No mundo contemporâneo, pode-se relacionar o surgimento das diversas categorias de intelectuais ao aprofundamento da divisão social do trabalho, à especialização crescente das tarefas de administração estatal que marcam a modernização capitalista e a formação dos Estados nacionais, bem como, mais especificamente, à consolidação de um mercado de bens simbólicos e culturais.
Antes do aparecimento do conceito de “intelectual”, o tema da diferenciação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, como uma especialização da divisão social do trabalho, ganhou centralidade nos textos da filosofia e da economia política, os quais deram destaque ao processo “que criou as condições para a afirmação da autonomia do pensamento e da libertação imaginária de seu sujeito, o filósofo, o cientista, em uma palavra, o intelectual” (BIANCHI, 2016).
Um precedente notável, na primeira metade do século XIX, correspondeu ao surgimento do termo polonês inteligencja, e do russo intelligentsia, logo traduzidos para as principais línguas europeias, designando a classe culta ou a categoria de pessoas com instrução superior (MARLETTI, 2000, p. 637) que se engajavam nos projetos de reformas nacionais.
A popularização em língua francesa do substantivo intellectuel [intelectual] – empregado no plural, intellectuels – remonta ao célebre texto redigido pelo escritor Emile Zola intitulado “J’accuse: lettre au président de la République” [“Eu acuso: carta ao presidente da República”], publicado no diário L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898. Assinado por personalidades do mundo das letras e das artes, cientistas e professores das escolas superiores, que exigiam a revisão do processo judicial que levara à condenação, tida como injusta, do capitão do exército francês Alfred Dreyfus, o “Manifesto dos intelectuais”, como ficou conhecido, assinalava o aparecimento na cena pública de um sujeito político coletivo, claramente identificado – os intelectuais –, o qual se dirigia ao Estado, em nome dos cidadãos, afirmando uma auto representação de independência face aos interesses econômicos ou do poder. O termo intelectual guardou, desde então, o forte sentido político expresso naquele episódio, passando a indicar não apenas uma condição social ou profissional, mas também, frequentemente, uma opção polêmica ou um alinhamento dentro de uma disputa.
Uma investigação acerca da história intelectual ou da história dos intelectuais implicaria ter em conta não apenas as diversas acepções do conceito, mas também o objetivo de situar esses atores em relação aos processos históricos que os inscrevem na modernidade (BERMAN, 2007, p. 24-25). Em oposição à noção consagrada acerca da autonomia dos intelectuais, Antonio Gransci propôs que as diversas categorias especializadas no exercício das funções intelectuais surgiram “em conexão com todos os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante” (GRAMSCI, 2000, p. 20). A atuação dos intelectuais no Estado havia se tornado absoluta e proeminente em razão do modo como se dera o processo de implantação da dominação burguesa nos diversos países. Nesse sentido, para o pensador italiano a história dos intelectuais deveria dar lugar a uma série de ensaios de história da cultura e de história da ciência política, evitando formulações esquemáticas e simplificações.
As necessárias relações entre a história intelectual e a história da cultura têm mobilizado diversos historiadores, conformando um importante campo de debates na atualidade. Para Robert Darnton, a história intelectual compreenderia quatro perspectivas distintas, alcançando desde as elaborações de membros das camadas cultas até as dos iletrados: a história das ideias como história do pensamento sistemático; a história intelectual propriamente dita, incluindo o pensamento informal, os movimentos de opinião e as correntes literárias; a história social das ideias, como estudo de sua difusão e das ideologias; e, por fim, a história cultural em sentido antropológico, incluindo concepções de mundo e mentalidades coletivas (DARNTON, 2010).
Já Roger Chartier entende que a história intelectual não constitui exatamente uma disciplina, com objetos e métodos próprios, sendo seu valor, sobretudo heurístico, o de indicar interrogações para a análise de pensamentos que se expressam em textos e em atos. Entre as principais indagações estariam aquelas referidas ao objeto da história intelectual (as obras, os autores e os contextos); à divisão entre uma história intelectual ligada à perspectiva elitista e a história cultural, destinada às mentalidades “comuns”; à oposição entre produção intelectual e recepção cultural; e às figurações instituídas pelas práticas e discursos, como os conceitos filosóficos, as categorias psicológicas e as formas culturais, sempre “móveis, temporárias, descontínuas” (CHARTIER, 1993, p. 451).
Bibliografia
BERMANN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BIANCHI, Alvaro. Sobre o conceito de intelectual. Blog Junho, 13 de julho de 2016. Disponível em: <http://blogjunho.com.br/sobre-o-conceito-de-intelectual>. Acesso em: 21.04.2017.
CHARTIER, Roger. Intelectual (História). In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 446-452.
