(por Ricardo Dreguer)
Caros mestres,
Em primeiro lugar gostaria de elogiar suas iniciativas de publicarem análises sobre o processo de debate sobre a BNCC-História, bem como sobre o conteúdo do documento em si.
Como sou paulista, não posso avaliar a afirmação da professora Hebe e de Martha Abreu de que determinados grupos foram excluídos do processo que gerou a carta publicada pela Anpuh-RJ.
De toda forma, se esse foi caso, me solidarizo com vocês, pois nós, que temos algumas críticas e sugestões à BNCC-História sabemos bem o que é exclusão, já que, no GT Ensino de História da Anpuh nacional, não temos nossas publicações aceitas, ao contrário daqueles que defendem integralmente o documento e têm amplo espaço para manifestação.
Abaixo as exclusões de toda espécie!
Quanto à análise que fazem do processo de elaboração e do texto do documento, tenho algumas concordâncias e outras tantas discordâncias, que relato a seguir.
Esta carta tem caráter pessoal, mas muitas das ideias que expresso estão presentes em um documento com críticas e sugestões para a BNCC-História, subscrito por 12 profissionais com diferentes formações acadêmicas, experiências profissionais e linhas teóricas. Tal documento, entregue pessoalmente para a professora Cláudia Ricci no dia 28/11, pode ser acessado no link https://drive.google.com/open?id=1FKwYaFh-oKSFzixadVzC8uaH9xfaAWJ8gO6QL2VfxYw
1. Sobre a equipe responsável e o processo de elaboração da BNCC-História
A professora Hebe afirma em seu texto que:
Como todos os outros textos da base, trata-se de um texto preliminar, aberto à discussão, construído por uma equipe de pesquisadores da área de ensino da disciplina em questão. Este caráter técnico do recrutamento do grupo de trabalho, efetuado a partir da expertise no campo do ensino da disciplina [...]
Por outro lado, o grupo que elabora a base foi recrutado entre os especialistas em ensino de história, campo que teve importante desenvolvimento nos últimos anos. É uma área que vem pensando há anos como ensinar a história, para quem estamos ensinando história e para que serve a história ensinada. Seus especialistas estão fortemente embasados no que de melhor tem acontecido nas salas de aula do ensino básico e das universidades na matéria.
Já o professor Carlos Fico destaca que:
Há garantia de que as sugestões serão consideradas e de que nova redação da proposta será novamente submetida ao debate. A discussão de tantas questões importantes - se conduzida com tranquilidade - é positiva por si só.Hoje li considerações muito ponderadas da colega Hebe Mattos que reúnem praticamente tudo o que penso a respeito do assunto. Hebe chama a atenção para a necessidade de encaminhamento sereno da questão, pois já houve reações exageradamente críticas em relação à proposta.
Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar, como venho fazendo nos debates de que participei na FEUSP (24/11) e FFLCH-USP (28/11) que, ao contrário do que imagina a professora Hebe Mattos, a equipe responsável pela primeira versão da BNCC-História não obedeceu ao critério da heterogeneidade definido pelo MEC.
Tal equipe incluiu profissionais de uma única linha de pesquisa, excluindo do debate vozes fundamentais na pesquisa sobre ensino de História, como Circe Bittencourt (FEUSP), Maria Auxiliadora Schmidt (UFPR), Kátia Abud (FEUSP), Marlene Cainelli (UEL), Ernesta Zamboni (UNICAMP) e tantas outras, com visões divergentes à da equipe responsável pela elaboração da BNCC-História, e que teriam dado ótimas contribuições ao documento preliminar.
Com relação à garantia de um debate sereno e amplo da versão preliminar da BNCC-História, gostaria de lembrar, como fizeram diversos professores da FEUSP, que tal premissa é contaminada pelo curtíssimo tempo imposto pelo MEC para o debate, bem como pela limitação dos canais de expressão das críticas/sugestões, restritas à postagem em um link e sujeitas à uma "peneira" informatizada que não garante que tais postagens serão efetivamente lidas.
2. Sobre a versão preliminar da BNCC-História
2.1 – Eurocentrismo X "ser brasileiro"?
Concordo com a afirmação da professora Hebe de que é muito positivo, na versão preliminar da BNCC-História, o
[...] esforço de romper com o eurocentrismo que informa a concepção de história até agora predominante no ensino de história do país. Inclusive nas nossas universidades.
Contudo, concordo com a crítica de Carlos Fico de que
Eu chamaria a atenção para um problema de ordem geral: há certa ingenuidade teórica que se traduz na atribuição de essencialidade ao "ser brasileiro" por meio das "matrizes" indígenas, africanas e de "outras origens".
2.2. Da história factual dos "vencedores" à história factual dos "vencidos"
Concordo com o professor Carlos Fico quando ele afirma que
Do mesmo modo, é visível que - no louvável esforço de construir uma proposta crítica - o texto original estabelece, de antemão, enunciados que deveriam ser discutidos e problematizados com os estudantes. Cito apenas três exemplos (entre outros que poderiam ser indicados): (a) a não problematização da denominação "Revolução de 1930" (episódio definido na proposta como "Golpe de Estado de 1930"); (b) a adoção, sem qualquer discussão, do frágil conceito de "populismo"; (c) a afirmação de que a abertura política no fim do regime militar decorreu de "demandas da sociedade civil organizada". São questões polêmicas que não podem ser estabelecidas de maneira apriorística.
Essa postura de trocar uma história factual dos "vencedores" por outra igualmente factual dos "vencidos", reforça a crítica que nosso grupo fez no documento supra citado de que "a supressão da cronologia e do eurocentrismo não garantem, por si só, um ensino de história comprometido com a problematização, uma história-problema, como defendia a tradição dos Annales. Podemos substituir uma história factual e política dos povos europeus por outra igualmente factual do Brasil e dos povos ameríndios e africanos".
