Intolerância

Por Ronaldo Vainfas*

Pensar a intolerância, em perspectiva histórica, nos leva a um conceito muito usado nas Ciências Sociais, em especial pela Antropologia e pela História antropológica. Trata-se do conceito de alteridadeoperativo para estudar as relações com o Outroque pode ser um outro cultural, religioso, sexual, étnico, religioso ou qualquer outro grupo. Para utilizá-lo, porém, faz-se necessário definir os lugares sociais do ego e do alter, priorizando a relação, sem esposar as visões ou valeros dos pólos contrastados.

25 Out 2016 0 comment
Pensar a intolerância, em perspectiva histórica, nos leva a um conceito muito usado nas Ciências Sociais, em especial pela Antropologia e pela História antropológica. Trata-se do conceito de alteridadeoperativo para estudar as relações com o Outroque pode ser um outro cultural, religioso, sexual, étnico, religioso ou qualquer outro grupo. Para utilizá-lo, porém, faz-se necessário definir os lugares sociais do ego e do alter, priorizando a relação, sem esposar as visões ou valeros dos pólos contrastados.

Tzvetan Todorov, no seu clássico
A conquista da América (1982), propôs modelo valioso para pensar a questão, a partir de três eixos: a) os juízos de valor; b) as ações de aproximação ou distanciamento de um grupo em relação ao outro; c) o conhecimento ou ignorância em relação ao outro. São todos eixos essenciais, mas vale destacar o último, por ser de caráter epistêmico, ao passo que o primeiro eixo é ideológico, e o segundo, praxiológico.

Traduzindo em linguagem menos teórica, um sujeito social pode rejeitar ou aceitar determinado grupo ou minoria conforme os seus próprios valores; pode se aproximar ou se afastar dele em decorrência de suas tradições e modos de pensar; pode agir deste ou daquele modo, conhecendo ou não ou valores do Outro. De sorte que pensar o binômio intolerância/alteridade é operação muito complexa.

Seria possível, como sabem os historiadores, utilizar esta metodologia para analisar diversas tensões entre diferentes grupos sociais, seja em perspectiva de longa duração, seja em no Tempo Presente. Ela vale para pensar o circo romano, por exemplo, no qual a violência era celebrada como virtude. Gladiadores escravizados combatiam até a morte para delírio da multidão. Cristãos foram entregues a feras famélicas, somente porque eram cristãos, para alegria do público. Violência ao extremo, sacralizada. Natalie Davis, descreveu, por sua vez, a Noite de São Bartolomeu, na França do século XVI, quando crianças, adultos, idosos, homens e mulheres foram massacrados pelos católicos por professarem a confissão calvinista. Intolerância religiosa.

Intolerância sociorracial não faltou à história de vários continentes. O holocausto armênio, perpertrado pelos turcos-otomanos em 1915. O genocídio perpetrado contra os judeus europeus pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial – Shoa, em hebraico. O massacre dos Tutsis pelos Hutus, em Ruanda, nos anos 1980, todos negros, mas de etnias diferentes e rivais. As chacinas perpetradas, na ex-Iugaoslávia, pelos sérvios contra os muçulmanos e os bósnios nos anos 1990.

No atual século, desponta a guerra dos jihadistas contra as populações do Ocidente, seguidas de ataques ocidentais contra populações islâmicas em toda parte. Discriminação descarada, no mínimo. O conflito israelense-palestino, que vem de longe, dá outro exemplo. Mas quem são os opositores? Do lado israelense, um governo que não admite o Estado palestino. Do lado palestino, grupos radicais que rejeitam a existência de Israel. Os trabalhistas israelenses e a tradicional OLP – moderados e lúcidos – são sufocados na marra. Os beligerantes radicais precisam um do outro para lançar seus mísseis, apostando no impasse.

As tensões mencionadas em vários tempos e sociedades têm uma dimensão econômica, cultural e política. Sem determinismos de quaisquer tipos.

No Brasil atual, a intolerância também faz fortuna. Mas, cá entre nós, comparada às tragédias citadas, as intolerâncias brasileiras são pálidas, pífias. Tudo muito diferente da crise de 1964, que deu no que deu, por vinte anos. Hoje, partidos que foram sócios por anos – PT e PMDB – se acusam, mutuamente, de serem ladrões ou de perpetrarem golpes contra a democracia. O linguajar do debate é de um primarismo notável. Os contendores não conhecem um ao outro ou fingem não conhecer. Trata-se, para retomar o modelo de Todorov, de uma ignorância epistêmica, voluntária, militante - de ambos os lados.

A intolerância política no Brasil atual longe está se ser uma tragédia, para usar um conceito da dramaturgia grega. É um tanto farsesca, devo dizer, para citar, desta vez, o teatro medieval. Mas é, sobretudo, uma comédia. Com vários palhaços. Nenhuma vítima, nem heróis.


* Ronaldo Vainfas é Professor Visitante da UERJ - Faculdade de Formação de Professores. Membro do colegiado da Pós-Graduação em História da UFF. Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Pesquisador I-A do CNPq.




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