Nota do GT de História da África da Anpuh Brasil e da Associação Brasileira de Estudos Africanos (ABE-África) sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino de História Destaque

GT ÁFRICA
Desde o final de 2015, acompanhamos a discussão em torno da proposta de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece um currículo mínimo para os Ensinos Fundamental e Médio. Diante da importância desse debate, o GT de História da África da Anpuh Brasil reuniu seus afiliados por meio dos seus GTs Regionais a fim de colaborar para uma leitura crítica da proposta atual da BNCC, submetida à consulta pública, e apresenta nesta nota algumas considerações a esse respeito.
 
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27 Fev 2016 0 comment
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Desde o final de 2015, acompanhamos a discussão em torno da proposta de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece um currículo mínimo para os Ensinos Fundamental e Médio. Diante da importância desse debate, o GT de História da África da Anpuh Brasil reuniu seus afiliados por meio dos seus GTs Regionais a fim de colaborar para uma leitura crítica da proposta atual da BNCC, submetida à consulta pública, e apresenta nesta nota algumas considerações a esse respeito.
 
A promulgação da lei 10.639/2003, que determinou a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares do ensino fundamental e médio, impactou profundamente as instituições de ensino e pesquisa no Brasil. Desde então, pesquisadores de todo país vêm buscando superar o lamentável distanciamento brasileiro em relação aos estudos africanos desenvolvidos em vários centros estrangeiros a partir dos anos de 1960. Vale dizer que os esforços têm sido bem sucedidos! A empreitada resultou na criação de diversos programas de Pós-Graduação em todo território nacional que, por sua vez, têm feito emergir no cenário nacional e internacional pesquisas que vêm se destacando não apenas pelo volume, mas também pela relevância acadêmica. No momento, já é possível falar de uma contribuição brasileira aos estudos africanos que se particulariza, entre outros aspectos, pelo tratamento das fontes e influência de temáticas e abordagens caras à historiografia brasileira.
 
É preciso apontar que o destaque dado à área de História da África na proposta atual da BNCC é de grande importância e fornece uma contribuição para o ensino de História e para o enfrentamento dos atuais desafios à plena integração social e ao exercício da cidadania no Brasil. Contudo, causa incômodo e estranheza aos historiadores brasileiros, estudiosos da África e promotores de vários eventos, debates e publicações sobre ensino e pesquisa, a elaboração de uma proposta curricular nos termos apresentados na BNCC. Os conteúdos relativos a esse campo do conhecimento não contemplam toda a complexidade das organizações sociais, culturais e políticas africanas, necessária à compreensão da História do continente.
 
A proposta parece desconsiderar os conhecimentos apresentados por uma historiografia contemporânea internacional, inclusive africana e brasileira sobre África. Essa historiografia contemporânea é crítica à perspectiva eurocêntrica, sobretudo no que se refere à abordagem das sociedades africanas que privilegia as noções de estado e formações políticas centralizadas e hierarquizadas.
Isso fica evidente, por exemplo, nos objetivos apresentados para o Oitavo Ano. As referências temporais e espaciais desta unidade são altamente problemáticas, pois organiza a História da África Antiga tomando como um marco histórico central a chegada dos Portugueses (“às vésperas da Conquista”), no século XV. O uso do termo “Conquista”, que neste contexto é especialmente incômodo, expõe claramente uma narrativa eurocêntrica que o currículo supostamente deveria superar.
 
Além disso, chama atenção a menção apenas ao “Reino” do Mali. Porque apenas “Estados Centralizados” importam? Por que não falar de Jenne-Jeno caracterizada como a maior cidade da África subsaariana no século VIII, portanto antes até da expansão do Islã? A história da África novamente cai na antiga concepção de que ela só tem algum valor a partir do momento em que se assemelha aos processos históricos da Europa.
 
As múltiplas formas de organização social e política africanas em geral não podem ser compreendidas na sua totalidade a partir dessas noções: estados, reinos e impérios. Assim, o destaque dado para os chamados grandes impérios e reinos africanos deixa de lado a grande maioria das formações sociais organizadas a partir de outros critérios, que não os de poderes centralizados. A proposta ainda evidencia a não problematização dos limites dessas formações políticas e sequer menciona as conexões e articulações políticas, sociais e econômicas entre os chamados grandes reinos e impérios e as formações sem poder centralizado ou denominadas segmentárias.
 
Ao excluir algumas temporalidades e privilegiar, por exemplo, os processos históricos localizados entre os séculos XVI e XIX, a proposta promove uma visão reducionista da História da África em duas dimensões relacionadas: geográfica e temática. De que África falaremos? Uma África muito específica, recortada geograficamente pelas relações estabelecidas por meio dos nexos com a História do Brasil, isto é, uma África restrita aos espaços de intervenção de portugueses e brasileiros e, notadamente, ao tema do tráfico de escravos.
 
