NOTA SOBRE A SEGUNDA VERSÃO DA BNCC

Considerações acerca da segunda versão da Base Nacional Comum Curricular - História.

Assinam o documento os seguintes professores do Departamento de História da UERJ: Géssica Guimarães, Renata Moraes, Carlos Eduardo Pinto, Eduardo Ferraz Felippe, Daniel Pinha, Francisco Gouvea de Sousa e Marta Silveira. 


No dia três de maio de 2016 foi divulgada pelo Ministério da Educação a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular, cujo conteúdo seria o resultado de uma nova jornada de trabalho das comissões atentas à consulta pública acerca da primeira versão do documento, publicado em setembro de 2015. 

Após muitas críticas endereçadas por professores da educação básica e professores universitários à primeira versão do conteúdo de História da BNCC, ampliou-se a participação de professores e especialistas em educação resultando no lançamento da segunda versão da Base. Nos intriga, contudo, o quanto esta versão do componente curricular História é "nova" em relação ao conteúdo da primeira versão do documento; e o quanto ela é "velha", no que diz respeito à retomada de um currículo tradicional já bastante conhecido entre nós.

Por um lado, percebemos que a equipe de história foi sensível a algumas críticas e sugestões, tais como a ausência dos conteúdos de história antiga e medieval e à excessiva centralidade da história do Brasil; por outro lado, parece-nos que as demais reivindicações foram obliteradas, sobretudo, aquelas relacionadas a uma reflexão mais ampla acerca do conceito de eurocentrismo – notadamente presente nesta segunda versão – e sobre a importância da tematização do tempo como um conceito fundamental para o estudo e ensino da história, sobretudo como uma das dimensões estruturantes para os seres humanos.

Percebemos mudanças significativas, como a reinserção de história antiga e medieval. Entretanto, a maneira como esse conteúdo foi inserido nos desperta curiosidade: afinal, por que a referência exclusiva à antiguidade clássica? Quanto ao medievo, o currículo proposto favorece a preservação de estereótipos construídos na historiografia do século XIX, que tende a ver este período histórico a partir de um enfoque teocêntrico. Esta concepção é endossada na Base quando concentra o estudo da Idade Média ao estudo da cristandade, deixando de lado o estudo de realidades plurais existentes no Ocidente europeu, como a cultura islâmica. Consideramos mais grave, no entanto, o fato da Base não mencionar o estudo da história medieval peninsular ibérica, essa sim fundamental para o entendimento da formação do período colonial brasileiro. Em ambos os casos sentimos a grande ausência de referências aos processos históricos vivenciados por outros povos e culturas, sobretudo da África e das Américas.

Problemas também ocorrem em relação à história do Brasil, algumas ausências ainda são notórias, como toda a Era Vargas, suprimida do Ensino Fundamental. Além disso, o país voltou a ficar isolado da história geral (num movimento completamente oposto ao ensaiado na primeira versão, em que o Brasil era o ponto de partida para se pensar outras histórias), salvo em poucos momentos em que se busca tal interlocução. Internamente, os grupos étnicos negros e ameríndios voltaram a ocupar lugar periférico, enquanto outras etnias – entre as muitas que são fundamentais para compreender as singularidades locais – sequer são citadas.

Estas questões nos preocupam, uma vez que a BNCC fundamenta os direitos da aprendizagem em relação a princípios éticos, políticos e estéticos. Entendemos que cabe ao componente curricular de história, entre outros, contribuir para que as estudantes e os estudantes também possam refletir sobre sua realidade e sobre o mundo a partir da perspectiva social e cultural. Pensar as questões relacionadas ao trabalho, à desigualdade social, à luta pelos direitos civis por grupos minoritários e garantir o cumprimento das leis que tornaram obrigatório o ensino das culturas e história da África e africanos no Brasil, bem como dos povos indígenas, é uma responsabilidade a qual o ensino de história não pode se eximir.

