MOÇÃO DE APOIO À PROFESSORA VANICLÉIA SILVA SANTOS

A coordenação nacional do Grupo de Trabalho de História da África da Associação Nacional de História (GT-África/ANPUH) vem a público expressar seu apoio à professora de História da África da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Vanicléia Silva Santos. Na última semana, a referida docente foi alvo de linchamentos virtuais em decorrência da composição étnico-racial dos comunicadores de um evento acadêmico coordenado por ela, na UFMG. O Simpósio Internacional “Novas epistemes para o estudo da África pré-colonial: agência africana e conexões”, que acontecerá entre os dias 07 e 09 de agosto, conta com sete mesas, formadas por afinidades temáticas, e, em uma delas, não há nenhum pesquisador negro. Contudo, a composição das mesas resulta de chamada pública para apresentação de trabalhos (não de comunicadores convidados) e a ausência de representatividade étnico-racial na referida mesa é um sintoma do racismo estrutural da sociedade brasileira, não a causa. Não obstante, a professora Vanicléia Santos foi atacada profissional e pessoalmente como responsável por tal carência, o que é completamente injustificável, sobretudo diante de sua reconhecida trajetória de lutas antirracistas na universidade brasileira. Cabe apontar a liderança desempenhada pela professora e pesquisadora no campo dos estudos africanos, com destaque para seu papel na coordenação do Centro de Estudos Africanos da UFMG e na organização do volume X da coleção História Geral da África, da UNESCO.

Entendemos que é compromisso de todo pesquisador defender a liberdade acadêmica na produção do conhecimento e zelar pela democratização da ciência, da pesquisa e do acesso à informação. Neste ínterim, o GT-África da ANPUH reconhece a ausência de pesquisadores negros na referida mesa temática e convida toda a comunidade acadêmica a refletir sobre a questão. Onde estão os pesquisadores negros e indígenas na composição de bancas, nas citações bibliográficas, na formação de quadros docentes, na realização de conferências e palestras, na condução de pesquisas? Muito se avançou nos últimos anos na diversificação da composição étnico-racial do ensino superior no Brasil, mas a sub-representatividade de negros e indígenas e a super-representatividade de brancos é marcante. Numa sociedade em que 51% de sua população se autodeclara negra (preta ou parda), é esperado que esta cifra se reproduza em todos os espaços sociais – aí incluída a universidade pública. Não obstante, a realidade é muito diferente. Dados da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) indicam que apenas 2% dos professores da instituição são negros1 – uma realidade equiparável à maioria das universidades brasileiras. Por outro lado, a representação discente se diferencia: 51,2% dos estudantes das instituições federais de ensino superior (IFES) se declararam pretos e pardos; 0,9% indígena; 2,1% amarelos; 2,5% não declararam e 43,3% se disseram brancos, segundo dados da ANDIFES, referentes ao ano de 20182.

O estudo da História da África é de particular interesse de todos aqueles interessados em elementos da historicidade pregressa que diz respeito a mais da metade da população brasileira. No entanto, nem o campo de estudos africanos é fechado a pesquisadores negros nem os pesquisadores negros devem ter sua atuação restrita aos estudos africanos: a diversidade étnico-racial deve estar presente em absolutamente todos os campos de produção intelectual. Ademais, é preciso destacar que História da África e História Afro-brasileira são dois campos distintos, com metodologias de pesquisa próprias, delimitações cronológicas, aportes documentais e referenciais bibliográficos específicos. Compreender a historicidade afro-brasileira, suas construções culturais e sociais, os impactos da escravidão na estruturação do racismo e as lutas dos negros no Brasil pela igualdade racial e social é fundamental. Porém, essas questões não são linearmente conectáveis ao continente africano, cujas sociedades, trajetórias históricas, sociais e culturais são distintas daquelas vividas pela comunidade negra no Brasil.

Neste sentido, destacamos que a existência de pesquisadores versados em culturas afro-brasileiras não significa que tais pesquisas possam ser projetadas, por extensão, sobre o continente africano: serão realidades históricas, trajetórias sociais e construções culturais distintas. O diálogo entre estudos africanos e afro-brasileiros é necessário e estimulado, mas sua sobreposição é indevida. Ademais, o campo de História da África ainda é minoritário na academia brasileira, haja vista a inexistência de uma subárea específica na área de História, junto ao CNPq3 . Essa ausência dificulta o acesso a recursos para pesquisas e contribui para a posição secundária do campo. Dito isso, a área de estudos africanos referentes ao período anterior ao colonialismo europeu no continente é ainda menor, dentre a comunidade de pesquisadores de História da África4. Isso explica o número reduzido de comunicações inscritas no evento e, mais ainda, a ausência de apresentadores negros em uma das sete mesas.

É necessário, portanto, fortalecer os estudos africanos – ou seja, as pesquisas sobre as histórias vividas na África ou na diáspora africana conectadas com a historicidade das sociedades do/no continente – e lutar ininterruptamente pela descolonização da universidade. Conseguiremos atingir tais objetivos com o reconhecimento deste campo de estudos tanto pela sociedade quanto pelas instituições de fomento à pesquisa. Além disso, eventos como aquele organizado pela professora Vanicléia Silva Santos, que se propõem a refletir sobre novas epistemologias para o estudo da História da África pré-colonial, são fundamentais e muito bem-vindos. São iniciativas como essas que colocam mulheres e homens, procedentes de diversas regiões do país, negros e brancos, em contato para compartilhar suas pesquisas, fortalecer a área de estudos e continuar contribuindo para o conhecimento sobre o continente africano junto à sociedade brasileira. O evento, portanto, é altamente positivo e as críticas direcionadas à professora, de forma irresponsável e personalizada, apontam um sintoma do racismo estrutural que deve ser combatido por todos nós, em todos os campos de investigação científica, e não apenas nos estudos africanos. Afirmamos a defesa do trabalho da professora Vanicléia Santos e ressaltamos a importância da liberdade de pensamento e de eventos como este. Essa luta é de todos.

Comissão coordenadora do GT-África/ANPUH

Prof. Dr. José Rivair Macedo (UFRGS), Prof. Dra. Luiza Nascimento dos Reis (UFPE), Prof. Dr. Thiago Henrique Mota (UFV)

_____________________________________________________________________

1 http://www.andifes.org.br/numero-de-professores-negros-em-universidades-publicas-gera-debate/ , acesso em 03 de agosto de 2019.
2 ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES - 2018: Relatório Executivo. Uberlândia (MG), maio de 2019, p.34.

3 http://lattes.cnpq.br/documents/11871/24930/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf/d192ff6b-3e0a-4074-a74d-c280521bd5f7, acesso em 03 de agosto de 2019.
4 Dados de Márcia Pereira indicam que há concentração das pesquisas desenvolvidas em História da África, no Brasil, em torno dos séculos XIX e XX. PEREIRA, Márcia Guerra. História da África: uma disciplina em construção. Tese (Doutorado em Educação) – São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012, p.177.