NOTA DE REPÚDIO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA (ANPUH) À DECISÃO DA DIREÇÃO DA FUNDAÇÃO PALMARES DE CENSURAR E EXTIRPAR PARTE DE SEU PATRIMÔNIO BIBLIOGRÁFICO

A Associação Nacional de História - ANPUH-Brasil manifesta sua profunda preocupação com o documento divulgado no último dia 11 de junho no site oficial da Fundação Palmares. O relatório “Retrato do Acervo: três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares” em forma de livro eletrônico materializa e comprova cabalmente o projeto em andamento de destruição sistemática dessa importante instituição pública criada em 1988, durante a reconstrução da ordem constitucional democrática destroçada pelo Golpe civil-militar de 1964 e pela ditadura de mais de duas décadas que se seguiu.

Já no título o referido relatório deixa claro seu caráter puramente ideológico ao denunciar uma imaginária “dominação comunista” na fundação. O que é confirmado pelo conteúdo do texto, uma genuína peça de propaganda política da extrema-direita brasileira e sua visão conspiracionista e autoritária da realidade que quer justificar a decisão de seu atual presidente de excluir esses livros e documentos do acervo patrimonial da Fundação Palmares.

Em termos legais, o texto é uma escandalosa afronta ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que trata dos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” segundo o qual “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”; “é livre a manifestação do pensamento”; “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”; e, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Além disso, a Fundação Palmares como parte integrante do “Sistema Nacional de Cultura” se rege “pela diversidade das expressões culturais” (Artigo 216-A§1).

Igualmente, é importante destacar que no Código Penal, o Art. 305 penaliza quando se destrói, suprime ou se oculta, em benefício próprio ou de outrem, ou em prejuízo alheio, documento público ou particular. Além disto, a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. E no seu “Art. 62, pune quando destruir, inutilizar ou deteriorar: I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial: pena - reclusão, de um a três anos, e multa.”

Assim, os autores, livros e militantes marxistas são parte integrante da sociedade brasileira e tem todo o direito de integrarem o acervo da Fundação Palmares, bem como participarem de sua administração; da mesma maneira que atualmente autores e militantes de extrema-direita integram a sua gestão. Além disso, esse acervo bibliográfico integra o patrimônio público da União que deve ser protegido pela sociedade e especialmente pelos seus gestores.

As obras de autores marxistas que integram o acervo da Fundação Palmares devem ser consideradas como parte integrante de sua identidade pois são uma referência teórica importante tanto para a embasar teórica e politicamente a compreensão da realidade histórica do negro no Brasil, quanto para sustentar a luta contra o racismo e a plena emancipação social e política dos negros na sociedade brasileira, ontem e hoje. A atual gestão não pode suprimir estas obras do acervo com o argumento de que elas não se referem ao objetivo da instituição. Ela não pode impor a sua posição política e ideológica ao acervo da instituição. O acervo é público, não privado.

Os livros que a atual gestão da Fundação Palmares considera inadequados fazem parte da história dessa instituição pública e integram o seu patrimônio. Como gestor da Fundação Palmares o seu atual presidente não pode dispor como bem entender do patrimônio da fundação que preside. O acervo bibliográfico integra esse patrimônio e deve ser administrado segundo os protocolos estabelecidos pela administração pública. Uma instituição do Estado brasileiro não pode ser administrada por uma gestão que não respeita os parâmetros constitucionais e quer impor de forma ilegal e agressiva seus valores políticos a uma tão importante instituição cultural da sociedade brasileira.

A Associação Nacional de História - ANPUH-Brasil repudia a decisão da atual direção da Fundação Palmares de excluir autoritariamente parte substancial de seu patrimônio bibliográfico com base em um relatório político-ideológico e inconstitucional que demoniza e estigmatiza os setores políticos progressistas e de esquerda da sociedade brasileira; e clama para que os responsáveis constitucionais pela manutenção da legalidade das instituições do Estado brasileiro se manifestem e impeçam que esse projeto de destruição se realize.

A propósito, reconhecemos o mérito da liminar concedida em 23 de junho, por solicitação de ação popular ajuizada junto à Justiça Federal no Rio de Janeiro, e esperamos que a justiça mantenha seguro o direito à memória e a democracia nas demais instâncias.