Portanto, reivindicamos mais espaço para que tais questões sejam abordadas no ensino deste componente e não configurem apenas como "temas integradores", tal como está proposto nesta versão da BNCC. Entendendo currículo como discurso na relação já conhecida de saber/poder, tendo em vista o debate atual sobre projetos que pairam sobre os rumos da educação no Brasil, como o Escola sem partido, consideramos importante reforçar que, no que se refere ao Brasil Republicano, os impasses e as lutas contra o autoritarismo e as ditaduras deveriam receber maior destaque e não somente a referência, tal qual encontramos no texto da Base, a saber, de que o estudo deste período tem como objetivo a compreensão do "processo de modernização que levou à formação de um país urbano, industrial e democrático."

Ao pensar o documento de forma mais ampla, para além do componente curricular História, percebemos que na proposta formal da Base Comum Curricular foi mantida a relação intrínseca entre os direitos à aprendizagem e os objetivos do ensino, todavia na segunda versão foi modificada a maneira como tais direitos são compreendidos: se antes os direitos se assemelhavam a competências e habilidades, na nova versão tal equívoco foi significativamente amenizado. Ainda assim, permanece em sua estrutura o caráter prescritivo e sua vocação avaliativa, principalmente através da enumeração de conteúdos específicos para cada um dos anos das etapas inicial e final do Ensino Fundamental. No Ensino Médio tal rigidez parece ter sido abrandada pela adoção do critério de "Unidades curriculares", que variam em número em cada componente, mas garantem a normatividade dentro da etapa/ciclo. 

Tendo em vista as modificações apresentadas, ainda persistem algumas dúvidas: A orientação contida no documento permite brechas para as particularidades regionais, locais e pessoais? Considerando as proporções desta Base Nacional, sobrará espaçosuficiente para as especificidades de cada rede? Restará autonomia necessária para as escolas elaborarem seus Projetos Político Pedagógicos? Terão os professores tempo real para abordar outros conteúdos para além da já extensa grade prescrita? Sem perder de nossos horizontes as preocupações com o projeto controlador da SEB – já em curso por meio de avaliações externas – e a própria existência do Enem, teriam os docentes reais condições de explorar outros conteúdos que não aqueles a serem cobrados de seus estudantes nestas avaliações? Entendemos que a proposta da Base consiste em um "currículo mínimo" que possibilitaria a incorporação das especificidades acima elencadas, todavia, ainda nos parece que carece ao texto da Base esforços mais efetivos para o desenvolvimento da capacidade autoral de cada professor em sala de aula.

Por fim, fica a impressão de que a estratégia da equipe responsável pelo componente curricular História foi a exclusão da proposta anterior em bloco e sua substituição por um currículo de viés tradicional e com poucas surpresas para além de suas ausências. O enfoque cronológico e a permanência da "grande narrativa" centrada no processo histórico de matriz europeia são os principais sintomas dessa permanência da tradição. Nesse caso, lamentamos o descarte, uma vez que a primeira versão provocou um interessante debate entre historiadores de várias regiões e atuantes em diferentes esferas do ensino. De modo algum, compreendemos que as críticas realizadas à primeira versão clamavam por um retrocesso, identificado nessa leitura do conteúdo para a área de História. Acreditávamos no avanço das discussões, corrigindo os rumos da Base, sobretudo no que se referia às graves ausências que vigoravam no primeiro documento. O currículo apresentado não avança na execução das leis 10639/2003 e 11645/2008; não apresenta uma via de desconstrução da visão eurocêntrica da história e não possibilita uma reflexão acerca da natureza deste conhecimento a partir de sua imbricada relação com o tempo.

Esperamos com esta breve nota contribuir para o debate que se segue nos seminários estaduais e para a elaboração de um currículo que permita a estudantes e professores o exercício da autonomia de pensamento e a construção coletiva do mundo.

Rio de Janeiro, 22 de junho de 2016