As epistemologias africanas apontam que a produção do conhecimento histórico tem passado por um descentramento em relação aos centros hegemônicos. Em confronto com a episteme eurocêntrica, acenam para visões mais arejadas e sem os vícios das categorias ancoradas no paradigma do pensamento hegemônico. A base teórica dessa perspectiva está ancorada nos estudos que tratam da diversidade, pluralidade e diferença cultural. A urgência dos estudos sobre África serve não só para desfazer estereótipos e classificações arbitrárias de todo tipo, como associar a África unicamente à escravidão, como também deslocar o olhar para novas formas de produção do conhecimento histórico: anti-eurocêntrico, policêntrico, dialógico e antirracista. Estamos em um momento de abertura epistemológica propensa à polissemia de narrativas históricas, menos cartesiana e mais ansiosa por abordagens ancoradas em tradições filosóficas do sul global.
 
Assim, a subtração de conteúdos relacionados à “Antiguidade” e à “Idade Média” africana é bastante problemática. O fato positivo apresentado pela BNCC de romper com a periodização estruturada a partir da História da Europa não deveria implicar a subtração da história das sociedades africanas antes do século XVI. Com isso estamos transformando a História da África, da mesma forma que a historiografia colonial fez, num apêndice da Europa e de suas histórias nacionais, pois ignora as interações históricas do continente africano realizada a partir do Índico, do Mar Vermelho, do Mediterrâneo. Com a atual proposta deixam-se de lado processos históricos importantes e as conexões históricas do continente africano com outras partes do mundo.
 
Dessa forma, desaparecem conteúdos que vem sendo estudados há tempos no âmbito acadêmico e que, a partir da Lei 10.639/2003, têm sido introduzidos paulatinamente nos livros didáticos, como as trajetórias de complexidade social das sociedades na África subsaariana, desde sua época clássica (1000 a.C.- ca.1500), por meio do estudo das correntes migratórias, da diversidade de instituições políticas e como um centro importante de domesticação de alimentos e cereais e que esses cereais, como o Sorgo, foram essenciais na Índia e na China desde 500 a.C., mostrando que várias sociedades africanas eram parte ativa de interações globais no antigo mundo Afro-Eurasiano; a urbanização precoce da África ocidental; os processos de migrações internas; as dinâmicas comerciais mediterrânicas e índicas, as rotas transaarianas do ouro e do sal, dentre outros.
 
Portanto, essa abordagem exclui outros conteúdos também fundamentais para a compreensão da diversidade das sociedades e dos processos históricos africanos, além de romper com uma perspectiva historiográfica atual que privilegia as múltiplas conexões entre os processos históricos locais e globais. Embora a Base se afirme crítica a uma concepção eurocêntrica da História, a fragilidade da formulação da proposta, contrária a essa historiografia mais recente sobre o continente africano, inviabiliza a percepção e a problematização de novas narrativas, muitas vezes alternativas e construídas a partir de lugares e atores diferentes.
Nesse sentido, o documento da BNCC nos encaminha para uma reflexão mais ampla sobre o próprio papel da História na construção do conhecimento. A proposta atual que visa a compreender outros processos históricos restritos apenas aos nexos com a História do Brasil é problemática. Procurar responder aos desafios do ensino de História hoje, tendo como fundamento perspectivas voltadas para a educação intercultural, significa entender a nossa própria história a partir da alteridade, ou seja, uma História não excludente, mas antes apreendida na diversidade, na (inter)relação e na complementaridade.
 
Por fim, a tradição brasileira incorpora a temática das religiões de matriz africana aos Estudos Africanos e ao seu ensino. Nesse sentido, se faz necessário pontuar uma crítica à criação de uma disciplina específica de ensino religioso. Isso não significa que os conteúdos sobre as diversas religiões não possam ser contempladas nas diferentes disciplinas da área de Ciências Humanas. Os conteúdos apresentados na BNCC relacionados às religiões no continente africano são igualmente restritos, embora este seja um campo temático bastante fértil com muitas pesquisas nas diferentes áreas dos Estudos Africanos.
 
Dessa maneira, concordamos que uma transformação como esta no Ensino de História requer uma discussão mais aprofundada que considere as diferentes subáreas e a participação mais ampla de pesquisadores e professores dos diversos níveis de ensino.

GT de História da África da Anpuh Nacional
Associação Brasileira de Estudos Africanos (ABE-África)
26 de fevereiro de 2016

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