NOTA SOBRE ARNALDO DARAYA CONTIER (1941-2019) - POR MARCOS NAPOLITANO

NOTA SOBRE ARNALDO DARAYA CONTIER (1941-2019) - Por Marcos Napolitano

“Isso é altamente problemático”. Essa frase era um bordão do professor Arnaldo Contier, que funcionava como uma espécie de pontuação musical das suas aulas, proferido entre análises instigantes de processos históricos e culturais, frases de efeito que soavam como heresias para os mais ortodoxos e provocações para que os estudantes fossem além dos clichês da compreensão histórica.

Contier foi um dos pioneiros no campo historiográfico brasileiro na análise de obras de arte como documentos históricos, forjada entre valores estéticos e ideológicos de uma dada época. Assim, ele insistia que o historiador não poderia simplesmente desconsiderar a forma interna da obra, em prol do seu contexto ou do seu “conteúdo”. Para ele, o “altamente problemático” era inerente ao processo histórico, e não uma ode ao incompreensível ou à opinião vazia, mas um convite à análise dos vetores plurais e das diversas perspectivas que se abrigam nos documentos, mesmo aqueles aparentemente simples e diretos. Além disso, sua relação com a historiografia era iconoclasta, voltada para a compreensão crítica dos textos, independente da fama do seu autor ou do seu estilo narrativo. Foi com ele que aprendi, ainda na graduação, a ler a estrutura de textos historiográficos para além do seu valor de face, alicerçada na articulação entre seus eixos principais: “tese-argumento-debate-fontes” que até hoje recomendo aos estudantes.
Para Contier, deveríamos pensar os textos, e não “a partir dos textos”, o que nunca foi uma operação fácil. Para Contier, a história e a historiografia eram processos indeterminados e descontínuos, construídos na dialética entre práticas sociais e discursos, a partir de camadas que muitas vezes foram soterradas pelo tempo. Não por acaso, seus cursos de graduação e de pós- graduação tanto estimulavam, quanto perturbavam as “zonas de conforto” dos estudantes, para usar a expressão em voga atualmente.

O método de análise de obras de arte, com foco na música (mas também no cinema, área na qual orientou muitos estudantes e pesquisadores) era exercitado nos seminários dos seus memoráveis cursos de pós-graduação que discutiam “música, nação e modernidade”. Neles, deveríamos ler um texto historiográfico e “ouvir” as obras musicais citadas de maneira a desconstruir as análises do autor, fossem eles pesquisadores iniciantes ou reconhecidos no meio acadêmico. Esse método era definido pelo professor como a análise crítica da “escuta ideológica” dos autores, centrada no fonograma como fonte. Nesse sentido, o método de análise
proposto para obra musicais e audiovisuais iam além do conceito tradicional de documento histórico, muitas vezes visto como plano e unidimensional. Seu conceito de história da arte ia além da mera exposição linear de “gênios, escolas e obras primas” que se retroalimentavam. Eu me lembro, particularmente, de uma frase sempre dita por ele em aula, que para mim possui muitas implicações teórico-metodológicas até hoje: “a obra medíocre, não apenas a obra-prima, diz muito sobre uma sociedade e sobre seu tempo”.

Confesso que a preparação dos seminários tirava meu sono e dos meus colegas, pois sempre estávamos sujeitos a um comentário irônico por parte do professor Arnaldo, ainda que viesse acompanhado de um elogio. Mas também aproveitávamos a iconoclastia do professor para devolver na mesma moeda. Eu mesmo participei de um dos seminários da disciplina de História Contemporânea ministrada por Contier, que eram mistos de análise historiográfica, performance e festa modernista. Inesquecível foi um seminário de um colega que apresentou seu texto em forma de cubo, com escritos em todos os seis lados, “já que o professor exigia uma leitura não-linear” dos textos. Coisas dos longínquos anos 1980.
Tensões e picardias estudantis à parte, devo dizer que a experiência de ter sido aluno de graduação e de pós-graduação de Arnaldo Contier (embora nunca tenha sido seu orientando), foi fundamental na minha formação e nas minhas escolhas temáticas de pesquisa. Em um Brasil e em um mundo cada vez mais “altamente problemático”, suas sacadas instigantes e seu rigor analítico farão falta.