contribuiu a presença de milhares de soldados americanos em Natal, naqueles anos. O aparecimento dos “inimigos” acima enumerados não era, em grande parte, senão o reflexo de mudanças mais profundas que, no decênio seguinte, levariam a região a tomar consciência de seu estado de subdesenvolvimento. Tal relação, porém não era feita então, nem aquelas mudanças mais profundas tinham sido identificadas, a não ser talvez mudanças nos costumes, atribuídas a presença norte-americana. Assim, por conseguinte, antes de se colocar em termos — pelo menos em termos conscientes — de desenvolvimento, já o problema da mudança se apresentara à Igreja em termos religiosos, isto é, em setores (fé e moral) que diziam diretamente respeito à sua função específica. A resposta pastoral ensaiada pela Igreja de Natal parece ter sido prevalentemente de tipo ético - mobilização das “forças 426 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal católicas” no sentido de conservar e preservar os valores cristãos ameaçados pelo aparecimento de outras “forças”. A imagem que A ORDEM nos deu parece espelhar não só a posição dos marianos, em cujas mãos estava o jornal, mas também, pelo caráter semi-oficial daquele órgão e pelo prestígio de que gozavam os marianos, a própria posição oficial das autoridades diocesanas. Tudo indica, porém, que a pastoral paroquial tradicional não sofreu alterações substanciais neste período. Nesta fase, no que tange aos novos problemas da “Cidade - Trampolim da Vitória”, nem a Congregação Mariana se demonstrou criativa (pode-se dizer que esta já vivia dos louros do passado), nem a jovem Ação Católica esteve à altura para enfrentá-los. Limitaram-se ambas a cooperar com a L.B.A. e o SERÁS, em atividades marcadamente assistenciais, embora já com certa preocupação de superar o mero assistencialismo. Aqui poderíamos perguntar-nos: não se deveriam precisamente àquela atitude conservadora, de orientação ética, a falta de criatividade dos Marianos neste período e o progressivo eclipse do marianismo em Natal a partir de 1945? Em todo caso, o Movimento não nasceu da cúpula diocesana, nem das fileiras dos “legionários da fita azul”, mas da jovem Ação Católica. Não só houve uma descontinuidade entre Movimento e marianismo, mas, também, o início daquele marcou o começo do eclipse deste. ALCEU RAVANELLO FERRARO 427 2. INÍCIO DO MOVIMENTO: 1945 A 1950 Como vimos na I Parte, foi nos anos de 1945 a 1950 que teve início e se definiu a FASE URBANA do Movimento, e amadureceu a ideia de um “serviço rural”, concretizada em 1949, com a fundação do Serviço de Assistência Rural. Este período inicial do Movimento merece especial atenção, embora baste, aqui, sob diversos aspectos, sintetizar o que já vimos nos Capítulos I a III. 1) A Cidade - Trampolim da Vitória conhecera, nos anos de 1942 até o fim da guerra, um surto populacional, por imigração, nunca visto em sua história, decorrente das novas oportunidades de emprego e biscate fácil que o funcionamento das Bases Aérea e Naval e, mais que tudo, a presença das tropas americanas, sediadas ou em trânsito, ofereciam à população. Com o fim da guerra, a Cidade caiu verticalmente, em termos de emprego, de biscate e de circulação de dinheiro, enquanto permaneciam elevados o custo de vida e o fluxo imigratório. Os problemas sociais, como os jornais da época o demonstram, apresentavam tal gravidade, que se pode muito bem falar em situação de emergência. Esta situação, aliada ao fato da retirada da Legião Brasileira de Assistência da assistência direta individual, constituiu, sem dúvida, uma ocasião para a arrancada da Ação Católica para o campo social. Explica, também, em parte, o tipo de obras e atividades empreendidas na Cidade de Natal. Dissemos, no Capítulo II, que a FASE URBANA do Movimento se caracterizou pelo trabalho social desenvolvido pela Ação Católica nos novos bairros que iam surgindo na periferia da Cidade. Isto, a partir de 1945. Acontece, 428 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal porém, que os rapazes e moças da Ação Católica já lá estavam presentes antes de 1945. O que os movera? A constatação da ausência da Igreja nas áreas suburbanas de imigração. Através de seus “comandos missionários”, desenvolviam, de acordo com a finalidade específica da Ação Católica, um trabalho religioso, já então chamado missionário, o que não deixa de ser sugestivo. O mesmo se diga da maneira como foi assinalada a presença da Ação Católica naquelas áreas: não pela edificação de templos, mas pelo trabalho missionário e, a partir de 1945, também pelo trabalho social. No plano religioso, parece-nos ser este o primeiro fato a deixar entrever uma mudança de perspectiva ou orientação pastoral. “Mais valem igrejas vivas do que igrejas de pedra!” E a própria “Nova Catedral , inacabada e adaptada para abrigar alguns setôres do SAR e o Secretariado de Pastoral, transformou-se em símbolo de um Movimento que passou a ser admirado, não pelos templos que construiu, mas pelo que realizou em vez da edificação de templos. Perguntado, em entrevista, sobre o que motivara este trabalho nos bairros da Capital, D. Eugênio assim se definiu: “O que pesou no início do trabalho na Cidade foi a necessidade de educação do povo pobre e, depois, prever para o futuro. Sabendo que a cidade só podia crescer numa direção — entre o morro e o rio — então nos preocupamos em instalar núcleos de evangelização, dado que a pastoral cia Cidade era a pastoral mais atrasada da Diocese... E como não podíamos agir na estrutura pastoral — não tínhamos as paróquias, nem eu era bispo — então procuramos agir de outra maneira, criando núcleos sociais que fossem também núcleos de irradiação religiosa”. ALCEU RAVANELLO FERRARO 429 Esta preocupação pelo pobre, pelo marginal, é uma constante no Movimento. E este sentido de previsão, este sentido do futuro (religioso) encontramo-lo desde os primeiros anos de sacerdócio de D. Eugênio. Que a ação social na periferia da Cidade tenha, em parte, constituído uma espécie de válvula de escape de um desejo de renovação pastoral que não encontrava eco na cúpula diocesana de então, parece não deixar dúvida. Ao lado, porém, desta função um tanto instrumental da ação temporal com respeito à ação especificamente religiosa, observamos, neste período, da parte da Ação Católica, de acordo, aliás, com a orientação nacional, um esforço de reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Não que antes ninguém lhe tenha prestado atenção. Observase, porém, por volta de 1945, especialmente a partir da I Semana Diocesana de Ação Católica (outubro de 1945), uma relação íntima entre o trabalho de reflexão sobre a doutrina social e o esforço de aplicação desta na solução dos problemas da Cidade. Através da pena do jovem advogado Dr. Otto de Brito Guerra, esta preocupação se reflete claramente no próprio Diário A Ordem. O contraste entre a realidade social e os valores sociais cristãos é, com frequência, posto em relevo. Este fato é fundamental para a compreensão do Movimento no que se relaciona com suas motivações específicas e sua atitude em face da mudança. E A Ordem nos dá, neste período, uma imagem da Igreja bastante diversa da dos anos de 1940 a 1945. Aos “inimigos” da fé e dos costumes, da primeira metade dos anos 40, substituem-se outros: a miséria, a ignorância, o desemprego, a falta de escola e assistência médica, o 430 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal menor delinquente ou abandonado, e o abandono religioso. Tratar- se-ia de uma mera substituição de “inimigos”, dentro de uma orientação ética, voltada mais para os efeitos do que para as causas dos males sociais? Em grande parte, sim. Mas, já se observa que, de uma atitude de defesa, a Igreja começa a ser mais agressiva, mais empreendedora. Por outro lado, pelo fim dos anos 40, já havia desaparecido quase por completo aquele tom trunfalista: do ressalto da “imponência” e “brilhantismo” das recepções, comemorações, concentrações, procissões..., promovidas pelas “forças católicas”, o jornal passa a dar atenção ao trabalho, muitas vezes desapercebido, de pequenos grupos de Ação Católica, na periferia da cidade. As atenções voltam-se para a população social e religiosamente marginalizada. Vemos, nisto, mais uma influência da Ação Católica em A Ordem, do que uma mudança de perspectiva dos marianos. Estes, provavelmente devido à atitude de que falamos anteriormente e à falta de renovação de liderança, não conseguiram acompanhar o novo compasso marcado pelos jovens da Ação Católica. Como nos bairros da cidade, assim também no que se relacio na com o meio rural o primeiro passo concreto situou-se no plano estritamente religioso: foram os encontros de um grupo de “angustiados” ou, como diz D. Eugênio, “de alguns sacerdotes preocupados com a necessidade de se unirem para melhor exercerem sua ação apostólica”1 Sobre as razões que levaram este grupo de “angustiados” a voltar-se para os problemas sociais do homem do campo e a fundar o SAR, D. Eugênio assim se exprimiu ALCEU RAVANELLO FERRARO 431 em sua entrevista: “Foram razões de preocupação pela situação do homem do meio rural. No início elas não eram tão especificadas. Havia uma angústia pelo problema do homem. Não se sabia bem o caminho a percorrer. Tinha-se claro o objetivo, mas não todos os meios para atingi-lo.” De fato, observamos que o surgimento desta preocupação pelos problemas do meio rural teve suas raízes: 1) na relação de causa-efeito que os pioneiros do Movimento faziam entre os problemas do campo e certos problemas da Cidade (agindo como causa centrífuga, as precárias condições de vida no interior expeliam o homem, e a Cidade, recebendo sempre novas levas de migrantes, via agravados seus problemas); 2) naqueles encontros dos “angustiados”; 3) na confrontação que se começava a fazer entre valores sociais cristãos e realidade temporal. Foi assim que a ideia de um “serviço rural” se concretizou com a fundação do SAR em 1949. 2) Considerando globalmente as obras sociais empreendidas na Capital, neste período, como, aliás, em toda a fase urbana, não podemos dizer que tais obras representem uma ação inovadora, isto e, orientada para a transformação social. Constituem antes um esforço de remediar uma situação. Neste sentido, corresponderiam melhor a uma orientação ética ou conservadora. Contudo, uma observação mais acurada de certos fatos e tendências nos aconselha a não precipitar tal conclusão. Com efeito a nítida descontinuidade entre o Movimento e o marianismo, o carácter de emergência de muitas obras, a pouca experiência dos pioneiros no campo de ação social, a ausência de uma atitude de 432 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal resistência as musas efetivamente em curso, o aspecto de novidade se não de inovação, de certas iniciativas (a fundação da Escola de Serviço Social com o objetivo de superar o assistencialismo e o empirismo na ação sociala experiência dos Centros Sociais e do Serviço Social de Comunidade última palavra, então, em Serviço Social; o ensino primário gratuito nas áreas ainda não integradas no processo urbano): tudo isto, enfim, especialmente se considerado a luz de toda a história do Movimento, parece representar os primeiros sintomas de uma mudança de orientação (atitude e ação) no campo social. Semelhante, os primeiros planos para o meio rural mostram tão claramente que a equipe fundadora do SAR não tinha noção do meios, isto é, de como realizar a recuperação, o soerguimento a redenção do homem do campo, que, se houvesse conseguido concretizar sua primeira ideia (a da “volante da saúde”), ideia alias, importa da comovo de novo, o Serviço de Assistência Rural talvez não tivesse ido além do que seu próprio nome diz: assistência. Contudo, estes primeiro projetos marcadamente assistenciais se olhados a luz da história do Movimento, parecem resultar mais de como fazer (foi a época de busca das primeiras luzes), do que de uma tomada de posição em face da mudança. Foi o período em que os pioneiros do Movimento tomaram consciência de certas mudanças em curso. E o que nos sugere a analise da documentação de D. Eugênio. Efetivamente a consciência de viver numa época de mudanças de rápidas e profundas transformações, numa fase de transição, numa encruzilhada da história, é uma constante no pensamento de D. Eugênio. Esta consciên- ALCEU RAVANELLO FERRARO 433 cia encontramo-la já em seu primeiro ano de sacerdócio, no documento mais antigo que tivemos em mão (1944). “Toda época de transição é sempre cheia de apreensões, de cuidados, de ansiedades. E nossa Cidade em vertiginosa carreira muda de aspecto costumes novas atividades, novos interesses. Maiores responsabilidades para vós”2. E, dois anos mais tarde, observava. “Com meridiana clareza sentimos a honra de viver uma época de transição, prenhe de responsabilidade, e percebemos em nossas mãos uma parcela do peso deste destino. E maior é nossa glória, pois somos homens do espírito, cujo ofício paira acima das contingências do mundo. Não nos move o brilho do ouro nos objetivos comerciais ou a embriagues do mando nas metas políticas. Nosso campo paira acima, nas regiões do espírito. Somos homens do amanhã. Por isso creio ser natural a incompreensão diante do sacerdote... (Referência a reação, na Cidade motivada por um sermão em que falara sobre a reforma agrária? ) A Igreja, no Brasil, tem, de maneira especial, tremenda responsabilidade3. E, num sermão de 1948, encontramos, com a mesma clareza! a consciência de viver numa “época de transição”, “numa encruzilhada da história”4. Esta consciência de viver numa época de transição e, consequentemente, de responsabilidades, já encontrada no alvorecer no movimento e, com maior clareza e frequência, nos anos seguintes, parece constituir o fato mais importante na origem do Movimento e na sua evolução no plano das atitudes, isto é, no desenvolvimento de uma atitude favorável à mudança, à transformação social. 434 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 3) Da análise feita, podemos tirar algumas conclusões com relação ao período inicial do Movimento. a — O Movimento foi primeiramente religioso. Tanto na cidade como no interior, seus primeiros passos situaramse no campo religioso e foram motivados por um desejo de renovação pastoral. b — O surgimento do Movimento social esteve intimamente relacionado: a) com a própria realização do objetivo específico (religioso) do grupo, o que deixa transparecer uma certa visão instrumental do temporal com relação ao religioso, própria de uma atitude éticoconservadora, e 2) com a “descoberta” dos valores sociais cristãos (Doutrina Social da Igreja) e a verificação de contradições existentes entre estes valores e a realidade social, no que já parece esboçar-se uma atitude proféticoinovadora. c — Após esta breve defasagem inicial, o Movimento aparece como um todo: religioso e social, ao mesmo tempo. d — Os pioneiros do Movimento agiram, tanto no setor religioso como no temporal, impelidos por uma mesma motivação fundamental, isto é, motivados pelos valores do grupo religioso: pelo desejo de difundir os valores religiosos e de concretizar no temporal os valores sociais do grupo. Esta preponderância de valores sobre interesses aparece claramente da parte dos iniciadores do movimento. e — No plano religioso, especialmente se consideramos o tipo de trabalho missionário desenvolvido nos novos bairros da Capital, aparecem claros indícios de uma atitude e ação de carácter profético (inovador). ALCEU RAVANELLO FERRARO 435 f — No plano temporal, as obras e atividades empreendidas ou apenas programadas neste período parecem corresponder melhor a uma ação de tipo ético (conservador). Contudo, especialmente se visto a luz de toda a história do Movimento, uma série de fatos e tendências apontados em nossa análise, entre os quais, a consciência clara, da partede D. Eugênio, de viver numa época de transição e das responsabilidades dai decorrentes, a ausência de uma atitude contrária a mudança, a confrontação entre valores sociais e realidade temporal, deixam entrever um esboçar-se de uma atitude de aceitação da mudança (atitude profética ou inovadora, porque motivada por valores). Esta tendência inicial aparecera mais claramente a luz dos fatos posteriores. B. AS DUAS FASES RURAIS: 1951 - 1965 Na parte A, fixamos nossa atenção sobre o quinquênio imediatamente anterior (1940 a meados de 1945) e sobre a fase inicial do Movimento (meados de 1945 a 1950), antes, portanto, do início propriamente dito das atividades do SAR, cuja funcionalidade ao desenvolvimento foi confirmada pelos dados da verificação empírica a que as submetemos na II Parte. Este é, portanto, o período crucial também para a verificção da III hipótese. Ênfase especial daremos à análise da documentação de D. Eugênio, especialmente da dos anos 60 (II FASE RURAL), onde os documentos são mais abundantes. 436 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 1. MUDANÇA — NORMA DE AÇÃO Observamos que, já em 1944, D. Eugênio manifestava uma consciência clara de estar vivendo numa fase de transição, de mudanças. Em muitos casos, porém, mais do que de constatação de transformações de fato em curso na região, “mudança”, “transição”, “encruzilhada da história” representam identificação de tendências de âmbito muito mais vasto — mundial. Trata-se de sinais dos tempos. Assim, por exemplo, quando adverte: “Constitui erro dos mais graves não entender os tempos”5. “Muita gente não compreendeu a mudança por que está passando o mundo”6. Ou então, quando afirma: “Vivemos um período de transição. A mudança em si não encerra malícia ou bondade. O rumo por onde ela nos leva contém o segrêdo da construção de uma nova ordem ou o germe da destruição. Para ser possível liderar para o bem uma encruzilhada da História, necessário se faz compreendê-la com a inteligência de homens que tenham a sensibilidade da hora presente. Não se podem aguilhoar fatos sociais. Eles são irreversíveis e, em si, essa constatação não nos deve intimidar. Temor nos pode causar, e muito, quando os homens não são capazes de distinguir a necessidade de mudanças que os tempos exigem7. Estas últimas palavras — “necessidade de mudanças que os tempos exigem” — nos chamam a atenção para outro aspecto de extrema importância: para D. Eugênio, “época de mudanças” representa também e, de modo especial a partir do fim dos anos 50, principalmente uma norma de ação. “Podereis transformá-lo (o ambiente)’, dizia ele já em 1944 às militantes da J.F.C.8. E, em 1961: ALCEU RAVANELLO FERRARO 437 “Não se esqueça (ouvinte) que esses fatos sociais que estamos presenciando são irreversíveis. Por exemplo, ninguém deterá a marcha da sindicalização rural. Ninguém. A predominância do social e a integração no comunitário são características de nossa época...”9. Ora, no que tange ao Estado e mesmo a outras áreas do país, pelas mudanças apontadas — a sindicalização rural e a organização de comunidades rurais — eram precisamente o SAR e ele, D. Eugênio, os principais responsáveis! Importa “aceitá-las de ânimo alegre”, dizia ele poucos dias antes da I Convenção Nacional dos Sindicatos Rurais10. E, por ocasião do I Congresso dos Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte: “A mudança virá, de qualquer maneira. Devemos trabalhar para que essa mudança venha cedo”11. Por conseguinte, mais do que de simples aceitação da mudança, trata-se de iniciá-la, promovê-la, apressá-la. “Época de mudança” é, para D. Eugênio, um conceito antes de tudo normativo, um programa de ação. 2. CRÍTICA DA ORDEM EXISTENTE E AUTENTICIDADE EVANGÉLICA Intimamente relacionada com a consciência de viver numa época de mudanças, de transição, como foi acima definida, está sua visão crítica da sociedade ou da ordem existente, crítica esta que atinge também a própria ordem religiosa. 438 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Repudia inúmeras e tantas vezes o capitalismo liberal, quantas comunismo. Sempre que fala de um, reserva uma “dose” para o outro. O capitalismo liberal “contém em si o germe vivo do comunismo” — afirma êle. E prossegue: “As injustiças sociais de patrões, de industriais, de proprietários, clamam aos céus”12. Noutra ocasião, falando da posição dos cristãos diante da realidade social, afirmava que esta devia ser de “repúdio firme e corajoso ao comunismo ateu, sem, entretanto, compactuar com as injustiças ou silenciar diante dos poderosos”, e, reconhecendo não ser sempre fácil entender certos aspectos da Doutrina Social da Igreja, assegurava que a atuação desta constituía um esforço “autenticamente cristão”13. Ou ainda: “Nem (ser) inocente útil que serve à causa do marxismo, nem refratário às necessárias reformas, mas ser cristão autêntico”14. Referindo-se ao I Congresso de Trabalhadores Rurais do Estado, observava: “O Congresso enseja, também, tornar claro que, se o comunismo é contra o Evangelho, o capitalismo liberal também o é. Não é justo que alguns possuam tudo, e a grande maioria viva na miséria. O que se deve por justiça, não se cumpre por caridade. Desse modo, as relações entre proprietários e assalariados devem estar dentro da Lei e não dependerem da bondade pessoal”15. Insurgindo-se contra o comércio do voto e o sistema de voto no “cabresto”, afirma categoricamente que isto “constitui nefando comércio e punhalada mortal ao regime democrático”. Os eleitores são “inteiramente livres e independentes, pessoas humanas e filhos de Deus; nunca, escravos de patrões ou chefes políticos. Essa sujeição e um aviltamento e uma vergonha”16. ALCEU RAVANELLO FERRARO 439 A propósito do texto bíblico: “Porque não és quente nem frio, estou a vomitar-te de minha boca”, insiste na autenticidade dos que se dizem cristãos e exemplifica: “Obrigar o pobre a vender o algodão na folha, negandolhe propositadamente o credito, e uma falta de caridade. Obrigá-lo a vender seu produto por um preço inferior ao preço corrente é como se alguém retirasse dinheiro da bolsa alheia. Diminuir na balança é tão criminoso como ir roubar a noite”. (Trata-se de sistemas não raro utilizados por empregadores rurais). E pergunta: “Como é possível haver cristãos que se opõem a sindicalização rural de seus operários? Pode comungar um homem que diminui o peso quando compra algodão de seus moradores, sem que antes se decida a restituir”17? E, noutra palestra: Dizer-se católico pode ser diverso do que ser católico”18. “Somos lima imensa massa de pobres — dizia D. Eugênio em 1963, referindo-se ao seu Estado — e se observa um rápido processo que se poderia denominar de conscientização. O homem toma consciência de sua dignidade, de seus direitos, não se contenta em ser objeto de práticas caritativas quando se trata de justiça a ser exercida. As Escolas Radiofônicas e os Sindicatos Rurais são responsáveis por uma parte desse processo de transformação. Há, também, em nossa Diocese profundas mudanças no campo social, político, cultural, econômico e religioso. Há cristãos que se conservam ligados a estruturas de uma sociedade em desintegração, e não entendem muitas posições assumidas pela Arquidiocese em favor de um cristianismo autentico. Há cristãos só de título, e cristãos autênticos que procuram viver o evangelho e 440 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal fazê-lo presente à nossa realidade. Uma presença viva e dinâmica dando preferência à Verdade sobre a conveniência e amizades humanas e terrenas... Devemos ser uma Igreja dos pobres e uma Igreja que participe de nossa realidade... Vivemos uma época de rápidas transformações. Necessitamos estar presentes e atuar no dia que passa com os olhos voltados para o futuro. O Evangelho é o mesmo para todos os séculos, mas nós, a Igreja, somos responsáveis para que os homens de hoje entendam a mensagem do Evangelho eterno. Devemos estar unidos a Cristo e somente com ele ter compromissos”19. “Igreja dos pobres” é, sem dúvida, um conceito conciliar. Lembre-se, contudo, que o Movimento nasceu como um “movimento dos pobres”, dos marginalizados. Por outro lado, este “dar preferência à Verdade” e este “somente com Ele (Cristo, o Evangelho) ter compromisso” levam D. Eugênio a perguntas e afirmações extremamente graves. “É crista a liberdade de morrer de fome?” — perguntava ele em 1961, por ocasião do I Congresso Norte-rio-grandense do Trabalhadores Rurais20. E na véspara do Natal do mesmo ano, falando sobre “Natal e Pobreza” dizia “Se a mensagem (do Natal) nos fala de resignação e de conformidade, ela nos estimula (também) a um esforço pela humanização, ao combate à injustiça... Infelizmente o que encontramos com tanta frequência é o enriquecimento progressivo de uns e a pobreza de tantos que avançam no caminho da torne e da morte. Pode chamar-se cristã esta sociedade? Vive nas lições do presépio quem gasta fortunas em futilidades, quando, próximo nasce na miséria um irmão do que veio ao mundo no estábulo de Belém”21? ALCEU RAVANELLO FERRARO 441 Trata-se por conseguinte, de uma rejeição clara do status quo resultante do sistema capitalista liberal (referindo-se ao meio rural, talvez dissesse melhor “sistema semi-feudal”) em nome de uma preocupação de justiça e de autenticidade evangelica, e de igual rejeição do comunismo como possível solução. Aparecem, também, evidentes de um esforço de desinculturação, de reencontro com os valores cristãos em sua forma original: “Somente com Ele (Cristo, o Evangelho) ter compromissos”. “Dizerse” e “ser” católico podem não significar a mesma coisa. É o próprio conceito de católico, de cristão, que está em jogo. JUSTIÇA E MUDANÇA Além das implicações de ordem estritamente religiosa de que nos ocuparemos mais adiante, a crítica da ordem social existente e o desejo de autenticidade evangélica no plano temporal estão, como vimos acima, intimamente vinculados a uma preocupação pela justiça social. Dissemos que, no começo, havia “angústia”. Houve, é verdade, desde o início do Movimento, certa preocupação por questões de justiça. Lembre-se, por exemplo, o sermão de D. Eugênio em 1947 sobre reforma agrária e, por ocasião da I Semana Rural (1951), o desejo de fazer aplicar no meio rural a legislação trabalhista. O contato permanente com o meio rural e especialmente com os “flagelados” e os “industriais” das secas de 1953 e 1958 fizeram com que esta consciência das injustiças se tor- 442 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nasse mais clara, e se avolumasse aquilo que, em entrevista, D. Eugênio nos definiu como “revolta contra a injustiça”. Foi assim que aquela “angústia” inicial pela situação do homem do meio rural, que motivou toda a série de atividades da I FASE RURAL, se transformou paulatinamente em “revolta” e “luta” contra a injustiça, originando II FASE RURAL. Há nisto, sem dúvida, uma evolução no plano das motivações: uma progressiva tomada de consciência do valor-justiça e de suas implicações práticas para o cristão. Este fato foi decisivo na evolução do Movimento. Uma preocupação pela justiça social — estamos sempre no plano dos valores — poderia perfeitamente corresponder a uma atitude fundamentalmente conservadora: insistência na conformidade do comportamento com os padrões tradicionais de justiça, dentro, portanto, da ordem tradicional, vendo, não na ordem existente, mas na deviação desta, a origem dos males sociais. No plano prático dificilmente se iria além de uma ação no sentido de remediar os efeitos de tais deviações. Não parece ter sido este o caso do Movimento de Natal, pelo menos no que diz respeito à atuação no meio rural. Embora concebido inicialmente como uma obra tipicamente assistencial, o SAR, já nos seus primeiros anos de atividades foi muito além da mera assistência e, com o avolumar-se daquela “revolta contra a injustiça”, foi relegando para um plano cada vez mais secundário sua preocupação pelos “males-efeitos” e concentrando progressivamente seus esforços no sentido de promover a erradicação dos próprios “males-causas”, causas essas identificadas com a própria ordem estabelecida, com a própria estrutura so- ALCEU RAVANELLO FERRARO 443 cial, especialmente a estrutura agrária, que D. Eugênio, em seus pronunciamentos sobre o assunto, adjetiva de obsoleta, arcaica, defeituosa, injusta, desumana, etc. Como descrevemos amplamente no Capítulo III e verificamos empiricamente na II Parte, o SAR, no plano educativo, especialmente no que tange ao trabalho de comunidade, não visava tanto a mera transmissão da cultura, quanto a inovação cultural, isto e, a transformação do éthos social: concepções, valores, atitudes, padrões de comportamento. É verdade: tudo isto se restringia, em grande parte, ao âmbito da comunidade. Com o crescer desta preocupação pela justiça social observamos dois fatos interessantes: 1) um intensificar-se é ampliar-se desta dimensão inovadora da ação educativa, agora 110 sentido da “luta pela mudança de estruturas” (tal foi o sentido do trabalho de “conscientização” e “politização” empreendido pelo SAR), e 2) um redimensionamento do próprio trabalho de desenvolvimento de comunidade, o que aparece claramente destas palavras de D. Eugênio: “A comunidade é força de pressão para mudança de estrutura. Não se entende um trabalho de desenvolvimento de comunidade que fique a atender efeitos sem atingir suas causas. Estaria fora da realidade sociológica do Nordeste quem se contentasse em organizar clubes, grupos artesanais, maternidades, etc., sem integrar todo esse trabalho em metas comuns que visem às causas que determinam a promoção dessas comunidades. A destruição de uma estrutura obsoleta, injusta e, portanto, desumana é objetivo indispensável em um trabalho de desenvolvimento comunal”22. 