PORQUE VALE A PENA REGULAMENTAR A PROFISSÃO DE HISTORIADOR

Rodrigo Patto Sá Motta

 

*Nota: Este texto foi escrito por solicitação de uma das revistas A1 da nossa área, que pretendia publicar um debate sobre o tema da regulamentação profissional do historiador, com um artigo favorável e outro contra a iniciativa. No entanto, os editores desistiram da sua intenção original ao não conseguirem quem escrevesse um texto defendendo posição contrária. Foi uma pena, perdemos a oportunidade de debater melhor o tema. De qualquer modo, achei que valeria a pena publicar o texto nas redes da ANPUH, para estimular o debate entre nossos associados.

 

Quando convidado a escrever texto de contribuição ao debate sobre a regulamentação da profissão de historiador – aliás, louvável iniciativa da revista -, os editores ressaltaram que não precisava assumir a posição de representante da ANPUH, melhor seria manifestar-me apenas como historiador. Pretendo seguir essa orientação, até porque procedimento diferente demandaria a aprovação prévia dos meus colegas de Diretoria. Além disso, a possibilidade de expressar opiniões próprias agrada-me bastante, pela maior liberdade para argumentar e apresentar ponto de vista pessoal.

No entanto, é impossível desvincular minha opinião das funções que ocupo atualmente na ANPUH, especialmente porque meu ponto de vista mudou ao assumir o comando da entidade. Faço o registro porque ele pode interessar a outros colegas e, talvez, leve-os a pensar o tema por outro ângulo. Antes de ser convidado para disputar a presidência da ANPUH, nunca havia refletido detidamente sobre a questão da regulamentação profissional. Não me parecia assunto prioritário, nem urgente. Como outros, eu tinha alguma reticência em relação à ideia, que parecia rescender a um certo espírito estadonovista. Porém, era uma opinião superficial, sem base em reflexão cuidadosa ou estudo de outras variáveis envolvidas.

Naturalmente, as obrigações assumidas com a Associação forçaram-me a abandonar essa posição acomodada e a enfrentar seriamente o assunto. Esse movimento, que passou por pesquisas, leituras e conversas com diferentes pessoas e profissionais levou-me a assumir opinião francamente favorável à regulamentação, por razões que serão esclarecidas ao longo do texto. Convenci-me da oportunidade da lei ao perceber que o problema central não era suposto risco à liberdade, mas, a existência de um quadro institucional brasileiro que estimula – para não usar palavra mais forte – todas as profissões a buscarem amparo no sistema legal.

No mesmo momento em que me dediquei seriamente ao tema da regulamentação, quando se iniciava a nossa gestão na ANPUH, por sorte ou azar, não sei, mas, com certeza, de forma totalmente surpreendente, a questão acabou se tornando uma cause célèbre em alguns círculos acadêmicos e até em setores da imprensa. Considerando a cordialidade e o compadrio tradicionais nos nossos meios, em combinação com as tendências mais recentes de busca de sucesso individual a qualquer custo, não deixa de ser interessante ver a nossa comunidade engajada intensamente em debate que envolve interesses mais amplos.

O lado ruim das polêmicas acaloradas – embora isso seja inevitável quando os debates assumem feições políticas – é que a polarização gera temores e suspeitas infundadas, provocando desgaste desproporcional se considerarmos o que está realmente em discussão. Por isso, é importante afirmar: a liberdade não está em jogo aqui, essa é uma questão mal colocada. Chegaram a circular alguns argumentos realmente estapafúrdios, como insinuações de que se trataria de plano de grupo interessado em controlar o campo da história. Na mesma linha, alguns colegas chegaram a pensar que a proposta legislativa – sem tê-la lido, é claro – previa a criação de conselho profissional, nos moldes existentes nas profissões tradicionais. No caso da História, isso nos levaria ao assustador cenário de um pequeno grupo de conselheiros com poder para pautar o trabalho da área, em uma espécie de versão deformada da caricatura de um regime totalitário. Claro que isso não passa de uma fantasia, um sonho ruim. Em nenhuma das suas versões o projeto de lei previu a criação de estruturas desse tipo, que seriam repelidas por qualquer historiador minimamente sério. O texto do projeto, na verdade, presta-se a definir o perfil do profissional historiador, seguindo os mesmos parâmetros existentes para inúmeras outras profissões já regulamentadas pelo Congresso.