DARNTON, Robert.O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução.Trad. deDenise Bottmann. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. 2. ed. Ed. e Trad. de CarlosNelson Coutinho; coedição de Luiz Sérgio Henriques e Marco AurélioNogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 2. Os intelectuais.O princípio educativo. O jornalismo.
MARLETTI, Carlo. Intelectuais. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varrialle [et al.]. 5ª ed. Brasília/São Paulo: Editora Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. V. 1, p. 637-640.
Um precedente notável, na primeira metade do século XIX, correspondeu ao surgimento do termo polonês inteligencja, e do russo intelligentsia, logo traduzidos para as principais línguas europeias, designando a classe culta ou a categoria de pessoas com instrução superior (MARLETTI, 2000, p. 637) que se engajavam nos projetos de reformas nacionais.
A popularização em língua francesa do substantivo intellectuel [intelectual] – empregado no plural, intellectuels – remonta ao célebre texto redigido pelo escritor Emile Zola intitulado “J’accuse: lettre au président de la République” [“Eu acuso: carta ao presidente da República”], publicado no diário L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898. Assinado por personalidades do mundo das letras e das artes, cientistas e professores das escolas superiores, que exigiam a revisão do processo judicial que levara à condenação, tida como injusta, do capitão do exército francês Alfred Dreyfus, o “Manifesto dos intelectuais”, como ficou conhecido, assinalava o aparecimento na cena pública de um sujeito político coletivo, claramente identificado – os intelectuais –, o qual se dirigia ao Estado, em nome dos cidadãos, afirmando uma auto representação de independência face aos interesses econômicos ou do poder. O termo intelectual guardou, desde então, o forte sentido político expresso naquele episódio, passando a indicar não apenas uma condição social ou profissional, mas também, frequentemente, uma opção polêmica ou um alinhamento dentro de uma disputa.
Uma investigação acerca da história intelectual ou da história dos intelectuais implicaria ter em conta não apenas as diversas acepções do conceito, mas também o objetivo de situar esses atores em relação aos processos históricos que os inscrevem na modernidade (BERMAN, 2007, p. 24-25). Em oposição à noção consagrada acerca da autonomia dos intelectuais, Antonio Gransci propôs que as diversas categorias especializadas no exercício das funções intelectuais surgiram “em conexão com todos os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante” (GRAMSCI, 2000, p. 20). A atuação dos intelectuais no Estado havia se tornado absoluta e proeminente em razão do modo como se dera o processo de implantação da dominação burguesa nos diversos países. Nesse sentido, para o pensador italiano a história dos intelectuais deveria dar lugar a uma série de ensaios de história da cultura e de história da ciência política, evitando formulações esquemáticas e simplificações.
As necessárias relações entre a história intelectual e a história da cultura têm mobilizado diversos historiadores, conformando um importante campo de debates na atualidade. Para Robert Darnton, a história intelectual compreenderia quatro perspectivas distintas, alcançando desde as elaborações de membros das camadas cultas até as dos iletrados: a história das ideias como história do pensamento sistemático; a história intelectual propriamente dita, incluindo o pensamento informal, os movimentos de opinião e as correntes literárias; a história social das ideias, como estudo de sua difusão e das ideologias; e, por fim, a história cultural em sentido antropológico, incluindo concepções de mundo e mentalidades coletivas (DARNTON, 2010).
Já Roger Chartier entende que a história intelectual não constitui exatamente uma disciplina, com objetos e métodos próprios, sendo seu valor, sobretudo heurístico, o de indicar interrogações para a análise de pensamentos que se expressam em textos e em atos. Entre as principais indagações estariam aquelas referidas ao objeto da história intelectual (as obras, os autores e os contextos); à divisão entre uma história intelectual ligada à perspectiva elitista e a história cultural, destinada às mentalidades “comuns”; à oposição entre produção intelectual e recepção cultural; e às figurações instituídas pelas práticas e discursos, como os conceitos filosóficos, as categorias psicológicas e as formas culturais, sempre “móveis, temporárias, descontínuas” (CHARTIER, 1993, p. 451).
Bibliografia
BERMANN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BIANCHI, Alvaro. Sobre o conceito de intelectual. Blog Junho, 13 de julho de 2016. Disponível em: <http://blogjunho.com.br/sobre-o-conceito-de-intelectual>. Acesso em: 21.04.2017.
CHARTIER, Roger. Intelectual (História). In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 446-452.
DARNTON, Robert.O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução.Trad. deDenise Bottmann. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. 2. ed. Ed. e Trad. de CarlosNelson Coutinho; coedição de Luiz Sérgio Henriques e Marco AurélioNogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 2. Os intelectuais.O princípio educativo. O jornalismo.
MARLETTI, Carlo. Intelectuais. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varrialle [et al.]. 5ª ed. Brasília/São Paulo: Editora Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. V. 1, p. 637-640.
*Maria Letícia Corrêa é professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais, Sociedade e Política (GEPISP).