444 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Observa-se, também, um redimensionamento das próprias virtudes de caridade e justiça. “Não há verdadeira caridade sem justiça”, afirmava D. Eugênio, por ocasião da Semana Nacionalista, no Recife23. E, referindo-se ao processo de conscientização no estado e acrescentando que as Escolas Radiofônicas e os Sindicatos Rurais eram responsáveis por uma parte desse processo de transformação, observava: “O homem toma consciência de sua dignidade, de seus direitos, e não se contenta em ser objeto de práticas caritativas, quando se trata de justiça a ser exercida”24. Não compreender que “hoje não é mais suficiente uma esmola ou uma atitude paternalista” seria incorrer em erro dos mais graves: o de “não entender os tempos”25. E, noutra ocasião: “Deve, então, agir a Igreja e o procura fazer de duas maneiras: uma, paleativa, apagando o incêndio — é a função do bombeiro (referese à assistência aos flagelados das secas), e outra, a longo prazo — plano de mudanças de estruturas... Os paleativos atendem à caridade imediata. Veem mais o efeito do que as causas. Sem menosprezar o que sofre no momento, vem lutando a Igreja para uma melhor estrutura social, cujas falhas atuais são a maior causa de nossos males”26. Como vimos, de onde quer que se parta, chegamos sempre ao mesmo ponto: ao avolumar-se de uma preocupação pelas causas dos males sociais, ao emergir de uma atitude profética ou inovadora com relação à ordem social tradicional. Trata-se de lutar pela construção de uma nova ordem social, que melhor espelhe os valores sociais cristãos. Isto é típico de uma atitude inovadora: aceitação (e promoção) da mudança, em nome dos valores do grupo. ALCEU RAVANELLO FERRARO 445 4. MUDANÇA E DESENVOLVIMENTO Vimos, de um lado, que “a luta pela mudança de estruturas” nasceu da tomada de consciência dos contrastes existentes entre a realidade socioeconômica da região e certos valores sociais cristãos, como liberdade, independência e especialmente justiça social. Por outro lado, como veremos neste parágrafo, o problema da mudança de estruturas foi enfocado em íntima conexão com o almejado desenvolvimento: como condição de desenvolvimento. É o que aparece, por exemplo, das palavras de D. Eugênio em sua palestra sobre o Nacionalismo: “Indispensável, na luta contra o subdesenvolvimento, a mudança de estruturas... Eis o que pensa a Igreja. Eis o que faz a Igreja... em favor de um dos postulados básicos do sadio nacionalismo: a luta contra o subdesenvolvimento”27. Seja nos objetivos e atividades do SAR, seja nos documentos de D. Eugênio, muitas são as mudanças visadas e outros tantos os seus nomes: organização de comunidade, educação de base, conscientização, politização, reforma agrária, cooperativismo, sindicalismo, etc. Todas, porém, particularmente nos anos 60, são enfocadas dentro de uma perspectiva de desenvolvimento. O desenvolvimento passa a ser encarado como a mudança por excelência, para a qual as demais devem conduzir. Assim, em seu já citado discurso de agradecimento pela Medalha do Mérito Agrícola (setembro de 1962), D. Eugênio reivindicava para a região e o país a “revolução agrícola por que passaram os países desenvolvidos” e apontava como meios: “o fim da rotina” — vitória esta simbolizada pelo 446 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal trator, e rotinas que vão desde a enxada até às práticas políticas nas comunas do interior — e “o fim do isolamento”, “a luta contra o isolamento”, através de cooperativas e associações de classe, autônomas e livres da tradicional “praga” do paternalismo. Tudo isto, como condição de desenvolvimento28. Em Fundamentos da Política Social para o Desenvolvimento Nacional (1961), D. Eugênio chama de simplista a teoria segundo a qual a industrialização por si mesma acarretaria uma reformulação da estrutura agrária e afirma: “Para o progresso do Brasil é, hoje, tão importante multiplicar fábricas, como realizar uma corajosa e viril reforma agrária”. Enquanto alguns encaravam a mudança da estrutura agrária como uma mera decorrência do desenvolvimento industrial, D. Eugênio encaravaa como uma pré-condição de desenvolvimento. “Não é possível um autêntico desenvolvimento — prossegue D. Eugênio — sem uma classe operária consciente e livre... Sonhamos com uma floresta de chaminés, mas detestamos a proletarização de nossos irmãos. Queremos que surjam fábricas, mas que se eleve concomitantemente o nível cultural, social e espiritual da região”29. Nestes e outros pronunciamentos, são apontadas diversas mudanças — industrialização e reforma agrária; planejamento e honestidade administrativa; floresta de chaminés, sem proletarização; fábricas e elevação do nível cultural, social e espiritual — todas, enfim, em função do desenvolvimento, mas de um desenvolvimento que não seja uma “escrescência” ou “geração de monstro”, nem um mero “per capita” ou “quociente de riqueza”, mas que represente “bem-estar comum”, que tenha ALCEU RAVANELLO FERRARO 447 o homem como ponto de convergência, levando-o a “um crescimento harmônico de todas as suas potencialidades”30. Trata-se, por conseguinte, de um conceito valorativo de desenvolvimento: aceitação da luta em prol da mudança e do desenvolvimento, motivada pelo desejo de concretizar certos valores sociais do grupo religioso. 5. DESINCULTURAÇÃO Na introdução definimos como inculturação o processo pelo qual um grupo ou sistema cultural se torna de tal maneira parte integrante de outro grupo ou sistema cultural, a ponto de perder, total ou parcialmente, sua originalidade própria, e por desinculturação c processo inverso, pelo qual um grupo ou sistema inculturado redescobre seus valores próprios, libertando-os das amarras da tradição local e readquirindo assim sua originalidade própria. De nossa análise sobre a Região e a forma de religiosidade aí existente por volta de 1945, resultou tratar-se de uma “Região tradicional e tradicionalmente católica”, ou seja, de uma predominância de um catolicismo de tradição, de uma Igreja pelo menos semi-inculturada, como forma típica de religiosidade na região, como, aliás, em todo o país. Nos Capítulos I e II e no presente Capítulo, observamos que, em meados dos anos 40, em meio a um catolicismo de tradição, tomava em plano nacional, uma nova 448 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tendência, de tipo ético-conservador como resposta a uma série de transformações, ou melhor a certos problemas sociais e pastorais de alguma forma vinculados as transformações sociais em curso no país tendência esta, incarnada no então criado Departamento de Defesa da Fé e da Moral. Vimos, também, através de A Ordem, como, em Natal esta nova tendência foi seguida pelos marianos, com manifesto apoio da cúpula diocesana 1946, criou idêntico Departamento de Defesa da Pé e da Moral, confiando-o à direção do então Pe. Eugênio. Os fatos, porém, mostraram claramente como o Movimento, embora surgido numa região fortemente marcada por um catolicismo de tradição e sofrendo, na fase inicial de sua atuação no campo social, influencia desta nova tendência ético-conservadora, deixa entrever, já em sua origem e primeiros passos, um esboçar-se de uma atitude diferente em face do temporal e do religioso. Ao lado de outros indícios a descontinuidade entre Marianismo e Movimento e o começo da decadência do primeiro e da projeção do segundo parecem indicar que ambos os grupos eram animados por atitudes fundamentalmente diferentes. Que com relação ao meio rural, o movimento represente um esforço de transformação social – atitude a ação em favor da mudança da ordem tradicional – o estudo histórico, a verificação empírica e os pronunciamentos de D. Eugênio o demonstram claramente. O problema é saber se isto constitui uma forma de acomodação, de oportunismo, ou se é fruto de um processo de desinculturação de valores do grupo. ALCEU RAVANELLO FERRARO 449 Sem lembrar a influencia que tiveram valores especificamente religiosos sobre a ação temporal, vimos como o Movimento Social de Natal nasceu da descoberta, da tomada de consciência de certos valores com a realidade temporal, surgiu uma atitude em favor da transformação da ordem social tradicional, com vistas ao desenvolvimento e a concretização daqueles mesmos valores, especialmente o de justiça social. E isto corresponde exatamente ao fenômeno que chamamos de desinculturação e a atitude definida como inovadora ou profética. Os depoimentos e fatos que passamos a relatar ajudam a compreender o fenômeno de desinculturação. Em depoimento já citado no Capítulo 1.1, Mons. Expedito, referindo-se ao seu “Antigo Testamento”, assim se exprime: “Nesse tempo o vigário era o capelão de dois ou três por cento do seu rebanho. O tempo que lhe sobrava das “obrigações”, dedicava-o ao intercâmbio de visitas de cortesia com as “autoridades” do lugar. Estávamos dentro da estrutura... Apesar de miseráveis, o povo pobre nos Considerava ricos, porque andávamos de braços com estes”. E, depois de recordar a “marcação” de que fora alvo, por volta de 1930, o então sacristão da Catedral, conhecido por “Seu Graça”, por se ter fiuado ao sindicato, continua: “Estávamos comprometidos, instalados na estrutura. O padre era envolvido pela estrutura. Estávamos do lado dos ricos. Hoje, receber coisas gratuitamente e graciosamente tem “água no bico”! Agradeço a Deus ter mudado. As atividades dos que toparam a parada é de independência... Padre X não teve medo de enfrentar uma das estruturas mais terríveis, como a de seu município. Passamos a perguntar-nos: “Com que cara você 450 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal recebe o chefe político e com que cara você recebe o pobre matuto?”. Este e outros depoimentos nos levaram a formular uma série de perguntas a D. Eugênio. — Acha justo dizer que a Igreja, no passado, estava comprometida com os ricos? — Não creio que poderíamos dizer assim. O que havia era menos consciência da situação, da responsabilidade diante da classe dos pobres Na hora em que se tomou consciência da responsabilidade diante da classe dos pobres, tomou-se também consciência de que se podia fazer alguma coisa. Isto veio imediatamente. Eu tenho a impressão que é mais certo dizer que não estava do lado dos ricos, porque os pobres também estavam do lado dos ricos: nunca ouvi um nobre que reclamasse. Havia um bloco informe, sem consciência. Os pobres não ficaram mais do lado dos ricos, quando tomaram consciência de seus direitos. Esta consciência quando tomou consciência que podia e que devia fazer isto. Dois pontos: que podiam e que deveria. O “que podia” se deve em grande parte ao trabalho do SAR. — Houve alguma mudança nas relações entre clero bispo e sacerdotes - e poder político-econômico no meio rural? — Continuando o respeito mútuo, acentuou-se muito o sentido de independência Quanto ao poder político, não chegou a haver atrito aberto, mas houve áreas de atrito, em virtude dos ataques que eram feitos aos métodos dos políticos. Estas forças não se manifestavam em público, a não ser uma vez, na Assembleia, e creio que foi mais uma explosão de desespero, mas veladamente. Por exem- ALCEU RAVANELLO FERRARO 451 plo, diziam que não se via mais o bispo em procissões, que a Igreja não cuidava mais de Igreja, mas do que não era Igreja. — Segundo seu modo de ver, a ordem tradicional era ou não conforme com os princípios cristãos? — Não houve ainda uma ordem que fosse cristã. A ordem antiga, se tinha aspectos cristãos, tinha muitos pontos que não tinham absolutamente nada de cristão. O que havia muitas vezes era um abuso do nome de cristão, para acobertar coisas que não eram cristãs, sob pretexto de vantagens cristãs. Não havia nenhuma autenticidade cristã concreta. — Se a promoção das mudanças de estrutura implicasse na perda, para a Igreja, de parte da classe patronal, a Igreja continuaria nesta linha? — Aí não depende de ganhar ou perder. Aí depende só de uma questão de Verdade. Não teria nenhuma dúvida. Isto aconteceu, por exemplo, em Santo Antônio: quando o vigário dizia que os ricos se estavam afastando da Igreja e deixando de contribuir para a manutenção da paróquia, ninguém discutiu um segundo. Era certo o caminho? Era! Então a questão de perder ou não perder a classe patronal era secundária. A Igreja não é a classe patronal. Os mesmos direitos tem a outra classe... Quanto ao fato do comprometimento da Igreja no passado, os dois depoimentos parecem, à primeira vista, contrastantes. De fato, coincidem. Mons. Expedito salienta o fato do comprometimento anteriormente existente e do posterior descomprometimento ou independência dos que “toparam a parada”. D. Eugênio, por sua vez, não nega propriamente o fato, mas a consciência do comprometimento anterior, e reconhece que, paralelamente à 452 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tomada de consciência desta situação, acentuou-se muito o sentido de independência da parte da Igreja. Ora, o estado de inculturação consiste precisamente num comprometimento inconsciente, e o processo de desinculturação, num rompimento consciente com a redefinição dada pela cultura local aos valores do grupo, numa afirmação destes valores em seu conteúdo original e, consequentemente, na independência do grupo com relação a cultura local. Evidentemente, não afirmamos que tenha havido uma desinculturação geral e total, muito menos violenta. Mas, a própria reação dos grupos que viam a Igreja como guardiã e esteio da ordem tradicional demonstra claramente que o processo de desinculturação e independência foi relativamente intenso. Diversas vezes D. Eugênio, em seus pronunciamentos, ao mesmo tempo em que afirma a posição de independência da Igreja, faz alusões claras às críticas e acusações movidas contra sua posição e o trabalho da Igreja. Assim, per exemplo, em sua Palestra Dominical 22 de janeiro de 1961, dizia: “Certamente há quem deseje uma Igreja e um clero presos aos limites de uma sacristia, pois assim podem ficar livres na perpetuação das atuais iníquas condições em que vivemos Para certos chefes é preferível um clero que apenas ensine a rezar”, sem se preocupar cm ajudar “seu irmão a aprender a ler e ser independente dentro de sua condição de filho de Deus. Devem ter muitas mágoas... os industriais das secas de um clero que cumprindo fielmente seus deveres espirituais, soube, também. defender seu rebanho contra inimigos terrenos” (os aproveitadores das secas). ALCEU RAVANELLO FERRARO 453 E, em sua Palestra Dominical por ocasião da Páscoa de 1964: “Na vitória do Cristo ressuscitado surge uma Igreja livre. Seus compromissos são os aceitos por Cristo: a Verdade e o Amor”. Nada poderá deter “a marcha livre dessa Igreja que se identifica com o Cristo vitorioso” e que, “quando sente ser sua missão despertar o pobre e transformá-lo em forte, não se intimida diante do rico... ou da incompreensão dos amigos”. Por coincidência, estas últimas palavras precederam de apenas dois dias o 31 de março de 1964. Embora não nos seja possível medir todo o alcance do impacto do novo Regime conservador-repressivo sobre a evolução posterior do Movimento, nada impede de reconhecermos o alcance prático do processo de desinculturação com referência ao período por nós estudado. Concluindo este parágrafo, analisaremos um caso típico e documentado, ocorrido em 1962. Embora seja do conhecimento público o fato, a pedido do vigário que nos forneceu os documentos originais omitimos qualquer referência nominal de pessoas e lugar. Trata-se do seguinte: O SAR pedira uma ambulância para a Maternidade N..., numa cidade do interior. O vigário, informado de que a ambulância não seria entregue ao SAR, mas a ele pessoalmente, num domingo após a missa de 11 horas (a mais frequentada!), poucas semanas antes das eleições de outubro de 1962 (em plena Campanha de Politização), por um amigo pessoal seu e candidato em campanha eleitoral, escreve ao dito amigo justificando sua “formal recusa” a prestar-se ao gesto eleitoreiro, e pergunta: “Depois de tudo isso, meu caro N, o Sr. me acha com cara de receber um favor de reper- 454 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal cussão política na sua campanha o eleitoral, do momento em que nós divulgamos que “Consciência não se vende” e “Voto não se compra”? Mais do que de ambulância, nós precisamos - e os Bispos pediram — das reformas de base, que o Parlamento conservador não quis votar este ano, para fazer o jogo macabro das eleições por dinheiro, e se manter mais 4 anos na omissão suicida. Continuo seu amigo, mas antes, sou Pastor e Educador do rebanho que Deus me confiou... (Veja a íntegra da carta no Apêndice III, Documento B.1). Num domingo, dia de feira na cidade, no momento preciso em que terminava a última missa da manha, a mais frequentada, chegava junto à escadaria da igreja uma comitiva de políticos em campanha eleitoral, para fazer a entrega solene da ambulância. O vigário, que ainda estava na igreja, informado do fato, retirou-se imediatamente para a casa paroquial, para onde, então, se dirigiu a comotiva enquanto o povo se comprimia junto à porta e janelas, a oferta da chave da ambulância, respondeu secamente: “Não! Eu lhe escrevi _que não viesse!” E, ao Prefeito local que lhe pedia um aparte: Pode, contanto que no me fale deste assunto!” Saindo por último, o amigo candidato desabafou: “Você me matou de vergonha. Sei que você tem razão. Mas, se não for assim, ninguém se elege! “Os brasileiros — esclareceu o vigário, à noite, através da amplificadora local - não foram educados para governar e continuam governando como nossos avós, que foram donos de escravos. Até hoje só mudou nisso: não compram mais escravos da África... Cometem toda sorte de injustiças, fiados no dinheiro, porque o dinheiro pode ALCEU RAVANELLO FERRARO 455 tudo. E no ano das eleições nós assistimos o triste espetáculo da procura de eleitores e votos a troco de extração de dentes, de consultas, de favores, de dinheiro e de ameaças... Os padres não podem ficar com esse processo de democracia tirana, porque é um pecado que brada aos céus. Por isso, minha atitude é muito clara e desgosta a muitos. Nada inventei da minha cabeça... Faço questão de todo mundo saber que o vigário de N... é Pastor e educador do rebanho que Deus lhe deu e não se humilha a nenhum grande da terra, por dinheiro ou favor. Enquanto vida tiver, gritarei contra as injustiças e as misérias. Só tenho compromissos com Nosso Senhor... Um dia, o povo terá dinheiro e direitos, sem precisar tomar a bênção aos grandes e sem vender sua consciência nas eleições...” (Veja a íntegra, no Apêndice III, Documento B.2). C — ATITUDE E MUDANÇA NO SETOR RELIGIOSO 1. FATOS E ATITUDES A atitude de descomprometimento com o status quo e de aceitação e promoção da mudança não se restringiu ao setor temporal. Ao contrário, ela diz primariamente respeito ao setor especificamente religioso. É o desejo de autenticidade evangélica, de fidelidade ao Evangelho. É a não-aceitação de outros compromissos que não os com o Cristo, com a Verdade, com o Evangelho. É a dis- 456 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal cussão a respeito do próprio conteúdo dos termos “cristão” e “católico”. “É um outro mundo que surge — dizia D. Eugênio aos Irmãos Maristas (esquema de palestra, sem data) — e a Igreja não está presa a fórmulas humanas”. E, numa alocução de 1963: “O amor à tradição dos homens não pode prejudicar o Evangelho e sua pregação”. De outro lado, a ação temporal empreendida pelo Movimento foi motivada não só pelo desejo de concretizar certos valores sociais, mas, também, e ultimamente, pela vontade de difundir os próprios valores religiosos do grupo. A ordem social tradicional, porque de injustiça e subdesenvolvimento, constituía, na opinião dos líderes do movimento, “uma barreira ao entendimento do Evangelho”. “O dinamismo social — afirma D. Eugênio na já citada conferência: Uma Experiência Pastoral em uma Região Subdesenvolvida — será sinal da Igreja para os homens do mundo em desenvolvimento, como a solicitude de Cristo para com os pobres e enfermos foi sinal de sua missão para os homens de seu tempo”. Se, de fato, o dinamismo social da Igreja se demonstrou sinal inteligível e eficaz no meio rural, veremos mais adiante. Por ora, antes de entrarmos na verificação empírica de eventuais mudanças ocorridas no campo religioso, passaremos a sintetizar alguns aspectos já vistos e a desenvolver outros, sempre com relação ao setor religioso. Já observamos como, tanto na Capital como no interior, o Movimento foi antes religioso do que social. Com referência ao meio rural, desde o início das atividades do SAR (1951), a equipe que atuava junto ao “binô- ALCEU RAVANELLO FERRARO 457 mio escola-paróquia”, equipe esta composta de elementos da Ação Católica, procurou estimular e auxiliar os vigários e seus auxiliares (“bonzinhos”, “pessoal que não dava trabalho, mas que, também, não trabalhava”, no dizer de uma Assistente Social) a elaborar planos tanto de ação social como de ação pastoral. O plano pastoral compreendia a fundação da Ação Católica Rural (JAC — Juventude Agrária Católica). Embora independentes e com objetivos especificamente diferentes, SAR e JAC desenvolveram sempre suas atividades em estreita colaboração. O SAR possibilitou o surgimento e a expansão de uma JAC aberta para o social, e a JAC, por sua vez, como atestam os vigários e líderes rurais, deu “espírito”, deu “alma” ao trabalho social nas comunidades do interior. As comunidades de melhor movimento social — nós mesmos o pudemos verificar — são quase sempre as que contam com uma JAC atuante. E estas são também as que apresentam melhor movimento religioso, as que contam com leigos de fato engajados no trabalho de evangelização. Por outro lado, para muitos participantes, os treinamentos foram ocasião de verdadeira conversão religiosa. A própria equipe encarregada dos treinamentos (toda ela de elementos de Ação Católica visou não só treinar pessoal para o trabalho social, mas, também, formar apóstolos para o desempenho de uma missão ao mesmo tempo religiosa e temporal. Destes treinamentos surgiram os primeiros líderes do movimento social nas comunidades do interior. deles saíram também os primeiros missionários leigos que foram aos poucos substituindo os “bonzinhos”. Este fato é fundamental na história do 458 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Movimento. Sem ele não se entende o Movimento. Aí está um dos principais, senão o principal indicador dos limites que dividem o Movimento e o Não-Movimento de Natal. Vejamos mais detalhadamente este aspecto. Como dissemos no Capítulo III.5.d, “líder” era, para o SAR, um conceito bem preciso e restrito a um tipo — um novo tipo — de liderança: líder natural, voluntário, inovador, democrático, comunitário, solidário, missionário. Às duas formas tradicionais de liderança — o líder autoritário e o líder paternalista, simbolizados respectivamente pelas figuras do “coronel” e do “patriarca” — o SAR opôs simplesmente “O LÍDER”. De uma ou de outra forma, tanto o coronelismo como o paternalismo representam — respectivamente para os que a exercem e para os que são objeto de liderança — dominação e dependência. Vários sacerdotes que, segundo a expressão de um vigário, viveram seu “antigo” e “novo testamento”, atestam que estas eram também as formas tradicionais mais comuns de o vigário exercer sua autoridade. Talvez pudéssemos assim definir estas formas de liderança: “coronelismo clerical” ou “clericalismo autoritário” e “paternalismo clerical” ou “clericalismo paternalista”. “Era um clericalismo de cabo a rabo” — confiou-nos um sacerdote, referindo-se ao seu “Antigo” e começo do “Novo Testamento”. “O leigo era tratado como um eterno menor”, observava outro. Nada de admirar que, sendo orientado para comportar-se e sendo de fato reconhecido como uma das “autoridades” locais, o sacerdote exercesse sua liderança à maneira daquelas “autoridades”. O ponto a que queríamos chegar é o seguinte: o Movimento, da mesma forma que criou, no meio rural, um ALCEU RAVANELLO FERRARO 459 novo tipo de liderança leiga (isto foi verificado na 2a Parte), assim também impôs um novo conceito de autoridade e uma nova forma de liderança sacerdotal: a do sacerdote-educador ou do sacerdote-líder (no caso: líder - educador de líderes), por oposição às maneiras autoritária e paternalista ao exercer a liderança. É justamente o grau de presença ou ausência desta nova modalidade de liderança que permite distinguir entre Movimento e Não-Movimento ou indicar o grau de integração no Movimento. A origem e a evolução deste estão intimimente relacionadas com o surgimento desta nova forma de liderança sacerdotal e leiga. “Andávamos soltos na buraqueira da promoção humana!” comentou-nos um sacerdote, referindo-se aos primeiros anos de atividades do SAR no meio rural. E observou que, desde o início, pesara, sobre o clero mais consciente, grande angústia: Será este realmente o caminho certo?” Nas paróquias em que os vigários se interessaram em encaminhar leigos para os treinamentos, deram continuidade a formação dos mesmos e lhes foram efetivamente confiando responsabilidades, estes líderes foram paulatinamente assumindo responsabilidades não só no setor temporal, mas também no setor apostólico. Em tais casos, a própria atuação destes líderes leigos contribuiu muito para reconduzir os vigários, depois de uma fase de intensa atividade social, cada vez mais à sua função especificamente religiosa. Esta função, porém, já não consistia na simples administração dos sacramentos e na pregação dominical: a continuidade da formação dos líderes já em ação e a formação de novos líderes passaram a exigir sempre mais tempo. 