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Exílio (1964-1979)

Por Denise Rollemberg*

A intolerância do regime instaurado pelo golpe civil-militar de 1964, promoveu o exílio de brasileiros nas décadas de 1960 e 1970, afastando e eliminando as diferentes gerações que lutavam por diversos projetos:  reformas de base,  revolução social, redemocratização. Embora distintos, a ditadura tratou a todos com intolerância, retratada pelo conhecido lema: Brasil, ame-o ou deixe-o.

29 Nov 2016 0 comment
A intolerância do regime instaurado pelo golpe civil-militar de 1964, promoveu o exílio de brasileiros nas décadas de 1960 e 1970, afastando e eliminando as diferentes gerações que lutavam por diversos projetos:  reformas de base,  revolução social, redemocratização. Embora distintos, a ditadura tratou a todos com intolerância, retratada pelo conhecido lema: Brasil, ame-o ou deixe-o.

Carregado da conotação de castigo e punição, o exílio não deixou de ser um incômodo para a ditadura. A condenação à morte dos presos trocados por diplomatas estrangeiros o expressava. Numa alusão à figura jurídica inventada na ocasião – o banimento -, ficaram conhecidos como banidos. A tentativa de estigmatizá-los com palavra maldita deu lugar ao reconhecimento da prisão política. Livres no exterior, o estigma foi apropriado por esses homens e mulheres como a constatação da  existência de uma ditadura no Brasil. No exílio, encarnaram a liberdade, a resistência, a contestação, a negação da negação.

O exílio dos anos 1960 e 1970 foi uma experiência vivida por duas gerações, a de 1964 e a de 1968. Para os exilados de 1964, o golpe foi o marco; para os exilados de 1968, o golpe que depôs o presidente S. Allende, em 1973, no Chile, é a principal referência. Esteve longe de ser uma experiência homogênea. As vivências foram variadas, a começar pelo tipo de exilado: os atingidos pelo banimento; quem decidiu partir, não raramente com documentação legal, por rejeitar a atmosfera na qual vivia; quem, diretamente, não era alvo da polícia política, mas se exilou ao acompanhar o cônjuge ou os pais; os diretamente perseguidos, envolvidos, uns mais outros menos, no confronto com o regime; quem foi morar no exterior por outras razões que não políticas e, através do contato com exilados, integrou-se às campanhas de denúncia da ditadura e já não podiam voltar com tanta facilidade. As situações são inúmeras. Neste universo tão diverso, são todos exilados.

Os exilados brasileiros jamais chegaram a expressar um fenômeno de massas como, por exemplo, no Chile, e é impossível quantificar o número de exilados, sobretudo, partindo de um conceito ampliado. A maior parte dos atingidos era da classe média, escolarizada e intelectualizada, embora, evidentemente, também tenha havido trabalhadores rurais, operários e pessoas com nível de instrução baixo. As origens e referências sociais foram importantes na vivência da experiência. O país de destino também se tornou elemento fundamental para a heterogeneidade das experiências dos exilados. A quantidade de países onde se esteve também. Continuar ou não ligado à militância política, embora redefinida, igualmente é um elemento a considerar. Além disto, o exílio é dinâmico, sempre em movimento, influenciado pelas circunstâncias, pelos acontecimentos e processos históricos. Por fim, embora da maior importância, os exilados viveram a experiência segundo suas características e personalidades.       

Se o exílio expressou a derrota e a exclusão, significou também a ampliação de horizontes que impulsionou descoberta de países, continentes, sistemas e regimes políticos, culturas, povos, pessoas. Nele, os exilados entraram em contato com outras trajetórias históricas, com outras referências. Formaram-se profissionalmente, experimentaram trabalhos qualificados e não-qualificados. Conviveram com o legado do Maio de 1968, o feminismo, a liberação sexual, as drogas, o questionamento dos códigos morais, as lutas das chamadas minorias, a crítica à social-democracia e ao socialismo realmente existente.

Neste processo marcado pela ambivalência de vivências e sentimentos, os exilados, em sua maioria, conservaram, contudo, a dificuldade de compreender as complexas relações da sociedade com a ditadura e, nesse sentido, continuaram isolados. Predominou a interpretação segundo a qual o povo era simplesmente vítima do regime que o oprimia e o enganava. Seus valores não se identificavam com os da ditadura militar. O povo - ou a sociedade - , como que por definição, opunha-se à repressão e aos valores e referências do regime que os expulsara. Os exilados mantiveram ainda, em sua maioria, a dificuldade de perceber o seu projeto modernizador. Ao chegarem, traziam uma visão do país e da sociedade um tanto desfocada, o que vai agravar o impacto da chegada.

Para além das continuidades, rupturas, ambivalências, o exílio  foi, essencialmente, a metamorfose. A princípio pensado como curto, foi longo. A volta revolucionária, na clandestinidade, para enfrentar a ditadura, virou uma volta consentida, no contexto da aprovação de uma lei formulada pela ditadura, já no crepúsculo, mas que ainda conseguiu fazer valer a sua anistia sobre a desejada pelos exilados. Organizações e partidos políticos - reformistas e revolucionários - transformaram-se ou mesmo se dissolveram. A militância ganhou outro significado. A relação com o cotidiano foi reavaliada. Os valores mudaram. De uma cultura política basicamente autoritária, transitou-se para a valorização, na verdade muito desigual, da democracia. O Brasil passou a ser visto de fora. As estreitas fronteiras nacionais ampliaram-se. Os exilados que, no início, tão orgulhosamente ostentavam esta condição, passaram a aceitar a de refugiado. A diversidade e a intensidade das experiências levaram a transformações. Assim, o exílio tornou-se essencial na redefinição das gerações 1964 e 1968. Os conceitos tradicionais de revolução e de reforma foram repensados e outra questão veio para o centro do palco: a democracia.

Entre o passado e o futuro, os exilados reavaliaram os projetos vencidos, abandonaram alguns de seus aspectos centrais, agregaram outros, reconstruíram caminhos e concepções de mundo, redefinindo-se a si mesmos. Entre o que deixavam para trás e o que viam diante de si, as tradições do passado e as novidades do presente, as contradições. Um país a ser redemocratizado. 


* Denise Rollemberg é Professora Associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, onde desenvolve pesquisas sobre: Ditadura civil-militar, luta armada, exílio, Memória e História Oral.