CARTA DA DIRETORIA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA AO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – CNE: REFLEXÕES E SUBSÍDIOS DA ANPUH A RESPEITO DA BNCC.

Prezados Conselheiros (as),

Em outubro do corrente ano, a Associação Nacional de História, a ANPUH, representada pela Prof.ª Dr.ª Lana Lage e o Prof. Dr. Paulo Mello, teve a grata satisfação de ser recebida para uma audiência pelos membros da Câmara de Educação Básica para tratar, dentre outras questões, de pedido da entidade para aprofundamento dos debates sobre a BNCC junto às entidades científicas. Na ocasião, diante das exposições de nossos representantes, e profícuo diálogo com os Conselheiros (as) foi solicitada à ANPUH a elaboração de documento que sintetizasse suas críticas e contribuições ao processo de discussão da BNCC e que pudesse servir de subsídio para esta Câmara no processo de construção de Parecer sobre o tema. No entanto foi descartada a possibilidade de atendimento de nossa demanda para aprofundamento das discussões em torno do texto e conteúdo da BNCC, que se encontra ainda em processo de elaboração no MEC. Nossa entidade entende como válido o convite feito de produzir um documento que pudesse contribuir para a formulação do Parecer e Resolução em construção por este Conselho. Tal é o propósito do documento que se segue.

Dessa forma, reconhecendo a importância deste debate e o significado da enorme tarefa que se apresenta aos membros da Câmara de Educação Básica, vimos com o presente documento contribuir para aprofundamento das reflexões, com indicações propositivas e críticas ao processo de construção da BNCC e seus resultados. Nele apresentamos nossas críticas e considerações acerca dos seguintes aspectos apresentados nas três diferentes versões já tornadas públicas do documento: 1) a concepção de currículo, o lugar e a concepção de História; 2) os vínculos e impactos da BNCC sobre a formação de professores e sobre a produção de materiais didáticos, em especial sobre a produção de livros didáticos; e 3) sobre as implicações da implementação da BNCC na autonomia das escolas e dos professores. Concluímos o texto com um conjunto de proposições que visam contribuir para dar maior relevância social à presença da História no currículo da Educação Básica.

1. Concepção de Currículo, o lugar da História como disciplina escolar e a concepção de História

É importante destacar que a ANPUH apoia a construção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que não seja prescritiva e subordinada a metas relacionadas ao fluxo escolar, ao controle vertical do trabalho docente e à obtenção de resultados em testes como o Exame Nacional do Ensino Médio.

Todavia, o processo de elaboração e as três versões apresentadas como resultado desse processo revelam um modelo de currículo, que em sua forma e conteúdo, visam estabelecer formas de controle e prescrições estritas para o trabalho docente, para a elaboração de materiais didáticos, e para a realização de exames. Apesar do discurso, apresentado no documento, de que a autonomia dos sistemas e das escolas estará preservada, a realidade indica que os fundamentos e critérios de organização das três versões da BNCC buscam implantar um modelo prescritivo que se imporá como rígido paradigma a ser seguido por docentes, produtores de materiais didáticos e até para a formação de professores. Sua finalidade precípua, sobretudo, é ser uma matriz a ser examinada.

Por outro lado, a BNCC vincula-se atualmente à Reforma do Ensino Médio, implantada por meio de Medida Provisória depois convertida na Lei 13.415/17. A nova lei cria uma situação preocupante para o ensino de História devido a omissão sobre a obrigatoriedade da presença da História no currículo do Ensino Médio. A História recebe o status de mero componente curricular da BNCC. A omissão deliberada fica reforçada pela clara menção de obrigatoriedade das disciplinas de Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia (artigo 35-a § 2º), por exemplo. Obrigatoriedade que, no entanto, sequer assegura presença efetiva qualificada para essas disciplinas no currículo. Isso porque o texto legal indica que a organização dessas disciplinas poderá adotar formas flexíveis e até diluídas de oferta como meras práticas ou estudos. Entendemos, que ao promover a precarização do lugar da disciplina no Ensino Médio e submetê-la a um currículo inacabado, a atual proposta representa um grave comprometimento ao direito à História para as novas gerações.