460 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Por outro lado, os vigários que persistiram e na medida em que persistiram em exercer sua liderança de uma forma autoritária ou paternalista: 1) ou continuaram — eles e suas paróquias — na tradicional rotina, tanto no plano temporal como no religioso, ou 2), quando se lançaram à ação temporal, foram, em grande parte absorvidos por obras marcadamente assistenciais, totalmente centralizadas em suas mãos. No campo social, raramente surgiram grupos e praticamente nenhum trabalho de comunidade. No plano religioso, não floresceram nem a JAC, nem outros grupos de carácter apostólico ou missionário: quando muito, algumas das tradicionais associações religiosas É verdade que alguns destes sacerdotes consideram seu trabalho como “Movimento de Natal”. Não parecem ser da mesma opinião os maiores responsáveis pelo Movimento. Ainda recentemente comentávamos com D. Nivaldo Monte o fato de duas paróquias social e religiosamente estagnadas. “Os vigários são chefes e vão líderes!” observou-nos o bispo. É significativo este diálogo de um grupo de sacerdotes, reunidos em círculo de estudos, por ocasião do Curso de Extensão Universitária do Clero, realizado em Ponta Negra, em janeiro de 1965: — O padre, antigamente, era o manda-chuva do lugar. Era padre, delegado de polícia, etc. Hoje, o sacerdote desenvolve grande atividade, mas não mais como coronel. Houve uma mudança profunda de mentalidade. Muita coisa mudou. Mudamos muito. — O trabalho social aumentou a função sacerdotal: há mais contacto, mais colaboradores no apostolado, e tudo isto aumenta nosso trabalho sacerdotal. Hoje me sinto ALCEU RAVANELLO FERRARO 461 mais sacerdote do que a dez anos atrás. Hoje, já vou entregando tarefas. Antigamente, não. Tinha tudo na mão. — No colégio, deixei todas as matérias prediletas. Fiquei só com as aulas de formação. — Aos poucos estou passando as coisas para os leigos. Em vez de aumentar minhas funções, vou passando para os leigos. Tenho poucos leigos preparados. Mas vou me preocupar com isto. — É preciso sair da função para entrar na missão. — Tudo isto é demorado. Toda formação é demorada. Mas devemos andar nesta linha. — Em ..., não me preocupo com a Maternidade. Em ..., não tenho a quem confiá-la. Tem que haver esforço para sair disto. Se entrar mais e mais, no fim fico absorvido. Vamos aos poucos confiando as funções e ficando com a missão. Ofereceram-me uma cadeira no Ginásio. Foi uma tentação. Bom dinheiro. Emprego federal. Bom dinheiro e aposentadoria. Custou-me muito não aceitar. Fiquei só com as aulas de religião. — Dom Eugênio mandou: “Fundem escolas!” Fundamos. Hoje ele diz: “Entreguem aos leigos!”. Estou procurando fazer. Esta mudança não ocorreu da noite para o dia: foi e continua sendo o resultado de um diálogo permanente entre sacerdotes e leigos. Vejamos um caso. Percorridos todos os relatórios do Centro Social de São Paulo do Potengi, surpreendeu-nos um fato, e perguntamos ao vigário: “Porque é que, após 1954, os relatórios do Centro não mencionam mais o Departamento de Defesa da Fé e da Moral?”. “Naquele tempo — explicou Mons. Expedito — ainda éramos muito clericalistas e moralistas. Pode ver 462 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal os Estatutos do Centro e da Maternidade: “O Diretor será sempre o vigário da paróquia”. Muitas vezes os leigos me arrastaram. Eu dizia: “Vocês devem assumir as coisas”. Mas depois, na prática, às vezes queria impor certas coisas. Quantas vezes falava sobre (contra) o baile. Um dia pediram-me para dançar no Centro Social. Achei que não. A turma achou que sim, que não havia nada demais. Então fui ver na Moral que o baile bom ou mau dependia do comportamento. Disse que podiam fazer, contanto que tudo fosse em ordem. A última palavra era sempre do padre: Diretor! Há vários anos que venho insistindo na necessidade de ir largando as coisas nas mãos dos leigos de responsabilidade. E, agora, só faço assinar os papéis. (Os últimos documentos que tivemos em mão — relatórios do Centro, da Maternidade, do Clube Esportivo — traziam apenas a assinatura do presidente, não mais a do vigário). Antigamente procurávamos utilizar estas instituições, como o Centro Social, para a preservação da fé e dos costumes. Aos poucos fomos vendo que estas instituições tinham uma finalidade em si legítima. Fomos vendo que o trabalho de formação religiosa e de apostolado devia ser feito através da JAC e do MFC (Movimento Familiar Cristão), que haveriam de preparar elementos para levar Cristo (não mais para defender a fé e os costumes!) às outras instituições: ao Centro Social, aos Sindicatos aos Clubes, que tinham uma finalidade em si não religiosa. Assim uma das atividades do Centro Social era organizar cursos catequéticos. Organizou vários. Depois, isto passou para o Secretariado Paroquial de Pastoral.” Estivemos diversas vezes em São Paulo do Potengi. Nunca vimos Mons Expedito ocupado com atividades ALCEU RAVANELLO FERRARO 463 sociais. Vimo-lo, sim, com frequência, em reuniões de líderes e de grupos: geralmente de líderes, porque já não pode mais manter contacto direto com todos os grupos de sua paróquia. Nas capelas, ocupa-se de 8 às 12 ou de 8 às 14 horas com a administração dos sacramentos e, numa linguagem simples e bíblica, como tivemos oportunidade de ouvir, ao anúncio da palavra. A tarde é reservada para encontros com líderes e grupos: encontros de formação. Foi assim que, por ocasião do Curso para Bispos do Nordeste, realizado em Ponta Negra, em 1965, quando solicitado a reunir um punhado de seus leigos engajados em atividades missionárias, para um contacto com um grupo de bispos que queriam conhecer São Paulo do Potengi, Mons. Expedito, com sua gaiatice de sempre, perguntou: — Uma, duas ou três carradas? — Basta uma! O diálogo continuou em São Paulo do Potengi: — Só os líderes, Monsenhor. (Os bispos já haviam tido, na sede do Centro, um contacto com o povo). — Os que não são, já saíram. — Não precisava reunir tantos! (Eram cerca de 50). Bastava um punhado. Não há bispo para tanta gente! — Eu só trouxe uma carrada, como ficou combinado. É que Mons. Expedito contava, em sua paróquia, com aproximadamente 150 líderes engajados em atividades apostólicas. Observa-se, atualmente, na Arquidiocese de Natal, especialmente no meio rural, um florescer de líderes e grupos de carácter religioso, voltados especialmente 464 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal para a evangelização de adultos. Não são mais os antigos “bonzinhos”, que lavavam a igreja, arrumavam as alfaias ou carregavam estandartes nas procissões. Sua atividade é desenvolvida no meio em que vivem: no bairro, no povoado, no sítio, na fazenda. São os grupos de JAC. São as Equipes de Casais do MFC. São os cada vez mais- numerosos Círculos Bíblicos, que se reúnem em casas de família para ouvir e aprofundar a Palavra de Deus. São os Pregadores Leigos que. a. noitinha em frente a uma casa ou num canto de rua, cantam, com o povo, o Lucenário, leem e interpretam a Palavra de Deus. Mais de uma vez tivemos oportunidade de presenciar tais fatos. Todo este trabalho visa atingir especialmente os adultos, embora participem, no caso do Lucernário, também crianças. No último Curso de Catequese promovido pelo Secretariado de Pastoral (julho de 1966) os participantes foram orientados para atingir principalmente os adultos. Em novembro de 1966 foi realizado um curso para formação de Pregadores Leigos. O Movimento, especialmente nos últimos anos, abriu novas perspectivas também para o apostolado das religiosas. Em Natal, uma equipe de Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado está totalmente ã disposição dos Secretariados Arquidiocesano e Provincial de Pastoral. Três equipes de religiosas já assumiram três paróquias vagas: Nísia Floresta (Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado — a primeira experiência), Taipu (Irmãs do Imaculado Coração de Maria) e São Gonçalo (Irmãs do Amor Divino). Em Macau, quatro “Dammes de Marie”, vindas, há dois anos, da Bélgica, dedicam-se totalmente, junto com o vigário e leigos, ao trabalho pastoral na paróquia. ALCEU RAVANELLO FERRARO 465 Outras religiosas, destas e outras Congregações, em Natal e no interior, estão, de várias formas, integradas em atividades apostólicas, em plano diocesano ou paroquial. Com suas experiências neste campo, algumas delas conhecidas internacionalmente, o Movimento abriu novas perspectivas para uma revalorização da religiosa no apostolado da Igreja. A nova Pastoral do Batismo, lançada em agosto de 1965, está engajando um número crescente de leigos, mais no interior do que na Capital. Em diversos lugares a preparação dos pais e padrinhos é feita por equipes de leigos, instruídos para isto pelos vigários. Esta preparação visa antes de tudo tornar, pais e padrinhos conscientes do sentido do Batismo e da responsabilidade daí decorrente. Não só o clero colaborou na elaboração das linhas desta nova Pastoral do Batismo, mas, também, o povo foi longamente preparado para recebê-la. Quanto à ênfase dada a evangelização, ao anúncio da Palavra, quando, por exemplo, o Plano de Pastoral de Conjunto da Arquidiocese de Natal para 1965, sob o título: “Pastoral Catequética e Movimento Bíblico” pede uma Catequese “kerigmática, CRISTOCÊNTRICA, vivencial, realista, missionária e comunitária”, ou uma Catequese que seja “educação da Fé”; quando planeja uma “Catequese Popular Missionária, dirigida às comunidades dos fiéis adultos da Paróquia” e a “formação de Catequistas Populares”, que anunciem “o Evangelho da Salvação de Jesus Cristo a grupos de adultos reunidos” nos bairros, subúrbios, quarteirões, ruas, casas, capelas, povoados, lugarejos, fazendas e sítios; quando planeja incentivar o surgimento de Círculos Bíblicos, realizar o VII Curso de 466 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Bíblia, a XIX Semana da Bíblia e promover a campanha de “Uma Bíblia em Cada Lar”: segue, sim, as orientações do Vaticano II, mas confirma, também, e dá seguimento àquela linha de trabalho dos primeiros “comandos missionários” de meados dos anos 40 e ao Movimento Bíblico inaugurado com a realização da I Semana da Bíblia, já no alvorecer do Movimento de Natal (1946). No início da fase conciliar, em resposta a um questionário do Pe. F. Houtart, D. Eugênio sugeria as seguintes “grandes linhas de Pastoral” para o mundo latino-americano em transformação: uma “Partoral de rumos e não de tarefas”, uma “Pastoral criadora e não apenas de execução e de adaptação”; (nem recurso a “fórmulas milagrosas”, importadas, nem “fidelidade mecânica” às fórmulas do passado, mas uma “atitude criadora, adequada à realidade e fiel ao Evangelho”); uma “Pastoral missionária e não conservadora”; uma “Pastoral evangelizadora dos pobres”; uma “Pastoral de juventude”; uma “Pastoral de líderes”. Estas linhas pastorais, se traduzem algo do clima conciliar, são fruto, também, de diversas experiências de renovação pastoral, que, de longa data, o Movimento de Natal vinha ensaiando. Foram o trabalho social e estes ensaios de uma nova pastoral que, nos anos 1960, ao mesmo tempo em que os bispos do mundo inteiro se reuniam em Roma para rever os rumos da ação pastoral da Igreja, atraíram para Natal centenas de pessoas, do Nordeste e mesmo de outras regiões do país e do estrangeiro, em busca de “luzes”, da mesma forma como, cerca de 20 anos antes, os iniciadores do Movimento haviam partido para outros estados e países, à procura, também de “luzes” para o trabalho que se propunham empreender. ALCEU RAVANELLO FERRARO 467 2. VERIFICAÇÃO EMPÍRICA 1) Consciência da Mudança. De um lado, observamos, na II Parte, uma série de mudanças ocorridas no plano temporal e vimos que as comunidades trabalhadas pelo SAR têm, em proporção muito mais elevada do que as não trabalhadas, consciência de tais mudanças (melhoras) e as atribuem ao SAR ou a pessoas, grupos ou serviços ligados ao SAR. De outro lado, em diversas partes deste Trabalho, acenamos para a íntima relação entre temporal e religioso, no plano das atitudes, ação e mudança efetiva. Com relação à mudança do ponto de vista religioso, nossa observação em dezenas de comunidades acusava uma correlação muito íntima com a mudança no plano temporal. Muitos sacerdotes e líderes leigos, da cúpula e da base, afirmavam claramente, em seus depoimentos, a mesma correlação entre mudança no plano temporal e religioso. A análise da correspondência dos alunos e monitores de Escolas Radiofônicas confirmava o mesmo ponto de vista. Com efeito, depois dos relacionados com as próprias Escolas Radiofônicas (em 94,1% das cartas), os temas mais frequentes diziam respeito à vida religiosa ou a atividades apostólicas nas respectivas comunidades (em 26% das cartas). Estes e outros fatos deixavam pouca dúvida quanto à ocorrência de mudanças, do ponto de vista religioso, nas comunidades trabalhadas pelo SAR. Assim, em nossa pesquisa nas oito comunidades, limitamo-nos a algumas perguntas que nos permitissem verificar empiricamente se de fato as comunidades trabalhadas diferiam 468 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal das não trabalhadas, quanto à consciência de eventuais mudanças ocorridas na vida religiosa nestas mesmas comunidades. A tabela 11.1 e o gráfico 11.1, referentes à consciência da mudança (melhora) de um ponto de vista global, servirão de controle. A primeira pergunta (A.27) relacionada com o presente parágrafo foi dirigida a todas as pessoas que compunham a amostra e que apresentassem as seguintes características: fossem católicos (quase 100%), tivessem 18 ou mais anos e fossem membros de famílias residentes, havia pelo menos sete anos, na comunidade. A pergunta foi a seguinte: “O senhor acha que melhorou como católico nos últimos 7 anos (se instruiu mais sobre a sua religião, frequenta mais os sacramentos (missa, confissão, comunhão), reza melhor, se preocupa mais com a vida religiosa de sua família e de sua comunidade), continua como a 7 anos atrás, ou piorou como católico nos últimos 7 anos?” Lembramos que se trata somente de adultos: pessoas de 18 anos ou mais. Os dados da tabela 12.1, representados no gráfico 12.1, nos permitem várias observações. a — Respectivamente nas CT e nas CNT, 65,7% e 35,0% acham que melhoraram (muito — 43,4% e 21,1%; bastante — 13,1% e 8,5%; um pouco — 9,2% e 5,4%); 29,9% e 59,2%, que continuam como antes (como há 7 anos) e, sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 4,4% e 5,8%, que pioraram (um pouco, bastante ou muito). b — Cada uma das 4 CT, comparada com qualquer uma das 4 CNT, apresenta sempre um número relativo mais ALCEU RAVANELLO FERRARO 469 elevado de pessoas que acusaram uma melhora (diga-se o mesmo da categoria “melhorou muito”), verificandose exatamente o inverso quanto ao número dos que não acusaram nenhuma mudança. É interessante observar como Jundiá de Cima, onde o trabalho de comunidade é o mais fraco entre as 4 CT, embora acuse, em proporção maior do que qualquer uma das CNT, uma melhora, situa-se, deste ponto de vista, em último lugar, entre as CT. c — Segundo ambos os sexos, é mais elevado nas CT do que nas CNT o número relativo dos que declararam haver melhorado (diga-se o mesmo da categoria “melhorou muito”), dando-se o inverso quanto aos que não acusaram nenhuma mudança. Tanto nas CT como nas CNT, as mulheres, em proporção maior do que os homens do respectivo grupo de comunidades, acusam uma melhora. Com relação, porém, às três principais categorias de respostas — melhorou (total), melhorou muito e continua como antes — as diferenças encontradas entre os homens das CT e os das CNT são praticamente idênticas às verificadas entre as mulheres dos dois grupos de comunidades. A pergunta A.28, de teor semelhante ao da A.27, foi dirigida aos chefes de família, católicos e residentes havia pelo menos sete anos na localidade, e dizia respeito à consciência da mudança, do Ponto de vista religioso, nas respectivas comunidades, nos últimos sete anos. Segundo os dados da tabela 12.2, representados no gráfico 12.2, temos que, respectivamente nas CT e nas CNT, 70,2% e 32,8% acusam uma melhora (melhorou muito — 48,5% e 18,4%; melhorou bastante — 14,2% e 4%; melhorou um 470 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal pouco — 7,5% e 10,4%); 28,4% e 64% declaram não ter havido nenhuma mudança, e, sempre respectivamente nas CT e nas CNT, 1,4% e 3,2%, que a situação religiosa Piorou, nos últimos 7 anos, nas respectivas comunidades. Confrontados com os da anterior, (mudança, do ponto de vista religioso, nos próprios entrevistados), os dados da presente tabela acusam uma diferença ainda maior entre os dois grupos de comunidades: as opiniões dos chefes de família das CT concentram-se ainda mais em “melhorou muito”, enquanto que as opiniões dos chefes de família das CNT concentram-se, também em proporção maior do que na tabela anterior, em “ficou no mesmo”. A diferença entre os dois grupos de comunidades é, como no caso anterior, significativa a um nível muito elevado (superior a 1/1.000). 2) Opinião a respeito da ação da Igreja. Com o objetivo de verificar se os entrevistados tinham consciência e opiniões diversas quanto à atuação da Igreja nas respectivas comunidades, foi proposta a seguinte pergunta (A.51) a todas as pessoas, de 14 anos e mais, que compunham a amostra. “O senhor acha que a Igreja fez alguma coisa para melhorar a situação de sua localidade? fez muito, bastante, um pouco, nada?” a — Segundo a parte A da tabela 12.3 (veja também o gráfico 12.3), temos que, respectivamente nas CT e nas CNT, 49,7% e 13,4% declaram que a Igreja fez muito; 21,6% e 11,8%, que fez bastante; 6,5% e 12,8, que fez um pouco (alguma coisa); e 22,2% e 62,0% que a Igreja não fez nada em favor das respectivas comunidades. Seme- ALCEU RAVANELLO FERRARO 471 lhantemente ao que encontramos nas tabelas anteriores, também nesta as opiniões dos entrevistados das CT se concentram em “fez muito” (49,7%), enquanto que as dos entrevistados das CNT se concentram em “não fez nada” (62%). b — Se confrontarmos, do ponto de vista da concentração das respostas nos dois extremos, todas as 8 comunidades tomadas individualmente (parte B da tabela), observamos, sem excessão, o mesmo fato: quanto aos que declararam que a Igreja fez muito, o mínimo verificado nas CT (novamente Jundiá de Cima — 32,4%) vai muito além do máximo encontrado nas CNT (Barra do Geraldo — 19,5%), enquanto que, com relação aos que disseram que a Igreja não fez nada, o máximo verificado nas CT (Redenção — 27,6%) fica muito aquém do mínimo encontrado nas CNT (Barra do Geraldo — 52,4%). c — Agrupadas novamente as respostas por grupo de comunidades e distribuídas segundo os cinco grupos de idade especificados na parte C da tabela, observamos idêntica concentração de opiniões: quanto aos que declaram que a Igreja fez muito, o mínimo encontrado nas CT (população de 21-30 anos — 44%) vai muito além do máximo verificado nas CNT (população de 14-20 anos — 23,5%); quanto ao extremo oposto (não fez nada), o máximo acusado pelas CT, e precisamente pelo grupo de idade mais idoso (51 e mais anos — 32%), fica muito aquém do mínimo verificado nas CNT, e exatamente no grupo de idade mais jovem (14-20 anos — 50%). O teste de qui-quadrado aplicado à parte A da tabela revela ser esta a diferença mais altamente significativa encontrada na pesquisa (qui-quadrado, calculado com 3 graus de liberdade = 144,504). 472 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Basta uma confrontação superficial dos gráficos 12.1 a 3 com o gráfico 11.1, todos referentes às tabelas de mesmos números, para concluir pela existência, nas comunidades trabalhadas, de uma correlação íntima entre o campo religioso e o temporal, não só quanto ao fato, mas também quanto à consciência das mudanças ocorridas e da ação da Igreja em favor daquelas comunidades. Nas comunidades não trabalhadas, por sua vez, observa-se correlação semelhante, com relação não só ao fato, mas também à consciência da não-mudança (ou da quase nãomudança) e da omissão da Igreja no que diz respeito à situação destas mesmas comunidades. D. RELAÇÃO ENTRE TEMPORAL E ESPIRITUAL 1) De acordo com a tipologia elaborada na introdução, às atitudes reacionária e oportunista ou conservadora corresponderia uma instrumentalização do espiritual com relação ao temporal, isto é, a interesses particulares do grupo religioso. A própria história do Movimento parece excluir definitivamente uma tal subordinação. Com efeito, o Movimento foi antes religioso do que social, e, à base da própria ação temporal, estiveram tanto o desejo de concretizar certos valores sociais cristãos, quanto a vontade de difundir os valores especificamente religiosos do grupo. Assim, a questão é de saber se o Movimento representa um esforço de valorização do temporal, o que seria típico de uma atitude inovadora ou profética, ou uma simples ALCEU RAVANELLO FERRARO 473 instrumentalização do temporal com relação a este desejo de renovação pastoral, o que corresponderia a uma atitude ético-conservadora. O problema, porém, diz despeito mais ao clero do que aos leigos. Estes encaravam o engajamento social e religioso como um todo inseparável, como aspectos da missão total do cristão no mundo. Da parte do clero, nem sempre sem conflito com os leigos engajados, as coisas não pareciam tão claras, pelo menos no início. De um lado, os padres andavam angustiados, sem saber como justificar o intenso trabalho social em que se estavam envolvendo, e parece que o fato de dar a certas atividades sociais uma finalidade também ético-religiosa lhes tranquilizava um pouco a consciência. De outro, como já dissemos, a orientação pastoral tipicamente ético-conservadora, que tomava vulto no seio da hierarquia brasileira em meados dos anos 40. não deixou de exercer influência, especialmente nos primeiros anos do Movimento. O caso do Centro Social de São Paulo do Potengi, acima examinado, é típico. Mostra tanto o fato desta influência, quanto o da ‘evolução havida. Inicialmente, o Centro Social desenvolvia atividades de ordem religiosa, como a promoção de cursos de catequese, e entre seus Departamentos não faltava o da Defesa da Fé e da Moral. Deste último, a partir de 1954, não se encontra mais referência nos relatórios do Centro. Os cursos de catequese, por sua vez, passaram logo para o Secretariado Paroquial de Pastoral. Em seu depoimento, Mons. Expedito reconhece claramente a tendência, nos primeiros anos, a “utilizar” as obras sociais para fins ético-religiosos. Afirma também que, na medida em que 474 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal a Paróquia organizou seu Setor de Pastoral, as obras e atividades sociais passaram a gozar de maior autonomia com relação aos objetivos especificamente religiosos. Na cúpula, na medida em que os líderes do Movimento foram assumindo também a liderança da pastoral diocesana e organizaram o Secretariado de Pastoral, o movimento social e o movimento religioso aparecem sempre mais distintos e autônomos, com planejamento, recursos financeiros e pessoal próprio a cada campo de atividade. 