O que está em jogo, realmente, é a necessidade de adequação às tradições institucionais do Brasil. Nós não vivemos na Inglaterra nem nos Estados Unidos, países de sólidas estruturas e cultura liberais. Nestas plagas o mercado se combinou ao Estado, muitas vezes tirando proveito dele para fins de lucro privado. Com frequência, vemos ardorosos defensores da liberdade se agarrarem sofregamente ao Estado quando têm a oportunidade. No próprio debate sobre a regulamentação da profissão de historiador encontramos esse tipo de situação. Alguns atores criticam acerbamente a iniciativa, alegadamente por não suportarem o corporativismo, porém, não se furtam de receber algumas verbazinhas do Estado em condições privilegiadas. Na mesma linha, há quem critique com rigor a lei da profissão de historiador, mas sem questionar a existência de legislação idêntica para as profissões de químico, biólogo, psicólogo, economista, geógrafo, museólogo, arquivista e sociólogo, para dar alguns poucos exemplos retirados de diferentes campos do saber. Essas e muitas outras profissões foram regulamentadas pelo Estado brasileiro há anos e jamais ouvimos falar de polêmicas sobre os riscos à liberdade de conhecimento em tais áreas, ressaltando que algumas delas têm características epistemológicas semelhantes à História.

Vejamos o problema central, o que me convenceu da oportunidade de uma lei para os historiadores. Nas tradições do Estado brasileiro, a ausência de lei regulamentadora implica desvantagens profissionais significativas. Os órgãos públicos como Tribunais, Casas Legislativas, Arquivos, Bibliotecas, Museus etc só podem fazer concurso para historiador se houver a regulamentação. Na ausência da lei deixam de abrir vagas para esses profissionais ou, em certos casos, lançam mão de arranjos ou improvisações. Simples assim. Nós poderíamos ficar esperando o Brasil se tornar um país de instituições realmente liberais – o que pode demorar um pouco, em vista das peculiaridades já apontadas do nosso liberalismo – ou, então, trabalhar por uma regulamentação que atenda às demandas profissionais, sem prejuízo da liberdade de pesquisa e de expressão. Eu prefiro a segunda opção.

Portanto, o que está em jogo, principalmente, é uma iniciativa legislativa que vai retirar obstáculos à contratação de historiadores nos órgãos públicos, com possíveis desdobramentos positivos para a formação profissional, ao tornar a carreira um pouco mais atraente para os jovens. E isso não é coisa de somenos, para quem conhece a realidade da nossa graduação. O outro objetivo do projeto é garantir que somente profissionais com formação específica lecionem no ensino básico (fundamental e médio). O projeto de lei prevê que apenas historiadores licenciados devem lecionar a respectiva disciplina no ensino fundamental e médio. Parece-me a coisa certa a fazer, assim como aulas de Física devem ser ministradas por físicos licenciados, aulas de Biologia por biólogos etc. Algumas pessoas alegam que não há profissionais formados no mercado em número suficiente. Afirmação controversa, pois sabemos que inúmeros licenciados não se sentem estimulados a atuar como professores. É porque as condições de trabalho para os professores no Brasil são lamentáveis. Cabe ao Estado mudar isso e o principal problema são os baixos salários (embora não seja o único), como todos sabemos, apenas os nossos líderes parecem não perceber, pois priorizam todos os outros problemas antes de enfrentar a questão salarial.