2.3. A questão da temporalidade histórica
Concordo com o alerta da professora Hebe de que, na carta crítica da Anpuh-RJ, a questão da temporalidade histórica não foi devidamente esclarecida.
Então, vou tentar esclarecer melhor por que, a meu ver, a questão da temporalidade histórica foi gravemente negligenciada pela versão preliminar da BNCC-História, comprometendo, inclusive, seus aspectos positivos.
A análise cuidadosa de todos os objetivos de aprendizagem da versão preliminar da BNCC-História permite encontrar propostas, para 7º. ano do Ensino Fundamental, como a seguinte:
CHHI7FOA084
Reconhecer os diferentes processos de escravidão ocorridos no Brasil – Escravidão de africanos e Escravidão de indígenas – relacionando-os à formação política, econômica, cultural e social das diferentes regiões do Brasil.
Teoricamente tal objetivo está em consonância com a justificada intenção de privilegiar a história dos africanos e indígenas, como expresso na "Apresentação" da BNCC-História. Contudo, uma análise mais detalhada, demostra que tal objetivo é de tal maneira genérico que se corre o risco de perder completamente a especificidade de cada temporalidade histórica, em que os processos de escravidão de africanos e indígenas, bem como seus processos de "negociação"/resistência assumiram características diversas, como expresso em diversas pesquisas acadêmicas, inclusive as levadas a cabo pela equipe da professora Hebe Mattos.
Nesse sentido, reafirmo minha crítica de que, no cotidiano da sala de aula, corre-se o risco de que o ensino de história se transforme em um estudo etnológico dos "mundos ameríndios, africanos e europeus", atemporal, descontextualizado, desarticulado e vinculado a uma concepção de "ser brasileiro" estereotipada, como destacado pelo professor Carlos Fico.
Tais perigos são decorrentes da falta de um embasamento claro na versão preliminar da BNCC-história da questão da temporalidade histórica. A impressão é a de que os autores deste documento desconsideraram todas as contribuições das pesquisas mais recentes sobre este tema, levadas a cabo por Pages, Santisteban, Cooper, Scaldaferri, Siman, Hallam, Bergamashi, Laville, Callai e outros.
2.4. A questão da faixa etária dos alunos
Uma última crítica à versão preliminar da BNCC-História que pretendo destacar é a falta de conhecimento da faixa etária dos alunos, bem como a desconsideração de todas as pesquisas de psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem voltadas para o ensino de História levadas a cabo por Carretero, Castorina, Delval, Kohen, Barreiro, Ferreiro e tantos outros pesquisadores.
Tal desconsideração pode ser observada principalmente nos objetivos de aprendizagem prescritos para os anos iniciais do Ensino Fundamental (1º. Ao 5º.). Nesse sentido, determinados objetivos que apareciam no documento do Pnaic (Plano de alfabetização na idade certa) como pertinentes ao ciclo de alfabetização (1º. Ao 3º. Ano) são deslocados de seu contexto original e reproduzidos como específicos do 1º. Ano do EF, como no exemplo citado a seguir:
CHHI1FOA004
Identificar mudanças e permanências nos espaços escolares e nas relações interpessoais neles existentes, a partir de diferentes evidências não escritas, tais como edificações, fotografias, depoimentos.
Este objetivo, assim como outros destacados para os anos iniciais do ensino fundamental (1o. ao 5o) estão em total discrepância com os documentos anteriores do MEC, como o referido Pnaic, as Orientações para Inclusão da Criança de seis anos no Ensino Fundamental de nove anos, Parâmetros Curriculares Nacionais .
Neste caso, a presença das vozes diferenciadas na pesquisa sobre ensino de história que citei em itens anteriores, teria contribuído para evitar essas situações de desconexão entre objetivos e faixa etária dos alunos.
2.5. Conclusão
Enfim, concluímos nosso documento coletivo supra citado afirmando que "a troca de ´conteúdos´, retirando a ênfase na história europeia e enfatizando a história brasileira, com destaque para os povos ameríndios e afrodescendentes é condição necessária, mas não suficiente, para mudar o ensino de história.
Se ela não vier acompanhada de um trabalho cuidadoso com a questão da temporalidade histórica, da história-problema e da faixa etária dos alunos – o que não está presente no documento preliminar da BNCC-história – corremos o sério risco de trocar um ensino tradicional/prescritivo eurocêntrico por outro igualmente tradicional/prescritivo dos ameríndios e afrodescendentes."
Para que tais mudanças sejam implementadas na nova versão da BNCC-história é fundamental que sejam ouvidas todas as vozes caladas no processo inicial, como os pesquisadores do ensino de história e os acadêmicos dos diversos recortes da história. Mas, principalmente, que sejam ouvidos os principais "esquecidos" neste debate: os professores (as) do Ensino Fundamental e Médio, que não se sentem representados pelos burocratas das Secretarias de Educação dos Estados (SEDUCs) que fizeram parte do grupo que criou a versão preliminar.
Neste sentido, é louvável e bem vinda a iniciativa da Anpuh Brasil de solicitar reuniões das regionais que culminarão com um colóquio sobre a BNCC-história da Anpuh Brasil em 29/02 e 01/03/16.
E vamos ao debate, sem exclusões de nenhuma espécie, seja por titulação, experiência profissional ou linha teórica.
Saudações de Clio,
Ricardo Dreguer
São Paulo, 03/12/2015.
Texto disponível em: https://docs.google.com/document/d/1WzzETSKe3ih2zPtC2v4kIgG8nGZRjWxnrog3UxrPd4s/edit