2) Analisando o pensamento de D. Eugênio nos últimos anos, observamos a simultaneidade de uma dupla concepção da relação temporal-espiritual. Em pronunciamentos preponderantemente “apologéticos”, isto é, onde prevalece a preocupação de justificar perante os Poderes Públicos o novo tipo de engajamento social da Igreja na Aquidiocese de Natal e de defender a orientação do Movimento contra acusações de invasão do temporal, de retorno a uma forma de cristandade medieval, de absorção pelo temporal em detrimento do espiritual..., junto com aspectos de valorização do temporal, predomina uma concepção instrumental do temporal com relação aos objetivos de ordem religiosa. Assim, por exemplo, referindo-se ao II Encontro dos Bispos do Nordeste que se iam reunir proximamente em Natal, para, juntamente com técnicos e homens do Governo, tratar do desenvolvimento da região, D. Eugênio afirmava que a Igreja, sem olhar para crenças ou partidos políticos, vinha desenvolvendo “largo esforço em favor da melhoria material”, por sentir que a miséria dos nordestinos constituía “uma barreira ao desenvolvimento espiritual”31. ALCEU RAVANELLO FERRARO 475 Em 1960, tratando da visão moderna do sacerdote e da pastoral, dizia: “A moderna pastoral está a exigir do pastor de almas uma posição definida pela recuperação do homem para levá-lo a Deus... E vai o sacerdote trabalhar e lutar por condições mínimas de bem-estar físico e social que permitam o desenvolvimento dos fatores espirituais. O padre se torna um propulsor de progresso material como meio de progresso espiritual”32. Em outra oportunidade, reconhecendo que a posição do clero já estava causando “indisposição aos políticos, mais preocupados com seus interesses particulares, que com o bem do povo”, justificava: “O sacerdote procura melhorar materialmente o rebanho, em sua luta contra o subdesenvolvimento, como instrumento de evangelização”33. E, em 1962, a propósito de um Curso de Extensão Universitária para o Clero de Natal sobre problemas sociais, afirmava que o estudo e a ação do clero no campo social tinham como objetivo levar a uma “modificação da estrutura socioeconômica”, para torná-la “favorável a uma penetração maior da mensagem do Evangelho”34. Em que consista esta barreira ao entendimento do Evangelho, criada pelo estado de miséria, injustiça social e subdesenvolvimento, D. Eugênio o explicita em uma alocução de 1963, após outro Curso de Extensão Universitária para o Clero: “Antigamente, embora a verdade seja inalterada, certas situações não feriam tanto e não obstavam à evangelização”. O erro sempre foi erro, mas condições de tempo e espaço trazem sua forte contribuição na aplicação da mensagem eterna Nos nossos dias, tudo o que significa privilégio injustificado, o que faz perdurar uma injusta discriminação entre as pessoas, 476 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tudo o que faz esforços para conservar a atual ordem injusta, se transforma em barreira ao entendimento do Evangelho. “E conclui salientando a importância da Sociologia Religiosa para quem tem a missão de transmitir, em sua pureza, uma doutrina eterna a homens que passam”35. Em outros documentos, ao lado desta visão instrumental, aparece uma valorização do temporal. Assim, por exemplo, quando justifica a nova experiência de educação de base através do rádio: “A Igreja vê no homem alfabetizado a obra de Deus aperfeiçoada e um instrumento mais apto a glorificá-lo e servi-lo melhor. Este é o sentido apostólico e cristão do trabalho iniciado”36. Em outra série de documentos, quando livre da preocupação de justificar ou defender o Movimento, D. Eugênio deixa transparecer claramente uma concepção não instrumental, ou seja, uma valorização do temporal. Assim, em sua resposta a um questionário de Pe. F. Houtart sobre a posição da Igreja’ em face da transformação social do mundo latino-americano, estabelece as seguintes metas: Redescoberta do valor da criação e das tarefas temporais dentro do plano de Deus. Redescoberta do papel do leigo na Igreja. Aperfeiçoamento da pessoa humana... Valorização do trabalho... Promoção feminina... Valor do tempo livre... E conclui, reconhecendo no cristianismo, além de um “valor escatológico”, também “valor cósmico”. Esta visão expressa no documento que acabamos de citar representa, evidentemente, uma valorização, ou melhor, um apelo a uma revalorização do temporal. ALCEU RAVANELLO FERRARO 477 Esta última citação de D. Eugênio parece corresponder melhor à visão do temporal transmitida pelo Movimento ao homem do campo. Citamos, a título de exemplo, o seguinte texto sobre o trabalho: “O trabalho de cada um completa o trabalho de Deus... Deus criou o trigo. O homem com ele faz o pão. Deus criou o ferro. O homem com o ferro faz a enxada, o arado, o trator, o martelo e tantos outros instrumentos Deus criou tudo. O homem, com seu trabalho, transforma para seu uso todas as coisas criadas por Deus. É por isso que dizemos que o homem, com o seu trabalho, colabora com Deus na obra da criação. O trabalho dignifica o homem...”37. Foi graças a esta visão do trabalho e das tarefas temporais que bom número de comunidades do interior passou a comemorar o Dia do Trabalho. 3) Vejamos mais um aspecto da relação entre temporal e espiritual — a relação entre Igreja e Estado. Em um documento de 1963, sobre a Igreja no temporal, D. Eugênio começa por reivindicar que as atividades de uma Igreja sejam compreendidas e julgadas dentro do contexto social em que ela exerce sua missão. E, referindo-se às atividades da Igreja em alguns lugares do Nordeste, observa: “Suas atividades e suas relações com o temporal poderão causar admiração aos teóricos que apenas levantam hipóteses ou soluções diante de uma máquina de escrever, em uma confortável sala de trabalho”. Esta reivindicação parece ter sido motivada pelas suspeitas de retorno à forma de cristandade medieval, levantadas por conhecido sociólogo europeu, após breve visita a Natal. 478 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal A seguir, no mesmo documento, D. Eugênio estabelece o princípio de que a Igreja deve dedicar-se integralmente à sua missão evangelizadora, cabendo-lhe, no campo temporal, apenas uma função supletiva. “Na prática — prossegue ele, referindo-se à região — consideremos os seguintes pontos: — Em uma área subdesenvolvida, ordinariamente o Governo participa dessas limitações, sendo necessária uma ação mais atuante de outras forças. — Os cristãos... participam das duas comunidades, a eclesiástica e a civil, com os direitos e os deveres daí decorrentes. — A metodologia e a pedagogia de evangelizar os que gozam de uma condição humana desenvolvida são fundamentalmente diversos, quando se trata de evangelizar as pessoas que vivem no submundo dos países em desenvolvimento. Aqui, os meios sociais e materiais podem gozar de importância na transmissão da mensagem38. “O perigo do enfeudamento ao Poder Civil ou a tendência à dominação terrena existem na medida da falta de equilíbrio apostólico”. Passa, então, a lembrar as atividades temporais desenvolvidas por várias dioceses do Nordeste, e observa que a Igreja, “presente às necessidades, nem é angélica, preocupada apenas com a prece, nem envolvida precipiamente com o social e o temporal: a ela Deus confiou homens (o termo é usado por oposição a ‘almas’) e com esse complexo ela se preocupa e por ele luta”. E conclui: “A função supletiva não deve ser levada ao exagero de suplantar as funções do Estado nem ao de alheiar-se a qualquer problema de seus filhos. Era vez de apenas escrever pastorais ALCEU RAVANELLO FERRARO 479 e, na tranquilidade dos púlpitos, falar, em determinadas circunstâncias, deve descer à arena, indo a frente de seus filhos, ensinando-os a andar e a lutar. Nesse intervalo de tempo preparará com afinco seus leigos, formando-os na ação, para que assumam realmente a autêntica liderança que é extraordinária missão confiada por Deus ao laicato, e só a ele...”39. A propósito do trabalho desenvolvido em favor da humanização das migrações internas, D. Eugênio, depois de reconhecer que ela “não recebeu missão específica de ocupar-se das estruturas materiais , justifica a ação da Igreja neste campo como uma posição supletiva onde a autoridade civil não está preparada para levar a bom termo essa tarefa” (os Poderes Públicos têm, na prática, desconhecido o problema) e “mais ainda como um transbordamento de sua caridade pelos filhos que sofrem”40. Sobre o trabalho de organização e desenvolvimento de comunidade observa que, em áreas subdesenvolvidas, “o Governo não é o veículo mais indicado para a demarragem do processo comunal”. Porque “desestimula o voluntariado, encarece o programa de obsta flexibilidade necessária às exigências mutáveis das populações. Mas acrescenta imediatamente: “É inestimável o papel do Governo, pois somente ele poderá criar condições legais a um integral e harmonioso desenvolvimento das comunidades. Sem reformas de base, estéril será grande parte dos esforços. A comunidade, entretanto, ainda em organização, possui admirável força de pressão sobre o Governo... A sindicalização rural obrigará a vinda de uma corajosa e viril reforma agrária... A comunidade é força de pressão para a mudança de estruturas...”41. 480 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Segundo outro documento, a Igreja desenvolve sua luta pela mudança de estruturas: através da sindicalização rural, visando “unir o fraco para torná-lo uma força em órgãos de classe”; através da educação de base, “dando ao homem do campo uma visão crítica da realidade, levando-o a assumi-la; através da politização, “dando o sentido crítico ao homem do povo, para que possa julgar com acerto e engajar-se no processo de desenvolvimento”42. E a propósito da reforma agrária, depois de reconhecer que a solução ‘do problema é da alçada do Governo, lembra a existência de 210 (!) projetos no Parlamento, direta ou indiretamente relacionados com a questão, e acrescenta: “Mais do que nas experiências-piloto realizadas em várias Dioceses, no esforço da Igreja pela arregimentação dos camponeses em sindicatos rurais e no trabalho imenso de educação de base estão os alicerces e o começo de qualquer modificação da atual estrutura agrária”43. E em 1960 tecendo considerações sobre o Dia do Trabalho, concede não ser da alçada da Igreja a solução de problemas de ordem econômica e material, mas reivindica-lhe o direito de “ensinar o caminho e organizar seus filhos, para que, dentro da Verdade e da Caridade, possam cumprir deveres e fazer valer direitos44. Em outros textos, a ação da Igreja é vista mais em termos de cooperação. Assim, por exemplo, quando afirma que a Igreja, sem dependências ou compromissos, procura cooperar com o Poder constituído, alertando-o, solicitando medidas, dando apoio a determinadas iniciativas”45. À parte a cooperação da Igreja na reformulação da política federal com relação ao Nordeste na segunda ALCEU RAVANELLO FERRARO 481 metade dos anos 1950, a própria história do Movimento mostra uma multiplicidade de formas de cooperação entre Igreja e Estado. Em alguns casos foi a própria Igreja que procurou e estimulou esta cooperação. Em outros foram órgãos de Governo que solicitaram a cooperação do Movimento, como ainda recentemente, quando o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário ofereceu Convênio ao SAR, para que este executasse os treinamentos de líderes dentro do programa a ser desenvolvido por aquele órgão. Em outros casos, a Igreja tem agido mais como força de pressão, como no trabalho de politização e organização dos trabalhadores rurais em órgãos de classe. Sem querer entrar em previsões para o futuro, parece não se poder propriamente falar em dominação da Igreja sobre o Estado quando aquela concebe sua função - e este foi de fato o sentido do trabalho do SAR- 1) como educação: ensinar a andar e lutar, organizar o homem para a luta e a pressão sobre o Governo e 2) como estímulo alerta pressão, cooperação, visando levar o PODER PÚBLICO A ASSUMIR EFETIVAMENTE O SEU PAPEL na promoção da justiça social, das reformas de estruturas e do desenvolvimento. 4) A respeito do que vimos nesta última parte do Capítulo, podemos tecer, a título de conclusão, algumas considerações. A própria história do Movimento, se, por um lado, acusa a existência, nos primeiros anos, e alguns resquícios, em documentos apologéticos de D. Eugênio mesmo nos últimos anos, de uma concepção bastante instrumental do temporal com relação aos objetivos de ordem religio- 482 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal sa, por outro, deixa ver claramente a evolução havida no sentido de uma valorização do temporal e de uma sempre maior autonomia deste com relação ao espiritual. Nas bases, esta autonomia é menos evidente. Ali, embora distintas, as atividades temporais e religiosas muitas vezes se interpenetram. Isto se deve ao fato de ambas as formas de ação partirem da Igreja, atingirem as mesmas pessoas e terem, com frequência, à frente, nas bases, os mesmos líderes. Verificamos também, na parte C, que grande número dos entrevistados das comunidades trabalhadas pelo SAR têm consciência de que as mudanças ocorridas em suas comunidades se devem principalmente à ação da Igreja. Nada de admirar, por conseguinte, que o atendimento às necessidades materiais dos fiéis se tenha demonstrado de fato, de acordo, aliás, com as já citadas palavras de D. Eugênio, “sinal (eficaz) da Igreja para os homens do mundo em desenvolvimento, como a solicitude de Cristo para com os pobres e enfermos foi sinal de sua missão para os homens de seu tempo”, ou, em outras palavras, que às mudanças ocorridas no plano temporal tenham correspondido de fato mudanças também na vida religiosa das comunidades trabalhadas. Que todo sinal desempenhe uma função instrumental, é evidente. Contudo, a história do Movimento mostra que este não reduziu a ação temporal à mera condição de instrumento com relação a objetivos de ordem religiosa. Ao contrário, do próprio sistema de valores religiosos tirou razões de valorização do temporal. E os resultados de nossa pesquisa levantam, com relação à ação da Igreja em áreas subdesenvolvidas, sérias dúvidas: 1) quanto à ALCEU RAVANELLO FERRARO 483 eficácia de uma ação evangelizadora que não seja acompanhada de um esforço concreto no sentido de libertar os evangelizandos de sua condição de miséria, injustiça social e subdesenvolvimento, e 2) quanto à possibilidade de uma ação temporal que se demonstre funcional ao desenvolvimento, sem que a esta acompanhe uma pastoral profética, voltada para a evangelização. No que diz respeito à relação entre Igreja e Estado embora não se possa dizer que o tenha representado até o momento não é de se excluir que, no futuro, continuando a Igreja a entrar sempre mais no plano da ação temporal e vindo possivelmente a alterar-se sua motivação fundamental, chegue o Movimento de Natal ou outro semelhante a constituir perigo de dominação da Igreja sobre o Estado. Que isto, porém, venha a acontecer, não depende só da Igreja, mas também, e em última análise, do próprio Estado. O perigo de uma eventual dominação da Igreja sobre o Estado de fato existe na medida em que este se demonstra desinteressado ou incapaz de equacionar os problemas sociais (da miséria, injustiça social e subdesenvolvimento) de seus súbditos. Ou então, repetindo as palavras do Dr. Otto de Brito Guerra depois que advogara, em A Ordem, há precisamente vinte anos (17/8/1948), “um plano de redenção econômica do Rio Grande do Norte”, diríamos que o perigo existe na medida em que “a política não dá tempo”! 484 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal NOTAS DO CAPÍTULO XII 1. Uma Experiência Pastoral em uma Região Subdesenvolvida — Conferência pronunciada por D. Eugênio no Congresso Internacional Pro Mundi Vita, realizado em Essen (Alemanha), de 3 a 5 de setembro de 1963. 2. Palestra à J.F.C... 6-9-19U. 3. Homilia: sem data, mas encontrada em meio a documentos de 1946. 4. Sermão na lesta de São José (em Angicos), 19-3-1948. 5. Palestra Dominical, ?-?-1962. 6. “Dom Eugênio fala sobre o Congresso” (I Congresso de Trabalhadores Rurais do Estado do Rio Grande do Norte), Vida Rural forgão Oficial do SAR), 25-51961. 7. Discurso de Agradecimento, setembro de 1962: Discurso pronunciado por D. Eugênio na ocasião em que foi condecorado com a Medalha’ do Mérito Agrícola. 8. Veja nota 2. 9. Palestra Dominical, 7-5-1963 (Nas vésperas da I Convenção Nacional dos Sindicatos Rurais, realizada em Natal, de 15 a 20 cie maio de 1963). 11. Veja nota 6. 12. Palestra Dominical, sem data (1959-1961). 13. Palestra Dominical, 30-12-1962. 14. Palestra Dominical, sem data (início de maio de 1963, pelo contexto). 15. Veja nota 6. 16. Palestra Dominical, sem data (provavelmente de 1958). 17. Palestra Dominical, 22-7-1962. 18. Palestra Dominical, sem data (parece ser do início de 1963). 20. Palestra Dominical, (por ocasião da Concentração dos Jovens Agricultores no encerramento do I Congresso Norte-Rio-grandense de Trabalhadores Rurais), 25-5-1961. 21. Natal e Pobreza (homilia), 24-12-1961. 22. “Exposição sobre o Desenvolvimento de Comunidades Rurais e Urbanas no Nordeste Brasileiro” (Trabalho apresentado por D. Eugênio em sessão plenária durante a XI Conferência Internacional de Serviço Social, realizado em Quitandinha, em agosto de 1962), Boletim da Legião Brasileira de Assistência, 111 (1963 ) 28-31 e 71. 23. Nacionalismo — Palestra pronunciada por D. Eugênio, a convite dos universitários do Recife, por ocasião da Semana Nacionalista realizada naquela Cidade em 1959. 24. Palestra Dominical, sem data; provavelmente de início de 1963. 25. Palestra Dominical, ?-?-1962. 26. A Igreja e o Bem-Estar Rural — Aula proferida no lo. Curso para Técnicos do SSR (Serviço Social Rural) no CETI (Centro de Ensaio e Treinamento da Fazenda Ipanema), em janeiro de 1959. 27. Veja nota 23. 28. Veja nota 7. 29. Fundamentos da Política Social para o Desenvolvimento Nacional — Trabalho apresentado por D. Eugênio no II Congresso Nacional de Serviço Social, no Rio do Janeiro, em maio de 1961. 30. Ib. ALCEU RAVANELLO FERRARO 485 31. Alocução, sem data (imediatamente antes do II Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Natal, em maio de 1959). 32. Palestra, 19/3/1960. 33. Palestra, 23/10/1960. 34. Palestra Dominical, 28/1/1962. 35. Alocução, após o Curso de Extensão Universitária para o Clero, realizado em janeiro/1963. 36. Palestra Dominical, ?/?/1959. 37. Setor de Escolas Radiofônicas, Educar Para Construir, Tipogr. do SAR, 1964, p. 8-9 e S6a-36b. No mesmo opúsculo aparece claramente a valorização, por exemplo, da cultura, do folclore, dos bens materiais, do desenvolvimento, da saúde, da educação... 38. Temos outro documento apologético e encontramos novamente a mesma concepção instrumental da ação temporal com relação à evangelização. É interessante que nos últimos anos, esta maneira de ver só apareça em tais documentos. Isto talvez se deva, em parte, ao fato de D. Eugênio, ao responder às acusações contra o Movimento, fazer uso do uma linguagem ou concepção bastante em voga entre pastores de almas e teólogos. 39. A Igreja no Temporal, 19S3. 40. Migrações (conferência), 1959(7). 41. Desenvolvimento de Comunidade, op. cit. 42. A Igreja e o Bem-Estar Rural, op. cit. 43. Reforma Agrária (texto de uma entrevista, sem data, mas certamente entre novembro de 1961 e janeiro de 1962). 44. Palestra Dominical (comentários ao Dia do Trabalho), 7/5/1960. 45. Palestra Dominical, 24/2/1962, uma semana antes da Reunião de Estudos realizada em Natal de 1 a 6 de março de 1962, para avaliar os resultados dos 46. Decretos presidenciais decorrentes dos dois Encontros dos Bispos do Nordeste, realizados em Campina Grande e Natal. 486 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal CONCLUSÃO GERAL 1. Neste estudo circunscrevemo-nos a um contexto bem definido, isto é, a uma sociedade tradicional e tradicionalmente católica, e perguntamo-nos sobre a possibilidade de um grupo católico, situado dentro de um tal contexto sociocultural, evoluir de seu estado de pelo menos parcial inculturação para uma atitude favorável à mudança e para atividades que se demonstrem funcionais ao desenvolvimento. Na I Parte observamos que o Movimento, de caráter religioso nas suas origens, evoluiu, no setor temporal, de atividades marcadamente assistenciais e “paternalistas” em face de uma situação de emergência (FASE URBANA), para um programa de organização ou desenvolvimento de comunidades rurais (I FASE RURAL) e, finalmente, para a luta pela mudança de estruturas e em favor do desenvolvimento, extrapolando assim os limites da pequena comunidade interiorana e ampliando seu raio de ação para o âmbito do município e do Estado, com incidência, inclusive, em plano regional e mesmo nacional (II FASE RURAL). Observamos, também, a forte reação da parte da classe políticopatronal rural e o impacto da Revolução de 31 de março ALCEU RAVANELLO FERRARO 487 sobretudo o que estava mais de perto relacionado com a luta pela mudança de estruturas, bem como o esboçarse de uma nova fase, marcadamente econômica, com um vasto programa de incentivo ao cooperativismo rural. Quanto às outras atividades, especialmente as relacionadas com a luta pela mudança de estruturas, fizemos maior uso de dados administrativos ou coletados em nossa observação livre e em entrevistas. A verificação empírica nos levou às seguintes constatações: — as comunidades trabalhadas pelo SAR acusam, com relação às não trabalhadas, segundo a grande maioria dos critérios aplicados e relacionados com os aspectos mais diversos (Capítulos VI-X), diferenças significativas — em diversos casos, altamente significativas — no que tange a concepções, atitudes, comportamento e mesmo condições de vida (como elevação do índice de alfabetização), mudanças estas comumente consideradas como funcionais ao desenvolvimento e, inclusive como atingimento, embora parcial, de objetivos do desenvolvimento; — os entrevistados das CT não só têm, com muito maior frequência do que os das CNT, consciência de tais mudanças (Capítulo XI. l), como também, na maior parte dos casos, atribuem tais mudanças a agentes de alguma forma vinculados ao trabalho do SAR, confirmando, assim, as conclusões a que nos haviam levado os critérios objetivos anteriormente aplicados. Desta forma — dentro das grandes limitações de ordem financeira e humana (técnica) e daquelas inerentes a um Movimento pioneiro que, surgido modestamente das bases em meados dos anos 1940 e contando, pelo 488 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal menos até 1962, mais com a tolerância ou a permissão do que com o apoio efetivo da Autoridade máxima na Diocese, atuou e se expandiu na medida em que foi livremente aceito pelo clero e pelos leigos — a hipótese da funcionalidade ao desenvolvimento encontrou confirmação nos dados da verificação empírica. 2. Vimos também que os entrevistados das comunidades trabalhadas apontam, como principal fator de mudança, os líderes de comunidade motivados e geralmente treinados pelo SAR. Surgida após um ano de observação in loco, a II hipótese — a de um maior rendimento do líder quando atua na comunidade não isoladamente, mas através de grupos — encontrou igualmente confirmação nos dados da verificação empírica. As consequências práticas daí resultantes são manifestas: a) o papel importante que podem desempenhar líderes voluntários num trabalho de desenvolvimento de comunidades (pelo menos rurais); b) a força de motivação que podem exercer grupos religiosos no sentido de suscitar uma tal liderança; c) o valor prático da estratégia típica do SAR em seu trabalho de desenvolvimento de comunidade, estribada no tripé: líder (voluntário e treinado) — grupo — comunidade e d) a ineficácia ou pelo menos o menor rendimento de investimentos em formação de líderes de comunidade, se, ao mesmo tempo, não se os orienta para, no exercício de sua liderança na comunidade, agirem através de grupos e não isoladamente. 