MANIFESTO DA ANPUH SOBRE OS PROJETOS DE REFORMULAÇÃO DO ENSINO BÁSICO

Nos últimos anos, o debate sobre reformulações do currículo da Educação Básica adquiriu novo impulso, o que tem sido estimulado por discussões em torno do novo Plano Nacional de Educação – PNE, pela divulgação dos indicadores educacionais aferidos no sistema nacional de avaliação, e por diagnósticos sobre os problemas educacionais do país elaborados por várias instituições públicas e privadas. Na pauta das discussões, a questão do currículo divide espaço com um amplo conjunto de temas como a chamada "alfabetização na idade certa", a "reformulação do ensino médio", os "direitos de aprendizagem", a "educação em tempo integral", "o ensino técnico profissionalizante", dentre outros.

Participam desse debate público vários agentes localizados em distintos espaços sociais e institucionais. No âmbito do poder federal o Ministério da Educação - MEC, o Conselho Nacional da Educação - CNE, e o Congresso Nacional, cada um com atuações distintas, têm promovido diferentes discussões e propostas sobre esses temas. O MEC, por exemplo, está promovendo a elaboração de um documento sobre os chamados "Direitos de Aprendizagem", cuja versão preliminar foi lançada em 2012, e que agora, parece, deve se estender para toda a Educação Básica. O CNE produziu, nos últimos anos, um conjunto de novas Diretrizes Curriculares para a Educação Básica, e tem promovido várias discussões sobre o tema do currículo. No Congresso Nacional uma comissão especial formulou o Projeto de Lei nº. 6840/2013, atualmente em tramitação, que propõe alterar a LDB 9394/96 para ampla reformulação do Ensino Médio. Ao lado dessas iniciativas de âmbito nacional, alguns estados e municípios apresentam novas propostas de organização do ensino e dos currículos, afetando inclusive a formação de professores.

Uma das vertentes desse debate defende que do ponto de vista do currículo tem ocorrido um "inchaço", cuja solução seria a supressão de disciplinas e/ou a criação de áreas de conhecimento integrando diversas delas num único campo de saber. Segundo essa perspectiva vivemos uma avalanche de propostas para inclusão no currículo da Educação Básica de novas "disciplinas" como Cultura indígena e afro-brasileira, Cultura da Paz, Leitura e Educação para as Mídias, Cooperativismo, Filosofia, Sociologia, Música, dentre outras. Argumenta-se que este processo tem sido alimentado por pressões corporativas e ideológicas que agravam as distorções do sistema educacional brasileiro, transformam a escola em palco de proselitismo político e reduzem a carga das disciplinas básicas como Português e Matemática, colaborando para uma formação e alfabetização deficientes. Para evitar o "entulhamento" do currículo e a "desfiguração" da Educação Básica propõe-se que a organização curricular fique a cargo de órgãos técnicos, e que se dê autonomia para as redes escolares definirem o que consideram necessário para a formação dos alunos, propondo que as novas "disciplinas" se tornem conteúdos das disciplinas consideradas básicas.

No entanto, reformular currículos não é uma mera e simples tarefa técnica, pois significa intervir em um campo carregado de representações e de interesses. A elaboração de um currículo não pode ser vista como atividade técnica, neutra, baseada em definições óbvias e escolhas naturais. As disputas sobre o currículo expressam diferentes perspectivas sobre quais conhecimentos são considerados válidos, e que tipo de pessoas queremos formar, ou que subjetividades desejamos engendrar. O currículo é a resposta a um determinado plano formativo, que define uma seleção da cultura que pretende chegar à formação mais ideal, ou mais legítima, num dado momento histórico e que se projeta para o futuro.

Portanto, qualquer reorientação curricular significa uma incursão num território, no mínimo, contestado. Trata-se de um processo que envolve decisões políticas, pedagógicas e ideológicas, que exige escolhas que se definem a partir da função social que pensamos possa e deva ter a escola num projeto de futuro para as novas gerações.

As escolhas e seleções curriculares, principalmente, precisam estar atentas e sintonizadas com o atual momento histórico da sociedade e da escola; necessitam considerar os debates educacionais, as discussões de fundo epistemológico, e os diálogos de cada campo de conhecimento; exigem pensar aquilo que precisamos mudar diante das novas demandas que atravessam a sociedade nos mais diferentes campos, desde a ética, passando pelas transformações do mundo do trabalho, até as novas sociabilidades e formas de conhecimento gerados pela cultura digital; requerem reflexão ampla e atenta sobre as expectativas e perspectivas que pensamos para as novas gerações em todos os âmbitos da vida humana, numa sociedade cada vez mais diferenciada, variável e complexa, e que necessita do apoio da educação para afirmação de valores básicos da democracia, da cidadania, do desenvolvimento econômico e socialmente sustentável e do combate às desigualdade sociais e às formas de violência e discriminação que atingem vários grupos de nossa sociedade.

Diante desses desafios seria muito empobrecedor pensarmos que um processo de reelaboração curricular se encerra apenas na produção de um conjunto de documentos impressos em papel e encadernados em capa dura. Tais movimentos em torno do currículo da Educação básica, sabemos, (re)definem o lugar das disciplinas e formas de organizar os saberes no currículo escolar; impactam as formas de produzir materiais didáticos; e trazem desdobramentos importantes para a formação do professor.

Em outras oportunidades, a Associação Nacional de História (ANPUH) posicionou-se publicamente sobre esses debates curriculares, e manifestou-se contra propostas de redução da carga horária destinada ao ensino da disciplina de História nas escolas públicas, e denunciou práticas antidemocráticas de formulação das políticas curriculares, feitas à revelia dos professores e ferindo a autonomia didática das escolas e dos profissionais da educação.

Mais uma vez, a entidade vem a público expressar preocupação quanto à forma redutora como vem se encaminhando o debate de tema tão complexo, que opõe de forma dicotômica os propositores de um currículo restrito ao básico contra os supostos defensores de currículo escolar inchado e ideologicamente proselitista. Recusando escolhas simplistas e superficiais, temos apontado para a necessidade de aprofundamento das discussões curriculares tendo em vista um projeto mais amplo de construção de uma Educação Básica pública de qualidade. Além disso, a ANPUH vem atuando para ampliar os fóruns para realização desses debates, que precisam incluir de maneira mais abrangente as entidades representativas de professores e pesquisadores da educação.

Construir um currículo para Educação Básica que atenda às complexas demandas da sociedade brasileira contemporânea não é questão simples, e certamente, as soluções não serão encontradas em gabinetes de equipes técnicas. Por isso, defendemos a urgência de um debate público, amplo e aberto que coloque o currículo na perspectiva de construção de uma Educação pública democrática e de qualidade.

Nesse sentido, a ANPUH vem demandar dos candidatos à presidência da República que se comprometam a convocar as entidades representativas dos profissionais da educação, e demais interessados, para amplo debate sobre os projetos de reformulação do ensino atualmente em pauta nos diferentes níveis do poder público. Solicitamos que os projetos em processo de elaboração sejam paralisados até que tais debates possam ocorrer.

No nosso entendimento, a disciplina história tem um papel fundamental no ensino escolar, e os profissionais responsáveis, os historiadores, devem ter a oportunidade de oferecer a sua opinião em qualquer processo de reformulação das estruturas curriculares. Acreditamos que a nossa voz precisa ser ouvida nesse debate, de modo a contribuir para que a sociedade e o Estado definam políticas que atendam melhor ao interesse público.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH