A ELIMINAÇÃO DOS ACERVOS JUDICIAIS SOB O ARGUMENTO DA PRESERVAÇÃO, UMA FALÁCIA

São Paulo, 20 de fevereiro de 2014.

A DESTRUIÇÃO CONTINUA:

A ELIMINAÇÃO DOS ACERVOS JUDICIAIS SOB O ARGUMENTO DA PRESERVAÇÃO, UMA FALÁCIA.

 

Essa documentação [os processos judiciais] é realmente preciosa. Ela registra, sem dúvida, a própria história do Direito e da Justiça: o modo como as leis foram interpretadas e aplicadas em casos concretos, a atuação de magistrados, promotores e advogados, os conflitos e os modos como foram encaminhados e solucionados. Ela guarda também a história de muitas lutas individuais e coletivas por direitos, permitindo entrever o modo como pessoas e entidades pressionaram pela criação de normas jurídicas ou como certas normas legais foram interpretadas de modos diversos ao longo do tempo ou em contextos diferentes. Constituindo-se em repositório da história do Direito e das lutas por direitos, ela se torna fonte importante da própria história dos trabalhadores no Brasil. Por isso mesmo, todos os processos, da Justiça Civil, Criminal, do Trabalho – todos devem ser preservados.[1]

O presente texto busca, em rápida síntese, mostrar os reais obstáculos colocados à preservação da massa documental produzida pelo Judiciário brasileiro pela nova Recomendação nº 46, do Conselho Nacional de Justiça, CNJ, de 17 de dezembro de 2013 a qual, na realidade, mantém os pressupostos fundados na eliminação da antiga Recomendação nº 37, de 15 de agosto de 2011.

Nos últimos anos não foram poucos os espaços de debate em torno da necessidade imediata da suspensão da eliminação dos acervos que estão sob a guarda do Poder Judiciário brasileiro. Apenas no ano de 2013 podemos citar como exemplos dois seminários nacionais que abordaram o tema: Acesso à Informação e Transparência, sediado no Auditório da Escola Judicial do TRT4, e A Preservação Documental: Dever do Estado e Direito do Cidadão, que aconteceu durante a semana da Memória do TST em Brasília/DF. Em ambos, reconhecidos pesquisadores no âmbito nacional e internacional avaliaram como sendo um Dever/Poder do Judiciário garantir o direito à prova como integrante do direito de acesso ao Judiciário, o direito à informação e ao conhecimento histórico, fundamental à cidadania. Os especialistas foram unânimes em afirmar a necessidade imediata da suspensão das eliminações de autos judiciais.

O argumento principal do debate em torno da preservação dos autos judiciais é a extrema dificuldade de determinar o “valor histórico dos documentos” para efeitos de guarda. Há muito tempo o conceito de documento alargou-se e a moderna historiografia tem mostrado que as fontes para a pesquisa histórica dependem das perguntas do historiador. O que eventualmente pode hoje ser considerado de menos importância poderá ganhar relevância extrema amanhã; poucos documentos podem ser selecionados para uma abordagem qualitativa, mas a análise quantitativa não pode prescindir de séries completas e densas.

Não há critérios universalmente aceitos para definir o que é ou não histórico (para os historiadores, todos os documentos ou restos do passado são históricos, no sentido de que todos podem se tornar fontes históricas). Sendo assim, a eliminação seletiva tem potencial altamente lesivo aos documentos, amputando-os irreversivelmente (como é o caso da preservação de apenas certas peças processuais, como sentenças e acórdãos, descartados aleatoriamente do conjunto documental).

O desrespeito à integridade da documentação impede que fontes primárias de inegável valor informativo para diferentes campos do conhecimento e que oferecem grande potencial analítico sejam pesquisadas e historicamente interpretadas. Também é extremamente questionável, do ponto de vista da pesquisa científica, a metodologia de “desentranhamento das peças dos processos judiciais”, por ser grave ameaça à integridade documental.

Mesmo após tais incessantes debates, a comunidade acadêmica novamente se vê imersa em editais de eliminação, publicados principalmente por Tribunais de Justiça Estaduais, como o caso do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e, no último dia 10 de fevereiro, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

EDITAL DE CIÊNCIA DE ELIMINAÇÃO DE DOCUMENTOS JUDICIAIS

Nº 001/2014

O Presidente da Comissão Técnica de Avaliação Documental - CTAD, no uso da atribuição que lhe foi delegada pela Portaria nº 29/2010, da 2ª Vice-Presidência, faz saber, a quem possa interessar, que, no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias corridos, contados da publicação deste edital, se não houver oposição ou solicitação de guarda pelas partes, a Coordenação de Arquivo - Coarq - eliminará os processos judiciais findos do Juizado Especial Cível da Comarca de Ouro Preto, baixados definitivamente no período de 2001 a 2011, constantes das Listagens de Eliminação, aprovadas pelos integrantes da CTAD designados pela Portaria da Presidência nº 2842/2013.