3. Quanto à III hipótese (II hipótese na Introdução), podemos sintetizar aqui os aspectos mais importantes da análise feita no Capítulo XII. ALCEU RAVANELLO FERRARO 489 No que diz respeito ao setor temporal, observamos, já no alvorecer do Movimento, um nítido esboçar-se de uma atitude inovadora Quanto ao trabalho desenvolvido no meio rural (1951-1965), é manifesta a correspondência entre a evolução da ação temporal, cuja funcionalidade ao desenvolvimento foi verificada empiricamente na II Parte e o desenvolvimento de uma atitude de descomprometimento com o status quo social — de injustiça e subdesenvolvimento — e de aceitação e incentivo à mudança: atitude esta motivada não por interesses criados, mas (pelo menos preponderantemente) por valores do grupo religioso e orientada para a transformação do éthos e da ordem social existentes, em outro éthos e outra ordem que melhor espelhem os valores sociais cristãos originais, isto é, descomprometidos, desinculturados. Observamos, também, que o Movimento voltou-se progressivamente para as causas dos males sociais e para a inovação cultural. No desejo e no esforço de transformação do éthos e da ordem social tradicional aparece claramente a orientação profética do Movimento. Tudo isto, como vimos na introdução, são características de uma ATITUDE INOVADORA no setor temporal. No, plano religioso encontramos, já na fase inicial do Movimento (1945-1950), a) uma nítida descontinuidade entre o grupo pioneiro e os marianos possuídos, no período imediatamente anterior (1940-1945) por uma atitude pastoral tipicamente conservadora e de claros indícios de um esboçar-se de uma atitude pastoral inovadora da parte dos pioneiros do Movimento. Surgindo de uma preocupação primariamente de ordem religiosa e precisamente missionária (comandos missionários), 490 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal o Movimento, com o andar dos anos, se apresentou sempre mais como um movimento de transformação religiosa , em nome dos próprios valores religiosos do grupo. A atitude crítica em face da sociedade, de descomprometimento com o status quo e de aceitação da mudança não se restringiu ao setor temporal, mas partiu de uma motivação fundamentalmente religiosa e atingiu de cheio o próprio cerne da ordem religiosa — o próprio conceito de cristão: oposição do “ser” ao “dezer-se” cristão ou católico. Por outro lado, acenamos, na Introdução, a uma série de 11 critérios que nos permitem melhor distinguir uma atitude pastoral inovadora (de orientação profética) de uma atitude pastoral conservadora (de orientação ética). Embora não os tenhamos aplicado todos sistematicamente (os critérios 1-5 podem resumir-se num só: a evangelização), da análise feita resulta uma ênfase crescente do Movimento: a) na evangelização; b) na evangelização dos adultos; c) na transformação religiosa, mais do que na conservação ou preservação dos fiéis; d) na participação dos leigos na obra de evangelização e transformação religiosa; e) na formação de associações ou grupos de caráter missionário (evangelizador.); f) no aspecto comunitário da religião: oposição dos que “são” aos que “se dizem” católicos, aos católicos por tradição; g) em novas experiências pastorais; h) no papel do sacerdote como profeta e educador: mudança na própria forma de o sacerdote exercer sua liderança. Tudo isto é característico de uma ATITUDE predominantemente INOVADORA, de orientação PROFÉTICA. ALCEU RAVANELLO FERRARO 491 c) Sob vários aspectos aparece também uma relação íntima entre temporal e religioso: a) encontramos em ambos os setores a mesma orientação profética — atitude e ação inovadoras, voltadas para a transformação social e religiosa; b) tanto na origem como na evolução do Movimento os valores religiosos constituíram a motivação última da própria ação temporal, de sorte que o Movimento pretendeu ser missionário em sua própria ação temporal, enquanto via nesta a criação de condições para um “maior desenvolvimento espiritual; c) quase na mesma proporção em que acusam uma melhora do ponto de vista temporal, os entrevistados das comunidades trabalhadas pelo SAR têm consciência de mudança (melhora) em si mesmos e nas respectivas comunidades, do ponto de vista religioso. Assim, a III hipótese também encontrou confirmação. Com isto, porém, não queremos dizer que o Movimento de Natal tenha sido sempre e em tudo inovador e muito menos que represente um movimento revolucionário violento: nem todo movimento inovador se impõe necessariamente pelo uso da violência, e nem todo movimento revolucionário violento é de si inovador. Afirmamos apenas que, dentro do contexto regional em que desenvolveu suas atividades, o Movimento de Natal se caracteriza por um esforço cada vez mais consciente e decidido de transformação social e religiosa, esforço este motivado pelos próprios valores religiosos e sociais do grupo religioso, de cuja iniciativa se originou e sob cuja liderança se expandiu e atuou o Movimento. 4. Da verificação da I e da III hipótese seguem-se duas conclusões de grande alcance teórico e prático: a) não 492 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal se exclui que grupos religiosos possam eventualmente desempenhar uma função de desenvolvimento e b) não se exclui que valores possam constituir motivação para a mudança social (para o desenvolvimento). Com efeito, verificamos que, em condições das mais adversas — numa região tradicional e tradicionalmente católica — um grupo católico, motivado pelos próprios valores religiosos do grupo, evoluiu para atividades temporais que se demonstraram funcionais ao desenvolvimento. Por outro lado, o presente estudo sugere que, pelo menos numa região tradicional e tradicionalmente católica, somente um grupo católico motivado por valores (não por interesses) e de orientação profética na ordem religiosa (atitude e ação inovadoras) teria condições de manifestar igual orientação (atitude e ação) na ordem temporal, isto é, de empenhar-se em atividades temporais que visem à transformação do éthos e da ordem existentes (tradicionais) e, consequentemente, possam demonstrarse funcionais ao desenvolvimento. Se somente em tais condições pode, numa sociedade ou região tradicional e tradicionalmente católica, um grupo católico demonstrar-se funcional ao desenvolvimento, só ulteriores pesquisas comparativas poderão dar uma resposta adequada. Neste sentido, o presente estudo não pretende ser mais do que uma tentativa de interpretação sociológica e uma abertura de perspectivas para ulteriores verificações empíricas num campo ainda pouco explorado pelos sociólogos em sede da sociologia empírica. ALCEU RAVANELLO FERRARO 493 APÊNDICES E ANEXOS APÊNDICE I A REGIÃO NORDESTE Que o Brasil, no seu conjunto, não goze de foros de cidadania entre os países considerados desenvolvidos, é questão pacífica. Mais pacífica ainda é a inclusão do Nordeste entre as maiores áreas subdesenvolvidas do mundo. Há quem lhe chame de “a maior área subdesenvolvida do Hemisfério Ocidental”. Nossa intenção, neste estudo sobre a Região em que surgiu, se desenvolveu e atuou o Movimento de Natal, não é tanto provar, quanto descrever em que consiste o subdesenvolvimento do Nordeste. Concretamente, procuraremos situar o Nordeste dentro do conjunto regional brasileiro, comparando-o ora com a média nacional, ora com todas as demais Regiões do país, ora — e principalmente — com as duas Regiões mais desenvolvidas do Brasil: o Leste e o Sul ou, juntas, o Centro-Sul. Duas razões principais nos levam a não circunscrever o estudo de área à Arquidiocese de Natal ou ao estado do Rio Grande do Norte, mas a estendê-lo a toda a Região Nordeste. Em primeiro lugar, o Nordeste forma um conjunto fisiográfica e culturalmente bastante homogêneo. Há, sem ALCEU RAVANELLO FERRARO 497 dúvida, como veremos mais adiante, zonas fisiográficas e sub-áreas culturais distintas, mas todas tipicamente nordestinas. E encontramo-las todas no estado do Rio Grande do Norte e mesmo na Arquidiocese de Natal. Certas iniciativas ou atividades empreendidas pela Igreja na Arquidiocese de Natal, como a atuação durante a seca de 1958, tornam-se mais facilmente compreensíveis dentro de uma visão regional, do que simplesmente local, dos problemas. Em segundo lugar, o Movimento surgido na Arquidiocese de Natal exerceu, sob alguns aspectos, influência, senão em toda, pelo menos em várias áreas da Região nordestina. Não há uniformidade na delimitação da Região Nordeste. Alguns incluem na Região apenas 5 estados: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Ou-tros estendem a Região para o Sul, incluindo os estados de Sergipe e parte da Bahia. Para o Conselho Nacional de Geografia, o Nordeste compreende os estados do Maranhão até Alagoas, excluindo, portanto, Sergipe e Bahia. O BNB (Banco do Nordeste do Brasil), tendo como área de operação o Polígono das Secas, exclui o Maranhão e parte da Bahia. A SUDENE Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) abrange nove estados, desde o Maranhão até a Bahia, e mais uma pequena parte do estado de Minas Gerais, incluída no Polígono das Secas. Seguiremos, neste trabalho, o critério da SUDENE, excluindo apenas, por razões práticas referentes à utilização dos dados estatísticos, a parte do estado de Minas Gerais que integra o Polígono das Secas e que é abrangida pelo planejamento da SUDENE1. 498 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Sempre que citamos como fonte o Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE), tivemos o cuidado de incluir os estados de Sergipe e Bahia no Nordeste, subtraindo-os, portanto, à Região Leste. Assim os totais das Regiões Nordeste e Leste não correspondem aos totais encontrados nos Anuários Estatísticos do Brasil. 1. ASPECTOS GEOGRÁFICOS, FISIOGRÁFICOS E CULTURAIS DO NORDESTE 1) Área. O Nordeste, compreendendo os nove estados que vão da Bahia ao Maranhão, tem uma área de 1.548.672km2, igual a 18,2% do território nacional. Sua área é quase três vezes maior do que a França, maior do que o Peru e cerca de 4/5 do México. A área dos nove estados nordestinos varia muito. Temos como extremos a Bahia, com 561.026 Km2, e Sergipe, com apenas 21.994 Km2, que constituem, respectivamente, 6,59% e 0,26% do território nacional e 36,22% e 1,42% da área compreendida pela Região Nordeste. O estado do Rio Grande do Norte, com 53.015km2, é o terceiro menor estado do Nordeste, constituindo 0,62% do território nacional e 3,42% da Região2. 2) O Polígono das Secas. O Polígono das Secas atinge oito dos nove estados do Nordeste (excluído o Maranhão, totalmente fora do Polígono) e pequena porção do estado de Minas Gerais, da Região Leste, e cobre 52% da área total destes nove Estados. Se, porém, considerarmos somente os oito estados nordestinos (do Piauí à Bahia, ALCEU RAVANELLO FERRARO 499 inclusive), 72,1% da área destes estados está incluída no Polígono. Este cobre 90,6% da área do Rio Grande do Norte, o terceiro estado mais atingido pelo fenômeno das secas3. 3) Sub-regiões ou zonas típicas4. O Nordeste pode ser dividido em três zonas distintas: a Zona da Mata e do Litoral Oriental, o Agreste e o Sertão. Zona da Mata e do Litoral Oriental. Esta Zona é constituída por uma faixa que, ao longo da costa oriental, vai do estado do Rio Grande do Norte até a Bahia. As elevadas taxas pluviométricas que caracterizam esta área possibilitaram o desenvolvimento de uma autêntica floresta tropical atlântica. Atualmente, porém, esta floresta se encontra quase completamente devastada. A Zona da Mata é a área dos grandes canaviais, dos engenhos e usinas de açúcar. Foi ali que se formou a sociedade do açúcar. Esta, desde os primórdios da colonização, avançou implacavelmente, devastando as matas e impelindo para o interior a pecuária e a policultura. E nesta faixa que se concentra a maior porção da indústria nordestina — a indústria açucareira. É também a área mais densamente povoada do Nordeste. Assim, nos 14 mil quilômetros quadrados da zona canavieira de Pernambuco, encontramos uma densidade demográfica quase duas vezes superior à da França. O sociólogo Gilberto Freyre caracterizou a Zona da Mata como a zona da monocultura latifundiária e (até 1888) escravocrata da cana de açúcar5. Foi o domínio imperial do açúcar na Zona da Mata que determinou o latifúndio, a monocultura e a escravidão. Foi ele que deu origem à sociedade patriarcal e pater- 500 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nalista da monocultura canavieira. O engenho de açúcar transformou-se no centro de vida, de atividade, de formação da sociedade agrária do Nordeste6. Contradistinguem-se a casa-grande do senhor-de-engenho, do todopoderoso, do rei-nosso- senhor, e a senzala dos escravos ou, após a abolição da escravatura (1888), o mocambo dos trabalhadores7. “A cultura da cana, no Nordeste, aristocratizou o branco em senhor e degradou o índio e principalmente o negro, primeiro em escravo, depois em pária. Aristocratizou a casa de pedra-e-cal em casa-grande e degradou a choça de palha em mocambo. Valorizou o canavial e tornou desprezível a mata”8. Falando do senhor-de-engenho, Gilberto Freyre assim o caracterizou: “Impossível imaginá-lo — a esse centauro fora da rede patriarcal, sem ser o homem a cavalo, chapéu grande, botas pretas, esporas de pratas, rebenque na mão, a quem a gente dos mocambos tomavam a bênção como a um rei. Do alto do cavalo é que esse verdadeiro rei-nosso-senhor via os canaviais que não enxergava do alto da casa-grande; do alto do cavalo é que ele falava gritando, como do alto da casagrande, aos escravos, aos trabalhadores, aos moleques do eito”9. Ao engenho de açúcar substituiu-se a usina. Intensificou-se a concentração de áreas cada vez maiores em mãos de um só dono ou de grupos empresariais. Na usina o trabalhador é pago, geralmente, não em dinheiro, mas em “vales” que circulam apenas no “barracão”, onde os preços ficam ao arbítrio do patrão. Falando da condição da massa assalariada empregada atualmente na indústria açucareira, Gilberto Freyre com- ALCEU RAVANELLO FERRARO 501 para-a à de párias10. “O sistema de latifúndio moderno — escreve o mesmo autor - é o de usinas; sua ânsia, a de “emendar” os campos de plantação de cana, uns com os outros, formando um só campo, formando cada usina um império; seu espírito, aquele militar... O espírito do senhor latifundiário que procura dominar imperialmente zonas maciças, espaços continuados, terras que nunca faltem para o sacrifício da terra, das águas, dos animais e das pessoas do açúcar11. A situação do trabalhador caracteriza-se pela insegurança, pela dependência. Pode ser demitido a qualquer momento, por qualquer razão ou sem razão, sem que lhe caiba o direito de apelar para a Justiça. O latifúndio monocultor expulsa o homem, de vez que lhe faltam elementos de fixação ao solo. Se é correto definir o Nordeste como “Região explosiva”, nenhuma outra área nordestina o é mais do que a zona açucareira. Compreende-se isto de vez que o advento da usina transformou o antigo patrão — o senhor-deengenho — num ausente, ou quase-ausente. “Feita uma excessão ou outra — diz ainda Gilberto Freyre — não há sentimento de solidariedade nenhum entre dominador e dominados O usineiro é, em geral, como se fosse um conquistador em relação com os conquistados de outra terra”12. Concluindo este parágrafo sobre a Zona da Mata e Litoral Oriental, poderíamos ainda mencionar o praieiro, que, residindo ao longo da costa nordestina, apresenta traços culturais bem distintos do homem do açúcar e dos habitantes das outras áreas típicas que veremos. Predominam aí os valores da pesca: a rede, o dono-da-rede e 502 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal o armador a jangada e o jangadeiro; o mar traiçoeiro e a incerteza do pesca do; o pescador e o marchante. Seu folklore é típico. Suas técnicas piscatórias são geralmente as mais primitivas. O Sertão e Litoral Setentrional. A Zona do Sertão e Litoral Setentrional constitui a área mais extensa do Nordeste Caracteriza-se pelo seu estado de semi-aridês. Está praticamente toda dentro ao assim chamado Polígono das Secas, embora este não se limite ao Sertão e Litoral Setentrional. Enquanto, a Leste, o Sertão é separado da costa pela Zona da Mata e pelo Agreste, ao Norte, o Sertão chega até quase a praia, separado apenas por estreita faixa litorânea, razão pela qual juntamos Sertão e Litoral Setentrional A densidade demográfica no Sertão é muito inferior à da Mata e do Agreste. A taxa pluviométrica no Sertão está compreendida entre 400 a 650 mm anuais. “É o clima, o aspecto mais caracterizador do sertão nordestino e pela força do seu impacto é a nota mais característica de todo o conjunto regional. Entretanto, somente um dos seus fatores concentra o conceito climático do Nordeste. Este fator é a deficiência da umidade. Notadamente em termos de precipitação pluvial”13. A falta de regularidade e uniformidade das chuvas ao longo do ano vem agravar ainda mais a situação. A vegetação típica do Sertão apresenta caráter xerófilo. Aí domina a caatinga. A grande sociedade sertaneja caracteriza-se pela preponderância dos valores da pecuária. Não há um sertão, mas vários sertões com características peculiares re- ALCEU RAVANELLO FERRARO 503 sultantes de suas atividades econômicas. A marca do criatório, contudo, generalizou o conceito de sertão. E ambiente de deserto, particularmente de deserto social. Caracteriza-se pela dispersão da população. “O sertanejo — comenta Manoel Diegues Júnior — é a figura dominante do mediterrâneo nordestino. O sertão é o vaqueiro e o tangerino, é o comboeiro e o curtidor, é o cantador de desafio e o aguadeiro do São Francisco, é o extrator de babaçu e o baleeiro e ainda o tirador de carnaúba e o agregado dos latifúndios pastoris; é também o místico dos fanáticos, cheio de supertições e crenças, e o cangaceiro, figura característica dos desertos, em que se transformou o antigo capanga ou guarda-costas”14. O fazendeiro, o grande latifundiário, é ao mesmo tempo o chefe de família, o chefe político, o chefe territorial de imensos latifúndios Numa palavra, é o “coronel”, o “rei-nosso-senhor” do sertão. “O mesmo sentido patriarcal da área açucareira — diz ainda Manoel Diegues Júnior — impera aí, embora apresentando outras modalidades. Uma delas é o pequeno número de pessoas que viviam em cada fazenda”15. Compreende-se isto, uma vez que a criação não necessita de tanta mão de obra como o engenho de açúcar. Criaram-se novas normas de relações entre senhor e trabalhador, entre fazendeiro e vaqueiro O sentimento aristocrático é menos saliente do que na zona canavieira. A distância entre a casa de têlha do “coronel” e a de palha do agregado, do vaqueiro, do morador, é menor do que entre a casa-grande e a senzala ou, hoje, o mocambo da zona açucareira. Isto não impede, porém, que da casa de telha o “coronel” exerça seus poderes de árbitro absoluto de todo o seu latifúndio16. 504 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Todo o folklore do sertão está impregnado de temas ligados ao criatório e à seca que, periodicamente, flagela a região. A grande insegurança do sertão é constituída pelas secas periódicas. Agreste. Temos finalmente o Agreste. Trata-se de uma zona de transição entre a Mata e o Sertão. Em certos lugares o Agreste é perfeitamente distinto das outras duas regiões, confundindo-se, em outros ora com a Mata nos seus trechos mais úmidos, ora com o Sertão nos seus trechos mais secos. Suas taxas pluviométricas são menores do que na Mata e mais elevadas do que no Sertão. Caracteriza-se por um tipo de vegetação subxerófilo, intermediário entre a floresta da Zona da Mata e a caatinga do Sertão. Nas áreas mais favoráveis domina a agricultura, sendo então a densidade demográfica bastante elevada. Nas outras áreas domina a pecuária com baixa densidade demográfica. Hoje o Agreste é mais agrícola do que pecuarista. O Agreste é mais policultor, enquanto a Zona da Mata se caracteriza pela monocultura da cana de açúcar, e o Sertão pela pecuária. Está menos sujeito ao fenômeno das secas do que o Sertão Contudo, fora dos brejos -- zonas de maior concentração de umidade e cobertas de mata — a taxa pluviométrica é quase sempre inferior a 1000 mm por ano, e as chuvas são mal distribuídas durante o ano. Recorrem, por isto, os fazendeiros à construção de açudes barreiros, tanques, cacimbas. Não raro, porém, esgotados os recursos de água e alimentação, não resta ao pecuarista senão a emigração levando seu gado para a Zona da Mata ou para as serras e brejos próximos. A falta d’água sempre constituiu grave problema no Agreste, embora não tão agudo como no Sertão. ALCEU RAVANELLO FERRARO 505 O vaqueiro, que, no Sertão, ainda tem reais possibilidades de tornar-se fazendeiro, foi, nas fazendas de gado do Agreste, totalmente proletarizado. Manoel Correia de Andrade, em seu livro A terra e o homem do nordeste, assim comenta este fato: “Aquele costume de pagar ao vaqueiro com um quarto dos bezerros nascidos, a “quarta”, foi inteiramente abolido no Agreste, desde que o gado da região raceado com o zebu, o holandês e o schuwytz, está muito valorizado, elevando consideravelmente o salário do vaqueiro se o pagamento continuasse a ser feiro em espécie. Assim, o pagamento em moeda, substituindo a “quarta”, de uso ainda generalizado no Sertão, onde domina o gado criolo ou “pé duro”, não representa uma melhoria para o vaqueiro, mas uma inferiorização sobre a remuneração anterior, pois o proletariza e impede que, como ocorria no passado, ele tenha a oportunidade de tornar-se fazendeiro”17. Há, nas fazendas, além do vaqueiro, certo número de moradores. Estes recebem uma casa de “taipa” e certo número de “mil covas” (1/2 a 2 ha) para cultivar de meia (o sistema de meia no Agreste é menos favorável ao trabalhador do que no Sertão), com obrigação de dar dois, três, e até quatro dias de “sujeição”, isto é, de trabalho na fazenda, por salários baixíssimos. Falando de sua condição, o próprio trabalhador se considera um “sujeito”, alguém que vive na “sujeição”. Mas o aspecto mais típico do Agreste é a pequena propriedade, caracterizada por uma policultura de subsistência. Mais de 85% dos estabelecimentos agropecuários do Agreste têm menos de 20 hectares e cobrem apenas 14% da área. Ali se formou uma espécie de classe média rural, 506 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal econômica e politicamente menos dependente do “coronel”, do que o trabalhador assalariado ou o morador. As parcelas maiores são chamadas “sítios”, dando-se o nome de “chão-de-casa” às propriedades de menos de 1 hectare. Quando a propriedade é pequena demais para ocupar, todo o tempo, a mão-de-obra familiar, o pequeno agricultor recorre ao trabalho “alugado”, ao arrendamento, à parceria. No Sertão aliam-se a criação de gado e a cultura do algodão de fibra longa (mocó ou de raiz). No Agreste, ao lado da criação de gado encontramos a policultura de subsistência e o algodão de fibra curta ou herbáceo. 2. ASPECTOS DEMOGRÁFICOS 1) População. O Censo de 1960 dá para o Nordeste 22.428.873 habitantes, igual a 31,6% da população do país, que, na mesma data, contava com 70.967.185 habitantes. A população do Nordeste em 1960 equivalia a 4,84 vezes a sua população em 1872 (4.638.560 habitantes), o que representa um elevado índice de crescimento demográfico. Podemos, contudo, constatar uma tendência secular a uma diminuição da contribuição percentual do Nordeste na formação da população total do país. De fato, o Nordeste representava, em 1872, 47,7% da população do país, baixando sucessivamente para 41,9% em 1890; 38,7% em 1900; 35,0% em 1940; 34,6% em 1950 e 31,6% em 196018. ALCEU RAVANELLO FERRARO 507 2) Densidade demográfica. Em termos de habitantes por quilômetro quadrado, o Nordeste apresenta uma densidade demográfica (14,56) superior às das Regiões Norte (0,73) e Centro-Oeste (1,60) e inferior às das Regiões Leste (26,70) e Sul (30,47), sendo a média nacional 8,38 habitantes por quilômetro quadrado. Se, porém, considerarmos somente os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, que constituem o assim chamado Nordeste Oriental, encontramos a densidade demográfica regional mais elevada do país (30,9 habitantes por quilômetro quadrado), superada apenas por ailguns estados, isoladamente, da Região Leste e Sul. São eles os estados da Guanabara, Rio de Janeiro e São Paulo com, respectivamente, 2.824,22; 80,76 e 52,34 habitantes por quilômetro quadrado19. 3) População rural e urbana. O Nordeste é uma Região ainda tipicamente rural. Segundo os dados do Censo de 60 o Nordeste assenta um índice de população rural da ordem de 65,8% sendo a média nacional 54,9%. Com excessão do estado de Pernambuco (55,1%), todos os outros estados do Nordeste apresentam contingentes de população rural superiores a 60% das respectivas populações totais20. Já por volta de 1950, tínhamos os seguintes índices de população urbana para alguns países europeus e latinoamericanos: 82,9%, na Escócia (1951), 80,8% na Inglaterra e Galles (1951); 71,1% na Republica Federal Alemã (1950); 62,7% na Bélgica (1947); 59,9 no Chile (1952) e 53,8% na Venezuela (1950)21. 4) População ativa empregada na agricultura. Típico dos países ou áreas subdesenvolvidas é a alta per- 508 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal centagem de população ativa empregada toa agricultura. Enquanto alguns países mais desenvolvidos têm hoje, empregada na agricultura, menos de 20% de sua população ativa, o Nordeste tem ainda 64,4%, contra 42,6% para o resto do Brasil (1960). Em 1960 o Nordeste apresentava um índice de população ativa empregada na agricultura (64,4%) ainda levemente superior ao do resto do país em 1940 (63,8%). Além disto, importa notar que a passagem da população ativa nordestina da agricultura para outros ramos de atividades é mais lenta do que no resto do país. Assim, o contingente de população ativa empregada na agricultura baixava de 74,9% em 1940 para 64,4% em 1960 no Nordeste e de 63,8% em 1940 para 42,6% em 1960 no resto do país22. Isto equivale a dizer que, enquanto o Nordeste, no período de 1940 a 1960 transferia para outros ramos de atividades 1/7, o resto do Brasil transferia, no mesmo período, cerca de 1/3 das pessoas ativas ocupadas na agricultura em 1940. 5) Estrutura etária da população. Se é verdade que o Brasil é um “país de jovens”, esta afirmativa é mais válida ainda para o Nordeste E esta é outra característica de países ou áreas subdesenvolvidas Segundo estimativas dos peritos das Nações Unidas para o ano de 1947 a população com menos de 15 anos era de 36% no mundo todo, 40% na África, 40% na América Latina, 28% na Oceania, 25% na América do Norte e 24% na Europa do Norte, Centro e Oeste23. A população com menos de 15 anos no Nordeste era da ordem de 43% em 1940 44% em 1950 e 1960, e prevêse que tenderá a subir para 45% em 1970, enquanto que, no resto do Brasil, tenderá a baixar de 42% em 1940, 41% ALCEU RAVANELLO FERRARO 509 em 1950 e 40% em.1960 para 39% em 1970 A população compreendida nas faixas de idade entre 15 a 64 anos tende a cair, no Nordeste, passando de 54% em 1940 para 52% em 1970, e a aumentar de 56% em 1940 para 59% em 1970 no resto do país24. 6) Vida média ou esperança de vida. Segundo estudo do Laboratório de Estatística do IBGE, no período 1940/1950 a vida média nas Regiões Leste e Sul atingia e mesmo ultrapassava os 50 anos. Neste mesmo período a vida média era de apenas 45 anos no Ceará; 42,7 no Piauí, Rio Grande do Norte e Pernambuco; 42,4 na Paraíba; 41,2 no Maranhão e 38,8 em Alagoas. A vida média no Nordeste, no período de 1945/1950, equivalia à vida média verificada nos Estados Unidos em 1860 (41 M e 43 F: M = população masculina; F = população feminina); na Suíça em 1875 (41 Me 43 F) - na Alemanha em 1895 (41 M e 44 F). Aproximadamente no mesmo período referente aos dados sobre o Nordeste, a esperança de vida ao nascer era da ordem de 63 M e 66 F nos Estados Unidos (1945); 63 M e 67 F na Suíça (1945); 60 M e 63 F na Alemanha (1935); 66 M é 71 F na Áustria (1945)25. 