CARTA DO GT DE HISTÓRIA DA ÁFRICA DA ANPUH A TODOS OS PROFESSORES DE HISTÓRIA

Mais um homem negro assassinado no Brasil. Mais uma vítima do racismo. No dia 19 de novembro de 2020, a vítima foi João Alberto Silveira Freitas, em Porto Alegre. Quem será amanhã? Onde será? Nós, professores e pesquisadores de História da África, estamos fartos de saber do caráter velado do racismo no Brasil, de sua constante negação por autoridades políticas e setores da sociedade que usufruem da branquitude recusando-se a perceber a imoralidade dos privilégios de raça que lhe são conferidos diuturnamente. Estamos fartos de presenciar a dor daqueles que são privados do convívio com familiares e amigos que não puderam usufruir da própria vida por terem sido mortos, às vezes por forças do Estado, por “seguranças”, pela violência urbana cujas balas perdidas insistem em encontrar corpos pretos. Estamos fartos de apontar estatísticas que indicam a matança anual de pessoas negras no Brasil, que apontam a desigualdade de acesso aos recursos públicos, como educação e saúde, que não deixam dúvidas sobre como a cultura do racismo é construída no dia a dia, em piadas supostamente inocentes que ceifam expectativas, destroem autoestimas, encurtam vidas.

Diante disso, esta não é mais uma carta de repúdio. É uma convocação a todos os professores e professoras de História no Brasil para engajarem-se verdadeira e profundamente na produção de uma educação que seja antirracista. Uma educação comprometida a revisar todo o currículo escolar, explicitar e superar seus resíduos eurocêntricos. Que a História reveja a narrativa da história brasileira e seja firme na apresentação dos legados das culturas africanas ao lado das europeias e indígenas. Que não se ensine nas escolas brasileiras uma história nacional cujo foco está no elogio da colonização interna levada a cabo por uma elite branca e supostamente representante da nacionalidade. Que se ensine, sim, como brancos, negros, indígenas e descendentes de asiáticos construíram este país. Que nossa história seja vista em sua diversidade, que os monumentos escolhidos para serem rememorados nas praças públicas sejam comprometidos com o presente que desejam. Que as estátuas de homens escravistas espalhadas pelo Brasil sejam vistas como índice de vergonha. Que tenhamos coragem de reconhecer, no passado, a violência que nos formou enquanto país e que ainda grassa entre nós, todos os dias, atingindo os direitos de minorias, em especial as pessoas negras e indígenas.

Que por “educação das relações étnico-raciais” não se entenda discutir “o negro”, expondo crianças negras a olhares constrangedores vindos de seus colegas, nas escolas. Que o foco esteja nas relações, o que significa discutir o que são e como se construíram a branquitude e a negritude neste país. Qual o papel dos brancos na promoção do racismo e em sua superação? Quais os impactos do racismo no massacre à autoestima e nas expectativas da população negra? Como resgatá-la? Quais os legados culturais, políticos, econômicos, científicos e sociais das culturas negras e indígenas que precisam ser reconhecidos nas escolas e na sociedade, ao lado daqueles das culturas brancas? Como reeducar as relações sociais entre brancos, negros, indígenas, descendentes de asiáticos, no Brasil? Como promover uma educação das relações étnico-raciais que seja para todos e que sirva aos interesses da sociedade em seu conjunto? Todos somos afetados pelo racismo: somos privilegiados ou somos vítimas. Todos estamos sujeitos aos distúrbios causados pelo racismo: a desigualdade de acesso às oportunidades, a precariedade seletiva de serviços públicos e seus impactos na produção da violência urbana e no empobrecimento de todos nós enquanto povo. O racismo é o grande problema que assola a sociedade brasileira. Sua solução passa pela escola.

Por isso, conclamamos todos os professores, todas as professoras a envidarem esforços intelectuais, acadêmicos, sociais, culturais e políticos na promoção de projetos de extensão, de diálogos com as comunidades próximas às universidades, com a promoção de cursos complementares para formação inicial e continuada de professores de História para lidarem com os dilemas de uma sociedade racista na sala de aula. Estamos fartos da pedagogia do silêncio sobre a raça nas escolas e em nossos próprios departamentos. Estamos fartos de fazer ouvidos moucos para pequenos comentários racistas em nosso dia a dia, principalmente nas universidades. Precisamos colocar nosso conhecimento a serviço da luta antirracista e, para isso, precisamos também reconhecer qual é o nosso lugar – enquanto sujeitos históricos, sociais, políticos e racialmente definidos – nesta luta. Estamos fartos de vermos pessoas negras morrerem.

Nossa atuação profissional possibilita-nos enfrentar este problema, mas isso precisa ser feito de forma programática, decidida, planejada e constante. Não é “falar sobre escravidão”, discutir “o problema do negro”. A prática é possível quando revemos os programas de nossos cursos e solucionamos desequilíbrios causados pela ausência de autores negros. Quando reconhecemos nossos pares negros nos convites que fazemos para bancas, eventos, publicações. Quando buscamos diálogos com as escolas públicas e particulares próximas às nossas universidades e nos dispomos a conversar com alunos brancos e negros sobre o que significa ser branco e o que significa ser negro no Brasil. Enquanto professores e, sobretudo, formadores de professores, precisamos educar pelo exemplo, construído em nossas práticas acadêmicas cotidianas. Esta é nossa principal arma no combate ao racismo que, ao lado da revolta popular, do boicote às empresas apoiadoras e perpetuadoras do racismo, da aplicação da legislação antirracista e da pressão sobre governantes para promoção e efetivação de políticas pela igualdade racial, pode mudar o Brasil. Nosso engajamento precisa superar a expressão do repúdio e do luto e envolver-se profunda e verdadeiramente na luta. Este é o nosso convite a todos os professores, em especial aos de História.

Porto Alegre (RS), Recife (PE), Viçosa (MG), 22 de novembro de 2020.


Coordenação do Grupo de Trabalho de História da África – ANPUH

Prof. José Rivair de Macedo (UFRGS)
Prof. Luiza Nascimento Reis (UFPE)
Prof. Thiago Henrique Mota (UFV)