As contribuições que apresentamos tomam como premissa a concepção de um ensino de História desenvolvido por professores com autonomia quanto aos procedimentos de ensino e aprendizagem, considerando a possibilidade de selecionar conteúdos que atendam às expectativas de alunos de diferentes condições sociais, econômicas e culturais. Contrariamente a estes pressupostos a BNCC de História reduz ou elimina as possibilidades de estudos das histórias locais relacionadas aos processos históricos mais abrangentes. Mantém para os anos iniciais uma organização de tempo cronológico, em evolução de círculos concêntricos a partir do grupo familiar; mantém as festividades de datas cívicas como marco da compreensão da história nacional; mantém ainda para as séries posteriores do ensino fundamental uma abordagem eurocêntrica da história, que mais uma vez descarta a possibilidade de entendimento mais amplo da história da sociedade brasileira inserida nas sociedades americanas em sua diversidade cultural, social e econômica; mantém reiteradamente o estudo do Brasil a partir de uma suposta dimensão periférica no sistema capitalista. Neste sentido a lógica da história do capitalismo se mantem ao delimitar estudos da Antiguidade apenas articulados ao conceito de "civilização" que elimina outros povos. As sociedades indígenas americanas e africanas são tratadas como inexistentes na Antiguidade, sendo estudadas apenas após o contato com os brancos "civilizados". Por isso, manifestamos nossa preocupação em relação a uma seleção de conteúdos que reitera a ênfase no estudo histórico centrado nos feitos do progresso do capitalismo e limita a possibilidade de estudos históricos pautados em outras possibilidades de abordagem, fartamente demonstradas na historiografia. Também limita uma formação política ao evitar estudos do tempo presente uma vez que delimita os estudos da política brasileira que não podem ultrapassar a década de 1980.

2) Formação de professores, produção de materiais didáticos e a BNCC

Em 2015, o CNE lançou as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica, baseadas no Parecer CNE/CP 02/2015, aprovado pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação (CNE), em 9 de junho de 2015, e homologado pelo MEC em 24 de junho de 2015. O parecer e sua resolução resultaram de um denso processo de discussões e debates que atravessaram praticamente uma década no CNE tomando em consideração vários estudos, pesquisas e marcos legais. Por essa razão, causa profunda preocupação as indicações de que os currículos dos cursos de formação de docentes terão por referência o currículo da Educação Básica, a BNCC, quando o contrário deveria ocorrer. Entendemos que as atuais Diretrizes trazem contribuições significativas para o processo de reformulação dos currículos dos Cursos de Licenciatura em História, e que os mesmos, ainda que possam ter como referência o currículo proposto para a Educação Básica, não se reduzem aos mesmos critérios utilizados para organização curricular da Educação Básica. Não se pode reduzir a formação de professores de História à empobrecedora lógica de aplicação de um currículo prescrito para a Educação Básica. Também não se pode reduzir o trabalho intelectual de professores à lógica do mero consumo de materiais simplificados, não raramente envolvidos em facilitadoras fórmulas sedutoras das tecnologias digitais de informação, sistema apostilados de ensino ou fórmulas de ensino estruturado que torna o professor um simples "aplicador" de uma matéria que será avaliada exteriormente.

Nesse sentido é muito preocupante as modificações feitas no Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD, pelo Decreto 9.099/17, que subordina a avaliação do livro didático à adoção de um modelo curricular que sequer foi concluído e aprovado. O atrelamento dos programas do livro à BNCC rompe com o princípio fundamental do pluralismo pedagógico, uma tônica muito cara ao programa, já que pressupõe a autonomia docente na escolha de obras consideradas mais atraentes ou adequadas ao seu planejamento. Um dos pressupostos mais destacáveis desta política é o engajamento dos docentes, do coletivo de docentes da escola. Por mais limitada que seja essa prática da escolha das obras, ela é um dos pontos mais relevantes, porque nela reside a aposta de que os docentes - como coletivos profissionais - devem ser considerados como sujeitos orientados epistemicamente - autônomos para realizarem escolhas consequentes. O que se anuncia é um aviltamento da autonomia docente no planejamento, na escolha e produção de materiais didáticos, no processo avaliativo, em favor de formas rígidas de prescrição curricular que afetam e subordinam a formação inicial docente e a produção didática.