7) Natalidade e Mortalidade. A taxa de natalidade no Brasil é das mais elevadas do mundo. A dos estados nordestinos é mais elevada do que a do Brasil e, particularmente, do que as taxas de natalidade verificadas nos estados das Regiões Leste e Sul. Em 1947 as taxas anuais de natalidade por 1 mil habitantes para as regiões do mundo eram as seguintes: 40-45 na África e na Ásia (excetuado o Japão: 31 por 1 000)- 40 na América Latina; 25 nos Estados Unidos e Canadá; 28 na Europa Oriental; 510 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 23 na Europa Meridional; 19 na Europa Setentrional, Ocidental e Central; 18 na Oceania26. Em 1950 a taxa de natalidade no Brasil foi estimada em 43,05 por 1 mil habitantes: das mais elevadas do mundo, por conseguinte. Ora, nesta mesma data, as estimativas do Laboratório de Estatística do IBGE davam taxas da ordem de 48 por 1 mil para o Piauí e Ceará; 47 por 1 mil para o Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Sergipe; 46 por 1 mil para o Maranhão e Bahia e 45 por 1 mil para Pernambuco. Para os estados do Sul e do Leste as taxas de natalidade eram, na mesma data, bem menos elevadas. Assim tínhamos, por exemplo, 38 em São Paulo; 43,5 no Paraná; 44 no estado do Rio de Janeiro; 38,5 no Rio Grande do Sul e 25 por 1 mil na Guanabara27. Segundo estudo do demógrafo Giorgio Mortara, baseado no Censo de 1950 (28), 8 dos 9 estados do Nordeste apresentam os índices mais elevados de natalidade entre as Unidades de Federação. Temos assim em ordem decrescente, na data do Censo de 1950, os seguintes índices de filhos tidos nascidos vivos por 1.000 mulheres prolíficas de 15 a 49 anos: 589,0 no Rio Grande do Norte; 588,8 na Paraíba - 556,9 no Ceará; 551,7 em Sergipe; 545,5 em Alagoas; 539,9 em Pernambuco; 502,4 na Bahia e 491,7 no Piauí. Seguem-se as Unidades Federadas das outras Regiões e o único estado do Nordeste — o Maranhão — que apresenta índice de natalidade inferior a Estados não nordestinos. O índice menos elevado se verifica na Guanabara (312 5) sendo de 465,5 a média nacional de filhos tidos nascidos vivos por l mil mulheres prolíficas de 15 a 49 anos. ALCEU RAVANELLO FERRARO 511 Segundo o mesmo estudo, entre os 11 estados brasileiros que apresentam os índices mais elevados de filhos falecidos na data do Censo de 1950 por 1 mil filhos tidos nascidos vivos, figuram todos os 9 estados nordestinos, ocupando os 1º a 7°, 10º e 11.° lugares, cabendo, respectivamente, o 8º e 9o lugares, ao Pará e Amazonas, ambos estados da Região Norte. Seguem-se, com índices menos elevados, os outros Estados da Federação. Os índices extremos de filhos falecidos na data do Censo de 1950 por 1 mil filhos tidos nascidos vivos, se verificam nos Estados do Rio Grande do Norte (363,9 por 1 mil) e Rio Grande do Sul (116,7 por 1 mil), sendo de 219,7 por 1 mil a média nacional. Entre os Estados Nordestinos, somente o Piauí (209,9 por 1 mil) apresenta índice inferior à média nacional. 8) Incremento da população. A tabela A-l.l nos permite tirar as seguintes conclusões sobre o incremento da população do Nordeste confrontado com o incremento da população nacional: a) No período de 1940/50, apesar da emigração, a taxa média geométrica anual de incremento da população por 1 mil habitantes oscilava, nos estados do Nordeste, em tôrno da média Nacional (24 por 1 mil). Enquanto, do período de 1940/50 para o período 1950/60, esta taxa se elevava, no Brasil todo, de 24 para 30 por 1 mil, todos os estados do Nordeste — excessão feita do Maranhão, que, devido à imigração, apresentava um alimento de 26 para 44 por 1 mil, e de Alagoas, que conservou a taxa anterior (14 por 1 mil), a mais baixa do Nordeste — sofreram fortes quedas nas taxas de incremento das respectivas populações, ficando, no período de 1950/60, muito aquém da média nacional neste período (30 por 1 mil). 512 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Esta queda na taxa de incremento da população no Nordeste não se deve a uma diminuição da taxa de incremento vegetativo da população o aumento no plano nacional nos faz supor, com maior razão, um aumento no Nordeste — mas à intensificação da emigração. b) Todos os estados do Nordeste acusam, no período 1950/60, taxas anuais de incremento das respectivas populações urbanas bem mais elevadas do que no período 1940/50. Contudo, o índice de crescimento da população urbana no Nordeste não aumentou na mesma proporção do verificado no país todo entre os períodos 1940/50 e 1950/60. c) De outro lado, no período de 1940/50, a taxa média geométrica anual de incremento da população rural por 1 mil habitantes no Nordeste — excessão feita de Alagoas e Paraíba (11 e 13 por 1.000, respectivamente) — era igual à média nacional, em Pernambuco (16 por 1.000), e superior, no Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará, Maranhão e Piauí (17; 19; 23; 23 e 24 por 1.000, respectivamente). De 1940/50 para 1950/60 — exceção feita do Maranhão, estado de forte imigração em suas áreas rurais — a taxa média geométrica anual de incremento da população rural por 1 mil habitantes nos estados nordestinos sofreu as seguintes quedas: de 24 para 10 no Piauí; de 23 para 9 no Ceará; de 19 para 9 na Bahia; de 17 para 1 no Rio Grande do Norte; de 16 para 5 em Sergipe; de 16 para 2 em Pernambuco; de 13 para 6 na Paraíba; de 11 para 4 em Alagoas. Nos Estados de Pernambuco (2 por 1 mil) e Rio Grande do Norte (1 por 1 mil) o incremento da população rural, no período 1950/60, foi quase nulo. Essa queda brusca na taxa de incremento da população rural ALCEU RAVANELLO FERRARO 513 nordestina é devida ao aceleramento do processo de urbanização dentro do próprio Nordeste e à intensificação da emigração das áreas rurais nordestinas para outras Unidas da Federação, à procura de melhores condições de vida. 3. ASPECTOS ECONÔMICOS 1) Distribuição regional da renda nacional. Comparando a distribuição regional da renda nacional com a distribuição regional da população do país, temos os dados seguintes29: Estes dados evidenciam o desequilíbrio interno no Brasil quanto à distribuição regional da renda nacional. Com exceção do Centro-Sul, cuja contribuição na formação da renda nacional (79,4%) supera de muito sua contribuição na formação da população do país (60,49% ), em todas as outras Regiões as respectivas contribuições na formação da renda nacional ficam muito aquém de suas contribuições na formação da população do país. Assim o Nordeste, com 31,60% da população, representa apenas metade (15,9%) — a contribuiçâo regional proporcionalmente mais baixa — do que lhe caberia, caso a renda 514 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal nacional se distribuísse entre as Regiões exatamente na mesma proporção da população. 2) Renda per capita. Quanto à renda per capita aparecem os mesmos desníveis regionais. Considerando como 100% a renda per capita nacional em 1960, temos, em ordem decrescente, como por cento da média nacional, as seguintes rendas per capita regionais: 133,5% no Centro-sul; 60,7% no Norte; 59,3% no Centro Oeste e 50,6% no Nordeste É no Nordeste, por conseguinte, que se encontra a renda per capita regional mais baixa — 50,6% da renda per capita nacional. Importa ainda acrescentar que, nos anos de 1955 a 1959, a renda per capita no Nordeste, como por cento da média nacional, oscilou entre 42 9% e 48,4%, inferior, por conseguinte, a verificada em 196030. Os quatro estados da União, cuja renda per capita se situa acima da média nacional — Guanabara (Leste), São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná (Sul), com, respectivamente, uma renda per capita equivalente a 291,0; 177,7; 120,0 e 110,7 por cento da renda per capita nacional representam 36,6% da população e 61,5% do produto nacional31. Em 1958 a renda per capita no Nordeste era estimada em USS 95 (na base de Cr$ 74,00 =U$ 1.-). Os 5 estados nordestinos situados mais ao Norte apresentavam, no mesmo ano, uma renda per capita inferior a US$ 100: Maranhão (US$ 77), Piauí (US$ 53), Ceara (US$ 62) Rio Grande do Norte (US$ 82), Paraíba (US$ 81), enquanto que os quatro estados situados mais ao Sul superavam levemente os US$ 100 per capita: Pernambuco (US$ 127), Alagoas (US$ 109), Sergipe (US$ 118) e Bahia (US$ 107)32. ALCEU RAVANELLO FERRARO 515 3) Causas do desequilíbrio regional. No próprio Plano Trienal, já citado, são apontadas três causas deste desequilíbrio regional em desfavor do Nordeste: 1) o baixo nível técnico, 2) as oscilações do mercado internacional e 3) a política cambial brasileira ate 1955. a) O baixo nível técnico. Tentemos ilustrar. Para cada 10.000 pessoas ocupadas em atividades agropecuárias correspondiam, em 1960 4,4 tratores e 31,7 arados no Nordeste; 4,9 tratores e 5,7 arados no Norte - 33,8 tratores e 173,5 arados no Centro-Oeste; 25,5 tratores e 387,9 arados no Leste e 104,6 tratores e 1.833,6 arados no Sul, sendo a média nacional de 40,9 tratores e 664,8 arados por cada 10 mil pessoas ocupadas em agropecuária33. Com 64,4% de sua população ativa empregada em atividades agropecuárias (1960) e um tal nível técnico, explica-se a baixa renda per capita no Nordeste e sua baixa participação da formação da renda nacional. b) As oscilações do mercado internacional. “A renda de importantes sub-áreas nordestinas está sujeita às oscilações do mercado internacional da xilita, do cacau, da cêra de carnaúba, da mamona, do sisal e de inúmeros outros produtos menores com respeito aos quais tem o Brasil uma posição caudatária nos mercados internacionais”34. c) A política cambial. O Plano Trienal vê, na política cambial seguida pelo Governo em todo o após guerra até 1955, outra razão do desequilíbrio regional em desfavor do Nordeste e atribui a recuperação do Nordeste a partir de 1955, dentre outros fatores, a modificação da política cambial que carreava para o Centro-Sul industrial mais de 50% das divisas obtidas com as exportações nordes- 516 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal tinas. Mas os seguintes dados fornecidos pela SUDENE referentes ao período posterior a 1955 nos levam a duvidar que o Nordeste, pelo menos ate 1961, se tenha beneficiado da nova política cambial. De fato, enquanto de 1956 a 1961 a participação do Nordeste na exportação ascendia de 11,1% para 18,7% do valor total das exportações do Brasil, sua participação nas importações baixava de 8,9% em 1957, para 7,0% em 1958, 5,8% em 1959, e apenas 5,6% em 196135. 4) Indústria. Com 31,60% da população nacional, o Nordeste contava em 1960, com 19,14% (21.120) dos estabelecimentos industriais do país (110.339), e, em 1959, com apenas 12,3% (185 660) da média mensal de operários ocupados em atividades industriais no Brasil (1.509.713). De outro lado, enquanto em 1959 a Região Sul, com 35,10% da população nacional, contribuía com 66,7% para formação do valor total da transformação industrial no Brasil, o Nordeste, com 31 60% da população nacional, contribuía, no mesmo ano, com apenas 7,7%36. 5) Situação orçamentária. No ano de 1961 os municípios do Brasil gastaram, conjuntamente, em todos os seus serviços, 63.573,6 milhões de cruzeiros. Desse total os municípios nordestinos (31,60% da população do país) gastaram apenas 15,48%. Os municípios do estado de São Paulo, com 18,28% da população brasileira, gastaram quase metade do total (48,12%). Assim os municípios nordestinos, cerca de 5/3 da população dos municípios paulistas, tiveram menos de 1/3 do orçamento dos mesmos municípios paulistas. ALCEU RAVANELLO FERRARO 517 A situação orçamentária dos estados nordestinos é relativamente ainda mais precária. Em 1962 os estados da Federação gastaram, conjuntamente, 526.814 milhões de cruzeiros. Desse total, apenas 8,1% foi gasto pelos 9 estados nordestinos, ou sejam, 42,703 milhões de cruzeiros. Couberam 45,25 % do total ao estado da Guanabara (4,66% da população nacional). De outro lado, o Nordeste contribuiu com apenas 5,09% em 1960 e 4,85% em 1962 para formação da receita total arrecadada pela União.37. 6) Emissões de capital. O Nordeste, com 31,60% da população do país, contou, respectivamente para cada ano do período 1956-61, com apenas 4,7; 1,8; 1,9; 2; 5,9; e 5,2 por cento do valor total das emissões de capital realizado pelas sociedades anônimas no Brasil38. As emissões de capital no setor industrial no Nordeste constituíram 4,5% em 1960 e 5,0% em 1961 do total das emissões realizadas no setor industrial do país40. 7) Investimentos. Os investimentos de capitais estrangeiros no Brasil foram da ordem de US$ 104.175.700 em 1958; US$ 86.815.900 em 1959 e US$ 85.086.100 em 1960. A parte desses montantes investida no Nordeste foi a ordem de 0,45% em 1958, 0,57% em 1959 e 3,46% em 196041. Do total dos financiamentos autorizados pelo BNDE (Banco do Nacional de Desenvolvimento) no Brasil, no período 1952-1956,couberam ao Nordeste 9,4% (42). Posteriormente, com a atuação do BNB (Banco do Nordeste do Brasil) e, principalmente, com a política de incentivos inaugurada pela SUDENE no decênio dos anos 1960, acentuou-se a tendência nacional e estrangeira a investir no Nordeste. 518 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 8) Consumo de energia elétrica. Em 1962, o consumo de energia elétrica por habitante no Nordeste (56,49 kwh por habitante) – embora levemente superior ao consumo nas regiões Norte (48,25 kwh) e Centro-Oeste (52,93 kwh) – não alcançava ainda o 1/5 do consumo médio por habitante no Brasil inteiro (305,00 kwh) e constituía menos de 1/8 do consumo no Sul do país (470,00 kwh por habitante)43. De 1962 para esta data, além de várias capitais, mais de uma centena de cidades do interior nordestino foram atingidas pela energia elétrica de Paulo Afonso, o que significa não somente maior bem-estar, mas também e principalmente, novas possibilidades industriais para a região. 9) Estrutura agrária. A própria estrutura agrária do Nordeste constitui, a nosso ver, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da região. Em 1960 o estado do Rio Grande do Norte tinha um total de 50,271 estabelecimentos agropecuários. Os 15 maiores estabelecimentos com 10.000 ou mais hectares, constituíam 0,03% dos estabelecimentos e ocupavam 18,20% da área total, ou sejam, 790.930 hectares. De outro lado, os 21.115 estabelecimentos de menos de 10 hectares constituíam 42,00% dos estabelecimentos e ocupavam 84.064 hectares, ou seja, 1,93% da área total. Em outras palavras poderíamos dizer que, no Rio Grande do Norte, os 15 maiores estabelecimentos agropecuários ocupavam, em 1960, uma área quase 10 vezes maior do que a área ocupada pelos 21.115 estabelecimentos de menos de 10 hectares, sendo que a média destes era de cerca de 4 hectares por estabelecimento44. ALCEU RAVANELLO FERRARO 519 No Nordeste, segundo o Censo de 1960 (tabela A-1.2), os 213 (0,02%) estabelecimentos com 10.000 ou mais hectares ocupavam uma área quase duas vezes maior do que a área ocupada pelos 871.889 estabelecimentos com menos de 10 hectares. De fato, enquanto aqueles ocupavam 7,73% da área total, estes ocupavam apenas 4,17. Os 8.009 (0,57%) estabelecimentos com 1.000 ou mais hectares ocupavam quase 1/3 (32,52%) da área total dos 1.407.441 estabelecimentos agropecuários do Nordeste. No Nordeste, segundo indicações dos técnicos, a área mínima para uma propriedade agrícola familiar, em áreas completamente cultiváveis é de 10 hectares, devendo ser mais elevada, se somente parte da área for cultivável ou se o solo estiver muito cansado ou erosionado. Os dados anteriores nos dão, assim, uma ideia do grave problema do minifúndio, ao lado dos imensos latifúndios no Nordeste. “Na minha propriedade posso plantar uma fileira de bananeiras, de meia légua de comprimento”, nos confiou um agricultor. Sua propriedade tinha 12 braças por meia légua. E um agrônomo nos afirmou haver encontrado propriedades de alguns palmos de largura por quilômetros de comprimento. Em outros casos — frequentes — são agricultores que cultivam nesgas de terra, distantes uma da outra. O problema do minifúndio apresenta maior gravidade no Nordeste do que no conjunto do país. Assim, em 1960, os estabelecimentos agropecuários com menos de 10 hectares constituíam 61,95% do total de estabelecimentos no Nordeste, contra 44,77%, no Brasil inteiro. Se completarmos esta visão estática com uma visão mais dinâmica do problema, veremos que este se apre- 520 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal senta ainda mais grave. De 1950 a 1960 os estabelecimentos com menos de 10 hectares passavam de 443% para 44,77% no Brasil e de 53,24% para 61,69% no Nordeste45. Pode-se, por conseguinte, prever que a situação se agravará atada mais nos próximos anos, se não houver uma intervenção através de reforma agrária. É impossível desenvolver a agricultura nordestina com a estrutura agrária atual, uma vez que pelo menos 61,95% dos estabelecimentos não proporcionam condições de manutenção de uma família e, muito menos, incentivos para investimentos em benfeitorias ou para investimentos em benfeitorias ou para emprego de melhores técnicas de produção. Dos dados da tabela A-l.3 conclui-se que o aumento relativo, de 1950 para 1960 dos estabelecimentos com menos de 10 hectares se concentra nos estabelecimentos de menos de 5 hectares e, principalmente, nos de menos de 1 hectare (de 38.438 (4,55%) em 1950 para 115.709 (8 18%) em 1960) e nos de 1 a menos de 2 hectares (95.274 (ll’,28%) em 1950 para 228.817 (16,18%) em 1960). É evidente, portanto, ao lado do processo de concentração verificado principalmente na zona açucareira na zona açucareira, o rápido processo de pulverização por que estão passando as pequenas e médias propriedades rurais no Nordeste. Importa ainda salientar que a maior parte das pessoas ocupadas em agropecuária no Nordeste são assalariadas. De fato, há 1 estabelecimento agropecuário para cada cinco pessoas ocupadas em agropecuária: 1.407.441 estabelecimentos para 6.666.035 pessoas ocupadas em agropecuária em 1960. Ora esse número de estabelecimentos ALCEU RAVANELLO FERRARO 521 talvez não corresponda a mais 1.000.000 de proprietários, de vez que, frequentemente, um mesmo proprietário tem duas e até várias propriedades. Sintetizando, podemos dizer que, de cada 100 famílias que vivem de agropecuária: — 10-13 têm propriedades de 10 a mais hectares. — 20-23 têm propriedades de menos de 10 hectares, devendo, na sua maioria, recorrer a uma complementação através do arrendamento, da meação ou do trabalho “alugado”. — Cerca de 70 constituem a classe dos “sem-terra”, sejam eles a) os “moradores” das fazendas, que cultivam de meia algumas mil covas i/2 a 2 hectares de terra), obrigando-se geralmente, a dar 2 3 e a e 4 dias de “sujeição” na fazenda (trabalhando como assalariados), sejam b) os “sem-terra” que residem nas cidades e povoados do interior e recorrem aos sistemas do arrendamento, da meação ou do trabalho “alugado”. Quanto à utilização das terras ocupadas pelos estabelecimentos agropecuários recenseados em 1960, temos os seguintes dados para o Nordeste- 9,04% de lavouras (1,35% permanentes e 7,69% temporárias) - 29,1% de pastagens; 26,0% de matas; 26,3% de terras não exploradas e 9,58% de terras improdutivas (46). Ao lado das porções da área total cobertas de mata ou pastagens ou consideradas improdutivas temos menos de 1/10 (9,04%) de áreas cultivadas e mais de 1/4 (26 3%) de áreas não exploradas, sendo que estas se encontram, na sua quase totalidade, nas grandes propriedades. 522 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 4. ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR47. O Nordeste, com uma população estimada em 31,32% da população do país no fim de 1961, tinha, em 31-XII1961, 16,84% dos estabelecimentos hospitalares, 15,62% dos leitos e 13,97% dos médicos em atividade nesses estabelecimentos, em todo o pais. O Nordeste, com apenas 1,59 leitos por 1.000 habitantes é a Região pior servida de leitos hospitalares, seguindo-se o Centro-Oeste com 2,15; o Norte com 2,52; o Leste com 3,71 e o Sul com 4,43, sendo a média nacional de 3,19 leitos por 1.000 habitantes. O mesmo se dá do ponto de vista médico. A 31-XII1961, o Nordeste era a Região pior servida de médicos, contando com apenas 1,23 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares para cada 10 000 habitantes, seguindo-se as Regiões Norte com 1,43; Centro-Oeste com 2,43; Leste com 3,17 e Sul com 4,00, sendo a média nacional de 2,76 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares por 10.000 habitantes. As diferenças entre os próprios estados nordestinos são palpáveis. Enquanto Pernambuco apresentava 2,14 médicos (em atividade em estabelecimentos hospitalares) por 10.000 habitantes, os estados do Maranhão e Piauí tinham, respectivamente, 0,59 e 0,61 por 10.000. As capitais nordestinas são muito melhor servidas de médicos do que o interior, tendo as primeiras um índice médio de 6,96 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares por 10.000 habitantes (quase 3 vezes a média nacional: 2,76), contra 0,41 por 10.000, no interior. O índice mínimo se verifica no interior do Mara- ALCEU RAVANELLO FERRARO 523 nhão (0,026 por 10.000). Neste estado, de 148 médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares em 31XII-1961, 142 médicos atendiam os 159.628 habitantes da capital e os 6 restantes atendiam os 2.332.511 habitantes do interior. As capitais nordestinas, com 12,82% da população regional, dispunham de 71,14% dos médicos em atividades em estabelecimentos hospitalares em 31-XII-1961, enquanto que as capitais do Sul, com 19,83% da população regional, contavam com 46,26% dos médicos, e as capitais do país todo, com 18,15% da população nacional, contavam com 55,26% dos médicos em atividade em estabelecimentos hospitalares no Brasil. Podemos, por conseguinte, concluir que o Nordeste, além de ser a Região pior servida de médicos (em atividades em estabelecimentos hospitalares) é a que apresenta maior concentração dos mesmos nas capitais. 5. ALFABETIZAÇÃO Entre as Unidades da Federação, os 9 estados do Nordeste, segundo o Censo de 1950, apresentam os 1° a 8° e 10° índices menos elevados de alfabetização entre a população de 10 anos e mais, compreendidos todos entre 23,65% (Alagoas) e 33,63% (Sergipe) de alfabetizados. O único estado nordestino que, em 1950, contava com 1/3 de alfabetizados entre sua população de 10 anos e mais, era Sergipe (33,63%). 524 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal No outro extremo está a Região Sul com quase 2/3 de alfabetizados entre a população de 10 anos e mais. O estado da Guanabara (84,48%) apresentava o índice de alfabetização mais elevado entre as Unidades da Federação, mas, no seu conjunto, a Região Leste fica abaixo da Região Sul (48). 6. PARTICIPAÇÃO NA VIDA POLÍTICA A tabela A-l. 4 mostra o grau de participação do Nordeste na vida política nacional, comparada com a participação do Sul e do Brasil todo. Em 1960, 21,90% dos brasileiros, 25,30% dos sulistas e 17,18% dos nordestinos eram eleitores. Arredondando, podemos dizer que temos 1 eleitor para cada 4 habitantes no Sul, 1 para cada 5 no Brasil todo e 1 para cada 6 no Nordeste. A percentagem de votantes sobre a respectiva população total foi a seguinte: 22,34% no Sul, 17,74% no Brasil, 11,79% no Nordeste. O Nordeste, com 31,60% da população do país, tinha apenas 24,79% dos eleitores inscritos e 21,00% do total de votantes no Brasil todo. O Sul, com 35,01% da população da Federação, tinha 40,46% dos eleitores e 44,00% dos votantes no Brasil inteiro. Conclui-se, portanto, que, à baixa percentagem de eleitores inscritos no Nordeste (17,18% da população regional), soma-se um menor comparecimento às urnas por parte dos eleitores inscritos. De fato, nas eleições de 1960, apenas 68,61% dos eleitores inscritos no Nordeste ALCEU RAVANELLO FERRARO 525 compareceram às urnas, ao passo que, no Sul, 88,28% dos eleitores votaram. Acrescente-se ainda que, embora com tendência a enfraquecer-se, o poder de controle do voto por parte do “coronel” é um fato na política regional como o são também o “cabo eleitoral”, o “curral eleitoral’, o “cabresto” a compra de votos e a fraude eleitoral. Embora estes fatos não se verifiquem somente no Nordeste, o próprio sistema agrário, com o usineiro e o “coronel” todo-poderosos, favorece e mantém esta situação. Concluindo, podemos dizer que a maioria dos nordestinos estão à margem da vida política nacional, ou 1) porque, sendo analfabetos, não têm direito ao voto, ou 2) porque muitos dos que votam não têm assegurada a liberdade do voto. 7. POLÍTICA FEDERAL NO NORDESTE 1) A política nacional de “combate contra as secas” pode ser considerada como a primeira fase da ação do Governo com relação ao Nordeste. Já a partir de 1877 havia tendência a encarar as Secas do Nordeste como um problema nacional. Em 1909 era constituída a Inspetoria de Obras Contra as Secas, atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Teve como metas principais a construção de açudes e rodovias no Nordeste. A Constituição de 1936 reservava um mínimo de 4% da renda tributária da Federação para fazer frente aos 526 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal efeitos da seca. A Constituição de 1937 omitiu este parágrafo. A de 1946 voltou a admitir o princípio, estabelecendo uma quantia mínima de 3% da renda tributária. A Lei n° 1.004, de dezembro de 1949, regulamentou o princípio constitucional,’ estabelecendo o “fundo especial contra as secas”, reservando-lhe, porém, somente 1% da renda tributária arrecadada no exercício anterior (49). 2) A CHESF. A 3 de outubro de 1945 o presidente Getúlio Vargas assinava os decretos n.° 8.031 e n.° 19.706, que determinavam a construção de uma usina elétrica, utilizando a cachoeira de Paulo Afonso no Rio São Francisco, em território bahiano. Em 1948 Eurico Gaspar Dutra decidiu efetivar a obra planejada por Vargas. Hoje a energia de Paulo Afonso alimenta 7 capitais nordestinas (Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal e Fortaleza). Várias cidades do interior já recebem energia de Paulo Afonso. Assim a CHESF (Companhia Hidro-Elétrica de São Francisco) veio abrir novas possibilidades industriais no Nordeste. Técnicos afirmam que as águas do Rio São Francisco poderão produzir 7.700.000 quilowatts, quando todas as suas potencialidades tiverem sido aproveitadas(os). 