Os interessados poderão solicitar ao Presidente da CTAD, dentro do prazo consignado neste edital, a guarda dos processos em que figurem como parte.

As solicitações, contendo nome, RG e contato do solicitante, deverão ser enviadas para o endereço eletrônico.

Havendo mais de um solicitante, caberá ao primeiro a via original e, aos demais, cópias, que serão entregues no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis após o encerramento do prazo consignado neste edital.

Belo Horizonte, 10 de fevereiro de 2014.

ANDRÉ BORGES RIBEIRO

Presidente da Comissão Técnica de Avaliação Documental

 

São editais respaldados na Recomendação nº46 que, na prática, se constitui em instrumento de eliminação dos documentos considerados findos pelo Poder Judiciário e não uma via de preservação. Eliminar para preservar é o que a Recomendação coloca. Daí a falácia[2].

Na prática, essas novas diretrizes, que facultam ao magistrado e às entidades de caráter histórico, cultural e universitárioapresentar proposta fundamentada de guarda definitiva dos autos, autorizam a eliminação imediata dos agravos de instrumentos, dos recursos em sentido estrito em matéria criminal e dos incidentes processuais autuados em apartado, independentemente de publicação de edital. Por outro lado, ao permitir custódia temporária dos processos, o faz pelo prazo total de apenas oito anos, devendo, após esse prazo, ser devolvidos ao órgão produtor correspondente que “concluirá sua destinação”, impedindo convênios que, com muito êxito, têm sido formalizados com Universidades Públicas ou Comunitárias e que têm permitido preservar a disponibilizar amplamente à pesquisa rica massa documental.

Além disso, aposta em amostra estatística altamente questionada por estudiosos e pesquisadores renomados que, em diversas oportunidades, têm qualificado tal metodologia como sendo um erro. Isso porque qualquer seleção de amostra estatística somente pode ser utilizada quando conhecido o universo da documentação, realidade totalmente distinta daquela dos arquivos do Judiciário que, aliás, já eliminou e ainda elimina grande número de processos findos e documentos de guarda obrigatória[3]. Em outras palavras, o suposto é o descarte, a eliminação.

As eliminações que a Recomendação legitima, conforme afirmam  ad nauseam especialistas e pesquisadores, oferecem fortes dificuldades às pesquisas em andamento, de diferentes campos do conhecimento, que se utilizam, primordialmente, como base empírica, dos documentos produzidos pelo Judiciário. São investigações acadêmicas que envolvem a história do trabalho ou das instituições relacionadas aos trabalhadores, histórias de famílias, da saúde, das mulheres, da vida política-econômica do Estado e que têm como fonte os processos nos quais há, além de informações sobre as lutas coletivas e individuais de expressivos sujeitos históricos, aspectos da história da Instituição em que foram ajuizados.

Além disso, não asseguram a autenticidade, a integridade, a segurança, a preservação e o acesso de longo prazo dos documentos e processos em face das ameaças de degradação física e de rápida obsolescência tecnológica de hardware, software e formatos, bem como a necessidade de fomentar as atividades de preservação, pesquisa e divulgação da história do Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais, e das informações de caráter histórico contidas nos acervos judiciais[4], conforme prevê a própria RESOLUÇÃO Nº 749/2013 do TJMG visando a preservação dos documentos daquela instituição.

Portanto, reafirma-se o que se disse em muitos outros momentos: o Estado tem o dever constitucional de preservar os documentos públicos. Os processos judiciais são documentos públicos, patrimônio da União, cabendo à Administração Pública a gestão dos documentos governamentais e as providências para franquear sua consulta aos que dela necessitarem.

Exigimos imediata suspensão das eliminações. Sob o argumento falacioso de preservar e ao abrigo normativo, a Recomendação legitima a eliminação de documentos preciosos à história e à cidadania. Trata-se de verdadeiro atentado à memória nacional que não pode mais ser tolerado.

 

Assina:

Diretoria da ANPUH-Brasil – Associação Nacional de História

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[1]LARA, Silvia Hunold. Trabalho, Direitos e Justiça no Brasil. In: SCHMIDT, Benito Bisso (org.). Trabalho, Justiça e Direitos no Brasil: pesquisa histórica e preservação das fontes. São Leopoldo: Oikos, 2010. p. 118.

[3] Ver: LONER, Beatriz Ana. O acervo sobre trabalho do Núcleo de Documentação Histórica da UFPel. In: SCHMIDT, Benito Bisso (org.). Trabalho, Justiça e Direitos no Brasil: pesquisa histórica e preservação das fontes. São Leopoldo: Oikos, 2010. p. 13-4.

 

[4] Resolução Nº 749/2013 do TJMG. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/re07492013.pdf.