3) Autonomia docente

A Resolução nº 2, de 1º de julho de 2015, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada, estabelece que a formação de profissionais do magistério deve assegurar uma Base Comum Nacional, "pautada pela concepção de educação como processo emancipatório e permanente, bem como pelo reconhecimento da especificidade do trabalho docente, que conduz à práxis como expressão da articulação entre teoria e prática e à exigência de que se leve em conta a realidade dos ambientes das instituições educativas da educação básica e da profissão". Por sua vez, esta Base Comum Nacional para a formação de professores, fundada em tais princípios, deve conduzir o(a) futuro(a) docente "às dinâmicas pedagógicas que contribuam para o exercício profissional e o desenvolvimento do profissional do magistério por meio de visão ampla do processo formativo, seus diferentes ritmos, tempos e espaços, em face das dimensões psicossociais, histórico-culturais, afetivas, relacionais e interativas que permeiam a ação pedagógica, possibilitando as condições para o exercício do pensamento crítico, a resolução de problemas, o trabalho coletivo e interdisciplinar, a criatividade, a inovação, a liderança e a autonomia". Portanto, não como pensar nos impactos deletérios que um currículo prescritivo, destinado a definir rigidamente conteúdos a serem ensinados, articulado a políticas de produção de materiais didáticos que apresentam estes conteúdos em aulas estruturadas, e submetido à logica da avaliação, terá sobre autonomia docente. Diante da possibilidade de aviltamento dessa autonomia intelectual e profissional é necessário reafirmar aqui a importância dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, e reforçar a participação dos coletivos docentes em sua construção. Da mesma forma, é preciso enfatizar a importância dos currículos construídos nas escolas, em experiências de sujeitos concretos, situados e localizados em territórios culturais e espaços sociais definidos. O suposto reconhecimento do professor como elemento chave da implementação curricular não deve servir como pressuposto para sequestrar sua autonomia, mas para reafirmá-la.

Dessa forma, considerando toda a repercussão que o desenho do componente curricular História apresentou ao longo do processo de construção da BNCC, sobretudo, o que apresenta a 3ª versão da Base, ao discutir de forma generalista, e excluir debates e aprofundamentos sobre o tema dos direitos humanos, da diversidade cultural, do combate a violência, das questões de gênero e sexualidade, reiteramos que:

1- O componente curricular História deve ser considerado elemento chave para a formação dos sujeitos históricos críticos e para o desenvolvimento das habilidades de escrita e da leitura das palavras e do mundo. Por isso, a ANPUH repudia de forma contundente a flexibilização sobre a obrigatoriedade do ensino História no ensino médio. Estudar História é um direito.

2- É necessário que aprendizagem histórica leve em consideração as diferentes temporalidades e experiências culturais, por isso, a BNCC deve tomar como referência as experiências dos povos africanos, indígenas e latino-americanos. Assim, repudiamos a forma como a BNCC pensa o estudo histórico, privilegiando a história ocidental, organizada em ordem cronológica.

3- O currículo de História (e a base comum curricular que o estrutura) deve oferecer condições ao professor e aos estudantes para que o saber histórico seja compreendido como uma produção cientifica e social. Deve possibilitar seu debate em exercício de leitura crítica. Uma história sem crítica é apagar o passado.

4- O currículo de História deve considerar a formação cidadã e os direitos humanos como princípio fundamental.

5- A Base Comum Curricular deve oferecer um repertório amplo de discussão sobre o saber histórico escolar que aborde a história do tempo presente.

Por fim, solicitamos ao Conselho Nacional de Educação que considere os pontos apresentados, tendo em vista o diálogo que é preciso manter com a produção historiográfica atualizada e com o acumulo das reflexões do campo de pesquisa do ensino de História. Nesse sentido, propomos que em seu parecer final possa indicar que:

- A BNCC deve apresentar uma proposta para o ensino de história que contribua para o aprofundamento dos conceitos fundamentais da disciplina, tais como história, fonte, historiografia, memória, acontecimento, sequência, duração, sucessão, periodização, fato, processo, simultaneidade, ritmos de tempo, medidas de tempo, sujeito histórico, historicidade, identidade, semelhança, diferença, contradição, permanência, mudança, evidência, causalidade, multicausalidade, ficção, narrativa, dentre outros.

- Que se considere a especificidade dos conceitos históricos forjados para dar sentido ao passado, adotando procedimentos metodológicos que forneçam o contexto em que são empregados, evitando seu uso atemporal.

- Que, em respeito ao cumprimento dos dispositivos legais e à garantia de uma educação democrática e que respeite as diferenças e a diversidade, sejam garantidas condições para a implantação no disposto pela atual legislação concernente ao ensino de história da África, da história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas, considerando a produção de materiais didáticos e a formação inicial e continuada de professores.

- Que os acontecimentos contemporâneos e aqueles do passado sejam transformados em problemas históricos a serem estudados e investigados em sala, com amplo recurso aos métodos e referenciais teóricos da historiografia e sua ampla produção; e às reflexões plurais advindas das investigações sobre o ensino e a aprendizagem de História.

- Que as metodologias de ensino não sejam vistas como meros arranjos de sequências didáticas diversificadas utilizadas para instrução de conteúdos prescritos e programados. Mas, que ao contrário estejam ancorados em reflexões sobre as complexas dimensões das aprendizagens históricas e suas articulações com a epistemologia da História e os procedimentos da pesquisa e construção do saber histórico em sala de aula.

São Paulo, 29 de novembro de 2017.

Associação Nacional de História – ANPUH-Brasil