3) O BNB. A 19 de julho de 1952 foi criado o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), que iniciou suas atividades em 1954. Foi o início de uma nova orientação em face dos problemas do Nordeste: não mais um programa defensivo contra as secas, mas um programa orientado para o desenvolvimento da Região. O BNB desde a sua instalação, vem promovendo estudos sobre os problemas nordestinos. Isto lhe foi possível graças ao ETENE (Escritório Técnico de Estudos Econômi- ALCEU RAVANELLO FERRARO 527 cos do Nordeste), que, em virtude da própria lei que criou o Banco, integra o BNB, e à assistência das Nações Unidas. Das sugestões do BNB e do técnico das Nações Unidas, Stefan H. Robock, surgiu, em dezembro de 1959, o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (51). Em discurso pronunciado no Itamaraty em 1955 (52), o Dr. Olavo João Galvão, então Diretor do BNB, observava a falta de um estudo global do Nordeste, capaz de servir de base para uma política de desenvolvimento da Região. O mesmo BNB tem procurado cobrir esta lacuna através de uma série de estudos de alto valor científico e prático, publicados em seus Relatórios Anuais (53). O orador salientava ainda outro problema: a falta de coordenação dos órgãos Federais atuantes no Nordeste. 4) A SUDENE. Após o I Encontro dos Bispos do Nordeste em Campina Grande, de 21 a 26 de maio de 1956, o Presidente Juscelino Kubitschek lançou a Operação Nordeste com o objetivo de promover o planejamento regional e a articulação e entrosamento dos diversos órgãos federais e particulares atuantes no Nordeste. A 20 de fevereiro de 1959 foi criado o CODENO (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste), com a finalidade de coordenar e executar alguns projetos de ação imediata. A Lei no 3.692 de dezembro de 1959, extinguiu o CODENO e instituiu a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) A SUDENE foi o fruto de um longo processo, do Império aos nossos dias. Contribuíram para isso homens de Governo técnicos, a opinião pública e, de maneira significante, o Episcopado Nordestino, através dos I e II Encontros dos Bispos do Nordeste (1956 e 1959). 528 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal A SUDENE é o órgão de planificação e controle dos investimentos no Nordeste. Em 1960 apareceu o primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento do Nordeste, o qual somente em dezembro de 1961 conseguiu a aprovação do Congresso. Em 1962 apareceu o Segundo Plano Diretor de Desenvolvimento do Nordeste, não mais para um ano, mas para um período de 3 anos (1963/65). Nos últimos anos surgiram no Nordeste vários órgãos de âmbito estadual, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos respectivos estados. Concluindo, podemos dizer que o “aproach” do Nordeste em termos de desenvolvimento data do decênio dos anos 50 e se concretizou numa política de desenvolvimento regional a partir de 1960, com a atuação da SUDENE. ALCEU RAVANELLO FERRARO 529 NOTAS AO APÊNDICE 1 1. Veja Mapa nº 1. 2. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963 3. Id.,op cit 4. Para este parágrafo servimo-nos particularmente de: Manoel Correia de Andrade, A terra e o Homem no Nordeste, Ed. Brasiliense, IBGE, geografia do Brasil – Grandes Regiões Meio-Norte e Nordeste, Rio, 1962; Gilberto Freyre, Nordeste, José Olimpio, Rio, 1961 (3a ed.); Manoel Diégues Junior, “ Aspectos da sociedade nordestina” síntese Política, Econômica e Social, 17(1963)87-91. 5. Gilberto Freyre, op. cit., p. 115. 6. Manoel Diégues Júnior, op. cit., p. 85. 7. Gilberto Freyre, op. cit., p.66. 8. Id., p. 64. 9. Id., p. 66. 10. Id., p. 65. 11. Id., p. 55. 12. Id., p. 160. 13. IBGE, Grandes Regiões..., op. cit., p. 113. 14. Manoel Diégues Júnior, op. cit., pp. 86-87. 15. Id., p. 87. 16. Id., p.88. 17. Manoel Correia de Andrade, op. cit., p. 160. 18. IBGE. Anuário Estatístico do Brasil, 1962 e 1963. 19. IBGE. Anuário Estatístico do Brasil, 1963. 20. Id., ib. 21. ONU, Demographic wearbook, 1955. 22. USAID, statistical Tables Relating to Northeast Brazil. Rio-Recife, 1963, Tabela 17. 23. NATIONS INIES, causes et conseguences de l’évolution démographique, Nations Unies. New York, 1953. 24. USAID, op. Cit., Tabela 6. 25. NATIONS UNIES, op. cit., p. 61. 26. Id., ib. 27. IBGE, Contribuições para o estudo da Demografia do Brasil, p. 65. 28. Giorgio Mortara, “A fecundidade da mulher no Brasil segundo as Unidades da Federação”, revista brasileira de Estatística, janeiro/junho de 1963, tabela à p. 39. 29. Presidência da República, Plano Trienal de desenvolvimento Economico e social, 1963-1965 – (síntese), Dezembro de 1962, p.84. 30. Id., p. 86. 31. Id., p. 86. 32. SUDENE, The Brazilian Northeast – SUDENE and its First Guiding plan, Recife, 1962, p. 2. 33. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963. 34. Presidência da República, op. cit. 35. SUDENE .Estatísticas Nordestinas, Recife p. 30. 36. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963. 37. Id., p. 18. 38. Id., p. 25. 530 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 39. SUDENE, Estatísticas Nordestinas, Recife, p. 18. 40. Id., p. 18. 41. Id., p. 25. 42. Id., p. 27. 43. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963 44. Id., ib. 45. Id., ib. 46. SUDENE, Boletim Estatístico, Vol. I, nº 11 (1963) 381. 47. Percentagem e indices calculados, tendo como base os dados fornecidos pelo IBGE, Anuário Estatístico do Brasil, 1963. 48. IBGE, Anuário Estatístico do Brasil,1956. 49. Fernando de Oliveira Mota, “A SUDENE e o planejamento regional”, Sintese política, Econômica e social, 17 (1963) 33-48. 50. Apolonio Sales, A Cachoeira de Paulo Afonso e o Nordeste, Sintese Política, Economica e Social, 17(1963) 49-54. 51. Em 1949 o Grupo de trabalho para o desenvolvimento do Nordeste publicava uma Política de desenvolvimento Economico para o Nordeste, imprensa Nacional, Rio. 52. Olavo João Galvão. O desenvolvimento Economico do Nordeste- Ausencia de coordenação Regional, Rio, Julho de 1955. 53. Desde 1955 o BNB vem consagrado boa parte de seus relatórios de Exercício (anuais) e estudos sobre a economia nordestina. Estes figuram entre os melhores estudos sobre a região. ALCEU RAVANELLO FERRARO 531 APÊNDICE II ERRO PADRÃO E VIÉS Sobre as fórmulas e, de modo geral, sobre o método de amostragem (replicated subsampling) veja: 1) W. Edwards Deming, Sample Design in Business Research, John Wiley and Sons, New York, 1960, 517 p e 2) W. J. Mehok, “An Introduction to Replicated Subsampling”, Social Compass, X/6 (1963) 525-535). 1. DETERMINAÇÃO DO TAMANHO DA AMOSTRA N = 929: unidades elementares (famílias), cuja lista serviu de base para a formação da amostra. n = número de unidades elementares incluídas na amostra. op = 0,02: percentual de erro padrão por unidade, que, multiplicado por 2, dará os limites de erro que não deverão ser ultrapassados na pesquisa. o2 (0,50) (0,50): variança da distribuição binomial. Temos assim, segundo a fórmula acima: ALCEU RAVANELLO FERRARO 533 N/n = 939 (0,02/0,50)2 + 1 = 2,502 e, arredondando = 2,5. Por conseguinte, n (número de unidades elementares a serem incluídas na amostra) = 939/2,5 = 375,6 e, arredondando, = 376. 2. ESTIMATIVAS DE VIÉS E ERRO PADRÃO Nomenclatura: F = frequência de determinada característica (tipo de resposta) na amostra, isto é, nas 10 subamostras conjuntamente. f = frequência de determinada característica em cada uma das 10 subamostras. Mf = média das frequências nas 10 subamostras. F max = frequência máxima nas subamostras. Fmin = frequência mínima nas subamostras. of = erro padrão. 2 of = 2 vezes o erro padrão. M. F. = multiplicador finito. K = número de subamostras (k = 10, no caso). 534 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal O multiplicador finito a ser empregado a seguir nos calculus de erro padrão apresenta três valores distintos. a) Em perguntas respondidas somente pelos chefes, b) Em perguntas respondidas pelos chefes e por 50% dos outros membros de 14 e mais anos, c) Em perguntas respondidas pelos chefes e por 50% dos outros membros de 18 e mais anos, O erro padrão foi calculado para 13 perguntas do questionário A, tomadas ao acaso, num total de 41 tipos de respostas (características). A distribuição de frequência dos 41 valores correspondentes, assim obtidos, evidencia que a margem de erro efetiva na pesquisa tende a concentrar-se em tômo de + - 2,500 a 2,999%, a um nível, portanto, bem mais baixo do que os limites estabelecidos na formação da amostra (+ - 4%). Quanto ao viés (erro imputável não a oscilações da amostragem, mas a outras eventuais causas), os valores calculados geralmente não superam os dois décimos de 1%. Seguem, nas páginas seguintes: 1) os 41 valores do erro padrão e do viés, obtidos com base nos dados da pesquisa e 2) a distribuição de frequência dos 41 valores de 2 vezes o erro padrão. ALCEU RAVANELLO FERRARO 535 536 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 537 APÊNDICE III DOCUMENTOS Transcrevemos neste Apêndice alguns documentos aos quais já nos referimos no texto. A. DOCUMENTOS RELACIONADOS COM A CAMPANHA DE POLITIZAÇÃO A.1 — Amigo, juntos nós pensamos...: extraído da 4 página do 1o Caderno de Politização, do qual foram distribuídos milhares, em 1962, para serem lidos, estudados e discutidos. O estilo direto, incisivo, claro, e os caracteres grandes tornam o texto legível e inteligível também ao “matuto” semi-alfabetizado, mesmo quando curto de vistas! A.2 — Avante, homem do campo: mensagem de politização. traduzida em versos, pela monitora Maria Bezerra (Boa Vista — Cêrro Corá), para a sua comunidade. A.3 — Circular da Província Eclesiástica do Rio Grande do Norte: orientação aos católicos em face das eleições o 538 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 539 de 1962, que se avizinhavam. Traz a assinatura dos três bispos do estado. A.4 – 10 Conselhos práticos para os cristãos se orientarem nas eleições: “suelto”, baseado na Circular e distribuído aos milhares pelo interior. A.5 — Voto não se vende, consciência não se compra: “suelto”, também fundado na Circular, mais direto, mais incisivo, legível à distância, distribuído e afixado pelo interior. A.6 — Migrante Nacional: “suelto” lançado no Dia do Migrante. DOCUMENTO A1 AMIGO, JUNTOS NÓS PENSAMOS: nos salários que assassinam crianças nos barrações que furtam o suor nas fábricas que pedem matérias primas na nossa economia que precisa se equilibrar nas propriedades imensas sem aproveitamento nas pequenas demais, que não dão para a gente viver nas áreas enormes sem dono nos preços injustos nos trustes que engolem tudo. Na terra de quem muito pedimos e nada damos... Pensamos, enfim, na NOSSA AGRICULTURA Agricultura de um país RICO e IMENSO Agricultura do MEU e SEU Brasil Agricultura que exige reforma 540 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal REFORMA que exige HOMEM Homens sérios e honestos escolhidos por VOCÊ POR SEU VOTO REFORMA que, sobretudo: necessita de um POVO que a queira POVO que a exija Povo que é feito por cada um de NÓS POVO que é VOCÊ! DOCUMENTO A.2 Avante, homem do campo Para a luta! Alerta! Alerta! Queremos Reforma Agrária E Escola, porque desperta! Trabalhadores rurais, Precisamos de Sindicatos, De Escola Radiofônica, Lutar, ser unidos e libertos. Com Sindicato rural Camponês tem liberdade: Fica livre da escravidão, Marcha para a libertação. O Sindicato é arma de luta, A Escola é luz que avulta Por justiça, paz e amor. Alerta, gente, alerta! ALCEU RAVANELLO FERRARO 541 Camponês, o Sindicato É esperança do País. A Escola Radiofônica Traz luz, bom senso diz. Nesta minha poesia Digo ao povo em geral: Viva a Escola Radiofônica! Viva o Sindicato Rural! DOCUMENTO A.3 CIRCULAR DA PROVÍNCIA ECLESIÁSTICA DO RIO GRANDE DO NORTE Fora e acima da política partidária, a Igreja cumpre o dever de alertar seus filhos eleitores, sobre a responsabilidade que tem diante de Deus, na escola de dirigentes capazes e dignos. Constatamos que cresce o desejo de mudança das atuais estruturas sociais, dentro do exposto nas Encíclicas Pontíficias. Por outro lado sistema de escolha de candidatos e os meios de procurarem votos continuam infelizmente, sem a necessária modificação. Nem sempre o bem comum fica acima dos interesses de grupos e, o que é mais grave, aproveitando-se da ignorância, boa fé e generosidade dos eleitores, usa-se de meios condenáveis para explorá-los e orientá-los indevidamente. No meio das falhas da atual lei eleitoral procurem os eleitores cumprir da melhor maneira, seu dever nas eleições que se aproximam. Para isso damos algumas normas: 542 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal 1 — Condenamos veementemente a influência dos grupos econômicos e do próprio dinheiro na escolha de candidatos e na aquisição de votos Os que assim fazem respondem, diante de Deus, pelo mal social que provocam. Lembramos que não se pode vender voto Amizade se paga com amizade; dinheiro com dinheiro; favor com favor. Mas nada disso se retribui com voto. Este deve ser dado com consciência e por ele responderemos diante de Deus. 2 — Insistimos que votem nos melhores entre os bons. Assim não podemos sufragar, às urnas: a) — Os candidatos comunistas ou outros sobre os quais pesam prudentes suspeitas de serem comunistas ou de tendências marxistas; b) — Os que defendem princípios errados de capitalismo liberal, e, por atos, tenham-se rebelado contra a adoção dos princípios da dou. trina social da Igreja. 3 — Lembramos que católico não é aquele que faz favores à Igreja que vai apenas à Missa ou fala em Deus. Merece confiança do eleitorado o que demonstra seu cristianismo por sua vida e não somente pela participação de atos isolados. 4 — Devemos tomar em consideração também a eficiência do candidato. Se ele possui capacidade de fazer algum bem à coletividade. 5 — Salva a exceção concedida pela Diocese de Caicó, continuamos frontalmente contrários à inclusão de membros do clero como candidatos às eleições ou sua participação em campanhas políticas. Queremos lembrar aos católicos que dirigem partidos ou que têm influência nos mesmos sua grave responsabi- ALCEU RAVANELLO FERRARO 543 lidade na escolha de candidatos a serem apresentados aos eleitores. A política está sujeita à moral: não é uma atividade estranha às relações com a Igreja. Condenamos a inclusão de elementos comunistas, como também os que dificultam a justiça social e a aplicação da Doutrina Social da Igreja. Ê necessário que fique bem claro não ser o marxismo o único mal O capitalismo liberal com uma mentalidade burguesa e egoísta é tão prejudicial à Igreja e à sociedade como o comunismo. Queremos também alertar os dirigentes e dirigidos, políticos de todos os partiria para que não conturbem ainda mais a vida da família norterio-grandense através de ataques pessoais fazendo, de uma demonstração democrática, um triste espetáculo de ataques, o que mesmo em um país pagão seria deprimente. Precisamos de paz para o Rio Grande do Norte. É esta a nossa missão de Pastores. Ensinamos com a consciência tranquila por termos falado com energia, clareza e em momento oportuno. A todos os sacerdotes e leigos desta Província Eclesiástica concedemos bênção paternal. a) — DOM EUGÊNIO DE ARAÚJO SALES, Administrador Apostólico de Natal, — DOM MANUEL TAVARES DE ARAÚJO, Bispo de Caicó, — DOM GENTIL DINIZ BARRETO, Bispo de Mossoró. 544 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal DOCUMENTO A.4 10 Conselhos Práticos para os Cristãos se Orientarem nas Eleições 1º — É preciso mudar o estado de injustiça social e de falta de segurança em que vivem milhões de Brasileiros, nas cidades e nos campos. 2º — Só se pode conseguir isso pelo voto em pessoas de confiança, e que não enganem mais o povo com promessas, e que demonstrem seu cristianismo pela vida ho-nesta que têm. 3º — Está condenado pela carta circular dos srs. Bispos, o velho costume de se conseguir o voto dos pobres a troco de favores, de dinheiro ou por ameaças. Isso é um crime contra a Lei do nosso País e um pecado contra Deus. Chama-se suborno da consciência alheia e opressão aos humildes. 4º — A administração pública não é propriedade particular de ninguém, nem é herança de nenhuma família, e nenhum chefe é dono de município. Qualquer cidadão honesto pode concorrer às eleições. Isso se chama democracia, isto é, o poder do povo. 5º — O cristão só tem compromisso com a verdade e o bem. Não vota por partido nem por simpatia. Vota nos melhores, que garantem o futuro cristão do nosso Brasil. Você está obrigado a isso. Se você votar mal, vai fazer mal ao Brasil e à nossa religião. 6º — Não há grande nem pequeno perante a Lei. Seu voto vale tanto como o voto do Bispo ou do Governador. Seu voto é soberano. ALCEU RAVANELLO FERRARO 545 7º — O voto é secreto. Se você não disser a ninguém, ninguém saberá com quem você votou. A Lei do País garante o segredo do seu voto, e o sindicato defende também. 8º — Se você quiser ajudar a melhorar, vote nos melhores. Chegou a hora. Não marche mais na conversa daqueles que só vão à sua casa em tempo de eleição. 9º — Se você deve dinheiro ou favor aos homens da política pague-lhes na mesma moeda: dinheiro se paga com dinheiro, e favor se paga com favor. Não pague nada com seu voto, porque o voto é a arma do cidadão. O cidadão que vende sua arma é um traidor, vendendo sua consciência. 10º — Está sofrendo porque quer, votando só para meia dúzia se engrandecer. Mude agora. Seja um homem livre, votando nos melhores, garantindo o progresso da nossa Religião. Use da consciência. O SEU VOTO é a sua LIBERDADE; dele depende um BRASIL LIVRE ou um BRASIL ESCRAVO. O BRASIL precisa de seu VOTO CONSCIENTE para CRESCER e não ser explorado. Compromissos com candidatos? O CRISTÃO SÓ TEM UM COMPROMISSO: COMPROMISSO COM A VERDADE. Pense antes de votar. VOTO É COISA SAGRADA. Portanto lembre-se: assim como do inverno dependem boas colheitas, do seu VOTO depende o BRASIL DE AMANHÃ. CAMPONÊS precisamos de uma LEI FORTE e poderosa. LEI que MODIFIQUE a nossa SITUAÇÃO. PRECISAMOS DE REFORMA AGRÁRIA CAMPONÊS QUE VENDE SEU VOTO, VENDE A REFORMA AGRÁRIA. O CAMPONÊS CONSCIENTE SABE QUE SEU VOTO É LIBERDADE. SABE QUE VOTO NÃO SE VENDE E CONSCIÊNCIA NÃO SE COMPRA. VOCÊ É RESPONSÁVEL PELO QUE HOUVER D’AGORA POR DIANTE DOCUMENTO A.6 DOCUMENTO A.5 VOTO NÃO SE VENDE, CONSCIÊNCIA NÃO SE COMPRA Companheiro Trabalhador Rural! De seu voto, depende o seu futuro e o futuro do Brasil. Vote em políticos que pensem, realmente, nos problemas do campo. 546 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal HERÓICO PEREGRINO CONSTRUTOR DO PROGRESSO BRADO HUMANO E JUSTO CONTRA A FOME E A MISÉRIA SANGUE VIVO QUE IRMANA NORTE E SUL, MIGRANTE NACIONAL 2 DE DEZEMBRO — É O SEU DIA E é este pioneiro de um Brasil que surge É este semeador de Desenvolvimento Pioneiro e semeador que nada colhe Que GRITA por você que é Autoridade ALCEU RAVANELLO FERRARO 547 por você que é Estudante por você que é Operário por você que compreendeu a mensagem do Cristo. Compreendeu e vê nestes retirantes de nossas estradas. para a entrega solene da ambulância num domingo após a missa de 11 horas, poucas semanas antes das eleições de outubro de 1962. A pedido do vigário, omitimos seu nome, bem como o do candidato, do município e da Maternidade. CRISTOS vivos a CLAMAR DOCUMENTO B.1 Por viagens que lhes ofereçam bem-estar digno de homens Por serviços que os orientem na saída e localização N. N., 6 de agosto de 1962. de trabalho Serviços que os integrem, de fato, no lugar onde viver Serviços que deles afastem o fantasma do desemprego, da desvalorização pessoal Serviços que os façam sentir-se elementos VIVOS, ÚTEIS, AMADOS: SERVIÇOS ENFIM, que lhes tragam JUSTIÇA. SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA RURAL Setor de Migração do Sar Pça. Pio X, 335 — Natal — RN B. O CASO DA AMBULÂNCIA O caso já foi comentado no Capítulo XII. O Documento B.1 é a carta dirigida pelo vigário, Diretor da Maternidade, ao candidato, prevenindo-o de que de modo algum aceitaria a ambulância que, segundo soubera, lhe seria entregue num gesto eminentemente eleitoreiro. No Documento B. 2 o vigário se justifica, perante o povo, pela recusa, quando do comparecimento do dito candidato, acompanhado de uma comitiva de políticos locais, 548 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Prezado amigo N.N. Cordiais saudações. Estou seguramente informado de que o sr. virá, qualquer dia, oferecer uma ambulância à Maternidade N.N, da qual sou Diretor. Dada a inoportunidade do oferecimento, em vista de um ano eminente eleitoreiro, quero justificar minha formal recusa, esclarecendo-lhe o que se segue. Há vários anos, esta Arquidiocese, numa espetacular campanha de educação e promoção do homem do campo, decidiu enfrentar a realidade dos 70% de analfabetos, doentes e sem proteção legal, como único meio de escaparmos às soluções violentas da esquerda ou da direita. Esta campanha, já conhecida no estrangeiro como “Movimento de Natal”, visa principalmente a promoção humana e espiritual do homem do campo, tornando-o capaz de mudar as atuais estruturas socioeconômicas injustas, decorrentes do liberalismo capitalista dominante. Todo esse Movimento é vazado na mais pura doutrina social da Igreja, que abençoa o associativismo — cooperativas e sindicatos — como meios poderosos de defesa contra a opressão política ou econômica, como também ALCEU RAVANELLO FERRARO 549 contra o favoritismo paternalista, deseducador e humilhante, que infelicita nossa Pátria, há tanto tempo, e que é largamente exercido às vésperas dos pleitos. Claro que essa educação vai prejudicar muita gente que não quer largar o cabresto, que não quer sindicato rural nem nada que esteja fora do alcance dos interesses particulares ou de grupos e, certamente, muitos se constituirão inimigos da Igreja. Pouco importa. Os 70% dos habitantes do campo, quase marginais, serão educados pela Mãe e Mestra que tem garantia divina de assistência perene, e que só se prejudica quando seus ministros põem mais confiança no dinheiro do que em Deus. Depois de tudo isso, meu caro N., o Sr. me acha com cara de receber um favor de repercussão política na sua campanha eleitoral, no momento em que nós divulgamos, por todos os recantos do Rio Grande do Norte, que “Consciência não se vende” e “Voto não se compra”? Mais do que de ambulância, nós precisamos — e os Bispos pediram — das reformas de base, que o Parlamento conservador não quis votar, este ano, para fazer o jogo macabro das eleições por dinheiro e se manter mais 4 anos na omissão suicida. Continuo seu amigo, mas, antes, sou Pastor e Educador do rebanho que Deus me confiou. Não serei mercenário. Não sou político nem faço campanha, mas vou votar declaradamente em Dr. N., porque é necessário mudar e me parece o melhor. Todo homem livre faz assim. Amo. Obr. (Assinatura do vigário). 550 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal DOCUMENTO B .2 I PARTE A posição da Igreja no Brasil, na hora presente, é de vanguarda. O nosso País chegou à beira do abismo, da convulsão social, mas os responsáveis pela nação não acreditam no perigo iminente e continuam a agravar a situação. Só os ensinamentos da doutrina social e a força moral da Igreja talvez nos possam salvar. Os Bispos do Brasil mandaram que os vigários organizassem o povo católico para uma renovação verdadeira em todos os sentidos. II PARTE Qual é a causa de toda essa angústia nacional? Será a inflação, o aumento de salário, a industrialização, as secas? Nada disso. A grande causa, a grande chaga, é o sistema capitalista egoista que domina o país e se agravou horrivelmente nesses últimos 50 anos. Não temos leis para o campo. 70% estão desassistidos. As leis do Banco não permitem maior circulação das riquezas que se concentram nas mãos dos cada vez mais ricos, que, por sua vez, fazem pressão e ameaças aos mais pobres, pelo poder do dinheiro. Os brasileiros não foram educados para governar e continuam governando como nossos avós, que foram donos de escravos. Até hoje só mudou nisso: não compram mais escravos na África. Mas a maneira de domínio sobre as pessoas continua do mesmo jeito nas mãos dos que têm dinheiro ou mandam, na política e se livram de ALCEU RAVANELLO FERRARO 551 todos os crimes que cometem. Criou-se, assim, a classe dos privilegiados que não chegam a 30% dos brasileiros. Eis aqui, meus amigos, a grande chaga, o grande sofrimento do País, a causa do desassossêgo da Nação: o resto dos brasileiros, mais da metade da população (70%), vivem em condições de desespero, em regime de fome, doentes, analfabetos. 9 milhões de crianças do Brasil não têm escola para entrar, e grande parte dos professores é de afilhados dos chefes, que não sabe ensinar. Neste País, a desgraça cia opressão chegou ao ponto de se anular os direitos individuais e intransferíveis da pessoa humana, feita à imagem e semelhança de Deus. De modo que o brasileiro humilde que não for adulador ou escravo, terá de andar com os cacarecos na cabeça, sem pouso certo. No campo, muitos patrões se consideram não só donos da terra, mas também donos dos próprios moradores, e até da honra das suas filhas, e os que foram às vezes processados nunca ficaram na cadeia. Compram o algodão na folha ou o feijão na época barata a 180,00 e vendem aos mesmos em serviço a 400,00. Para frisar mais o crime que está praticando o capitalismo egoista, tomaram conta de todas as cooperativas que eram uma tentativa para melhorar a circulação do dinheiro até aos mais pobres. No Nordeste existem 602 cooperativas, mas só funcionam 84. As outras fecharam ou venderam farinha aos sócios, ou ficaram para reemprestar dinheiro do Banco no ano das eleições. Cometem toda a sorte de injustiças, fiados no dinheiro, porque o dinheiro pode tudo. E no ano das eleições nós assistimos o triste espetáculo da procura de eleitores e votos a troco de extração de dentes, de consultas, de fa- 552 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal vores, de dinheiro, e de ameaças, num verdadeiro desassossêgo das famílias humildes, só para eles se manterem nas mesmas posições de senhores todo-poderosos. É contra tudo isso que a Igreja se levantou de Norte a Sul, conclamando seus filhos para se unirem e promoverem o bem estar da Nação, espremendo esse tumor que é o capitalismo egoista ou opressão da pessoa humana. Os padres não podem mais ficar com esse processo de democracia tirana porque é um pecado que brada aos céus. Por isso minha atitude é muito clara e desgosta a muitos. Nada inventei da minha cabeça, e todo aquele que ouve a voz da Igreja deixa a paixão partidária e ouve a voz do pastor. Faço questão de todo mundo saber que o vigário de N. N. é pastor e educador do rebanho que Deus lhe deu e não se humilha a nenhum grande da terra, por dinheiro ou favor. Enquanto vida tiver, gritarei contra as injustiças e as misérias. Só tenho compromissos com Nosso Senhor. