O NEGÓCIO DA INDEPENDÊNCIA

As elites locais do Ceará viram na Revolução do Porto e na Independência oportunidades para a contemplação de demandas econômicas antigas.

19 Set 2022 0 comment   Reginaldo Alves de Araújo

O NEGÓCIO DA INDEPENDÊNCIA

Entre as questões que levaram fazendeiros e senhores de terras do interior do Ceará a aderirem a independência do Brasil, existiram reivindicações contra o constitucionalismo das Cortes de Lisboa. Havia acusações de que os revolucionários do Porto atacavam os direitos dinásticos da Família Real portuguesa, e rivalidades pessoais entre fazendeiros e comerciantes por espaços de influência.

A então capitania do Ceará, entre a segunda metade do século XVIII até as duas primeiras décadas do século XIX, entrou em um ciclo de crescimento econômico promovido, especialmente, pela demanda inglesa por algodão em decorrência da Revolução Industrial em curso. Neste “ciclo de comodity” as vilas portuárias, espaços naturais para o escoamento da produção local, ganharam um dinamismo econômico sem precedentes.

Em 1799 a capitania foi separada de Pernambuco, o que significava ter um governo próprio, além de comercializar diretamente com Portugal, sem mais precisar passar por Olinda. Com essas novas condições comerciais, os donos de casas de comércio do Ceará passaram a prosperar significativamente.

Todavia, os desentendimentos entre este grupo de comerciantes e os funcionários nomeados pela coroa para administrar a capitania não tardaram a surgir. A partir da presença de um capitão-mor governador e um ouvidor, nomeados diretamente pela metrópole, veio também uma maior cobrança de impostos e a consequente fiscalização e punições sobre as sonegações, assunto sobre o qual, até ali, a Coroa costumava fazer “vista grossa”. A situação mudou com a instalação da Junta da Fazenda em 1802.

Além da insatisfação com a questão fiscal, os comerciários e grandes criadores também cobravam o direito de escravizarem os índios das vilas indígenas, pois a ausência de tráfico negreiro direto para a capitania encarecia o preço dos africanos escravizados, que chegavam nos portos do Ceará. Um comércio de “segunda mão”, posto que os escravizados já vinham das praças de Pernambuco e Bahia.

Além das duas questões apontadas, as elites portuárias locais também desejavam ocupar os cargos de governança, que então produziam uma verdadeira distinção social por aferir respeito, influência entre os locais e, principalmente, pagar altos salários.

Nesta lógica, a Revolução do Porto e as subsequentes eleições para a formação de Juntas Administrativas e para as Cortes de Lisboa representaram, justamente, a chance de se constituir um governo local e atender todos estes citados interesses da elite local, fazendo com que boa parte destes comerciantes do Ceará apoiassem o movimento do Porto. No entanto, tal apoio foi encarado pelo governador da Capitania, bem como pelos grandes criadores e senhores de terras do interior, como uma ameaça e afronta aos direitos dinásticos do monarca e às condições de mando local das casas sertanejas.

A vontade dos comerciantes do Ceará prevaleceu, pelo menos neste primeiro momento. Foi com base em seus interesses que estes senhores do litoral, através da Câmara municipal de Fortaleza, da tropa de linha e a burocracia de Estado, sabedores da resistência do então Governador Francisco Alberto Rubim (1768-1842) em aderir ao movimento Liberal do Porto, o destituíram e convocaram eleições para uma junta administrativa em novembro de 1821.

Todavia, como dito, a ação dos comerciantes da capital atacava em cheio o posicionamento dos senhores de gado e de homens do sertão cearense, ligados às nobiliarquias do Antigo Regime, em especial os capitães-mores de ordenanças, que agora viam seus prestígios e poderes regionais ameaçados pelo “novo” governo. Se a elite portuária viu a Revolução do Porto como uma oportunidade para implementar seus planos políticos, as casas sertanejas viram na “Independência” proposta por Dom Pedro e José Bonifácio a oportunidade que precisavam para buscar proteção e garantir os seus antigos privilégios nas vilas do interior cearense.

As notícias de Independência vindas do Rio de Janeiro provocaram hesitação da Junta Administrativa do Ceará, presidida pelo jurista reinol José Raimundo dos Passos Porbém Barboza. Diante disso, e baseados nos próprios interesses, os senhores de terra da Ribeira do Jaguaribe, liderados pelo capitão-mor do Crato, José Pereira Filgueiras (1758-1825), romperam com a capital e instituíram um governo autônomo a partir do Icó. Também convocaram um verdadeiro exército de negros, índios e mestiços do interior, e marcharam sobre a Capital para destituir a Junta de Porbém Barboza (1822), garantindo assim a adesão do Ceará à Independência. Ou seja, o movimento que promoveu a independência do Brasil no Ceará o fez em nome dos direitos dinásticos da realeza, ameaçados pelo constitucionalismo das Cortes de Lisboa.

Sem conseguir reagir às forças vindas do interior, a Junta Administrativa de Porbém Barboza não só entregou o governo da capitania para as casas sertanejas como seus membros foram excluídos das funções de mando pela nova junta que se formou, presidida agora pelo padre Francisco Pinheiro Landim, mas controlada por Pereira Filgueiras e uma das lideranças locais do movimento de 1817: Tristão Gonçalves Pereira de Alencar (1789-1824).

Todavia, a resistência destas casas sertanejas no governo da província em aceitar a destituição da Assembleia Constituinte e da Junta Administrativa em 1824 deu aos comerciantes portuários a oportunidade que esperavam para voltarem ao governo, sendo nomeado o militar Pedro José da Costa Barros (1779-1839), filho homônimo de um dos maiores comerciantes de grosso trato da Capital. Tão logo estes mercadores de Fortaleza e Aracati souberam da nomeação de Costa Barros, aderiram ao seu governo, desencadeando a Confederação do Equador do Ceará, que uma vez derrotada, finalmente consolidou os interesses do então Estado brasileiro sobre as elites locais – mas não sem fazer concessões e estabelecer canais de negociação com os diferentes interesses em jogo.

Reginaldo Alves de Araújo é professor da SEDUC-CE e integrante do Grupo de Pesquisa Sociedade de Estudo do Brasil Oitocentista – SEBO-UFC. E-mail: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8208-4989


Saiba mais

ARAÚJO, Reginaldo Alves de. A parte no partido: relações de poder e política na formação do Estado nacional brasileiro, na província do Ceará (1821-1841). 2018. Tese (Doutorado em História) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.

COSTA, João Paulo Peixoto. Independência e Cidadania: povos indígenas e o advento do liberalismo no Ceará. Acervo, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 1-21, 2021. Disponível em: https://revista.an.gov.br//index.php/revistaacervo/article/view/1655. Acesso em: 04 mar. 2022.

FELIX, Keile Socorro Leite. Espíritos inflamados: a construção do estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). 2010. 231 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.

 
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