NOTA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PROFESSORES DE HISTÓRIA – SEÇÃO ESPÍRITO SANTO SOBRE EPISÓDIO DO PROGRAMA ESCOLAR

A Anpuh-ES, associação que representa academicamente os historiadores do Espírito Santo – professores e pesquisadores da área -, reconhece o momento atípico vivido pelo mundo e o quanto nossas rotinas foram impactadas pelo Covid-19, exigindo da sociedade e dos gestores públicos soluções não previstas para o enfrentamento dos desafios que se desdobraram da situação sanitária. A adequação das respostas a tais desafios ainda não nos cabe avaliar, posto haver múltiplos e complexos fatores sociais envolvidos. Contudo, do ponto de vista da ciência histórica e dos documentos educacionais vigentes, temos algumas considerações relativas ao Programa EscoLAR, ora implementado pela Secretaria de Educação do estado do Espírito Santo, no que tange ao material indicado para a disciplina de História.

Primeiramente, é preciso lembrar que a operação historiográfica se faz a partir de procedimentos científicos, segue métodos, pauta-se pela crítica das fontes e a busca de evidências diversificadas, cotejando-as com o estado da arte no campo. Por isso, nem todas as interpretações do passado têm o mesmo valor. Algumas podem ser tomadas como opiniões pessoais, oriundas do senso comum, o que nos permite reclamar um realismo crítico ao ofício do historiador e um cuidado na seleção de materiais para fins didáticos. Portanto, a aceitação do pluralismo não inclui compactuar com preconceitos e diferentes formas de opressão. Nos dias que correm, a questão da verdade não é debate restrito ao universo acadêmico, com repercussão somente nas polêmicas sobre os limites do conhecimento. Neste momento, em que estão em disputa representações sobre o passado, a demanda por verdade implica também desafios de ordem política e jurídica e o claro compromisso com o fazer histórico.

No caso específico do ensino escolar, o impacto desse tipo de relativismo gera confusão e insegurança em relação ao valor do conhecimento histórico. É o que observamos no material adotado pelo Programa EscoLAR, especialmente no que tange ao episódio intitulado “2017 – Ensino Médio – 1 ano – História – Aula 01 – Parte 01”, por meio da tentativa de subsidiar o debate historiográfico a partir de opiniões de indivíduos que não possuem credenciamento acadêmico para isso. É o caso da citação direta a Olavo de Carvalho, no referido material. Este senhor é identificado como “filósofo”, com o seguinte texto expresso em um slide: “História é um processo sem limite – infinito, que se entrelaça com outro processo limitado que é a vida humana”. Na sequência, o professor que ministra a vídeo aula faz considerações sobre o trecho. O objetivo é o de discorrer, de forma resumida e conclusiva, sobre certa definição de História. Todavia, há um grande número de pessoas, com autoridade no campo intelectual, que propuseram definições de História, todas mais relevantes e operacionais que esta. Como comunidade acadêmica de operadores da ciência histórica, desconhecemos que o Sr. Olavo de Carvalho tenha formação de historiador ou filósofo. Seus textos não são considerados relevantes nas discussões sobre teoria ou metodologia no campo da História. Como prova, basta que se pesquise seu Currículo Lattes ou sua relevância em plataformas de produção acadêmica.

Não é problema que autores de literaturas em geral tenham seus posicionamentos políticos e ideias próprias sobre quaisquer assuntos. Não somos, portanto, paladinos do monopólio da crítica, o que inviabiliza qualquer diálogo minimamente frutífero. Porém, é indispensável que, ao serem citados em material didático gravado, destinado a alunos em formação, que os autores utilizados sejam reconhecidos pelos seus pares como autoridades no campo, com contribuição relevante para a disciplina, o que não é o caso do indivíduo citado. E, no caso de uma citação provocativa à reflexão, é necessário que esta apareça devidamente contextualizada.

Ademais, o material disponibilizado apresenta um descompasso entre as abordagens atuais da historiografia, incluindo-se aí erros factuais sem qualquer comparação com a literatura especializada. Este fato traduz-se em prejuízo pedagógico aos alunos da rede, uma vez que veicula conceitos e informações equivocadas, do ponto de vista da História, desconsiderando a produção da área e o diálogo dos historiadores locais com a comunidade científica internacional. A urgência do momento não se deve sobrepor ao rigor acadêmico e educacional, sob pena de maiores prejuízos na formação de nossos jovens.

Assim sendo, a Diretoria da Anpuh-ES recomenda que o material adotado seja submetido a revisão e adequação pela SEDU-ES antes de ser veiculado e utilizado pelos professores e professoras de História da rede estadual. Sugere-se, ainda, que futuros conteúdos virtuais, desta ou de qualquer outro campo do conhecimento, sejam rigorosamente submetidos a análise da área antes de sua adoção.

Neste momento de tensões acumuladas, acreditamos na necessidade fortalecer os canais de diálogo com os diferentes campos de conhecimento e nos colocamos à disposição para contribuir com os entes públicos e com a sociedade capixaba na produção de um saber comprometido com uma comunidade menos desigual e mais democrática.

Vitória, 17 de abril de 2020.

Diretoria da Anpuh - ES