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para mudar essa situação, pela educação e pela orientação. Farei tudo pelo sindicato rural e pela cooperativa do Centro. Um dia, o povo terá dinheiro, sem precisar tomar a bênção aos grandes e sem vender sua consciência nas eleições. Fui encarregado pelos Srs. Bispos para orientar os outros padres, desde o Maranhão até a Bahia. Logo que for possível terei um padre para me ajudar aqui. Então, terei mais tempo para ajudar a organizar os católicos numa grande força de progresso, de paz, de justiça, de respeito à pessoa do próximo, e de amor fraterno. Só se conseguirá isso, através da educação, do associativismo, e elegendo os melhores, sem cor partidária. ALCEU RAVANELLO FERRARO 553 Por isso é que os Srs. Bispos mandaram os padres orientar agora. Vejam a circular dos 3 Bispos do Rio Grande do Norte e os 10 conselhos práticos. ANEXO I QUESTIONÁRIOS A IGREJA E O DESENVOLVIMENTO DE COMUNIDADES RURAIS Questionário aplicado a 365 chefes de família em 8 comunidades do interior. 554 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 555 NORMAS PARA PREENCHIMENTO E INTERPRETAÇÃO DA FICHA FAMILIAR. 556 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 557 558 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 559 560 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 561 562 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 563 564 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 565 566 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 567 ANEXO II TABELAS 568 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 569 570 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 571 572 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 573 574 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 575 576 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 577 578 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 579 580 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 581 582 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 583 584 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 585 586 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 587 588 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 589 590 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 591 592 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 593 594 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 595 596 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 597 598 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 599 600 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 601 602 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 603 ANEXO III GRÁFICOS E MAPAS ALCEU RAVANELLO FERRARO 605 606 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 607 608 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 609 610 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 611 612 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 613 ANEXO IV BIBLIOGRAFIA A No que se relaciona com o MOVIMENTO DE NATAL, seria demasiado longo citar todos os documentos utilizados neste trabalho. Além disto, trata-se, geralmente, de documentos inéditos. De modo geralmente, fizemos uso do diário A Ordem, especialmente com referência aos anos de 1940 a 1951, e da documentação dos arquivos da Juventude Masculina Católica (J.M.C.), da Juventude Feminina Católica (J.F.C.), do Secretariado Arquidiocesano de Pastoral. No capítulo XII fizemos abundante uso da documentação dos arquivos particulares de D. Eugênio (sermões, palestras, alocuções, discursos, conferências), referente aos anos de 1944 a 1964, material quase todo inédito. B ANDRADE, Manoel Correia de - A Terra e o Homem no Nordeste, Ed. Brasiliense, 1963. BELTRÃO, Pedro Calderan – Sociologia do Desenvolvimento, Ed. Globo, Porto Alegre, 1965. 614 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 615 BEZERRA, Safira – Pela Valorização do Meio Rural, Natal, março de 1959 (Trabalho de Conclusão de Curso, datilografado, Biblioteca da Escola de Serviço Social). CALAZANS, Maria Julieta Costa – Sindicato, SESI e Serviço Social, Natal, 1959 (Trabalho de Conclusão de Curso, datilografado, Biblioteca da escola de Serviço Social). CALVEZ, Jean Yves- La Pensée de Karl Marx, Èditions du Seuil, Paris, 1956. CLOIN, Tiago G. – “O Movimento de Natal”, Revista da conferência dos religiosos do Brasil, julho de 1962. COLLARD, Alberto – NEBRA – O Nordeste na Encruzilhada dos Caminhos, (tradução de “N.E.BRA – Au NordEst brésilien”), Edições “DIMANCHE”, Mons, 1964. CÚRIA METROPOLITANA – Anuário Eclesiástico da Arquidiocese de Natal, Natal, 1960. DANTAS, D. Marcolino E. – “Juventude Feminina católica”, SURSUM, 1946. DEMING, W. Edwards – Sample design in Business Research, John Wiley and Sons, N. York, 1960. DIÉGUES JUNIOR, Manoel – “Aspectos da sociedade nordestina”, Síntese Política, Econômica e Social, 17 (1963) 87-91. FREIRE, Gilberto – Nordeste, José Olímpio, Rio, 1961, 3ª Ed. 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SUDENE – The Brazilian Northeast – SUDENE and its First Guiding Plan, Recife, 1962. – Estatísticas Nordestinas, Recife. – Boletim Estatístico, Vol. I, nº 11, 1963. TAWNEY, R. H. – Religion and the Rise of Capitalism, Londres, 1926. USAID – Statistical Tables Relating to Nordheast Brazil, RioRecife, 1963. XAVIER, Célia Vale – O treinamento de Líderes Voluntários nos Programas de Valorização do Meio Rural, Natal, novembro de 1958 (Trabalho de Conclusão de Curso, datilografado, Biblioteca da Escola de Serviço Social). WEBER, Max – The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, G. Allen adn Unwin, Londres, 6a edução, 1962. – The sociology of Religion, Beacon Press, Boston, 1963, 304 pp. 618 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ANEXO V - ORELHAS, EDIÇÃO 1968 IGREJA E DESENVOLVIMENTO Está em plena voga a sociologia do desenvolvimento. Nem é para menos, quando o mundo inteiro precisa enfrentar o desafio do subdesenvolvimento. No Rio Grande do Norte, muito antes do Vaticano II e da “Populorum Progressio”, a Igreja aceitou, dentro de suas limitações, mas com boa dose daquela “imaginação criadora”, que as recentes conclusões da Conferência do Episcopado Latino Americano, em Medellin, recomendam vivamente, para uma ação verdadeiramente transformadora. O padre Alceu Ferrari, hoje vigário da Catedral de Frederico Westphalem, Rio Grande do Sul, cursava o Instituto de Ciências Sociais — Seção de Sociologia, da Universidade Gregoriana quando, em Roma, ouviu, em 1963, uma palestra do então Administrador Apostólico de Natal, d. Eugênio de Araújo Sales, sobre as atividades temporais que vinham sendo desenvolvidas na distante e pequena Arquidiocese brasileira, desde à segunda metade da era de 40 e que se estavam tornando mundialmente conhecidas sob o nome de “Movimento de Natal”. ALCEU RAVANELLO FERRARO 619 Interessado justamente na problemática do mundo subdesenvolvido, em suas relações com a posição dos grupos religiosos, nasceu no padre Ferrari o desejo e depois a firme decisão de tomar essa área do Nordeste brasileiro, região tradicional e tradicionalmente católica, que o seu trabalho analisa tão bem, para campo de suas pesquisas e elaboração da tese doutoral. Tivemo-lo no Rio Grande do Norte cerca de três anos, de abril de 1964 a dezembro de 1967, entregue a acurados e criteriosos estudos e observações, de que é resultado este livro — IGREJA E DESENVOLVIMENTO. Foi sorte nossa que o sociólogo dos pampas viesse até nós, aqui demorasse, percorresse grande parte do interior do Estado, em suas pesquisas de campo, entrevistasse pessoas de todas as condições sociais, recolhesse farto material. Pois nos deu um trabalho magnífico, com ótima discussão teórica prévia, formulou hipóteses bastante claras, emprestou grande seriedade à verificação empírica e à utilização de provas estatísticas. Esta série de qualificativos para o seu trabalho figurado no próprio texto do julgamento realizado pelos eminentes professores da gregoriana. E um dos seus mestres, o renomado sociólogo Émile Pin, considera-o bom trabalho de sociologia experimental, sólido em suas premissas teóricas, exato em seu método experimental, preciso nas teorias utilizadas e modesto, porém seguro, em suas conclusões. Até para a história religiosa do Brasil e particularmente do Nordeste o estudo vai tornar-se indispensável, pois retrata ao vivo, com farta documentação, toda uma experiência pré-conciliar que viria, em suas linhas gerais, encontrar plena retificação nos grandes documentos 620 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal do Vaticano II. E à qual não faltariam dificuldades e resistências, partidas de diferentes setores, principalmente quanto ao trabalho de sindicalização rural. Qual o impacto das transformações sociais sobre a vida religiosa duma determinada área? Qual o impacto da religião sobre o processo de desenvolvimento? Na verdade, a religião poderá ser estímulo, fator neutro ou até mesmo obstáculo. O autor formula três hipóteses, segundo as quais 1) as comunidades trabalhadas pelos vários movimentos acusam diferenças significativas, com relação àquelas que não foram alcançadas pela ação social religiosa, no que tange as concepções, atitudes, comportamentos e mesmo condições de vida; 2) o líder de comunidade rende muito mais quando trabalha com grupos do isoladamente; 3) por último, à funcionalidade ao desenvolvimento correspondeu, da parte do Movimento de Natal, especialmente de seus líderes, uma atitude inovadora, favorável à mudança, tanto no setor temporal, quanto no religioso. Estamos, pois, com um livro indispensável ao melhor conhecimento do Nordeste brasileiro, suas vicissitudes, principalmente em certos aspectos de natureza social e religiosa, documentário vivo para o estudo do fenômeno da mudança social. Otto Guerra ALCEU RAVANELLO FERRARO 621 ANEXO VI FICHA DO DOPS ALCEU RAVANELLO FERRARO 623 ANEXO VII ENTREVISTA COM AUTORIZAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA FERRARO, Alceu. Entrevista concedida pelo prof. Alceu Ravanello Ferraro ao entrevistador Renato Amado Peixoto em 3 de fevereiro de 2017 por meio de Correio Eletrônico com vistas à sua inserção na segunda edição do livro IGREJA E DESENVOLVIMENTO – O MOVIMENTO DE NATAL a ser publicado na Biblioteca da Escola Potiguar e distribuído para as bibliotecas da Rede Pública de Ensino do estado do Rio Grande do Norte, Natal, 2017, 12 p. CNPq/FAPERN, (Projeto ‘A Invenção da Terra Potiguar: instituições, intelectuais e agentes políticos na produção da espacialidade e da identidade norte-rio-grandense, 1889-1960). ALCEU RAVANELLO FERRARO 625 2017 Entrevista – 03/02/2017 R.A.P. – A mudança de seu sobrenome Ferrari para Ferraro se deveu à perseguição da Ditadura? Por que o Sr. mudou o seu sobrenome? A.F. – O que houve foi retificação, em 1992, do sobrenome nos registros civis do meu avô paterno, do meu pai e meus, com retorno ao sobrenome correto do meu avô, Giovanni Ferraro, nascido em Cittadella, Província de Pádua, Itália, em 22 de fevereiro de 1875, que migrou ainda criança para o Brasil junto com a família. R.A.P. – Segundo o texto de Otto Guerra disponibilizado na orelha da primeira edição de ‘Igreja e Desenvolvimento’, as atividades de D. Eugênio Salles à frente da Arquidiocese de Natal anteciparam as proposições do Concílio Vaticano II e que a sua vinda a Natal deveu-se a ter assistido a uma palestra de D. Eugênio Sales sobre o tema na Pontifícia Universidade Gregoriana. Foi isto mesmo que aconteceu? O que lhe chamou a atenção na palestra de D. Eugênio? A.F. – De um lado, por influência principalmente de meu professor de sociologia, Dr. Émile Pin, do curso de Ciências Sociais, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, eu estava interessado na temática relativa à sociologia do desenvolvimento. De outro, o contato com o Dr. François Houthart, da Bélgica, alimentava em mim o interesse pela sociologia da religião. Foi então que, durante o Concílio Vaticano II, tive a oportunidade de assistir a uma conferência de D. Eugênio Sales sobre o 626 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Movimento de Natal. Foi esta conferência, proferida que eu me lembre - no Colégio Brasileiro, em Roma, que despertou meu interesse pelo estudo do Movimento de Natal, dentro da perspectiva da relação entre religião e desenvolvimento, no que contei logo com a concordância do Dr. Émile Pin, meu orientador de doutorado, que, inclusive, viajaria para Natal durante a pesquisa. R.A.P. – Houve um convite de D. Eugênio para sua vinda a Natal, para observar e estudar o Movimento? A.F. – Partiu de mim a iniciativa de manifestar a Dom Eugênio o meu interesse em desenvolver pesquisa sobre o Movimento de Natal sob a orientação do Dr. Émile Pin, no que Dom Eugênio concordou. Na realidade, ele ofereceu, também, apoio nas mais diversas formas, como: hospedagem no Centro de Treinamento em Ponta Negra; acesso a todos os órgãos, setores, arquivos e lideranças do Movimento; contato com a Escola de Serviço Social, que disponibilizou, a título de estágio, um grupo de alunas para a realização das entrevistas nas oito comunidades rurais pesquisadas; contato com a Fundação José Augusto, do Governo do Estado do Rio Grande do Norte, que prestou substancial apoio em termos de espaço físico, equipamentos, tabulação, arquivo, datilografia e, finalmente, publicação da tese. R.A.P. – O Sr. considera como Otto Guerra que o Movimento de Natal antecipou ou influenciou o Concílio Vaticano II? A.F. – Não saberia dizer se o Movimento de Natal influenciou diretamente o Concílio Vaticano II. Mas, com ALCEU RAVANELLO FERRARO 627 certeza, a experiência de Natal despertou o interesse de muitos participantes no referido Concílio. Baste lembrar o significativo apoio financeiro prestado ao Movimento, durante e após o Concílio, pela Igreja Católica da Alemanha Ocidental através da Misereor. R.A.P. – Segundo o mesmo Otto Guerra o Sr. esteve em Natal até dezembro de 1967, mas o seu livro foi publicado apenas em dezembro de 1968. Onde o Sr. estava nesse período? A.F. – Retornando ao Brasil depois de oito anos de estudo em Roma, desembarquei no Porto de Santos no dia 19 de março de 1964. Ainda nesse dia, em São Paulo, da janela do apartamento da família que me hospedou, assisti ao desfile conhecido como Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Demorei-me, depois, alguns dias na cidade do Rio de Janeiro para pesquisa sobre o Nordeste, na biblioteca da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Morro Santa Teresa, do que resultou o Apêndice I da tese, intitulado “A Região Nordeste”. Foi só no final da tarde, junto ao Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, que, voltando de bonde da biblioteca da CNBB no Morro Santa Teresa, tomei conhecimento do Golpe civil-midiático-militar que se abatera sobre o Brasil na madrugada daquele 1º. de abril de 1964. No dia 3 desse mesmo mês viajei para a cidade de Recife, sendo hóspede de Dom Helder Câmara, com quem mantive breve contato. Na Cúria Metropolitana, o clima era de velório. Desembarquei em Natal no dia 7 de abril de 1964. Já no dia seguinte fui procurado pelo diretor de pesquisa da Fundação José Augusto para tratar do apoio à pesquisa a que me dediquei de abril de 1964 até o início 628 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal de fevereiro de 1967, quando me dirigi ao Rio Grande do Sul, onde, em 15 de março do mesmo ano, assumi o cargo de Cura da Catedral (Paróquia de Santo Antônio) de Frederico Westphalen, aguardando que a Pontifícia Universidade Gregoriana se pronunciasse sobre o meu pedido para defesa da tese no Brasil, argumentando sobre os riscos que correria, tanto para sair, quanto, principalmente, para reingressar, depois, no país. Com autorização da Universidade Gregoriana, defendi a tese em maio de 1968, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), perante banca constituída pela Pontifícia Universidade Gregoriana, presidida pelo Dr. Pedro Calderán Beltrão, professor daquela Universidade, com participação de dois outros examinadores da PUCRJ. Para ter o título de doutor, precisava publicar um longo artigo ou a tese inteira. Para tal fim, dirigi-me novamente a Natal visando efetuar a devida revisão final do texto e acompanhar a edição na gráfica da Fundação José Augusto, do que resultou o livro Igreja e Desenvolvimento – O Movimento da Natal, com 354 páginas. Felizmente, tive tempo de retirar da gráfica 200 exemplares na primeira hora da manhã do dia 13 de dezembro de 1968 - dia do famigerado Ato Institucional n. 5. R.A.P. – O Sr. chegou a trabalhar com Marcos Guerra ou a trocar impressões com ele? Se houve este contato, de que ordem foi? A.F. – Não. Não cheguei a ter contato pessoal com Marcos Guerra durante a pesquisa. Quando comecei a investigação sobre Escolas Radiofônicas e Educação de Base, ele já não se encontrava em Natal. ALCEU RAVANELLO FERRARO 629 R.A.P. – O nome ‘Movimento de Natal’ foi divulgado por Thiago Cloin na Revista da CRB em julho de 1962, pouco antes de sua vinda para o Brasil, como exemplo da aplicação da ‘Pastoral de Conjunto’, pleiteada por D. Hélder Câmara. Este me parece ser o eixo que move o seu livro ao início. No caso de Igreja e Desenvolvimento, poderíamos entender, portanto, que o Sr. buscava examinar por meio do Movimento de Natal essa nova face da atuação da Igreja do Brasil? A.F. – Sem dúvida, mas particularmente a atuação da Igreja no Nordeste. Foi o contato com Dom Eugênio Sales e Dom Helder Câmara, em Roma, durante o Concílio Vaticano II, que despertou em mim o desejo de pesquisar empiricamente a ação social desenvolvida pela Igreja Católica no Estado do Rio Grande do Norte, Estado situado numa região tida, então, como subdesenvolvida e explosiva – o Nordeste. R.A.P. – A partir da leitura de Igreja e Desenvolvimento parece haver um grau de entrosamento muito grande entre D. Eugênio Salles e D. Hélder Câmara no início da década de 1960. A seu ver, qual era então a proximidade entre D. Eugênio e D. Hélder Câmara? A.F. – Temos aí as duas principais lideranças da Igreja nordestina no início dos anos 1960. Tinham muito em comum no que se referia à presença ativa da Igreja no mundo, com destaque para a defesa dos movimentos sociais populares e do povo em geral contra as injustiças sociais na Região, e para o combate contra as arbitrariedades da ditatura imposta pelo golpe de 1º. de abril de 1964. Penso que a escala que fiz na cidade do Recife, em 630 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Pernambuco, a caminho de Natal, a que me referi antes, para contato com dom Helder, traduz bem a percepção que tinha, então, do entrosamento entre ambos. Falei acima em golpe de 1º. de abril de 1964. Por razões óbvias, na tese se lê “Revolução de 31 de março de 1964”! Por fim, valeria investigar mais a fundo a influência do trabalho desenvolvido por Dom José Delgado, na diocese de Caicó, nos anos 1950, sobre aquilo que, no início dos anos 1960, levaria o nome de Movimento de Natal. Fiz breve referência a isto na nota nº. 10, no capítulo 1 de Igreja e Desenvolvimento. R.A.P. – Na página 91 de ‘Igreja e Desenvolvimento’ o Sr. avalia que as origens do Sindicalismo Rural não tiveram relação com as Ligas Camponesas, mas numa de suas entrevistas o Sr. aponta que os Sindicatos teriam sido estimulados por D. Eugenio contra as Ligas Camponesas. O Sr. reavaliou sua opinião na entrevista ou foi o problema da repressão que o levou a colocar aquela opinião no livro. A.F. – Reafirmo, antes de tudo, o que escrevi, há meio século, na página 91 de Igreja e Desenvolvimento, a saber, que a verdadeira origem do sindicalismo rural no estado do Rio Grande do Norte deve ser buscada: “1) dentro do próprio Movimento – na pregação, desde 1947, da reforma agrária; na malograda tentativa do Serviço de Assistência Rural (SAR), em 1951, de fazer aplicar a legislação trabalhista no meio rural e de promover a organização do trabalhador rural em Círculos Operários Rurais; no acentuar-se, a partir de 1957-1958, de uma tendência reformista dentro do próprio SAR (luta pela mudança de ALCEU RAVANELLO FERRARO 631 estruturas, principalmente a agrária, para a qual a colonização de Punaú, então em estudo, queria ser um exemplo) e 2) no aparecimento de um líder leigo, técnico em sindicalismo [a assistente social Maria Julieta Calazans], que se propôs a promover, em entrosamento com o SAR, a sindicalização rural no Estado”. Mas isto não significa negar que a força e prestígio das Ligas Camponesas em Pernambuco possam ter contribuído, de alguma forma, para o caráter de urgência dado à sindicalização rural no Rio Grande do Norte a partir de 1960. R.A.P. – Ainda considerando os Sindicatos Rurais, como eles foram depois encampados pela CNBB e estimulados no resto do Brasil, poderíamos dizer que estes fariam parte de um repertório da Igreja Católica, na medida em que D. Hélder foi, na década de 1930, um dos principais divulgadores do sindicalismo católico no Ceará e que esta era uma premissa ligada ao Centro D. Vital? A.F. – Não tenho elementos para responder a esta questão. R.A.P. – Numa de suas entrevistas o Sr. faz questão de recolocar que o problema apresentado pela Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, estava no cerne de sua apreciação; contudo, certas colocações como ‘conscientização’ e ‘politização’ me parecem anacrônicas ainda em 1962-1966, se pensadas apenas a partir dos contributos de Paulo Freire, já que o seu principal livro data apenas de 1968. No entanto, estas posições eram já apresentadas pelo Padre Henrique Vaz desde o final da década de 1950, na aproximação que fazia então com o pensamento de 632 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal Hegel e Marx. Não seria mais a influência de padre Vaz que norteava a militância do Movimento de Natal e que se fazia sentir em seu livro? A.F. – Com certeza, Paulo Freire não foi nem a única nem a primeira influência externa a marcar o Movimento de Natal. Não saberia dizer como ou através de quem as ideias ou conceitos de conscientização e politização chegaram a Natal. O fato é que, totalmente ausentes nas cartas de 1959, em 1962, ano da Campanha de Politização promovida pelo Serviço de Assistência Rural, os termos “politizado” e “politização”, por exemplo, já marcavam surpreendente presença na correspondência de monitores e alunos de escolas radiofônicas: 133 ocorrências identificadas em 2.665 cartas examinadas. Essa Campanha repercutiu também no trabalho de sindicalização rural. Isto, no ano que antecedeu a experiência de alfabetização conduzida por Freire em Angicos (1963) e seis anos antes da primeira edição de Pedagogia do Oprimido (1968) (Capítulo IX e Tabela 10.1, p. 326). R.A.P. – O Movimento de Natal poderia ser considerado um predecessor da Teologia da Libertação ou não? Por quê? A.F. – Não tenho elementos para afirmar essa relação. Valeria a pena investigar. R.A.P. – O Sr. pensa que as perspectivas que orientaram o seu livro Igreja e Desenvolvimento – as de que a religião seria compatível com o desenvolvimento – se referem apenas ao contexto recortado (década de 1960, seca, Nordeste) ou ainda apresentariam validade para o mundo católico da atualidade? ALCEU RAVANELLO FERRARO 633 A.F. – Responder a essa questão meio século depois da conclusão da pesquisa exige uma consideração preliminar, a saber, que seria necessário superar o conceito bastante ingênuo de desenvolvimento dos primeiros 20 ou 30 anos do pós-Segunda Guerra Mundial: uma concepção de que, preenchidas certas condições e percorridas determinadas etapas, o desenvolvimento aconteceria naturalmente. Em outras palavras, haveria que pensar o desenvolvimento muito mais em termos de libertação da opressão, de transformação social, de efetivação dos direitos humanos, de distribuição justa da riqueza produzida, do que simplesmente em termos de aumento da capacidade produtiva, como na concepção então e ainda hoje dominante. Assim recolocada a questão, continuo pensando que a Igreja pode, sim, contribuir para a transformação no sentido de realização da justiça social e de criação de um mundo mais humano. O que não significa que eu identifique, hoje, na ação temporal da Igreja no Brasil, esse almejado caráter transformador. [FINAL DA ENTREVISTA] CARTA DE CESSÃO Porto Alegre, 12 de Maio de 2017. Eu, Alceu Ravanello Ferraro, Documento de Identidade n. 7000533112, emitido pela SSP/RS em 08/09/2009, CPF n. 053915040-15, declaro para os devidos fins que cedo os direitos autorais de minha entrevista, concedida por meio de Correio Eletrônico em 03 de fevereiro de 2017, para Renato Amado Peixoto, para usá-la integralmente ou em partes, sem restrições de prazos ou citações, para uso em artigos e livros acadêmicos, desde a presente data, abdicando de direitos meus e de meus descendentes quanto ao objeto dessa carta de cessão, subscrevendo, por isso, a presente Carta. Porto Alegre, 8 de junho de 2017. Alceu Ravanello Ferraro 634 Igreja e Desenvolvimento - O Movimento de Natal ALCEU RAVANELLO FERRARO 635 Esse livro foi composto em tipologia Swift Regular 11/16, desenvolvida por Gerard Unger em 1987 e impresso em papel pólen soft 80g/m2 na Offset Gráfica, Natal/RN, em setembro de 2019 para o selo editoral Bons Costumes da Editora Jovens Escribas.