Reiterando, a lei poderá fortalecer a graduação em História, atrair mais jovens talentosos e valorizar a profissão. E a formação universitária deve mesmo ser valorizada, até para que possamos superar as deficiências existentes. Devemos reconhecer que a Universidade é o lugar adequado para a formação de historiadores. É um espaço privilegiado para a realização de reflexões, debates, discussões teóricas e treinamento em técnicas e metodologias de pesquisa. O estudante aprende com o professor, mas também com seus colegas e com as estruturas que a instituição oferece. Verdade que grandes historiadores não fizeram esse percurso e nem por isso os consideramos menos. São nossos mestres, nós os lemos, homenageamos e indicamos seus textos às novas gerações de alunos. Ninguém de bom senso pretenderia tirar-lhes o título de historiador, que eles ganharam por merecimento. Porém, é preciso perceber que os tempos são outros. Décadas atrás não havia formação universitária em História e o quadro mudou muito. Além disso, em certos casos trata-se de pessoas excepcionais, acima da média, ou, então, que levaram anos aprendendo sozinhos. Quando pensamos em políticas gerais de formação profissional, o foco deve privilegiar as médias e não as situações excepcionais, de outro modo não seria possível atender às necessidades da sociedade.

Não obstante a ênfase nos cursos de graduação e pós-graduação em História como lugares privilegiados de formação profissional, a ideia não é “fechar as fronteiras”, o que seria tolice em tempos de esgarçamento dos limites disciplinares. Por essa razão, a ANPUH negociou com outras entidades interessadas (principalmente a SBHC e a SBHE) algumas mudanças no projeto de lei que tramita no Congresso, para não deixar margem a interpretações equivocadas. Fizemos três intervenções mais importantes, todas no sentido de ampliar o escopo dos que serão considerados historiadores com base na lei. Tal como em outras leis profissionais semelhantes incluiu-se um inciso para contemplar pessoas que trabalham como historiadores há pelo menos cinco anos. Pelo que sabemos da realidade do mercado de trabalho, essa mudança vai contemplar principalmente professores do ensino básico que lecionam História sem a devida formação universitária.

Outra novidade importante foi incluir as pessoas com títulos de Mestrado ou Doutorado obtidos em Programas de Pós-Graduação com área de concentração ligada a outro campo do saber, mas que tenham linhas de pesquisa regulares dedicadas à História (da Educação, da Ciência, da Arte etc). Assim, por exemplo, quem fizer uma tese sobre História da Educação dentro de um PPG da área de Educação será considerado historiador também. Com isso, ficam preservados – e valorizados – os espaços interdisciplinares que aproximam a História de outros campos do saber. Finalmente, para não deixar dúvidas que a autonomia das Universidades deve ser preservada, propusemos retirar do projeto de lei a menção ao ensino superior como atribuição dos historiadores. Assim, ficará mantido o quadro atual – pessoalmente, parece-me a situação ideal -, em que o perfil dos docentes para atuação no ensino superior é definido pelas instituições universitárias (Câmaras, colegiados, bancas).

Portanto, se a proposta atual vier a ser aprovada como lei, teremos a lei de regulamentação profissional mais flexível entre todas as existentes. Para fazer concurso para historiador em áreas técnicas do serviço público (Tribunais, Arquivos etc) e para lecionar a disciplina no ensino fundamental e médio será exigida a formação específica. Porém, a contratação para a docência superior permanecerá a critério das próprias Universidades. Além disso, como era óbvio mesmo no projeto original – já que nenhuma lei ordinária pode se sobrepor à liberdade de expressão -, continua livre a pesquisa e a publicação. Portanto, a lei se prestará a regular parte do mercado de trabalho, com exceção do ensino superior. Mas, não vai restringir a produção do conhecimento histórico. Ainda assim, para aqueles que produzem conhecimento histórico sem ter a devida formação universitária e desejem um título formal, permanece aberta a possibilidade do notório saber, que pode ser concedido pelas Universidades.

Concluo reiterando a importância de aprovar uma lei para a profissão de historiador. Ela terá efeitos significativos em certos segmentos do mercado de trabalho e, talvez, venha a contribuir para fortalecer a graduação em História. Não exageremos, porém. Nada vai mudar na área da pesquisa, da pós-graduação e na produção do conhecimento histórico. A liberdade de expressão continuará intocada, pelo menos não será essa lei que vai agredi-la. De outro modo, eu seria o primeiro a ficar contra.